UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS LUCAS APARECIDO COSTA TENTATIVA CATÓLICA DE MODERNIDADE: O CONCEITO DE PESSOA HUMANA E SUA REALIZAÇÃO HISTÓRICA (1960-1980) FRANCA 2014 LUCAS APARECIDO COSTA TENTATIVA CATÓLICA DE MODERNIDADE: O CONCEITO DE PESSOA HUMANA E SUA REALIZAÇÃO HISTÓRICA (1960-1980) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, como requisito para a obtenção do título de doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Social. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. FRANCA 2014 Costa, Lucas Aparecido. Tentativa católica de modernidade: o conceito de pessoa hu- mana e sua realização histórica (1958-1982) / Lucas Aparecido Costa. – Franca : [s.n.], 2014 233 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. 1. Igreja e problemas sociais – Igreja Catolica. 2. Direitos huma- nos – Aspectos religiosos – Igreja Catolica. 3. Igreja Católica – Bra- sil. I. Título. CDD – 261.8 TENTATIVA CATÓLICA DE MODERNIDADE: O CONCEITO DE PESSOA HUMANA E SUA REALIZAÇÃO HISTÓRICA (1960-1980) Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, faculdade de Ciências Humanas e Sociais, como requisito para a obtenção do título de doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Social. BANCA EXAMINADORA PRESIDENTE: ___________________________________________________________________ Dr. Ivan Aparecido Manoel 1º EXAMINADOR: ___________________________________________________________________ 2º EXAMINADOR: ___________________________________________________________________ 3º EXAMINADOR: ___________________________________________________________________ 4º EXAMINADOR: ___________________________________________________________________ FRANCA 2014 Aos meus pais, João e Corina, com muito amor. AGRADECIMENTOS A Deus por tudo. À minha família que me amparou em todos os momentos: meus pais, João e Corina, e minhas irmãs, Elaine e Tatiana. Ao prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel pela orientação e amizade. À profa. Dra. Márcia R. C. Naxara pelo suporte necessário. Às bibliotecárias da UNESP- Franca: Laura Jardim e Eliana Silva. Aos funcionários da Seção da Pós-graduação da UNESP-Franca: Maísa, Mauro e Luzinete. Aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), do Centro de Documentação e Informação Científica (CEDIC-PUC) e à Luíza do Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV). À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – pela concessão inicial. De maneira especial, agradeço à Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cuja bolsa permitiu que eu realizasse a pesquisa nos arquivos da cidade de São Paulo, como também, participasse de congressos, seminários e simpósios – importantes na formação do historiador. Ao meu amigo Marco A. Baldin. “Faça, e tudo se fará” (JOC) COSTA, Lucas Aparecido. Tentativa católica de modernidade: o conceito de pessoa humana e sua realização histórica (1960-1980). 2014. 233f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2014. RESUMO A presente tese de doutorado, intitulada Tentativa católica de modernidade: o conceito de pessoa humana e sua realização histórica, tem por escopo demonstrar como a Doutrina Social da Igreja (DSI) firmou, entre os anos de 1960 e 1980, o seu conceito de pessoa humana. Não se pode perder de vista, entretanto, que a ideia católica acerca do homem gestou-se no período anterior ao arco de tempo delimitado nesta pesquisa, precisamente nos pontificados de Leão XIII, Pio XI e Pio XII. No Brasil, o conceito de pessoa humana expresso no ensino social católico se incorporou e orientou a prática do laicato católico e de setores da hierarquia eclesiástica, grosso modo, progressistas, em dois momentos distintos das décadas de 1960 e 1970. Temos, na primeira ocasião, a existência da Juventude Universitária Católica (JUC) e do movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961-1964), os quais, objetivando justificar suas opções políticas, lançaram mão de preceitos originários do catolicismo social – referência seja feita à contribuição de L. J. Lebret, E. Mounier e, sobretudo, J. Maritain. Na década subsequente, a presença de setores católicos tencionando fundamentar sua linha de ação na Doutrina Social da Igreja, se fez sentir na posição de determinados bispos e no trabalho, na Grande São Paulo, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Pastoral Operária (PO). A busca por colocar em prática ideias provenientes do catolicismo social é entendida nesta tese como uma aposta de muitos leigos e mesmo de frações significativas da hierarquia eclesiástica, de se resolver o “problema da pessoa humana”. Esse trajeto, no qual se envolveram clérigos e fiéis, teve como orientação a proposta de uma tentativa católica de modernidade, na qual dois modos de ser Igreja se entrecruzaram ao longo das décadas de 1960 e 1970. Palavras-chave: Igreja Católica. Doutrina Social da Igreja (DSI). Pessoa Humana. Tentativa católica de modernidade. COSTA, Lucas Aparecido. Catholic Attempt of modernity: the concept of human person and its historical realization (1960-1980). 2014. 233f. Thesis (PhD in History) - Faculty of Humanities and Social Sciences, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2014. ABSTRACT The present doctor’s thesis, entitled Catholic attempt of modernity: the concept of human person and its historic achievement aims to demonstrate how the Social Doctrine of the Church (DSI) established, between 1960 and 1980, its concept of the human person. It is necessary to focus, however, that the Catholic idea about the man was carried in the period prior to the arch of time bounded in this research, precisely in the pontificates of Leo XIII, Pius XI and Pius XII. In Brazil, the concept of human dignity expressed in Catholic social teaching incorporated and guided the practice of Catholic laity and sectors of the ecclesiastical hierarchy, roughly, progressives, at two different times of the decades of 1960 and 1970. We have, on the first occasion, the existence of the Catholic University Youth (JUC) and the social movement and weekly Brazil, Urgent (1961-1964), which, in order to justify their policy options, made use of precepts originating in social Catholicism – reference is made to the contribution of L. J. Lebret, E. Mounier and, above all, J. Maritain. In the subsequent decade, the presence of Catholic sectors intending to justify his course of action in the Social Doctrine of the Church, was shown in the position of certain bishops and at work, in São Paulo, the Basic Ecclesial Communities (CEBs) and the Worker Pastoral (PO).The attempt of putting into practice ideas from social Catholicism is understood in this thesis as a bet of many laymen and even significant fractions of the ecclesiastical hierarchy, to solve the "problem of the human person". This path, which involved clergy and faithful, had as an orientation the proposal of a Catholic attempt of modernity, in which two ways of being Church crisscrossed over the decades of 1960 and 1970. Keywords: Roman Catholic Church. Social Doctrine of the Church (DSI). Human Person. Catholic attempt of modernity COSTA, Lucas Aparecido. Tentative catholique de la modernité : le concept de la personne humaine et sa réalisation historique (1960-1980). 2014. 233f. thèse (doctorat d'histoire)-Faculté des sciences humaines et sociales, Universidade Estadual Paulista « Júlio de Mesquita Filho », Franca, 2014. RÉSUMÉ La présente thèse de doctorat, intitulée Tentative catholique de la modernité : le concept de la personne humaine et son accomplissement historique vise à démontrer comment la doctrine sociale de l'église (DSI) avait établi, entre 1960 et 1980, sa conception de la personne humaine. Cependant, on ne peut pas perdre de vue le fait dont l'idée catholique sur l'homme porté dans la période précédant à l'arc de temps borné dans cette recherche, précisément dans les pontificats de Léon XIII, Pius XI et Pius XII. Au Brésil, le concept de dignité humaine , exprimé en doctrine catholique sociale avait constitué et guidé la pratique des laïcs catholiques et les secteurs de la hiérarchie ecclésiastique, em général, progressistes, à deux moments différents des décennies 1960 et 1970. Nous avons, à la première occasion, l'existence de la jeunesse catholique de l'Université (JUC) et le mouvement social et hebdomadaire Brésil, Urgent (1961-1964), qui, pour justifier leurs options de politique, ont lancé des préceptes originaires de catholicisme social – référence à la contribution de L. J. Lebret, E. Mounier et, surtout, J. Maritain. Dans la décennie suivante, la présence de secteurs catholiques qui avaient l'intention de justifier son action dans la doctrine sociale de l'église, est remarqué dans la position de certains évêques et au travail, à la ville de São Paulo et ses environnements, parmi les Communautés Ecclésiales de Base (CEBs) et de la Pastorale Ouvrière (PO). La recherche de mettre em pratique les idées du catholicisme social est comprise dans cette thèse comme un pari de nombreux laïcs et même d’importantes fractions de la hiérarchie ecclésiastique, pour résoudre le problème "de la personne humaine". Ce chemin, òu impliquait le clergé et les fidèles, avait comme une proposition de tentative catholique de la modernité, dans laquelle deux façons d'être Église , se sont sillonnés pendant les décennies 1960 et 1970. Mots clés: L'Église Catholique Romaine. Doctrine Sociale de l'Église (DSE). Personne humaine. Tentative catholique de la modernité. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................11 CAPÍTULO 1 A PESSOA HUMANA: A VIGA-MESTRA DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (DSI).....................................................................................17 1.1 O conceito católico-cristão de pessoa humana em Leão XIII, Pio XI e Pio XII..........................................................................................................................17 1.2 Liberalismo e comunismo segundo a Doutrina Social da Igreja...................38 CAPÍTULO 2 A CONSOLIDAÇÃO DA IDEIA DE PESSOA HUMANA EM JOÃO XXIII E PAULO VI...............................................................................59 2.1 As encíclicas sociais de João XXIII..................................................................59 2.2 As constituições Lumen Gentium (1964) e Gaudium et Spes (1965).................................................................................................................68 2.3 A temática social em Paulo VI...........................................................................80 CAPÍTULO 3: A JUVENTUDE UNIVERSITÁRIA CATÓLICA (JUC) E O MOVIMENTO BRASIL, URGENTE: UMA TENTATIVA CATÓLICA DE MODERNIDADE...........................................................................94 3.1 A pessoa humana em Jacques Maritain..........................................................94 3.2 A pessoa humana na Juventude Universitária Católica (JUC)....................104 3.3 O movimento social Brasil, Urgente (1961-1963)..........................................118 3.3.1 A proposta do semanário Brasil, Urgente (1963-1964) e a Doutrina Social da Igreja (DSI)...............................................................................................................129 3.3.2 Uma tentativa católica de modernidade: a palavra de seus diretores.............144 CAPÍTULO 4 A PESSOA HUMANA: A DEMOCRATIZAÇÃO DE UM CONCEITO?.....................................................................................153 4.1 O diálogo de Paulo VI com a realidade latino-americana: o discurso do pontífice na abertura da II Conferência Geral do Episcopado Latino- Americano (1968).............................................................................................153 4.1.1 A conscientização dos bispos, junto aos marginalizados, no Brasil............................................................................................................157 4.2 As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): algumas interpretações sobre esse fenômeno religioso...............................................................................177 4.3 CEBs, Pastoral Operária (PO) e Igreja Católica na Grande São Paulo: o conceito de pessoa humana justificando práticas...................................183 4.3.1 A pessoa humana na fala de dois artífices do Partido dos Trabalhadores (PT)................................................................................................................203 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................210 REFERÊNCIAS........................................................................................................214 11 INTRODUÇÃO Todo conceito é uma redução da realidade, uma vez que tenta enquadrar uma situação concreta dentro de uma específica ideia; todavia é um mal necessário, pois traz elementos para se pensar, de alguma forma, o objeto de estudo que se pretende analisar. Ciente desses riscos decidiu-se, ainda assim, trabalhar os documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI) e a ressignificação que determinadas esferas do mundo clerical e leigo deram a essas fontes, lançando mão, para tanto, do conceito de tentativa católica de modernidade. Esse conceito ilustra duas práticas eclesiais distintas que, todavia, se entrecruzaram ao longo dos decênios de 1960 e 1970: a Igreja socialmente engajada e a Igreja politicamente engajada; indica, também, o diálogo com valores não utilitários da modernidade – por exemplo, o socialismo – que problematizavam a própria modernidade. Segundo o teólogo chileno Pablo Richard (1982, p. 217-223) os dois modos de ser Igreja – socialmente engajada e politicamente engajada1 – existiram separados, cada qual em sua respectiva década. Para o autor, o primeiro modelo, que delineia as posições da Esquerda Católica dos anos de 1960, teve na mensagem evangélica a justificativa para sua ação sociopolítica, onde não se percebe, claramente, uma opção política do grupo pelo socialismo – o que não significa dizer que seus adeptos não fossem simpáticos a esse sistema econômico (RICHARD, 1982, p. 219). Na década subsequente, o segundo arquétipo faria o caminho inverso: o agir precederia a reflexão evangélica, redefinindo, por meio da práxis, a fé e a interpretação que se tinha, até então, das Sagradas Escrituras; tal forma de Igreja teria aderido “[...] explicitamente, a um projeto político socialista, que é uma alternativa ao sistema capitalista dominante [...].” (RICHARD, 1982, p. 221). De acordo com o exposto no primeiro parágrafo, esses dois modos de ser Igreja caminharam juntos; nos textos de movimentos de leigos e na fala de alguns clérigos se notam as duas acepções de ecclesia. O conceito que intitula a presente tese, embora tenha em Richard seu principal referencial – pois se usa um termo, por ele sugerido –, funciona, ao mesmo tempo, como crítica à separação cronológica de práticas católicas feita pelo autor. 1 Pablo Richard é autor das expressões em destaque. No livro, Morte das Cristandades e nascimento da Igreja (1982), o teólogo elucidou as características elementares de cada modo de ser Igreja. 12 A tentativa católica de modernidade se realizou, historicamente, por meio das ressignificações que o clero e o laicato fizeram acerca do princípio de pessoa humana. Esse conceito de ser representa para a Igreja, a segunda pessoa de Cristo – sua face humana. Sua origem remonta à filosofia helenista, aprofundada, ulteriormente, pela matriz romana e, num terceiro momento, pelo cristianismo, especialmente quando a Igreja Católica procurou debater a respeito da Santíssima Trindade (COSTA, L. A., 2012, p. 203). Com o tomismo, essa noção tomaria contornos mais atuais – no sentido de que as posteriores apropriações teriam na filosofia aquinense seu principal referencial. As considerações de Santo Tomás sobre o ser humano estão presentes, não apenas quando se avalia a criação do homem, segundo imagem e semelhança de Deus, mas também, no momento em que se medita a respeito da vida em sociedade e a propósito das leis que a organizam; essa visão, acerca da condição humana está alicerçada, por conseguinte, na dualidade contígua, na qual a espécie humana assume o caráter de síntese entre dois mundos: o espiritual e o material. Tendo como fundamento esse preceito, a Igreja condenou, nos séculos XIX e XX, dois sistemas de ideias diametralmente opostos – comunismo, de um lado, e, do outro, o capitalismo: “[...] é exatamente em nome da pessoa humana que se condena o “materialismo capitalista”, na medida em que celebra a cobiça e transforma o homem em coisa, ou o “materialismo ateu dos comunistas”, que suprime as liberdades humanas [...].” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 610). A concepção cristã de homem, em franca oposição ao individualismo liberal e ao coletivismo comunista, não é um fato novo, assim, não se propõe uma interpretação histórica partindo de uma ideia que se conhece a resposta. A contribuição do presente estudo caminha, portanto, na direção de uma hermenêutica cujo vértice distingue, num primeiro momento, a consolidação teórica, pelo magistério eclesiástico, da ideia de homem; e, seguidamente, a interiorização e exteriorização desse princípio nas práticas sociais de clérigos e leigos dos anos de 1960 e 1970. Malgrado não seja a justificativa de uma luta, com base em preceitos católicos, um tema novo na história da Igreja, acredita-se que essas formas de interação com a sociedade, em contextos os mais diversos – muito além de mostrar os sons variados de uma mesma mensagem – evidenciam a maneira como os grupos construíram, de forma única, a sua realidade. Outro ponto a ser destacado indica a ausência de pesquisas que 13 procuraram verificar o impacto da filosofia da DSI na construção de uma sociedade pautada por valores modernos não utilitários. Para cumprir os objetivos indicados no parágrafo anterior, o autor se propôs, ao longo da tese, trabalhar com as noções de habitus e campo2. A primeira delas permitiu avaliar as visões de mundo, as motivações políticas e as crenças, adquiridas pelos indivíduos em sua trajetória pessoal e, também, em função de sua posição na estrutura social3; por se tratar de um conceito que busca compreender a performance das ações humanas, em um dado contexto histórico, o habitus se mostrou útil, tanto na problematização das atitudes de membros da hierarquia eclesiástica, quanto de leigos. A segunda noção lembra que o espaço no qual os sujeitos estão inseridos – por exemplo, o campo religioso –, possui leis próprias e, de tal modo, batalhas pela construção/desconstrução de imagens. Os aportes sobrevindos do historiador Jacques Le Goff4, se mostraram de grande valia, igualmente, pois se pretendeu buscar na fonte o contexto histórico, não como uma realidade pronta e acabada, da qual o objeto de estudo seria apenas uma epifenômeno dos acontecimentos, mas no sentido de situar “[...] as condições de produção histórica e, logo, a sua intencionalidade inconsciente [...].” (LE GOFF, 1992, p. 535). Vale mencionar, nesta ocasião, rápidos esclarecimentos de algumas opções de escrita e abordagem, que se relacionam ao modo de tratamento dos documentos. Na construção discursiva da tese predominam as citações de escritos da época, se comparado às referências historiográficas que subsidiaram a leitura do material analisado – as quais aparecem com mais frequência nas notas de rodapé. Esse enfoque se legitima tendo em vista que as preocupações se encaminharam no sentido de se apreender, outrossim, como o conteúdo manifesto nas encíclicas pontifícias, boletins e artigos de leigos e sacerdotes, bem como publicações de autoria coletiva, buscaram construir uma imagem de catolicismo. Conquanto se tenha procedido desta maneira, não se esqueceu, porém, de confrontar as fontes com a bibliografia pertinente ao período de produção das mesmas. Esquivar-se 2 Sobre os conceitos, confira a seguinte obra: Pierre Bourdieu, Economia das trocas simbólicas, 1974. 3 Nesse sentido se inclui e se torna inteligível, o uso – nesta pesquisa – dos termos frações dominadas e frações dominantes. 4 Além de Pierre Bourdieu e de Le Goff, utilizou-se, em diversas partes da pesquisa, de autores como Michel de Certeau, Aline Coutrot, Fernand Braudel, Ulpiano Bezerra de Menezes, Maurice Halbwachs, entre outros. 14 dessa lide faria do trabalho uma ingênua reprodução das preocupações tangentes aos sujeitos daquela época, dando a impressão de uma suposta objetividade e imparcialidade dos textos5, ou na pior das hipóteses, considerar o documento uma ficção e o contexto pura ilusão. O cerne da discussão no primeiro capítulo se prendeu à historicidade do conceito de pessoa humana. Teve-se como prioridade apresentar os elementos históricos e religiosos dessa ideia, que subjaz à DSI. Nesse sentido se colocou, deveras importante, a análise das encíclicas sociais de Leão XIII (1878-1903), Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958), pois o debate doutrinário em torno da ideia cristã de pessoa começou a se aprofundar quando Leão XIII posicionou acerca da condição de miséria e exploração dos operários – o que não sugere, no entanto, um ato fundante. Ainda no referido capítulo, debateu-se a intepretação que o ensino social reservou ao comunismo e liberalismo, por esse motivo, foram ponderados, igualmente, os dizeres de Pio IX na encíclica Quanta Cura de 1864, lembrando que as palavras pontifícias ultrapassavam a própria conjuntura de sua produção, se reportando a um tempo superior às próprias vicissitudes daquele instante. Percorrer esse caminho se tornou necessário, pois João XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963- 1978) não criaram o conceito de pessoa humana, mas sim, o ressignificaram. Nesse sentido, os anos situados entre 1958 e 1978 representam a fase em que a DSI consolidou, por meio das encíclicas sociais e de algumas diretrizes estabelecidas durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), sua ideia acerca da pessoa humana. Diante desse mote, o trabalho com os documentos oficiais da Igreja se ateve, no segundo capítulo, ao conteúdo que se vinculava à moral social católica. A referida moralidade sistematizou, de modo ainda mais enfático, a escrita de João XXIII na encíclica Pacem in Terris; a noção católica de ser humano, que mantém forte vínculo com a filosofia tomista, se esboçou na introdução dessa circular, na qual o pontífice defendeu a hierarquia de valores, cujo conteúdo afirmava ser impossível a existência de uma sociedade pacífica sem “o pleno respeito da ordem instituída por Deus” (COSTA, L., 1998, p. 322). A tônica discursiva, que procurou na tradição católica o respaldo para o diálogo com a modernidade, já se fizera presente, da mesma maneira, na encíclica Mater et Magistra (1961); consta, nos parágrafos 174 e 175 desse documento, uma crítica incisiva ao desenvolvimento 5 A essa observação inclui-se o trabalho do historiador, que parte de preocupações do presente, não isentas de parcialidades. 15 social e econômico alheio à ideia de Deus (COSTA, L., 1998, p. 195-196). Essa linguagem não será diferente com Paulo VI. Com a edição da carta solene Octogesima Adveniens (1971), a reprimenda ao mundo contemporâneo que tencionava decretar a morte de Deus, muito embora estivesse pautada no diálogo, não escondia a defesa, implícita na fala do papa, em relação à hierarquia de valores. Essa posição se apresenta incisiva quando o romano pontífice critica as ciências humanas – incapazes de compreender o ser humano em sua totalidade (COSTA, L., 1997, 253-254). No terceiro capítulo, problematizou-se a documentação de dois movimentos: o primeiro deles trata-se da Juventude Universitária Católica (JUC); o segundo, diz respeito à breve história do movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961- 1964)6. Nesses acontecimentos, os dois modos de ser Igreja, que representavam um contexto muito mais amplo da história do catolicismo brasileiro naquele período – a tentativa católica de modernidade – estavam presentes; logo, a dicotomia esquerda/direita, na definição das atitudes sociais e políticas dos indivíduos, se torna inválida ante o conceito traçado pelo autor, cujo escopo pretende elucidar uma realidade. O segundo movimento, fora objeto de pesquisa no mestrado. A retomada desse tema se fez necessária na medida em que na época da dissertação considerou-se o diálogo presente nas páginas do semanário Brasil, Urgente, como um processo de “esquerdização do catolicismo brasileiro”, no qual os setores do laicato católico fizeram uso de referenciais das ciências humanas para se entender os mecanismos geradores da exploração capitalista. Não se nega, na tese, a existência desse processo, mas sim o termo pelo qual se explica aquela realidade. Da mesma forma dos modos de ser Igreja, propostos por Pablo Richard, a “esquerdização” implica uma visão polarizada dos agentes imersos na realidade que se historicizou, sugerindo, concomitantemente, o abandono do Evangelho – por parte dos católicos – como elemento primaz de sua fé. Na senda dessas inquietações, o quarto capítulo trouxe algumas interpretações que se cristalizaram, posteriormente, sobre as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), intentando provocar, assim, o grau de efetividade do processo de 6 Embora esta pesquisa não analise o uso de conceitos do catolicismo social na origem e desenvolvimento do Partido Democrata Cristão (PDC) e da Ação Popular (AP), sabe-se da importância desses movimentos na história da Igreja Católica do século XX. Não se abordou o estudo desses casos, pois resultaria numa tese que, visando estudar tantos acontecimentos, perderia sua função, tornando-se, portanto, uma coletânea. 16 democratização da ideia de pessoa humana e o próprio alcance de uma aspiração muito forte em determinados setores da Igreja, os quais desejavam que o pobre falasse por si mesmo. Antes disso, apresentou-se o discurso de Paulo VI, na abertura da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Medellín, evidenciando a peculiaridade da tentativa católica de modernidade na alocução de uma autoridade máxima do campo religioso. Analisou-se, seguidamente, a atuação – no contexto do regime civil-militar – do arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara; no mesmo tópico, foram problematizadas as publicações das regionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Centro-oeste e Nordeste e, concomitantemente, as visões que se construíram, sobre esses documentos. Pelo fato de a Igreja Católica no Brasil abranger um território, demasiadamente vasto, a atenção sobre as comunidades de base e da Pastoral Operária (PO) voltou-se para a região da Grande São Paulo, pois nesse local surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT). Não se aventou com esse trajeto, confirmar a presença católica no PT, mas questionar como se deram os encontros de ambos os grupos, em fins da década de 1970; por esse prisma, foi avaliada a relação de Plínio de Arruda Sampaio e Luiz Inácio Silva – artífices do PT –, com a Igreja Católica. Feito esse percurso introdutório, chega-se o momento de desenvolver o que, rapidamente se apresentou, buscando entender as formas de ação social e política, inspiradas pela doutrina católica, sem perder de vista as interfaces dessa peculiar experiência com as demais esferas da sociedade e formas de pensamento daquele período histórico. 17 CAPÍTULO 1 A PESSOA HUMANA: A VIGA-MESTRA DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (DSI) 1.1 O conceito católico-cristão de pessoa humana em Leão XIII, Pio XI e Pio XII A vertente católica do cristianismo participou, desde fins do século XVIII, do processo de consolidação da modernidade. A maturação dos valores pertinentes a esse ideário ou visão de mundo comprometeu a sobrevivência da Igreja na Europa. Nesse processo, importante se apresentou, já no século XV, a Renascença, sendo o humanismo, intelectual e literário, seu principal rebento. A ideia de ser humano, presente no movimento renascentista, atribuía grande apreço ao período clássico da Antiguidade, com ênfase na literatura greco-romana e, também, no estudo das instituições e filosofias daquele momento histórico. Na essência desse novo modo de pensar o homem, estava o antropocentrismo que procurava, diferentemente da visão católica dominante, não limitar a ação dos sujeitos e sua capacidade criadora como resultado, tão somente, de uma suposta intervenção divina. A Revolução Francesa (1789), considerada pela Igreja dos “oitocentos” um subproduto da Reforma Luterana do século XVI,7 muito além de ter aprofundado temas já postos pelo Renascimento como o racionalismo, individualismo e humanismo, havia, segundo Pio IX (1846-1878), elevado o caos da modernidade ao fastígio – e o Iluminismo era, no horizonte de interpretação da Igreja, um dos responsáveis por tal desordem. O Pontífice, expressando o contexto histórico- religioso no qual a Igreja fortaleceu seu projeto de reação aos “vícios” da modernidade, endossou, na abertura do Concílio Vaticano I,8 seu desprezo pela Revolução Francesa, considerando, o evento francês, um adversário do gênero 7 Igualmente tributária do humanismo, a Reforma Luterana do século XVI incorporou desse, o reproche direcionado à corrupção de amplos setores da Igreja Católica; no exercício luterano do pensamento, no qual a exegese bíblica ganha destaque, percebe-se, igualmente, a visível compleição dos humanistas. Na esteira das críticas endereçadas à hierarquia eclesiástica se insere a obra Elogio da Loucura (1509), do teólogo holandês Erasmo de Roterdã (1466-1536). O autor aponta, no livro citado, um corpo clerical desorganizado e com formação teológica duvidosa, onde as questões espirituais estavam relegadas a segunda categoria. 8 O Concílio Vaticano I realizou-se entre 8 de dezembro de 1869 e 18 de dezembro de 1870. Nessa reunião, Pio IX declarou o racionalismo, materialismo e ateísmo como os principais erros do seu tempo. 18 humano, cuja ideia de liberdade se apresentava estranha à concepção cristã de alvedrio (ROMANO, 1997, p. 19). A Revolução Industrial, sobretudo pelo fato de guardar íntima relação com o Iluminismo, não se esquivou das admoestações eclesiásticas. As alterações no sistema produtivo, intensificadas na segunda metade do século XVIII9 e posteriormente disseminadas em outras regiões da Europa, contribuíram para a crise de um antigo sistema que alçava o clero católico e a nobreza a uma posição social, política e econômica dominante. Tendo incorporado elementos do cristianismo, qual seja a ideia de evolução retilínea da história, os pensadores iluministas – e, justamente nesse sentido se percebe sua influência no movimento fabril iniciado na Inglaterra –, reeditaram a concepção católica de progresso humano agregado à ideia de evolução material: [...] o terreno religioso [...] de onde brotou o pensamento leigo e as filosofias racionalistas, emprestou um duplo sentido à palavra escatologia: na tradição cristã, a escatologia está referida à consumação da história no Juízo final; enquanto, na tradição laica, à constituição da sociedade perfeita, ao menos o tanto quanto se pode falar em humanamente perfeito. Neste caso, a escatologia está associada à noção de progresso material. Progresso humano, da perspectiva dos pensadores leigos, significava avanços técnico- científicos, domínio sobre a natureza, desenvolvimento de uma filosofia livre do formalismo escolástico, estabelecimento de novos padrões éticos e morais, de tal forma que esse conjunto de conquistas e de avanços transformasse em instrumento de aperfeiçoamento da vida social, material e política (MANOEL, 2004, p. 42).10 Se as revoluções dos séculos XVII e XVIII sintetizaram a luta, na Inglaterra e na França, contra o Antigo Regime e o poder da Igreja Católica, o centenário vindouro representaria a agonia da antiga ordem e, simultaneamente, a batalha pelo estabelecimento de um novo modelo de sociedade, onde as bases filosófico-políticas – oriundas do Iluminismo, do Positivismo e do Marxismo – haveriam de encerrar uma ideia de progresso, cada qual ao seu modo, nos limites da realidade temporal 9 Antes mesmo do advento industrial, portanto no século XVII, o clero e a nobreza já haviam perdido sua primazia econômica e até em parte política para a nobreza. O século posterior, assim como apresentado no texto da presente tese, intensificou, destarte, o processo mencionado. Para maiores informações, confira o trabalho do historiador Perry Anderson, Linhagens do Estado absolutista, 1985. 10 Segundo José Carlos Reis, citado por Ivan A. Manoel, nas filosofias leigas “[...] a utopia substituirá a profecia. No ‘fim da história’ a espera é outra: não mais o apocalipse, mas uma sociedade moral e racional [...].” (REIS apud MANOEL, 2004, p. 42). Observa-se em Kant, da mesma maneira, uma filosofia atrelada a alguns preceitos emanados do campo religioso, segundo o qual a insociabilidade, que gera tantos males, mas que impele o homem a desenvolver plenamente suas disposições naturais, revela a disposição de um criador sábio “[...] e não a mão de um espírito maligno que se tenha intrometido na magnífica obra do Criador ou estragado por inveja [...].” (KANT, 2011, p. 10). 19 (MANOEL, 2004, p. 42). Diante dessa circunstância, à Igreja caberia articular um projeto histórico oposto às filosofias leigas do século XIX, as quais não cediam espaço, em sua interpretação da presença humana ao longo do tempo, para demandas relativas à espiritualidade, moralidade e, nomeadamente, à eternidade. Somado a esses fatores se observava, concomitantemente, o fortalecimento – via classe burguesa – do liberalismo; em sentido oposto, contudo atrelado à existência da classe detentora dos meios de produção, se encontravam os proletários e, por conseguinte, a materialização de movimentos socialistas de vertente marxista. O dito projeto católico – explicitado nos pontificados de Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, Pio X e Pio XI –, conhecido como Ultramontanismo,11 teve como princípio articulador de ações, a proposta de recristianização da sociedade “[...] de modo a relocar a Igreja como centro de equilíbrio mundial [...].” (MANOEL, 2004, p. 45). De acordo com Ivan A. Manoel: Em uma definição bastante esquemática, entende-se por catolicismo romanizado ou ultramontano aquele catolicismo praticado entre 1800 e 1960, nos pontificados de Pio VII a Pio XII, informado por um conjunto de atitudes teóricas e práticas, cujo eixo de sustentação se apoiava em: 1) reforço tradicional do magistério, incluindo-se a retomada do tomismo como única filosofia válida para o cristão e aceitável para a Igreja; 2) condenação à modernidade em seu conjunto (sociedade, economia, política, cultura); 3) centralização de todos os atos da Igreja em Roma, decretando-se, para isso, a infalibilidade do Papa, no Concílio Vaticano I, em 1870, de modo a reforçar a hierarquia, onde o episcopado foi bastante valorizado, submetendo todo o laicato ao seu controle; 4) adoção do medievo como paradigma de organização social, política e econômica (MANOEL, 2004, p. 45). Entendido como parte constituinte da reação católica aos “vícios” da modernidade se assenta o pontificado do Papa Leão XIII (1878 – 1903),12 quando ocorre, mormente após a publicação da encíclica Rerum Novarum (1891), uma considerável sistematização de uma política de intervenção na realidade social. Sem ser propriamente um defensor do regime democrático e muito menos um radical 11 O Ultramontanismo define-se como a doutrina da Igreja Católica elaborada no século XIX – oposta ao Galicanismo – que procurou enfatizar, sobremaneira, a autoridade suprema do Vigário de Cristo. Derivado do latim, o conceito em pauta significa “o outro lado das montanhas”, isto é, dos Alpes, onde o poder supremo do pontífice é exercido. 12 Eleito papa em 20 de fevereiro de 1878, Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci Prosperi Buzzi seria entronizado no dia 3 de março do mesmo ano. Antes disso, havia sido bispo cardeal de Perúgia (Itália) e, também, administrador dos Estados papais. Defensor do poder temporal da Igreja, Leão XIII auxiliou – conjuntamente a outros bispos e peritos de diversas especialidades – na elaboração do Syllabus. Para uma visão a respeito de outros aspectos do pontificado leonino indicamos a obra de Giacomo Martina, História da Igreja: de Lutero aos nossos dias. III – A era do liberalismo, 1996. 20 ultramontano, o Romano Pontífice deu passagem para a formação da futura democracia cristã; diferentemente do seu predecessor – o Pontífice Pio IX (1846- 1878) –, Leão XIII procurou diluir a intransigente rigidez da Igreja. Segundo nos informa Mainwaring: A Igreja começou a formular uma doutrina social mais progressista durante o papado de Leão XIII (1878-1903), especialmente através da Rerum Novarum em 1891. Essa encíclica marcava a aceitação tardia do mundo moderno pela Igreja depois do seu combate aberto contra a modernização durante parte do século XIX. Mas embora clamasse por uma ordem social mais justa e por um equilíbrio entre o trabalho e o capital, sua doutrina social continuava a conter elementos conservadores (MAINWARING, 1989, p. 43). O aspecto não progressista de alguns pontos doutrinários, indicado por Mainwaring – uma posição teórica muito comum na extensa bibliografia que problematiza a performance católica intermediada pela ação do papa –, acaba por confundir dois elementos constitutivos do discurso social da Igreja, o teológico13 e o político,14 de modo que se perde nesse tipo de análise, a concepção católica da pessoa humana, pois confere ao princípio teológico em destaque, a mesma categoria de um regime político mantenedor do status quo. A abertura de Leão XIII – não estranha, todavia, aos preceitos autoritários ultramontanos – deve ser entendida em função da posição por ele ocupada no campo religioso. Bourdieu, comentando as estruturas do campo, elucida os limites da atuação quando o sujeito se encontra na posição de autoridade máxima numa determinada esfera: Aqueles que, num estado determinado da relação de força, monopolizam (mais ou menos completamente) o capital específico, fundamento do poder ou da autoridade específica característica de um campo, tendem a estratégia de conservação – aqueles que nos campos da produção de bens culturais tendem à defesa da ortodoxia –, enquanto os que possuem menos capital (que freqüentemente são os recém-chegados e portanto, na maioria das vezes, os mais jovens) tendem à estratégias de subversão – as da heresia. É a heresia, a heterodoxia, enquanto ruptura crítica, freqüentemente ligada à crise, juntamente com o doxa, que faz com que os dominantes saiam do seu silêncio, impondo-lhes a produção do discurso defensivo da ortodoxia, pensamento “direito” e de direita, visando restaurar 13 Segundo Eicher (2005, p. 856), a teologia participa da realidade temporal tendo consciência, segundo o autor, de estar e se fazer presente neste mundo. Durante a antiguidade cristã, a figura de Jesus se relacionou à ideia de projeto, conquanto tenha se atribuído à imagem de Cristo duas temporalidades: o passado e, mormente, o futuro. 14 Compreende-se a íntima ligação entre a teologia e o político, quando se analisa os diferentes períodos históricos do cristianismo e como os teólogos trataram de responder questões – ou ao menos suscitar debates vindouros – atinentes ao estudo sobre o divino. 21 o equivalente da visão silenciosa do doxa (BOURDIEU, 1983, p. 90, grifo do autor). A visão cristã do homem no ensino social católico pode ser considerada, tomando de empréstimo, novamente, o posicionamento do sociólogo Pierre Bourdieu (1974), como uma estrutura estruturante de práticas sociais, modos de agir, sentir e pensar o mundo, logo, na Rerum Novarum,15 conforme será percebida, a visão de pessoa humana orienta tanto a apreciação do Pontífice acerca da realidade histórica do período, quanto norteia os diferentes tipos de ações a serem desencadeadas pelo laicato. A complexidade adjacente aos dizeres de Leão XIII – e, portanto, o que gera a incompreensão da terminologia empregada pelo Papa em sua encíclica – se dá pelo fato de o Pontífice endereçar sua mensagem ao político, utilizando, todavia, princípios inteligíveis no interior do discurso religioso. Na introdução da Rerum Novarum, esclarecendo o já dito, nota-se uma abordagem na qual se estabelece um debate com os principais eventos do final do século XIX, traduzidos na preocupação da instituição religiosa em relação à condição dos operários: 1. A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efetivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre operários e patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um terrível conflito. 2. Por toda a parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiosa espera, o que por si só basta para mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o gênio dos doutos, a prudência dos sábios, a deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito humano. 3. É por isso que, veneráveis irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e da salvação comum dos homens, em nossas encíclicas sobre a soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados (alude-se aqui às Encíclicas Diuturnum 1831, Imortale Dei 1885, Libertas 1888) e outros 15 Antes de ser divulgada oficialmente, a Rerum Novarum (1891) passou, segundo nos informa Martina (1997), por três fases de elaboração. Em 1890, pelas mãos do padre Liberatore fora redigido o primeiro esquema; ainda no mesmo ano, o cardeal Zigliara elaborou um segundo plano, o qual seria revisado e corrigido pelo já mencionado padre Liberatore, conjuntamente ao cardeal Mazella. Secretários do Papa, D. Bocalli e Volpini traduziram o texto para o latim. É importante enfatizar, ademais, os retoques incorporados por Leão XIII ao texto, cuja inclusão se deu muito próximo ao dia 15 de maio de 1891, data oficial da publicação da encíclica. A singularidade que tangencia a escrita dos documentos pontifícios, sobretudo a feitura das encíclicas, será discutido no segundo tópico do presente capítulo. 22 assuntos análogos, refutando, segundo nos parece oportuno, as opiniões errôneas e falazes, julgamos dever repeti-lo hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da Condição dos Operários. Já temos tocado esta matéria muitas vezes, quando se nos tem proporcionado o ensejo; mas a consciência do nosso cargo apostólico impõe-nos como um dever tratá-la nesta Encíclica mais explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os princípios duma solução, conforme à justiça e a eqüidade. O problema nem é fácil de resolver, nem isento de perigos. É difícil, efetivamente, precisar com exatidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho. Por outro lado o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar desordens (LEÃO XIII, 2004, p. 10, grifo do autor). Sintetizando a corrente social católica, representada por intelectuais cristãos de origem francesa, alemã, austríaca, belga, suíça e italiana (SOARES SOBRINHO, 1941), Leão XIII chama a atenção para a dualidade contígua presente no discurso e na prática religiosa da hierarquia eclesiástica, cujo vértice aponta uma Igreja preocupada com a salvação temporal e, nomeadamente, espiritual dos povos. Dito de outro modo, a matriz inspiradora do discurso leonino ao defender os direitos e a dignidade dos operários, ressignificava a filosofia de Tomás de Aquino, procurando adequá-la ao século XIX.16 Na menção do pontífice – à corrupção dos costumes – pode ser lida a conjuntura imediatamente anterior à publicação da Rerum Novarum. Destarte, o Papa encaminha, no fragmento citado, suas críticas à Revolução Industrial e ao fortalecimento da burguesia; pelo que sugere as primeiras linhas do documento, o Bispo de Roma não deixa de censurar o tímido, mas constante processo de conscientização dos operários, intermediado pela ação dos socialistas. Condizente às notas preliminares da encíclica se assenta a visão pontifical acerca da solução socialista: 3. Os socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comum a todos, e que a sua administração devem voltar para os Municípios ou para o Estado. Mediante essa transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr 16 Segundo Duffy, Leão XIII defendia que a renovação da teologia católica seria possível mediante a retomada do tomismo. Para tanto, o Pontífice instituiu em Roma, a Academia de São Tomás, promovendo, desta maneira, o desenvolvimento, o estudo profundo e a redescoberta da filosofia aquinense. A partir dessas e outras iniciativas, ocorreu “[...] um florescimento da erudição nos estudos bíblicos, na história da Igreja e na filosofia [...].” (DUFFY, 1998, p. 241). Henrique de Lima Vaz, padre jesuíta e filósofo, afirma que a retomada do tomismo no século XIX ocasionou um movimento de ideias, conhecido pelo nome de neo-escolástica (VAZ, 2002, p. 246), cujo lastro se faria presente até o Concílio Vaticano II (1962-1965). 23 termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social (LEÃO XIII, 2004, p. 11). As diferentes interpretações da fala de Leão XIII, intitulada por vezes de uma prenhe “terceira via”, ou “caminho alternativo” ao comunismo e capitalismo, envolvem argumentos que buscam entender, dialeticamente, o conceito católico de homem, atribuindo ao núcleo orientador do ensino social da Igreja – a pessoa humana – uma espécie, grosso modo de síntese, entre o coletivismo marxista e o individualismo liberal. Ao contrário desse viés explicativo, a noção de gênero humano na Rerum Novarum está num patamar, não diríamos superior ao regime político predominante da época e muito menos à sua antítese, mas em uma outra extensão, já que o caráter transcendental do sujeito, feito à imagem e semelhança de Deus, incorpora, portanto, a essência divina. Não obstante se deva levar em consideração o contexto histórico no processo de constituição do ensino social cristão, a Igreja, objetivando corroborar a sua autonomia enquanto instituição “cuidadora de almas”, lançou mão para tanto, de um arcabouço alicerçado na Bíblia e em determinados pontos da filosofia de Tomás de Aquino.17 Na defesa do acesso individual à propriedade privada, dado inerente à condição humana, Leão XIII fundamenta sua explanação lembrando que a legitimidade do ato de possuir um bem, provinha da racionalidade e inteligência humanas. Consequentemente, a razão, por intermédio da qual se produz a cultura, segundo Leão XIII: “[...] reconhece, considerando atentamente a natureza, que nas suas leis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens e das propriedades particulares; foi com razão que o costume de todos os séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza do homem e à vida tranqüila e pacífica das sociedades. Por seu lado, as leis civis, que tiram o seu valor (veja-se santo Tomás, Sum. Teol., I-II, q. 95, a. 4), quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e protegem-no pela força. Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr-lhe o seu selo, proibindo, sob pena gravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos outros: “Não desejarás a mulher do seu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, 17 Leão XIII, assim como nos informa Fernando de Arruda Campos, pretendia retomar a filosofia aquinense de maneira fidedigna. Seria mister ao papa, no entanto, fazer escolhas, olvidando os pontos não muito bem esclarecidos e, também, não passíveis de atualização, acolhendo “[...] de bom grado, os aspectos valiosos, contidos no pensamento moderno, assim como o progresso científico, integrando-os no campo doutrinário do tomismo [...].” (CAMPOS, 1989, p. 35). O autor aludido explica, além disso, que o pensamento filosófico posterior ao tomismo deveria enriquecê-lo, no sentido de mostrar que as diversas “verdades novas” – expressão utilizada pelo autor – não teriam outra fonte senão o tomismo, laicizado no século XIX pelos pensadores leigos. 24 nem o seu boi, nem a sua erva, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença” (Dt, 5,21) [...].” (LEÃO XIII, 2004, p. 16). Essa citação relembra, à medida que defende a origem divina da inteligência dos homens, o principal postulado aquinense: a busca por uma síntese entre pensamento racionalista e teológico.18 O debate centrado na questão dos direitos da pessoa humana reinterpreta a concepção profunda do ser “[...] que é colocado no cume de toda a realidade e como fundamento e sustentação de todos os entes [...].” (MONDIN, 1998a, p. 17). Razão e revelação, na fala do Vigário de Cristo se unem, reeditando, de tal modo, a argumentação tomista da existência de Deus e sua intrínseca relação com o ser – já considerado em Tomás de Aquino, o fundamento da realidade temporal. A justificativa empregada na Rerum Novarum, para defender a conservação da propriedade particular, encontra paralelo na ideia bíblica em que pese a destinação universal dos bens terrenos, ressignificada por Tomás de Aquino, no século XIII, na doutrina do bem comum. Por conseguinte, a Doutrina Social da Igreja considera a propriedade particular, rechaçando, consequentemente, o princípio socialista de domínio coletivo dos bens terrenos, a partir de referenciais tomistas. De um lado coloca – e nesse âmbito se percebe a historicidade do conceito católico de ser humano – tanto o comunismo quanto o capitalismo em uma mesma fronteira, já que os dois sistemas negam o caráter transcendental do homem, do outro, entende o primeiro sistema como obra do segundo; a ênfase reservada à condição dos operários integra, por extensão, o contexto histórico subjacente ao texto leonino. Na crise vivenciada pela Igreja em fins do século XIX, a retomada de princípios inteligíveis ao campo religioso, especificamente o católico- cristão, revela o esforço empreendido por uma instituição multissecular, que em seu tímido e inicial diálogo com a modernidade procurou, não tanto assimilar seus valores, mas sim incorporá-los ao discurso religioso. Leão XIII tinha como intenção enfatizar a perenidade do corpus doutrinário católico, sublinhando, portanto, a sua legitimidade como princípio norteador de uma sociedade mais justa. Desta maneira, a crença do pontífice, relativa à superioridade do catolicismo – sinônimo de civilidade –, se mantém inalterada. Hobsbawm, em seu livro A Era das Revoluções, tece observações relevantes para se apreender no documento, ora analisado, o seu contexto de produção: 18 Battista Mondin enfatiza o seguinte: “[...] na Idade Média São Tomás é o primeiro pensador a afirmar a plena autonomia da razão em face da fé [...].” (MONDIN, 1998b, p. 20). 25 Havia e há socialistas religiosos, e um grande número de homens que, enquanto religiosos, são também socialistas. Mas a ideologia predominante dos modernos movimentos socialista e trabalhista se baseia no racionalismo do século XVIII [...]. Entretanto, o secularismo dos novos movimentos socialista e trabalhista se baseava no fato, igualmente novo e mais fundamental, da indiferença religiosa no novo proletariado. Pelos padrões modernos, as classes trabalhadoras e as massas urbanas, que aumentavam no período da revolução industrial, estavam sem dúvidas muito influenciadas pela religião; mas pelos padrões da primeira metade do século XIX, não havia precedentes para seu distanciamento, ignorância e indiferença em relação à religião organizada (HOBSBAWM, 2009, p. 351). Em 1931 Pio XI (1922-1939)19 publica, em comemoração aos quarentas anos da Rerum Novarum, a encíclica Quadragesimo Anno. Situada, historicamente, entremeio a duas guerras mundiais, o documento pontifical, que tematiza a restauração e aprimoramento da sociedade segundo os preceitos evangélicos, ressalta a atualidade dos dizeres de Leão XIII remetidos à questão social, delimitando o pontificado leonino como o marco do nascimento na Igreja de “[...] uma verdadeira ciência social, cultivada e enriquecida continuamente pela indefesa aplicação daqueles varões escolhidos, que chamamos cooperadores da Igreja [...].” (PIO XI, 2004, p. 15). A sociologia católica, termo empregado na Quadragesimo Anno para definir o ensino social da Igreja, conclui “[...] que a encíclica de Leão XIII [A Rerum Novarum] se demonstrou, com a longa experiência do tempo, a “Magna Carta” em que deve basear-se como em sólido fundamento toda a atividade cristã no campo social [...].” (PIO XI, 2004, p. 25). Na conjuntura da década de 1930, o aspecto mais nítido do ideário socialista – evidenciado na prática política de alguns movimentos e sindicatos de trabalhadores – permitiu, ao Bispo de Roma, uma análise mais detalhada dos postulados desse, o que se evidencia na terceira parte da encíclica. Discorrendo sobre o desenvolvimento multifacetado do socialismo, Pio XI reconheceu em algumas de suas nuances, afinidades com a doutrina cristã, avaliando a concordância de determinadas reivindicações do socialismo propriamente dito ou mitigado “[...] com as reclamações dos católicos que trabalham na reforma social [...].” (PIO XI, 2004, p. 63); implicitamente as conclusões pontifícias sugerem uma realidade onde a participação de setores católicos em movimentos 19 Achille Ratti, eleito pontífice em fevereiro de 1922, exercera, durante a maior parte de seu sacerdócio, a função de bibliotecário, primeiramente em Milão e, posteriormente, no Vaticano. Pouco antes de sua escolha como bispo de Roma, seu antecessor, o papa Bento XV (1914-1922), nomeou-lhe núncio, tendo o enviado à Polônia – experiência que durou, aproximadamente, três anos. Ao lado das admoestações endereçadas ao liberalismo, laicismo e comunismo, Pio XI defendia, a partir do prisma católico de liberdade, não somente a Igreja, mas também, o homem. 26 sociais – cujo cerne teórico negava o caráter transcendental do ser humano – se tornava, numericamente, maior. No excerto seguinte, a orientação de Pio XI, endereçada ao laicato desejoso de participar ativamente na reforma das instituições, vislumbra o antes afirmado – muito embora o Papa não houvesse legitimado a união, para fins práticos, entre católicos e não católicos: 116. Mas não se vá julgar que os partidos socialistas, não filiados ainda no comunismo, professam já todos teórica e praticamente esta moderação. Em geral não renegam a luta de classes nem a abolição da propriedade, apenas a mitigam. Ora se os falsos princípios assim se mitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhor perguntam alguns, sem razão, se não convém que também os princípios católicos se mitiguem e moderem, para sair ao encontro do socialismo e congraçar-se com ele a meio caminho? Não falta quem se deixe levar pela esperança de atrair dessa maneira os socialistas. Esperança vã! Quem quer ser apóstolo entre os socialistas é preciso que professe franca e lealmente toda a verdade cristã e que de nenhum modo feche os olhos ao erro. Esforcem-se, antes, se querem ser verdadeiros arautos do Evangelho, por mostrar aos socialistas que as suas reclamações, naquilo que se mostram justas, se defendem muito mais vigorosamente com os princípios da fé e se promovem muito mais eficazmente com as forças da caridade (PIO XI, 2004, p. 64). O ponto fulcral no discurso de Pio XI, assim como no texto de Leão XIII, gravita em torno do direito de acesso universal à propriedade, observando, igualmente, sua dupla função – o domínio individual (particular) e social (bem comum) –, donde provém a singularidade da proposta social da Igreja, notada em seus fundamentos, os quais se afastavam tanto do individualismo liberal quanto do coletivismo comunista. Não se pode olvidar, na problematização da Quadragesimo Anno, a questão da atualização – um dado recorrente no magistério eclesiástico dos papas –, que procurou ressignificar as matrizes doutrinárias do ensino social da Igreja. Muito embora a legitimidade de possuir um bem tenha como essência o conceito de pessoa humana, essa ideia, que subjaz a escrita da Quadragesimo Anno e da Rerum Novarum, se modifica. Dito de outro modo, se em fins do século XIX, a condição miserável dos operários sintetiza o drama humano, na década de 1930, a expansão capitalista e, do lado oposto, o processo de consolidação do comunismo, abreviam a tragédia da natureza íntima do ser. Diferentemente da presente análise, tem-se a interpretação do historiador Duffy (1998), que intentou explicar o combate aberto do Pontífice, mormente em relação ao comunismo – e todas as formas de pensamento dele decorrentes – a partir de sua experiência desastrosa, como núncio apostólico, na Polônia. Enviado ao referido país em 1919, pelo então Papa Bento XV (1914-1922), Achille Ratti, 27 futuro Pio XI, tivera a missão de consolidar o processo de reconstrução da Igreja naquele país. Ratti enfrentou intensa oposição dos bispos locais, fato que o acompanharia até o final de sua missão na Polônia; além disso, em um contexto europeu de expansão da Revolução Russa, a capital polonesa – a cidade de Varsóvia – foi sitiada, em agosto de 1920, pelo exército bolchevique;20 do cerco não escaparia o enviado de Bento XV, tendo esse acontecimento despertado “[...] a firme convicção de que o comunismo era o pior inimigo que a Europa cristã jamais enfrentara, convicção que moldou grande parte de sua política quando papa [...].” (DUFFY, 1998, p. 255). Segundo o mesmo autor, as perseguições e assassinatos de clérigos na Rússia e na Espanha dominada pela Guerra Civil de 1936, aproximariam Ratti, ao tempo de seu pontificado, de posições políticas de direita: “[...] sendo ele mesmo autoritário, não via mal algum numa liderança forte e valorizava a ênfase que o fascismo dava à família e à disciplina social [...].”21 (DUFFY, 1998, p. 260). Em face dos dados apresentados por Duffy, cabe uma pergunta, não respondida pelo autor: quais elementos teológicos do ensino social católico serviram de subsídios ao pontífice em sua luta contra os movimentos oriundos da modernidade que acusavam a religião de ser o “ópio do povo”, ou pretendiam transformá-la em mercadoria negociável? Dizer que Pio XI se aproximava, assim como Duffy afirma, de uma política de direita não basta. A demanda, apresentada no parágrafo anterior, encaminhou a reflexão sobre um determinado ponto: o tratamento da ideologia religiosa em história. Não relegando o contexto social maior (macrocosmo) a uma pura ilusão, sabe-se que a Doutrina Social da Igreja (DSI) está, historicamente, situada. A observação aferida acima, não obstante seja adequada, parece não responder muita coisa, quando os historiadores têm como meta ir além de uma – como diria Michel de Certeau –“[...] pura análise literária dos conteúdos e sua organização e quando, por outro lado, recusamos a facilidade de considerar a ideologia apenas como epifenômeno social 20 O evento mencionado se trata da Guerra Polaco-Soviética (1919-1921). 21 Embasado na doutrina tomista da ordem, Pio XI, afirmou, no parágrafo 84 da Quadragesimo Anno, que a ordem “[...] segundo egregiamente explica santo Tomás, é a unidade resultante da disposição conveniente de muitas partes, o corpo social não será verdadeiramente ordenado, se não há um vínculo comum que una solidamente num só todos os membros que o constituem [...].” (PIO XI, 2004, p. 49). Completando seu pensamento acerca do assunto, o Vigário de Cristo introduziu o item 88, da seguinte maneira: “[...] Resta ainda outro ponto estreitamente ligado com o precedente. Como não pode a unidade social basear-se na luta de classes, assim a reta ordem da economia não pode nascer da livre concorrência de forças [...].” (PIO XI, 2004, p. 51). O papa, nesses escritos, direciona sua reprovação à propalada luta de classes. 28 suprimindo-se a especificidade da afirmação doutrinária [...].” (CERTEAU, 1982, p. 33). Desse método resultam três pontos que, de acordo com o autor, são problemas da história e não da teologia: 1.Qual o significado histórico de uma doutrina no conjunto de um tempo; 2. Segundo quais critérios compreendê-la; 3. Como explicá- la em função dos termos propostos pelo período estudado? Para Certeau, o leque de respostas será variado de acordo com a “[...] resposta que cada autor dá a questões análogas no presente [...].” (CERTEAU, 1982, p. 34). Adaptando a análise empreendida pelo autor em seu livro A escrita da história, pode-se perguntar, assim, qual o tipo de relação seria passível de se estabelecer entre o conceito-chave para se compreender a doutrina social da Igreja – a pessoa humana – e as estruturas socioculturais ou a dinâmica social do período estudado? A resposta, nas palavras do autor, será determinada pelo período, o objeto e o lugar de onde o historiador fala.22 Certeau fundamenta sua observação, apresentando a diversidade de interpretações sobre o monge Lutero: Os trabalhos sobre Lutero apresentam a mesma diversidade de posições: ora referem a doutrina à experiência da juventude que seria segredo inefável e organizador (Strohl, Febvre, por exemplo); ora se inscrevem no continuum de uma tradição intelectual (Grisar, Seeberg, etc); ora vêem nela o efeito de uma modificação nas estruturas econômicas (Engels, Steinmertz, Stern) ou a tomada de consciência de uma mutação sócio- cultural (Garin, Moeller, etc), ou o resultado de um conflito entre o adolescente e a sociedade de adultos [...] Ainda que isto seja uma redundância é necessário lembrar que uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se organizam em função de problemáticas impostas por uma situação. Elas são conformadas por premissas, quer dizer, por “modelos” de interpretação ligados a uma situação presente no cristianismo [...].” (CERTEAU, 1982, p. 34). O uso de pressupostos inerentes a uma doutrina católica de longa tradição, – avesso às concepções individualista e coletivista do ser humano e, por outro ângulo, desconexo da realidade dos anos de 1930 –, impregnou as ações de Pio XI. Sendo a atualização doutrinária elemento estruturante da visão católica de mundo, hodiernamente permanecem no discurso oficial da Igreja, por lógica, a releitura e ampliação do ensino magisterial, cujo substrato norteador – haja vista a 22 Certeau inicia o capítulo primeiro do seu livro, mais precisamente no segundo tópico, advertindo o leitor que sua análise da história – enquanto prática e discurso – está determinada por uma prática bastante pontual: o lugar de onde fala (a situação da França), o período (a chamada história moderna) e, por fim, o objeto (a história religiosa). Certeau observa assim – e isso é uma constante ao longo do seu livro – o lugar ocupado por quem narra a história. 29 singularidade de cada época – se apresenta, igualmente, anacrônico. O breve parêntese explicativo orienta a perspectiva histórica empregada nesse trabalho, já que as indagações feitas pelos historiadores às suas fontes estão entrelaçadas ao presente experimentado e vivenciado por eles. Retomando o já dito nas primeiras linhas deste parágrafo, Pio XI buscou presentificar, na encíclica Quadragesimo Anno, estruturas da moral cristã, que remontam ao século XIII. Debatendo a respeito do conflito entre patrões e empregados, o papa retoma o princípio de unidade estabelecido por Tomás de Aquino na Suma Teológica, enfatizando a ideia de harmonia das classes, da seguinte forma: Ora, este princípio de unidade encontra-se – para cada arte, na produção dos bens ou prestação de serviços a que visa a atividade combinada de patrões e operários que exercem o mesmo ofício – para o conjunto das profissões, no bem comum, a que todas e cada uma devem tender com esforços combinados. Esta união será tanto mais forte e eficaz, quanto mais fielmente se aplicarem os indivíduos e as próprias profissões a exercer a sua especialidade e a distinguir-se nela. 85. Do que precede é fácil concluir que, no seio destas corporações, estão em primeiro lugar os interesses comuns à profissão; entre os quais o mais importante é vigiar para que a atividade coletiva se oriente sempre para o bem comum de toda a sociedade. As questões que se refiram aos interesses particulares dos patrões ou operários poder-se-ão tratar e resolver separadamente. (PIO XI, 2004, p. 50). Historicizando, primeiramente, os argumentos teológicos e evangélicos do excerto apresentado, a leitura do contexto no documento se torna compreensível, e não o caminho inverso. Adotando esse referencial de análise histórica, acredita-se que a explicação mais consistente para a “ternura” (DUFFY, 1998, p. 260) de Pio XI, em relação aos regimes de direita, deve ser buscada na doutrina secular católica e, por extensão, no feitio adquirido por ela – com base na reinterpretação dada à tradição, por parte do “Vigário de Cristo” – no cenário conturbado dos anos 1930. O entrecruzamento da ciência de Deus e dos homens, na fala do pontífice, não está separado. Nesse sentido, a citação intenta esclarecer que o antagonismo de classes e sua devida solução não viriam do enfrentamento dos grupos sociais divergentes, mas tão somente a partir de uma mútua colaboração,23 em que a responsabilidade estivesse delegada a 23 Jacques Maritain, em seu livro Humanismo Integral (1942), trabalhando o papel histórico do proletariado, introduz, concomitantemente, a temática acerca da questão da luta de classes para o cristianismo. Vejamos duas passagens da obra supracitada, as quais serão problematizadas, devidamente, no Capítulo II da presente tese de doutoramento: “[...] Como porém superar este conflito [de classes]? [...] para o cristão, por uma guerra espiritual, e por uma luta social e temporal 30 toda comunidade. Defendendo a concórdia entre burgueses e proletários, o princípio do bem comum, subjacente à fala de Pio XI, criticava, por conseguinte, uma das bases do sistema democrático: o conflito. Em junho de 1941, já sob o pontificado de Pio XII (1939-1958),24 divulga-se, em comemoração ao cinquentenário da Rerum Novarum, a Radiomensagem La Solennità dela Pentecoste, na qual se reafirma o ensinamento dos Papas Leão XIII e Pio XI. No que tange à atualização da doutrina social da Igreja, Pio XII não introduz seu discurso, diferentemente do seu predecessor Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno, rememorando princípios já dispostos pela Igreja. Tendo como horizonte de análise a situação histórica imediata à sua fala, principia o discurso afirmando as vantagens do rádio na e para a difusão da doutrina católica: Quanto mais difícil tornam, em muitos casos, as condições originadas pela guerra, um contato direto e vivo do Sumo Pastor com a sua grei, com tanto maior gratidão utilizamos a rapidíssima ponte de união que o gênio inventivo da nossa época lança instantaneamente através do éter, pondo em comunicação por sobre montes, mares e continentes todos os recantos da terra. E o que para muitos é arma de combate, para nós transforma-se em instrumento providencial de apostolado ativo e pacífico, que realiza e eleva a um novo significado a palavra da Escritura: “Pela terra inteira correu sua voz; até os confins do mundo suas palavras” (Sl 18,5; Rm 10,18). Parece que se renova assim o grande milagre de Pentecostes, quando as diversas gentes de regiões de outras línguas a Jerusalém ouviam no próprio idioma a voz de Pedro e dos apóstolos. Com prazer sincero nos servimos hoje de um meio tão maravilhoso, para chamar a atenção do mundo católico sobre uma data, digna de ser gravada com caracteres de outros nos fastos da Igreja: o quinquagésimo aniversário da publicação, a 15 de maio de 1891, da fundamental encíclica social Rerum Novarum de Leão XIII (COSTA, L., 1997b, p. 84-85). Na leitura dos fatos que o cercavam, Eugênio Pacelli fundamentou sua preleção no cristianismo – evidência adjacente ao próprio título da radiomensagem e, de modo enfático, na alusão a trechos bíblicos –, creditando às vantagens que deve ser empreendida por todos aqueles que um mesmo ideal humano reúne, e no próprio movimento da qual o referido conflito já está superado. Para o cristão, o que faz o liame e a unidade dos que devem trabalhar por uma renovação temporal do mundo, é primeiramente, – a qualquer classe ou nação que pertençam, – uma comunidade de pensamento, de amor e de vontade, a paixão de uma obra comum a realizar, e esta comunidade não é material-biológica como a de raça, ou material-sociológica como a de classe, mas verdadeiramente humana. Aqui é transcendida a idéia de classe, a idéia de proletariado [...].” (MARITAIN, 1942, p. 226). 24 Nomeado papa em março de 1939, Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli presenciou, nos primeiros de seu pontificado, a deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Muito embora não faça parte dos objetivos desta pesquisa, citar as diversas polêmicas ocasionadas pela atuação de Pio XII durante a guerra, é interessante pontuar que o antissemitismo, presente há séculos na Europa, estava muito vivo naquele momento, não estando o grupo de católicos alheio a esse sentimento. 31 advindas do rádio, a mesma importância do evento de Pentecostes para a comunidade cristã. Seguindo os passos de seu antecessor no trono de Pedro, cuja linha de ação estivera pautada no medo da ascensão comunista, Pio XII, à medida que narra o acontecimento sagrado da “Vinda do Espírito Santo”, exclui do diálogo as filosofias ateias; por outro prisma, o elemento divino, unido ao gênero humano, aparece como única possibilidade de reforma social, logo, o desejo de recatolicizar a sociedade assume, no pontificado de Pacelli, a forma concreta da Ação Católica, tendo em vista dotar as estruturas sociais “[...] de um fundamento doutrinário católico, de tirá-las das influências malignas do racionalismo, do materialismo, do liberalismo e do socialismo [...].” (MANOEL, 2004, p. 21). Diante do sobredito, no quinto parágrafo da radiomensagem de Pentecostes, onde o cerne da discussão se prende às relações possíveis entre a Igreja e a ordem social, o Santo Padre destacaria que: Ao contrário é indiscutível competência da Igreja, da qual a ordem social se aproxima e atinge o campo moral, ao julgar se as bases de uma determinada organização social estão em acordo com a ordem imutável, que Deus Criador e Redentor manifestou por meio do direito natural e da revelação: dupla manifestação a que se refere Leão XIII na sua encíclica. E muito bem: porque os ditames do direito natural e as verdades da revelação promanam por diversos trâmites da mesma fonte divina como duas correntes de água não contrárias, mas concordes; e porque a Igreja guarda da ordem sobrenatural cristã em que concorrem a natureza e a graça, deve formar as consciências, inclusive as daqueles que são chamados a encontrar as soluções dos problemas e deveres impostos pela vida social (COSTA, L., 1997b, p. 85-86). O tom incisivo de Pio XII, subsidiado, ainda, por uma concepção hierárquica de igreja e dissociado, aparentemente, de seu contexto de produção, oculta duas importantes inquietações existentes naquele momento, ligadas, porém, a uma mesma questão: 1. Concomitante à deflagração da Segunda Guerra Mundial, iniciava-se em alguns países daquele continente, sobretudo na Alemanha e na França, uma importante renovação teológica, devedora do esforço intelectual de religiosos das ordens dominicana e jesuíta, com ênfase para atuação dos seguintes sacerdotes franceses: Yves Congar e Henri de Lubac. A busca por uma maior espiritualidade em detrimento da estrutura institucional da Igreja, assim como a importância conferida à participação ativa do leigo na Igreja, constituíram as balizas dessa tateante eclesiologia. Diversamente do que se tem dito acerca do pontificado de Pio XII, a orientação espiritual dos clérigos mencionados, poderia servir de suporte à ação desejada pelo Papa, já que orientaria, de modo organizado, a ação 32 temporal do laicato católico. Em uma época marcada por forte tendência, segundo Eugênio Pacelli, aos “erros do progressismo” – fato observado em determinadas ramificações da Ação Católica – a citada renovação teológica, se tornaria uma boa ferramenta na execução do projeto de recristianização das estruturas temporais e das mentalidades. 2. A difusão de uma radiomensagem, que tinha por intenção atualizar a doutrina social católica, não aludiu, em momento algum, fatos decorrentes da Segunda Guerra Mundial. O manifesto tom abstrato, genérico e, grosso modo, indiferente do texto, abriga uma posição política, comprovada na recorrente alusão à imagem da Igreja, que encontraria correspondência no discurso ultramontano, entendido, ao mesmo tempo, como projeto. No estudo da “neutralidade” do texto, visualiza-se, além disso, a historicidade do conceito de pessoa humana, de modo que a opção de Pio XII, em não se colocar do lado de nenhum país beligerante,25 oculta uma preocupação – não diríamos a única, mas sem dúvida a principal –: a maneira como estava sendo materializada26, em movimentos oriundos da Ação Católica, a ideia cristã de ser. A inquietação de Pio XII em relação à já citada renovação teológica o fez creditar, aos já mencionados religiosos da Ordem de São Domingos e da Companhia de Jesus, a função de ordenar o trabalho do apostolado leigo. O novo modo de ser Igreja, sugerido por Lubac e Congar, se faria presente, também, nas manifestações papais até o ano de 1950. Desse momento do pontificado – que durou aproximadamente nove anos – três documentos simbolizam a suposta abertura de Eugênio Pacelli a essa nova corrente teológica: Mystici Corporis (1943); Divinu Afflante Spiritu (1943) e Mediattor dei Lett (1947). Na encíclica Mystici Corporis – que trata do corpo místico de Jesus Cristo – a renovação eclesiológica, suscitada pelos teólogos mencionados, se torna patente na avaliação positiva de Pio XII em relação aos trabalhos pastorais da Ação Católica (AC), atribuindo a esse movimento de leigos, o mérito de ter aproximado os fiéis entre si e com a instituição eclesiástica (COSTA, L., 1997b, p.144). No mesmo texto, as contundentes críticas endereçadas à gama de interpretações da sagrada 25 Para que sejam aprofundados outros matizes da atuação pontifícia, ao tempo do segundo conflito mundial – qual seja a gradativa simpatia de Pacelli pelo sistema democrático –, confira a dissertação de Elza Silva Cardoso, Contra o liberalismo, a favor da democracia: a concepção política da Igreja Católica em meados do século XX, 2009. Sobre a afinidade do papa, em relação à democracia, citamos, também, o estudo do teólogo jesuíta espanhol Ildefonso Camacho Laraña, Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica, 1991. 26 Manoel (2004, p. 21) chama essa materialização de ação “concreta”. 33 escritura – em muitos casos, segundo Pio XII, em franca oposição ao ensinamento da Igreja (COSTA, L., 1997b, p.144) –, que aparecem imediatamente posterior aos elogios dirigidos à AC, não exclui a novidade que encerra o texto: a tangente ideia de igualdade, sugerida pelo Bispo de Roma, entre leigos e clérigos. Refletindo a contribuição de Congar e Lubac, Eugênio Pacelli estendeu o poder sagrado aos fiéis que “[...] prestam o seu auxílio à hierarquia eclesiástica na dilatação do reino de Cristo [...].” (COSTA, L., 1997b, p.148). Tendo por fundamento o conceito de pessoa humana, a noção ampliada de santidade trouxe, portanto, a distinção entre pecado e pecador, ou na terminologia católica, entre o erro e a pessoa que erra. Essa suposta novidade da doutrina social da Igreja – já que em Pio XI podemos entrever, também, semelhante aforismo –, tem sido atribuída, de modo exclusivo e fundante, ao pontificado de João XXIII, mormente após a publicação da encíclica Pacem in Terris (1963). Trabalhos recentes, e nesse sentido se apresenta a obra de Rodrigo Coppe Caldeira (2011), procuram suplantar o espectro que se cristalizou em um amplo rol bibliográfico, cuja visão substancialista intentou enquadrar os pontificados de Pio XI e João XXIII, a partir da dualidade conservador/progressista. Antes mesmo de se pontuar os temas fulcrais da pesquisa de Caldeira – o que será feito ao término deste tópico –, faz-se interessante reproduzir a fala de Pacelli, em diferentes partes da Mystici Corporis, que possibilitou, do ponto de vista institucional, a abertura da “caixa de pandora”, traduzida nesta pesquisa pelo termo de renovação teológica: Acrescem ainda os documentos sobre a ação católica publicados nestes últimos tempos; [...] Todavia se isso que acabamos de dizer é muito consolador, temos de confessar que não só autores separados da verdadeira Igreja espalham graves erros nesta matéria, mas que entre os fiéis vão serpejando opiniões ou inexatas ou de todo falsas, que podem desviar os espíritos da reta senda da verdade (COSTA, L., 1997b, p.144). Não se julgue, porém, que esta bem ordenada e “orgânica” estrutura do corpo da Igreja se limita unicamente aos graus da hierarquia; ou, ao contrário, como pretende outra opinião, consta unicamente de carismáticos, isto é, dos fiéis enriquecidos de graças extraordinárias, que nunca hão de faltar na Igreja. [...] todos os seculares [...] ocupam um posto honorífico, embora muitas vezes humilde [...] na sociedade cristã, e podem muito bem sob inspiração e com o favor de Deus subir aos vértices da santidade, que por promessa de Jesus Cristo nunca faltará na Igreja (COSTA, L., 1997b, p.148-149). Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separam o homem do corpo da Igreja como o fazem os cismas, a heresia e a apostasia. Nem perde de todo a vida sobrenatural, mas conservam a fé e a esperança cristã, e alumiados pela luz celeste, são divinamente 34 estimulados com íntimas inspirações e moções do Espírito Santo ao temor salutar, à oração e ao arrependimento das suas culpas (COSTA, L., 1997b, p.151). A estrutura hierárquica da Igreja, como se percebe nos três fragmentos apresentados, continua a ser o substrato doutrinário defendido pela encíclica. Essa composição rígida do poder, todavia orgânica – ao passo que incluiu os leigos como parte conexa à instituição –, intensifica as rachaduras que haveriam de minar as bases do edifício ultramontano, malgrado não fosse esse o seu objetivo. O contexto histórico, subjacente ao texto, indica a situação vivenciada pela Igreja Católica diante da entrada do sujeito moderno em seu interior, o qual trazia consigo, além das concepções democráticas – não apenas na esfera política, assim como a Igreja, aparentemente, desejava – um dos fenômenos mais densos da modernidade: o pluralismo27. Avolumando-se os desafios, assumia importância, naquele ambiente, o trabalho exegético de pensadores cristãos, com vista a adequar determinados valores da cultura moderna às concepções católico-cristãs de vida. Pio XII enfrenta essa demanda lançando mão, três meses após a publicação da Mystici Corporis, da encíclica Divinu Afflante Spiritu. Divulgada em fins de setembro de 1943, o documento pontifício aborda a questão sobre os estudos bíblicos. A entrada do sujeito moderno para o interior da ecclesia, por intermédio da Ação Católica, obrigou Pio XII a tratar de um assunto espinhoso para a Igreja, todavia inadiável: a correta interpretação, segundo os cânones católicos, da sagrada escritura. Solenizando o cinquentenário da encíclica leonina Providentissimus Deus (1893), Eugênio Pacelli rememorou, na Divinu Afflante Spiritu, o drama vivenciado pela hierarquia eclesiástica à época da Reforma Protestante, quando, por intermédio do Concílio de Trento (1545-1563), se impusera a necessidade de promulgar, como de inspiração divina e canônicos, todos os livros da Vulgata Latina (COSTA, L., 1997b, p. 201); seguidamente endossou a posição coercitiva de Leão XIII em relação aos escritores católicos, os quais – imbuídos por uma maneira de ler a Bíblia, supostamente herdada dos protestantes – perpetraram os mesmos erros de Lutero e seus legatários. O tom admoestador de Pio XII, articulado, portanto, à interpretação de diferentes tempos históricos – os séculos XVI e o final do XIX – não 27 A leitura cristã do pluralismo, mediada pelo filósofo Jacques Maritain e, também, a crise de sentido ocasionada pelo termo em destaque serão devidamente matizadas no primeiro tópico do capítulo II. 35 estava dissociado do contexto imediato à publicação da encíclica, o que se nota na segunda parte da introdução do documento, onde se estimula o laicato ao estudo da Sagrada Escritura: 2. Modo de celebrar o cinqüentenário 2. Ora, devendo celebrar-se o qüinqüagésimo aniversário da publicação daquela encíclica, justamente considerada como a Magna Carta dos estudos bíblicos, nós por aquela atenção que desde o princípio do nosso pontificado dedicamos aos estudos sagrados, julgamos que o melhor modo de o fazer era, primeiro, confirmar e inculcar quanto aquele nosso predecessor sapientemente ordenou e quanto seus sucessores acrescentaram para consolidamento e aperfeiçoamento da sua obra; depois ordenar o que os tempos atuais parecem exigir, para estimular cada vez mais todos os filhos da Igreja que se dão a estes estudos, a uma tão necessária e louvável empresa (COSTA, L., 1997b, p. 202). Nas considerações do Papa estavam presentes, outrossim, temáticas recorrentes na filosofia do intelectual Jacques Maritain, sobretudo a noção de respeito à autonomia do laicato. A aproximação de Pacelli ao ideário maritainiano era cabível, pois, diversamente do que reza a visão substancialista dos fatos, as teses do citado pensador católico não haviam se distanciado de um modo intransigente de ver o mundo (MENOZZI, 1999, p. 184). Não relacionada apenas à exegese bíblica, mas no que tange a outros aspectos da vida social do laicato, a liberdade estaria presa, ainda, à noção de cristandade. Esse modo de pensar se reforça em diversas passagens da encíclica em análise, principalmente quando o Papa avalia as causas que teriam levado à deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Defendendo uma ideologia cujo vértice associava catolicismo à civilidade, o Prelado tinha a firme “[...] convicção de que o conflito e suas trágicas consequências constituíam uma das manifestações da geral apostasia da sociedade moderna face à civilização cristã [...].” (MENOZZI, 1999, p. 196). O uso adequado da bíblia na instrução dos fiéis e dos futuros padres seria, dessa forma, uma das maneiras eficazes de se resolver o problema, pois a paz e a tranquilidade não viriam de outra fonte senão Jesus Cristo (COSTA, L., 1997b, p. 230). A atuação de Pio XII, imediatamente posterior ao fim da guerra – malgrado tivesse levado o pontífice a transigir com determinados pontos da democracia, qual seja o terreno da política –, indica, também, a posição de uma igreja obstinada a construir uma “cidade católica”, onde haveria espaço apenas ao Deus cristão de vertente católica. A encíclica Mediator Dei, que encerra a trilogia dos documentos nos quais se percebem os ventos da renovação eclesiológica, não escapa a esse 36 contexto. Publicada em novembro de 1947, o escrito pontifício discute, em linhas gerais, questões relativas à liturgia. O texto, assinalado por um movimento oscilatório, em que se nota um diálogo tenso entre tradição e tentativa católica de modernidade, tem como pano de fundo alguns assuntos já debatidos nas encíclicas analisadas neste tópico, como a atuação organizada do apostolado leigo da Ação Católica e, também, a prudência, advertida ao laicato, no estudo da Sagrada Escritura. O diálogo sobredito, permeado por avanços e recuos – marcado por uma alteração dentro da continuidade (CALDEIRA, 2011, p. 62) –, se intensifica, mormente quando o pontífice articula elementos que sugerem a impossibilidade de existência de uma sociedade civilizada que prescinda o cristianismo à ideia de um humanismo sem um determinado tipo de cristandade: 10. Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum, o qual deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se aproximem do altar de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma lei, participando do mesmo sacrifício com uma só inteligência e uma só vontade. O respeito devido a Deus o reclama; as necessidades do tempo presente o exigem. Após uma longa e cruel guerra que dividiu os povos com rivalidades e morticínios, os homens de boa vontade se esforçam do melhor modo possível, em reconduzir todos à concórdia. Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e nenhuma iniciativa seja, neste caso, tão eficaz quanto um fervoroso espírito religioso e zelo ardente, do qual é necessário estejam animados e guiados todos os cristãos, a fim de que, aceitando de coração aberto as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos legítimos pastores, no exercício do culto devido a Deus, constituam uma comunidade fraterna, porquanto, “ainda que muitos, somos um só corpo, participando todos do único pão (COSTA, L., 1997b, p. 292, grifo nosso)28. As muralhas do palácio ultramontano – com tintas da modernidade – se tornam visíveis, com o uso da expressão “homens de boa vontade”, acendendo, de um lado, a discussão sobre a viabilidade de se construir um Estado católico que 28 Pio XII expressa esse tom hesitante em outras partes da Mediator Dei. Vejamos dois exemplos: “[...] Certamente, a Igreja é um organismo vivo e, por isso, ainda no que diz respeito à sagrada liturgia, firme a integridade de seu pensamento, cresce e se desenvolve, adaptando-se e conformando-se às circunstâncias e às exigências que se verificam no correr dos tempos; deve-se, todavia, reprovar severamente a temerária audácia daqueles que introduzem de propósito novos costumes litúrgicos ou fazer reviver ritos já caídos em desuso e que não concordam com as leis e as rubricas vigentes [...].” (COSTA, L., 1997b, p. 313); “[...] o uso da língua latina vigente em grande parte da Igreja, é um caro e nobre sinal de unidade e um eficaz remédio contra toda a corruptela da pura doutrina. Em muitos ritos o uso da língua vulgar pode ser assaz útil para o povo, mas somente a Sé Apostólica tem o poder de concedê-lo, e por isso, neste campo, nada é lícito fazer sem o seu juízo e a sua aprovação, porque, como havíamos dito, a regulamentação da sagrada liturgia é de sua exclusiva competência (COSTA, L., 1997b, p. 313-314). A adaptação da Igreja em face ao mundo moderno não é, como se vê nesta passagem, condenada; o uso do vernáculo, em determinados momentos das celebrações, também não sofre admoestações do Vigário de Cristo. A Sé Apostólica, enquanto única instituição autorizada a emitir julgamentos – característica essa deveras contundente no discurso de Pio XII – explicita a permanência dentro da mudança. 37 respeitasse a autonomia do homem, independente de sua religião, substituindo o projeto de cristandade medieval por uma cristandade de tipo profano, munindo os fiéis, que se movimentavam dentro dos escalões da modernidade, de importante substrato cultural e legitimador de ações concretas; do outro lado, esse fragmento manifesta o difícil diálogo da Igreja com uma geração de católicos que problematizava a ideia – indo muito além da renovação eclesiológica devedora dos estudos de Lubac, Congar, Chenu e Maritain – de cidade/civilização cristã.29 A prudência de Eugênio Pacelli, incorporando elementos da cultura secular à estrutura hierárquica da Igreja, reforça as considerações tecidas neste parágrafo. Unido ao debate, ora exposto, se situa o trabalho de Rodrigo Coppe Caldeira. Tendo por arcabouço teórico, a perspectiva da longa duração de Fernand Braudel (1978), Caldeira problematizou, em diferentes pontos de sua pesquisa, as divisões maniqueístas – do tipo conservador e progressista – ainda utilizadas para se pensar a realidade complexa e multifacetada do catolicismo. Partindo desse referencial teórico, Caldeira relaciona o processo de entrada do sujeito moderno, no interior da Igreja Católica, à polarização iniciada no século XIX, a qual buscava refletir sobre a presença da instituição ante os novos desafios colocados pela agenda não religiosa. Indo além dos oitocentos, o autor enfatiza que o período da Reforma Protestante entrevira “[...] vários ensaios de interpretação dos paradigmas do sujeito moderno no catolicismo [...].” (CALDEIRA, 2011, p. 60). Na mesma vertente historiográfica são interpretados os pontificados que percorrem os anos situados entre 1800 e 1963 – de Pio VII (1800-1823) a João XXIII (1958-1963) – sem perder de vista, no entanto, a alternância, nesse longo período, “[...] de momentos de flexibilidade e outros de rigidez [...].” (CALDEIRA, 2011, p. 62). Portanto o autor defende, e a nossa pesquisa assim também caminha, que a intenção de “[...] enquadrar todo um pontificado em conceitos como antimoderno ou progressista é recusar o lugar de cada um deles no complexo e contínuo processo de acomodação [...].” (CALDEIRA, 2011, p. 62). Logo, os dizeres de Eugênio Pacelli, analisados a partir da perspectiva braudeliana da longa duração, lançam novos olhares sobre aquele momento histórico da Igreja institucional, desconstruindo a imagem, cristalizada por um amplo rol bibliográfico – 29 Danielle Menozzi se refere ao estudo intitulado Les catholiques et le ‘christianisme sociologique’, publicado, em 1955, na revista Chronique sociale de France. Se valendo do trabalho de R. Théry, Menozzi acredita que a crítica direciona à defesa de um mundo obrigatoriamente sacral, teria nascido da falência de diversos partidos cristãos em sua luta contra um mundo cada vez mais secularizado, e também, pela batalha dos católicos, juntamente aos comunistas, na edificação de uma sociedade temporal, livre e autônoma (MENOZZI, 1999, p. 203). 38 observado na ausência de considerações relativas à atuação de Pio XII –, de um pontificado exclusivamente conservador (MARTINA, 1997, p. 271). Não fosse a dualidade presente em seu pontificado, na qual se visualiza uma abertura a determinados matizes da modernidade, a renovação eclesiológica – ou na linguagem poética, a “caixa de pandora” – não teria sido passível de existir e se corporificar durante a passagem lacônica de João XXIII pelo trono de Pedro. Os primeiros anos da década de 1950, quando se se assiste a uma presença maior de características contrárias à abertura ao mundo moderno, não invalidam o uso da longa duração no estudo das práticas de Pio XII, mas antes a confirmam, já que a mudança de orientação doutrinária – façamos referência à encíclica Humanis Generis30 – é, também compreendida, se valendo do tempo longo no qual se movimenta a história da Igreja Católica. 1.2 Liberalismo e comunismo segundo a Doutrina Social da Igreja O debate sobre a visão do liberalismo e comunismo na DSI, em pujança desde a segunda metade do século XIX, se torna imprescindível para o entendimento das ações práticas da Igreja Católica – durante os pontificados de João XXIII e Paulo VI –, endereçadas aos termos em destaque. A admoestação da hierarquia eclesiástica a sistemas filosóficos, contrários à vertente católica do pensamento cristão, pertence, assim, a um movimento anterior ao período delimitado neste estudo. Essa advertência nos encaminha para uma reflexão que procura não reduzir o pensamento social católico à pura e simples influência dos fatores externos, que a partir de 1960 se revelariam problemáticos para a Igreja Católica, especialmente os regimes comunistas, que já abarcavam, naquele período, um terço da população mundial. Não podemos perder de vista, que o campo religioso, definido como um microcosmo segundo Pierre Bourdieu (2004), está dotado de leis próprias. Muito embora não esteja apartado do contexto social maior (macrocosmo), o microcosmo “[...] dispõe [...] de uma autonomia parcial mais ou 30 Divulgada em 1950, o documento aludido demonstrou, se comparado às três encíclicas analisadas neste tópico, uma inflexão. Chamando a atenção dos católicos para o relativismo e irenismo adjacente à renovação propalada pelos teólogos Lubac e Congar – religiosos outrora apoiados pelo Papa –, Pio XII enfatizou que concessões, no terreno da fé católica, não poderiam jamais ser feitas. Temas como o evolucionismo e protestantismo foram, também, tratados pelo Pontífice. De um modo geral, essa encíclica nos permite debater a respeito do impacto provocado pela entrada do sujeito moderno no interior da Igreja Católica. 39 menos acentuada [...].” (BOURDIEU, 2004, p. 20-21). Sabe-se que o contexto histórico deve ser lido na fonte, pois ela dialoga com o seu tempo, todavia, o evento, ora pesquisado, se vincula, do mesmo modo, a um movimento inerente à longa tradição católica, cuja historicidade se entende na longa duração. Isto posto, a encíclica Quanta Cura e o Syllabus, publicados em dezembro de 1864 pelo Pontífice Pio IX (1846-1878),31 oficializam – o que não sugere, de maneira alguma, um ato fundante – a luta aberta da Igreja Católica contra os principais erros da modernidade. Segundo Aline Coutrot, “[...] as declarações da Hierarquia são uma das formas mais notáveis de intervenção da Igreja na vida da cidade [...].” (COUTROT, 2003, p. 340). Logo, no estudo dessa ingerência pontifícia sobre a tessitura social, há de se observar a relação que se estabelece, como adverte a autora, entre o religioso e o político. As palavras de Coutrot, muito embora se refiram à situação da Igreja na França, nos primórdios do século XX, servem de orientação para se pensar o contexto em que foram escritos os documentos pontifícios, pois colocam a Igreja, de uma maneira geral, sob perspectiva histórica, o que vale, portanto, para o tratamento de arcos temporais diversos; além disso, a autora nos lembra