UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP JONATHAN DE ARAUJO DE ASSIS A autonomia estratégica e o fetichismo da tecnologia militar na América do Sul: análise da demanda militar do Brasil (2005-2015) São Paulo 2022 JONATHAN DE ARAUJO DE ASSIS A autonomia estratégica e o fetichismo da tecnologia militar na América do Sul: análise da demanda militar do Brasil (2005-2015) Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP), como exigência para obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Prof. Dr. Héctor Luis Saint- Pierre. São Paulo 2022 JONATHAN DE ARAUJO DE ASSIS A autonomia estratégica e o fetichismo da tecnologia militar na América do Sul: análise da demanda militar do Brasil (2005-2015) Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP), como exigência para obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Prof. Dr. Héctor Luis Saint- Pierre. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Héctor Luis Saint-Pierre (Universidade Estadual Paulista) Prof. Dr. Samuel Alves Soares (Universidade Estadual Paulista) Prof. Dr. Eduardo Barros Mariutti (Universidade Estadual de Campinas) Prof. Dr. Jorge Battaglino (Universidad de la Defensa Nacional) Prof. Dr. Diego Lopes da Silva (Stockholm International Peace Research Institute) São Paulo, 18 de fevereiro de 2022 A Seu Chagas e Dona Joana, minhas excelências. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro concedido durante o doutorado direto que possibilitou o desenvolvimento e a elaboração deste trabalho (processo nº 2017/25694-6). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES. Reservo este espaço para agradecer a todas e todos que estiveram presentes durante a elaboração deste trabalho. Agradeço aos meus pais, Eva e Cicero, por todo apoio e força desde o ingresso na graduação. Sou especialmente grato pelas oportunidades que me permitiram construir minha trajetória, resultantes de muitas lutas ao longo da vida. Também agradeço profundamente aos meus irmãos, Ives e Ulisses, pelo incondicional afeto e suporte. Vocês são minhas referências. Obrigado por me abrirem os caminhos. À minha companheira de vida, Kimberly, agradeço por todo amor e cumplicidade ao longo dessa trajetória. Obrigado por sempre estar ao meu lado me emprestando um pouco da sua força e resiliência. Agradeço por nunca ter desistido de mim e por ser a melhor audiência para piadas sem graça. Ensemble! Ao meu amigo e orientador, professor Héctor Luis Saint-Pierre, agradeço em profusão por todo apoio, incentivo, confiança e pelas trocas sempre tão instigantes. Os anos de mestrado e doutorado só fizeram aumentar minha admiração pelo grande intelectual e ser humano com quem tive a oportunidade de conviver. Sou e serei sempre muito grato. Aos também amigos, professores Samuel Alves Soares e Suzeley Kalil Mathias, agradeço por todo carinho, generosidade e ensinamentos desde a graduação, em particular pelo ensinamento de que a pesquisa, ainda que solitária, pode ser solidária. Ainda, sou grato pelas leituras atentas e pelos comentários valiosos durante a banca de qualificação do mestrado, da qual derivou o convite para o Doutorado Direto, que contribuíram muito para o desenvolvimento da tese. Aos três, agradeço imensamente por terem me acolhido e iluminado os caminhos da vida acadêmica. Que o futuro nos reserve muitas tertúlias. Ao professor Eduardo Mariutti, pelos precisos e fundamentais comentários durante a banca de qualificação de doutorado, que colaboraram sobremaneira com o desenvolvimento da pesquisa. A todos os membros do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), sou grato pelo espaço de aprendizado, reflexão e risadas. Também sou muito grato às grandes amizades que a convivência na pós-graduação me proporcionou. Sob risco de cometer injustiças, gostaria de agradecer a todos que de alguma forma contribuíram para a minha trajetória. Não podendo iniciar de outra forma, agradeço à Clarissa, minha parceira de doutorado direto, por todas as figurinhas, cumplicidade e apoio ao longo do percurso. Ao Matheus, pela amizade felino-cinematográfica e por todos os bons conselhos que eu teimosamente evitei. À Luiza, pela amizade felino-ludérica e por toda cumplicidade desde o primeiro ano de graduação. Ao Diego, pelas sempre ricas e leves conversas, além das excelentes sugestões de quadrinhos. À Patrícia, que desde cedo esteve sempre generosamente disposta a trocar ideias sobre uma temática não tão comum. À Marcela, pela disposição contagiante e por sempre motivar cuidados com a saúde. À Thaiane, por todas as boas conversas e pela lembrança de que a pesquisa pode ser só um de nossos talentos. Às minhas incríveis veteranas, Bárbara, Giovanna, Lívia e Raquel, agradeço por todo incentivo e inspiração que, mesmo involuntariamente, me transmitiram. À Graziela, Isabela, Giovana e aos demais funcionários do Programa de Pós- Graduação San Tiago Dantas, muito obrigado pela disponibilidade e pela amizade acolhedora. A presteza e a eficiência do trabalho de vocês são fundamentais para o pleno funcionamento do programa. Aproveito este espaço para também agradecer aos professores Samuel Soares, Eduardo Mariutti, Jorge Battaglino e Diego Lopes que tão prontamente aceitaram o convite para compor a banca de defesa. Por tanto amor, por tanta emoção A vida me fez assim Doce ou atroz, manso ou feroz Eu, caçador de mim Preso a canções Entregue a paixões Que nunca tiveram fim Vou me encontrar longe do meu lugar Eu, caçador de mim Longe se vai sonhando demais Mas onde se chega assim Vou descobrir o que me faz sentir Eu, caçador de mim Nada a temer Senão o correr da luta Nada a fazer Senão esquecer o medo Abrir o peito à força Numa procura Fugir às armadilhas da mata escura Vou descobrir o que me faz sentir Eu, caçador de mim. (MAGRÃO, Sergio; SÁ, Luiz Carlos. Caçador de mim. In. NASCIMENTO, Milton. Caçador de Mim. Ariola; Philips, 1981). Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace. Machado de Assis – Um caso de burro, 1892. RESUMO Tipicamente, a tecnologia é contextualizada como um fator externo, representada enquanto variável residual para a explicação de mudanças estruturais e processuais em nível internacional pela maior parte da literatura da área de Relações Internacionais (RI). Em contrapartida a essa concepção, argumentamos que a tecnologia deve ser considerada como dimensão fulcral nas análises sobre dinâmicas internacionais, tendo em vista a forma como entrelaça, além de ser moldada e moldar, o sistema e suas unidades em densos sistemas sociotécnicos. Frente ao exposto, a pergunta que orienta a presente pesquisa está delineada pela indagação de quais fatores motivam o padrão da demanda por tecnologia militar em países da América do Sul, e como essa tecnologia se relaciona com a autonomia estratégica desses países? A hipótese a ser examinada, fundamentada sobre a intersecção de diferentes dimensões pertinentes ao tema, indica que a demanda militar em países da América do Sul, orientada pela atribuição de competência eficiente aos armamentos, mistifica valores e relações sociais imbuídas no desenho tecnológico desses artefatos e reforça as condições da dependência estratégica. Para tanto, adotaremos como escopo de análise as transferências de armamentos realizadas pelo Brasil ao longo do período de 2005 a 2015, tendo em vista o percentual representativo do país no volume total de transferências de armamentos da região durante o período em tela. Para conceder base empírica à nossa hipótese, buscamos compreender a percepção dos militares brasileiros sobre a tecnologia militar a partir da análise de conteúdo dos trabalhos de conclusão de curso produzidos no âmbito das instituições superiores de ensino militar. Palavras-chave: Fetichismo; Tecnologia militar; Dependência estratégica. ABSTRACT Typically, technology is contextualized as an external factor, represented as a residual variable for the explanation of structural and procedural changes at the international level by most of the literature in the field of International Relations (IR). In contrast, we argue that technology should be considered as a central dimension in the analysis of international dynamics, in view of the way it intertwines the system and its units in dense socio-technical systems, in addition to being molded by and mold those components. In view of the above, we question what factors motivates the demand pattern for military technology in South American countries, and how does this technology relate to the strategic autonomy of these countries? Our hypothesis, based on the intersection of different dimensions relevant to the subject, indicates that military demand in South American countries, guided by the attribution of efficient competence to armaments, mystifies values and social relations embedded in technological design of these artifacts and reinforces strategic dependence conditions. Therefore, we will analyse the arms transfers carried out by Brazil over the period from 2005 to 2015, in view of the country's representative percentage in the total volume of arms transfers in the region during the period under study. In order to provide our hypothesis an empirical basis, we sought to understand Brazilian military personnel’s perception on military technology, based on content analysis of dissertations produced within the scope of higher military education institutions. Keywords: Fetishism; Military technology; Strategic dependence. RESUMEN Típicamente, la tecnología es contextualizada como un factor externo, representada como una variable residual para la explicación de los cambios estructurales y procedimentales a nivel internacional por la mayor parte de la literatura en el campo de las Relaciones Internacionales (RI). En contrapartida, argumentamos que la tecnología debe ser considerada como una dimensión central en el análisis de las dinámicas internacionales, en vista de la forma en que entrelaza, además de moldearse y amoldarse, al sistema y sus unidades en densos sistemas sociotécnicos. En vista de lo anterior, la pregunta que guía esta investigación se perfila mediante la pregunta ¿qué factores motivan el patrón de demanda de tecnología militar en los países sudamericanos y cómo se relaciona esta tecnología con la autonomía estratégica de estos países? La hipótesis a ser examinada, a partir de la intersección de diferentes dimensiones relevantes para el tema, indica que la demanda militar en los países sudamericanos, guiada por la atribución de competencia eficiente a los armamentos, mistifica valores y relaciones sociales imbuidos en el diseño tecnológico de estos artefactos y refuerza las condiciones de dependencia estratégica. Para tanto, adoptaremos como ámbito de análisis las transferencias de armas realizadas por Brasil en el período de 2005 a 2015, en vista del porcentaje representativo del país en el volumen total de transferencias de armas en la región durante el período en cuestión. Para proporcionar una base empírica para nuestra hipótesis, buscamos comprender la percepción de los militares brasileños sobre la tecnología militar a partir del análisis de contenido de los trabajos de conclusión de curso producidos en el ámbito de las instituciones superiores de educación militar. Palabras clave: Fetichismo; Tecnología militar; Dependencia estratégica. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Definições sobre tecnologia e a prática tecnológica ............................ 42 Figura 2 – Transformação da indústria de Defesa dos Estados Unidos no período 1993-2000 ............................................................................................. 101 Quadro 1 – Contratos assinados no âmbito da Missão Militar Francesa (1919- 1940) .................................................................................................... 127 Quadro 2 – Dreadnoughts nas marinhas de Argentina, Brasil e Chile ..................... 133 Gráfico 1 – Importações de armamentos por países da América do Sul, entre 2001 e 2015 (em milhões) .................................................... 150 Gráfico 2 – Percentual de crescimento do PIB de países da América do Sul, 2001- 2015 ...................................................................................................... 157 Gráfico 3 – Gastos militares brasileiros entre 1988 e 2015 (em US$ milhões) ......... 165 Gráfico 4 – Despesas por órgão orçamentário entre 2003 e 2015 (% em relação ao total) ..................................................................................................... 166 Figura 3 – Esquema da análise de conteúdo ........................................................... 173 Figura 4 – Delineamento do corpus como um processo cíclico ............................. 174 Quadro 3 – Descrição dos temas analisados a partir dos seus respectivos códigos . 175 Quadro 4 – Quatro perspectivas da filosofia da tecnologia ...................................... 177 Quadro 5 – Número de trabalhos levantados por instituição e curso, 2005-2015 ..... 179 Quadro 6 – Descrição e número de trabalhos por categoria ..................................... 180 Gráfico 5 – Frequência dos quadrantes por categoria analisada (em %) .................. 183 Quadro 7 – Frequência de temas em “Armamento e Projetos Estratégico por quadrante (em número de trabalhos) ..................................................... 183 Quadro 8 – Trabalhos por quadrante na categoria “Armamento e Projetos Estratégicos” ......................................................................................... 185 Quadro 9 – Frequência de temas em “Base Industrial de Defesa” por quadrante (em número de trabalhos) ..................................................................... 188 Quadro 10 – Trabalhos por quadrante na categoria “Base Industrial de Defesa” ....... 189 Quadro 11 – Frequência de temas em “Defesa e Política Exterior” por quadrante (em número de trabalhos) ..................................................................... 191 Quadro 12 – Trabalhos por quadrante na categoria “Defesa e Política Externa” ....... 193 Quadro 13 – Frequência de temas em “Guerras e Conflitos Internacionais” por quadrante (em número de trabalhos) ..................................................... 194 Quadro 14 – Trabalhos por quadrante na categoria “Guerra e Conflitos Internacionais” ..................................................................................... 196 Quadro 15 – Trabalhos por quadrante entre as categorias analisadas ......................... 198 Quadro 16 – Número de trabalhos com ocorrência do tema “Vantagem Tecnológica” (relação categoria x quadrante) ....................................... 199 Quadro 17 – Artilharia e veículos blindados adquiridos pelo Brasil entre 2005 e 2015, por categoria e fornecedor ........................................................... 202 Quadro 18 – Tanques e VBTP do Exército Brasileiro (anos de 2005, 2010 e 2015) ... 203 Quadro 19 – Navios adquiridos pelo Brasil entre 2005 e 2015, por categoria e fornecedor ............................................................................................. 204 Quadro 20 – Navios da Marinha do Brasil (anos de 2005, 2010 e 2015) .................... 205 Quadro 21 – Aeronaves adquiridas pelo Brasil entre 2005 e 2015, por categoria e fornecedor ............................................................................................. 206 Quadro 22 – Principais aeronaves da FAB (anos de 2005, 2010 e 2015) ................... 208 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Percentual das exportações de armamentos por país, em relação ao total do ano (1920-1935) .................................................................... 91 Tabela 2 – Ranking dos sete principais exportadores de armamentos no período 1980-2009 .......................................................................................... 103 Tabela 3 – Emulação militar na América do Sul (1885-1919) ............................. 114 Tabela 4 – Principais navios da Marinha brasileira (1942) .................................. 140 Tabela 5 – Participação por país no total de importações de armamentos do Brasil (1951-2015) ............................................................................. 201 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BID Base Industrial de Defesa CMI Complexo Militar-Industrial CSNU Conselho de Segurança das Nações Unidas EC&T Estudos de Ciência e Tecnologia ECEMAR Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica ECEME Escola de Comando e Estado-Maior do Exército EGN Escola de Guerra Naval EMBRAER Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. ENG Escola Naval de Guerra ESG Escola Superior de Guerra EUA Estados Unidos da América FAB Força Aérea Brasileira FEB Força Expedicionária Brasileira IRA Exército Republicano Irlandês JID Junta Interamericana de Defesa MMF Missão Militar Francesa MNA Missão Naval Americana OEA Organização dos Estados Americanos OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte PAM Programa de Assistência Militar PT Partido dos Trabalhadores RAM Revolução nos Assuntos Militares RI Relações Internacionais TI Tecnologia da Informação TIAR Tratado Interamericano de Assistência Recíproca TNP Tratado de Não-Proliferação Nuclear SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 15 2 FETICHISMO DA TECNOLOGIA .............................................................. 26 2.1 Perspectivas em torno do conceito de fetichismo .............................................. 27 2.2 Perspectivas em torno do conceito de tecnologia .............................................. 32 2.3 Tecnologia como fetiche ...................................................................................... 38 3 DEPENDÊNCIA ESTRATÉGICA .................................................................... 46 3.1 Autonomia e Dependência .................................................................................. 46 3.2 Determinantes da demanda por armamentos ................................................... 60 3.2.1 A dinâmica de segurança ....................................................................................... 60 3.2.2 Fatores domésticos ................................................................................................ 63 3.2.3 A ordem militar global .......................................................................................... 65 3.3 Fetichismo da tecnologia militar ........................................................................ 69 4 ESTADO, FORÇAS ARMADAS E TRANSFERÊNCIA DE ARMAMENTOS ................................................................................................. 83 4.1 Perspectiva histórica sobre a oferta internacional de tecnologia militar ........ 83 4.1.1 Da Revolução Militar à Revolução Industrial ....................................................... 84 4.1.2 A Revolução Industrial e o sistema de armas ......................................................... 88 4.1.3 A Guerra Fria e o Complexo Militar-Industrial ..................................................... 91 4.1.4 O pós-Guerra Fria e o início do século XXI ........................................................... 97 4.2 Estado e organização militar na América do Sul ............................................... 104 4.3 Modernização militar e influência estrangeira no Brasil ................................. 116 4.3.1 Missão Militar Francesa, 1919-1940 ..................................................................... 126 4.3.2 Missão Naval Americana, 1922-1977 ................................................................... 131 4.3.3 Participação brasileira na Segunda Guerra Mundial e influência norte-americana na Guerra Fria ....................................................................................................... 139 5 FETICHISMO DA TECNOLOGIA MILITAR NO BRASIL ......................... 149 5.1 Transferência de armamentos na América do Sul ............................................ 149 5.2 Demanda militar no Brasil ................................................................................. 162 5.3 Considerações sobre o método ........................................................................... 170 5.4 Fetichismo da tecnologia militar no Brasil ........................................................ 179 5.4.1 Análise temática dos trabalhos .............................................................................. 183 5.4.2 Transferência de armamentos e inventário militar do Brasil (2005-2015) ............. 200 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 210 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 216 ANEXO A – ASSISTÊNCIA NAVAL A NAÇÕES LATINO- AMERICANOS, 1810-1987 ............................................................................... 238 ANEXO B – NAVIOS DA MARINHA DOS EUA TRANSFERIDOS PARA O BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ........................ 241 15 1 INTRODUÇÃO Após o fim da Segunda Guerra Mundial, alguns países do chamado Terceiro Mundo, como a Argentina e o Egito, contavam com capacidade e recursos necessários para produzir sistemas de armas. Esse cenário acentuou-se a partir de 1960, quando outros países empreenderam esforços para desenvolver e ampliar suas capacidades de produção de armamentos, como África do Sul, Brasil e Israel. Entretanto, a despeito do crescimento no número de países produtores de armamentos, a produção de sistemas de armas1 nesse período mostrou-se uma atividade concentrada, visto que, entre 1975 e 1980, cinco países2 representavam 60% da produção de sistemas de armas na periferia internacional (BRZOSKA; OHLSON, 1986; NEUMAN, 1984). As transformações políticas decorrentes do término da Guerra Fria também incidiram significativamente sobre os fluxos de transferência de tecnologia militar e a expansão das atividades da indústria de defesa em países ditos não desenvolvidos. Pela significativa redução nos gastos militares internacionalmente e o consequente enfraquecimento da demanda doméstica por armamentos3 em países como os Estados Unidos da América (EUA) – além da crescente complexidade tecnológica dos componentes incorporados aos sistemas de armas –, a década de 1990 marcou um processo de reestruturação e internacionalização da indústria de defesa (BITZINGER, 2010; DUNNE, 2009). Como indica Bitzinger (2010), por consequência dessas mudanças, o mercado internacional de armamentos tornou-se mais complexo e competitivo, tendo em vista a importância das exportações para os grandes produtores do Ocidente e a menor relevância do elemento ideológico na escolha de fornecedores. Adicionalmente, conforme os custos dos projetos de sistemas de armas cresciam, os produtores de armamentos voltaram-se a estratégias de joint ventures, parcerias ou aquisições transnacionais a fim de compartilhar os custos e os riscos envolvidos nos processos de 1 O conceito de sistemas de armas possui um caráter tridimensional. A partir de um ponto de vista estritamente objetivo, é definido por sua materialidade; ou seja, plataformas – tais como aeronaves e navios – munidas de armamentos – mísseis e ogivas, por exemplo – em conjunção com os meios necessários para comunicação e comando. Para além dessa dimensão, o sistema de armas também representa o conhecimento técnico necessário para seu desenvolvimento, produção e emprego (ASSIS; SILVA; ZAGUE, 2018, p. 81). Nesses termos, como argumenta Kaldor (1977, p. 121), o sistema de armas tende a refletir a estrutura industrial e tecnológica alcançada pela sociedade que o desenvolve. Por fim, em sua terceira dimensão, o conceito de sistema de armas é a manifestação da organização social necessária para seu desenvolvimento, produção e emprego. Sob essa ótica, mais do que uma classificação material, o conceito “é também uma classificação de pessoas. O sistema de armas implica a existência de um elenco de cientistas que inventem as armas, trabalhadores que as construam, soldados que as utilizem e técnicos que as reparem.” (KALDOR, 1986, p. 8, tradução nossa). 2 Argentina, Brasil, Índia, Israel e Taiwan. 3 Reconhecendo que não são sinônimos, empregamos o termo “armamento” como equivalente a “sistema de armas” a fim de evitar repetições do termo. 16 desenvolvimento e produção. Sob esse contexto, parte da produção acadêmica das Relações Internacionais (RI) voltou-se a analisar os efeitos da difusão de tecnologia militar para países periféricos sob a ótica da dinâmica das relações entre os Estados e o papel das grandes potências. Segundo parte dessa literatura, o domínio tecnológico, manifestado em termos de capacidade industrial e tecnologia militar, aparece como o principal fator de poder de um Estado dominante, tendo em vista que teria capacidade de garantir vantagem relativa frente aos demais países do sistema internacional (GILPIN, 1981, p. 177). De acordo com essa perspectiva, a difusão de tecnologias dos países centrais para os países periféricos tenderia a diminuir as vantagens econômicas, tecnológicas e militares dos países dominantes. A despeito das transformações sociais e econômicas ao longo da história, essa perspectiva assume que o fenômeno de difusão de tecnologias dos países “avançados” para os países “atrasados” representa uma tendência histórica inevitável. Em outras palavras, o processo de difusão tecnológica significaria o fortalecimento de atores contestatórios por parte do próprio agente dominante, atribuindo-se à difusão de tecnologias para países periféricos um papel central no processo de redistribuição do poder internacional (GILPIN, 1981, p. 176; HOROWITZ, 2010). Em consonância com essa leitura, Buzan e Herring (1998) argumentam que a difusão de armamentos de qualidade avançada por parte dos países líderes em desenvolvimento tecnológico eleva o padrão de poder militar de potências menores. Esse processo, inexoravelmente, produz incentivos de inovação tecnológica para aqueles países que buscam manter sua posição de vantagem militar. Dessa forma, os autores apontam que o processo de difusão estimula o processo de avanço, tendo em vista que somente ao garantir um estágio “avançado” em termos tecnológicos “[...] alguns Estados podem manter sua posição de poder e/ou sua segurança militar” (BUZAN; HERRING, 1998, p. 30). Sob essa lógica, cabe aos países que buscam ascender no sistema internacional buscar elevar a qualidade tecnológica de seus armamentos, a fim de fortalecer sua vantagem militar. Em seu estudo sobre a emulação militar no contexto sul-americano, Resende-Santos (1996) defende a tese de que os Estados buscam emular as bem-sucedidas práticas militares de países poderosos, pois a anarquia do sistema internacional constrange suas unidades a valorizar sua eficácia competitiva relativa. Para o autor, uma vez que o princípio de ação sob a anarquia é a busca pela garantia de segurança, o objeto dos esforços de autoajuda dos países deve ser o aperfeiçoamento de sua efetividade competitiva. Sob esse contexto, os Estados tendem a preferir emular a inovar, tendo em vista sua preocupação em empregar instituições ou tecnologias que tiveram sua efetividade atestada. Segundo o autor, o elemento que determina o 17 sucesso de uma instituição ou prática é a estrutura do sistema internacional; nesses termos, a guerra constitui o principal instrumento para selecionar instituições e tecnologias eficientes (RESENDE-SANTOS, 1996, p. 209). Compartilhando uma perspectiva realista, mas com enfoque sobre a dimensão da produção de armamentos, Caverley (2007, p. 599) assume o argumento de que a natureza da tecnologia militar favorece a globalização da produção de armamentos, entretanto, defende que esse processo representa um instrumento da estratégia hegemônica. Nesses termos, entende que aos Estados importa mais a interdependência relativa que absoluta, orientando o hegemon à adoção de práticas que promovam a manutenção de sua posição no sistema internacional. Para o autor, a complexidade tecnológica dos armamentos modernos tende a fabricar monopólios de grandes empresas, largamente conectadas ao poder de mercado estadunidense, que dominam a cadeia de valor para a produção desses produtos (CAVERLEY, 2007, p. 613). Aproximando-se dessa leitura, Neuman (2010, p. 106) argumenta que a indústria de defesa mundial é um indicador da estratificação de poder no contexto do pós-Guerra Fria, sob o qual os Estados Unidos exercem forte influência. Nesses termos, a predominância do país gera constrangimentos sobre as opções políticas dos demais Estados, que de alguma maneira dependem dos Estados Unidos no campo da tecnologia militar. Frente a esse quadro, Neuman (2010, p. 130) aponta que restam poucas alternativas senão acomodar as preferências políticas estadunidenses. A despeito de suas divergências, um elemento comum a essas perspectivas é a compreensão da tecnologia enquanto dimensão instrumental, ou variável mensurável, das dinâmicas do sistema internacional. Sob essas leituras, a obtenção de armamentos de grande complexidade tecnológica carrega equivalência com o poder relativo de um país e sua capacidade militar. Tipicamente, a tecnologia é contextualizada na literatura de RI como um fator externo, representada enquanto variável residual para a explicação de mudanças estruturais e processuais internacionais. Em contrapartida a essa concepção, argumentamos que a tecnologia deve ser considerada como dimensão fulcral nas análises sobre dinâmicas internacionais, pela forma como entrelaça, além de ser moldada e moldar, o sistema e suas unidades em densos sistemas sociotécnicos (FRITSCH, 2014, p. 116). Entendemos que a tecnologia deve ser compreendida enquanto fenômeno político intrinsicamente conectado ao tecido de poder internacional. Aqui propomos um olhar crítico sobre a tecnologia e seus processos de desenvolvimento e difusão que revele suas dimensões políticas implícitas, lançando luz sobre as consequências de poder e dominação nas relações entre Estados centrais e periféricos. 18 Ainda durante a graduação, instigado pela temática das relações entre as inovações tecnológicas e a guerra, dediquei-me a estudar os impactos das transformações cibernéticas sobre aspectos normativos e conceituais da defesa. Entretanto, foi durante o estágio de pesquisa realizado no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no escopo do projeto “Mapeamento da Base Industrial Brasileira”, que me aproximei de forma mais estreita com as temáticas que compõem o presente trabalho. Durante o período em que estive envolvido com as atividades do projeto, tive a oportunidade de participar de encontros e debates em diferentes órgãos do poder Executivo, compostos por representantes de diferentes ministérios e agências de governo. Ainda que os debates pudessem ensejar pontos de vista dissonantes, um ponto comum era o de que o país, por meio de investimentos em Defesa, parcerias internacionais e concessão de facilidades ao setor industrial, poderia qualificar sua autonomia estratégica e tecnológica. Em consonância, os documentos estratégicos do país manifestam a percepção de que a autonomia tecnológica e a autonomia estratégica estão intimamente relacionadas. Sob essa leitura, o incremento da autonomia tecnológica brasileira permitiria sustentar as estratégias de desenvolvimento e de defesa do país. Frente a essas questões, durante o mestrado desenvolvi projeto de pesquisa cujo objetivo era compreender em que medida o Programa FX-2, por meio da transferência de tecnologia prevista no acordo, poderia ampliar a liberdade de ação estratégica do Brasil. A temática abordada na pesquisa, cuja concepção contou com ricas contribuições provenientes de reuniões de orientação e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), permitiu- me lançar luz sobre um corpo bibliográfico mais crítico em relação à temática da tecnologia para fins militares. A perspectiva adotada a partir desse prisma analítico possibilitou-me vincular tal reflexão crítica à outra questão que desde meu estágio em Brasília insistia em me inquietar: a vinculação da tecnologia com a autonomia estratégica. Nesse sentido, tomamos como problema de pesquisa buscar compreender a relação entre o padrão da demanda militar de países sul-americanos e seu grau de autonomia estratégica. A partir da revisão da literatura, identificamos uma lacuna na forma como a dimensão tecnológica é considerada pelas abordagens que buscam iluminar essa questão. Dessa forma, buscamos complementar a análise sobre a relação entre demanda militar e autonomia estratégica considerando a tecnologia como componente estreitamente vinculado ao poder, e não como elemento exógeno aos processos políticos. Nesses termos, localizamos nossa pesquisa na intersecção de três dimensões fundamentais para a compreensão do tema: a) literatura dedicada aos estudos sobre tecnologia; b) literatura voltada à temática de autonomia e dependência; e, c) literatura sobre os determinantes da demanda militar. 19 De maneira geral, a partir de um arcabouço sobre a filosofia da tecnologia, entendemos que perspectivas analíticas sobre as características do desenvolvimento tecnológico e sua natureza valorativa podem ser classificadas em quatro grupos: determinismo, instrumentalismo, substantivismo e teoria crítica. A perspectiva determinista assume que o progresso da tecnologia, neutra em valores e autônoma em relação à orientação humana, constitui importante força motriz da história. Em linha com essa leitura, a posição instrumentalista concebe a tecnologia como meio de realização da vontade política; essa abordagem corresponde ao padrão moderno, sob o qual a tecnologia é reduzida ao instrumento empregado pelo ator social a fim de cumprir seus objetivos (FEENBERG, 2013). Em contrapartida à suposição de neutralidade, a posição substantivista reconhece que certos valores são incorporados às tecnologias, tornando-as, mais que mero instrumento da eficiência, também mecanismo de difusão desse valor (FEENBERG, 2000; MARICONDA; MOLINA, 2009; NOVAES; DAGNINO, 2004). Por fim, a teoria crítica assume que os valores incorporados às tecnologias são socialmente específicos e intrinsicamente relacionados com a agência humana, que orienta o ritmo e a forma do progresso técnico. A partir dessa perspectiva, tanto a inovação quanto a difusão da tecnologia militar representam, mais do que um resultado inevitável, a materialização de valores e objetivos políticos do âmbito social no qual foram idealizadas (FEENBERG, 2000; HORNBORG, 2001; 2014). Nesse sentido, como observado por Headrick (1988) no contexto do século XIX, um dos efeitos da difusão tecnológica para as regiões colonizadas foi a mudança cultural no tipo de consumo praticado. Consideramos a autonomia enquanto resultante da relação entre os atributos estatais e as condições externas, liberando a decisão política de constrangimentos impostos por Estados mais poderosos. Essa concepção reflete uma tipologia ideal das condições de autonomia e dependência, portanto, a ação de um país não se enquadra integralmente como autônoma ou dependente nesses termos, mas sim em um complexo gradiente entre ambas (JAGUARIBE, 1979; PUIG, 1980). Em relação aos trabalhos sobre a dependência, buscamos discutir as diferentes concepções em relação ao conceito presentes na área das RI; entretanto, entendemos que a perspectiva desenvolvida pelos chamados dependentistas – em especial aqueles filiados à tradição marxista – pode oferecer melhores subsídios para a compreensão do tema (CARDOSO; FALETTO, 1975; FURTADO, 1974; 2009; SANTOS, 2000). Em relação aos trabalhos dedicados à análise dos determinantes da demanda militar, buscaremos apresentar e discutir alguns dos principais argumentos e pressupostos levantados por essa bibliografia. Com base na sistematizações propostas por Battaglino (2016) e Buzan (1991), organizamos as abordagens que buscam compreender a demanda militar em três paradigmas distintos: dinâmica 20 de segurança, assentada sobre a lógica de ação-reação; estrutura nacional, de enfoque particular sobre os elementos político-econômicos domésticos; e a ordem militar global, cujo enfoque recai sobre a dimensão cultural da demanda. Frente ao exposto, a pergunta que orienta a presente pesquisa está delineada pela indagação sobre quais fatores motivam o padrão da demanda por tecnologia militar em países da América do Sul, e como essa tecnologia se relaciona com a autonomia estratégica desses países? A hipótese a ser examinada, fundamentada sobre a intersecção das dimensões estabelecidas, indica que a demanda militar em países da América do Sul, orientada pela atribuição de competência eficiente aos armamentos, mistifica valores e relações sociais imbuídas no desenho tecnológico desses artefatos e reforça as condições da dependência estratégica. Para tanto, adotaremos como escopo de análise as transferências de armamentos realizadas pelo Brasil ao longo do período de 2005 a 2015, tendo em vista o percentual representativo do país no volume total de transferências de armamentos da região durante o período em tela4. Concordamos com Battaglino (2013) e Villa e Viggiano (2012), em que esse período marcou a conjunção de diferentes fatores – como a avaliação estratégica da defesa, a vontade política e a disponibilidade orçamentária – que incidiram favoravelmente, a despeito de variações ao longo do tempo, sobre a aquisição de armamentos e o desenvolvimento de projetos voltados à modernização das forças armadas da região. Sob esse contexto, elementos não associados à potencialidade de conflito somam-se aos fatores de ameaça externa e considerações político-econômicas domésticas como motivadores da aquisição de armamentos. Dessa forma, é preciso observar a região também sob um quadro analítico de considerações estratégicas de ordem não conflitiva. Ou seja, como argumentam Villa e Weiffen (2014), para alguns países sul-americanos que buscam aprimorar sua inserção política regional e globalmente, os armamentos repercutem como símbolo de poder e prestígio. Enquanto objetivos específicos, buscamos: a) compreender as diferentes perspectivas em torno dos conceitos de “fetichismo”, “tecnologia” e “fetichismo da tecnologia”; b) compreender e discutir as diferentes perspectivas em torno das noções de autonomia e dependência e sua repercussão para a dimensão militar; c) compreender e discutir as diferentes abordagens em torno dos determinantes da demanda militar; d) identificar a trajetória histórica de conformação da oferta internacional de tecnologia militar; e) identificar e discutir o processo 4 Durante o período, os três maiores importadores de armamentos da América do Sul foram, nesta ordem: Venezuela, Chile e Brasil. Somadas, as importações desses três países representaram quase 75% das transferências realizadas por todos os países sul-americanos (SIPRI, 2021a). 21 histórico de formação do Estado e das organizações militares dos países da América do Sul; e f) identificar o conhecimento implícito associado ao padrão da demanda militar brasileira. De maneira geral, os procedimentos de pesquisa e a organização dos capítulos foram pensados de acordo com os objetivos específicos propostos. Para a compreensão das diferentes perspectivas em torno dos conceitos de tecnologia, autonomia e dependência, realizaremos uma revisão bibliográfica da literatura pertinente, sendo de particular interesse os desdobramentos para a área específica da tecnologia militar, e da autonomia e dependência estratégicas. Ademais, analisaremos a literatura que aborda o conceito de fetichismo, bem como seus desdobramentos no âmbito da tecnologia, buscando tensionar e expandir esse debate para o âmbito específico da tecnologia militar. Em relação ao terceiro objetivo específico, revisamos trabalhos que discutem as motivações e constrangimentos em torno dessa demanda que organizamos em torno de três argumentos explicativos. Com relação à trajetória histórica de conformação da oferta internacional de tecnologia militar, consultamos obras que versam particularmente sobre a relação entre Estado e a produção industrial de Defesa, e as formas de inovação e difusão dessas tecnologias ao longo da história. Para identificar os principais atores que compõem o mercado internacional de tecnologia militar, consultamos fontes que organizam dados relativos à transferência de armamentos, gastos em Defesa e principais empresas internacionais produtoras de armamentos, tais como as bases de dados disponibilizadas pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) e International Institute for Strategic Studies (IISS). Para compreender o processo histórico de formação do Estado e das organizações militares dos países da América do Sul, buscamos discutir obras dedicadas à análise dessas questões. Por fim, para a identificar o conhecimento implícito associado ao padrão da demanda militar brasileira, aplicamos o método de análise de conteúdo aos trabalhos de conclusão de curso produzidos no âmbito das instituições superiores de ensino militar durante o período de 2005 a 20155. Tais dados fragmentados foram trabalhados a fim de construir um corpus social que auxilie na tipificação de atributos desconhecidos sobre a realidade social. Para tanto, o material foi rigorosamente sistematizado e codificado a fim de iluminar o conhecimento implícito presente na demanda militar (SINCLAIR, 1991; BAUER; AARTS, 2008; BUEGER, 2014). Inicialmente realizamos uma análise horizontal dos trabalhos levantados para organizá- los de acordo com suas categorias de estudo, a fim de identificar a representatividade de 5 Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (Ecemar) e Escola de Guerra Naval (EGN). 22 assuntos referentes a tecnologia, armamentos, transferência de tecnologia militar e Base Industrial de Defesa no universo de trabalhos. Em um segundo momento e a partir da elaboração de um constructo analítico, analisamos a ocorrência de temas pertinentes ao problema de pesquisa a fim de compreender a percepção das forças sobre a tecnologia militar. Para o cumprimento desses objetivos, levantamos 2.012 trabalhos distribuídos da seguinte forma: 88 trabalhos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme); 834 trabalhos da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (Ecemar); e 1.098 da Escola de Guerra Naval (EGN). Para a sistematização e organização do processo, utilizamos o software ATLAS.ti, que se enquadra na categoria de Computer-aided qualitative data analysis software (CAQDAS). No segundo capítulo, consideramos aspectos teórico-conceituais a fim de apresentar as categorias de análise utilizadas no decorrer da pesquisa. A partir da discussão acerca das diferentes abordagens em torno dos conceitos de “fetichismo” e “tecnologia”, buscamos desenvolver a categoria associativa “fetichismo da tecnologia”. Em relação ao “fetichismo”, exploramos genealogicamente as diferentes definições e articulações em torno do conceito, em especial seu emprego nas tradições de estudo da antropologia da religião, materialismo marxista e psicologia. Entendemos que uma abordagem dessa natureza pode iluminar os pontos comuns e os fundamentos distintos em relação ao fenômeno do fetichismo. Em relação à noção de “tecnologia”, refletimos sobre as abordagens filiadas aos Estudos de Ciência & Tecnologia (EC&T) para compreender as diferentes leituras sobre a tecnologia e sua relação com a dimensão social. Nosso esforço buscou fundamentar a concepção da tecnologia como política a partir da noção de tecno-política6. De forma complementar, definimos o conceito de fetichismo da tecnologia, associado às noções de sistema tecnológico e prática tecnológica, como categoria analítica necessária para iluminar o padrão da demanda militar na América do Sul e suas implicações para a dependência estratégica desses países. No terceiro capítulo mostramos como a tecnologia, em sua concepção ampla, pode ser integrada à análise dos fenômenos de autonomia e dependência na dimensão militar. Sobretudo a partir da noção de sistemas tecnológicos, discutimos a manifestação militar do fetichismo da tecnologia e sua relação com a autonomia estratégica. Para tanto, inicialmente apresentamos e discutimos as diferentes conceções em torno dos conceitos de “autonomia” e “dependência” usualmente empregadas na área de RI. Aproximamos a ideia de fetichismo da tecnologia aos fundamentos propostos pela literatura dos chamados dependentistas a fim de circunscrever os 6 Em linhas gerais, como discutiremos posteriormente, a noção de tecno-política assenta que as práticas e desenhos tecnológicos não constituem fenômenos meramente objetivos e neutros, mas sim elementos profundamente conectados com o tecido do poder. 23 atributos conceituais sob os quais compreendemos o fenômeno da dependência. Finalmente apresentamos e discutimos o que se convencionou chamar de “Escola da Autonomia” sul- americana; o reconhecimento por parte dessa literatura sobre a replicação da estrutura de centro- periferia no âmbito doméstico nos permitiu refletir sobre o papel da elite militar na (re)produção da dependência estratégica. A partir dessas questões, integramos à reflexão a literatura dedicada ao estudo dos determinantes da demanda militar. Apresentamos e discutimos os alcances e limites de cada uma das abordagens para identificar os pressupostos que melhor contribuíssem com nossa pesquisa. Em linha com tais reflexões, desenvolvemos a concepção de “fetichismo da tecnologia militar” enquanto fértil instrumento para iluminar o conhecimento implícito nos padrões de demanda militar de países sul-americanos e sua implicação para a liberdade de ação estratégica. À luz de tal arcabouço teórico e conceitual, no quarto capítulo analisamos o processo histórico de conformação da configuração contemporânea da oferta internacional de tecnologia militar. Para tanto, nos ateremos a três variáveis fundamentais: a natureza dos processos de inovação tecnológica no campo militar; a relação entre o Estado e a indústria produtora de armamentos; e as características da difusão de tecnologia militar. Retomamos o processo histórico, bem como as controvérsias a respeito do tema, desde o período caracterizado pela ocorrência de uma “Revolução Militar”, entre os séculos XVI e XVII (DEVRIES, 1998; PARKER, 1976; ROBERTS, 1995; THOMPSON, 1999). Posteriormente, avançaremos sobre o período comumente conhecido como “Revolução Industrial”, iniciado sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII. Como aponta Krause (1992, p. 56), o emprego da termodinâmica no processo de produção forneceu as bases para o período de maiores inovações tecnológicas desde o desenvolvimento da pólvora e do canhão. Conforme argumentam Kaldor (1986a) e Van Creveld (1991), o período marcou o aumento da complexidade tecnológica dos armamentos, conformando o que pode ser entendido como uma concepção inicial dos sistemas de armas; embora parte da literatura aponte que a maturidade da concepção dos sistemas de armas foi alcançada a partir da década de 1950. Nesse sentido, buscamos identificar como as três variáveis de interesse se manifestaram sob o contexto da Guerra Fria. Por fim, nos debruçaremos sobre o momento do pós-Guerra Fria e início do século XXI, período no qual parte da literatura identifica a ocorrência de um processo de consolidação e concentração da oferta internacional de armamentos (DUNNE; SMITH, 2016, p. 16). De modo a complementar tal análise, na segunda parte do capítulo discutiremos o 24 processo histórico de formação do Estado e das organizações militares dos países da América do Sul. Nesse sentido, buscamos contextualizar historicamente os esforços de organização e modernização das forças armadas dos países sul-americanos a fim de compreender o processo por meio do qual as forças militares da região foram integradas ao que parte da literatura convencionou chamar de “ordem militar global” (EYRE; SUCHMAN, 1996; KALDOR, 1986a; KINSELLA, 2013; SUCHMAN; EYRE, 1992; WENDT, 1989; WENDT; BARNETT, 1993). Para tanto, entendemos necessário um esforço subsidiário de compreender sob quais condições políticas, econômicas e militares conformaram-se os Estados sul-americanos; ou seja, a identificação desses fundamentos contextualiza regional e internacionalmente os esforços de emulação militar realizados pelos países da América do Sul a partir do final do século XIX. Nesse sentido, buscamos discutir os trabalhos dedicados à análise da formação do Estado e da organização militar na América Latina (CENTENO, 2002; LÓPEZ-ALVES, 2001; RESENDE-SANTOS, 2007; ROUQUIÉ, 1987). A partir da identificação dos elementos que caracterizaram, por um lado, a trajetória de consolidação da oferta internacional de armamentos e, por outro, a conformação dos Estados e das organizações militares na América do Sul, buscaremos analisar a incidência desses processos históricos sobre o Brasil. Como indicado por parte da literatura, os eventos da Guerra do Paraguai (1864-1870) e da Segunda Guerra do Pacífico (1879-1883) desencadearam um processo de emulação militar em larga escala na região, iniciado pelo Chile, em 1885 (RESENDE-SANTOS, 2007; ROUQUIÉ, 1987). Em linhas gerais, sobretudo durante as primeiras décadas do século XX, as forças armadas sul-americanas estiveram sob influência militar das forças britânicas, francesas e germânicas. Nesses termos, tendo em vista o contexto competitivo entre as potência europeias, a influência militar sobre a região apresentou contornos mais característicos de interpenetrações que propriamente uma substituição integral de “tutor” (MCCANN, 1982). Sob esse quadro, analisaremos a influência estrangeira sobre as Forças Armadas brasileiras ao longo do século XX, em especial a partir da Missão Militar Francesa (1919-1940) e da Missão Naval Americana (1922-1977), a fim de compreender como esse processo ajudou a moldar a demanda militar contemporânea do país. No quinto capítulo analisamos o padrão da demanda militar brasileira durante o período de 2005 a 2015, bem como suas implicações para a autonomia estratégica do país, à luz da noção de fetichismo da tecnologia militar. Entretanto, em primeiro lugar, revisitamos a literatura produzida a respeito da transferência de armamentos na América do Sul, com especial atenção ao período referenciado. Complementarmente, buscamos contextualizar ao Brasil os 25 debates observados na bibliografia, indicando como elemento fundamental para a compreensão do fenômeno de aquisição de armamentos as caraterísticas da demanda militar do país. Posteriormente, explicitamos o desenho metodológico empregado para a análise, conforme apresentado previamente. Para conceder base empírica à nossa hipótese, a partir da análise de conteúdo, buscamos compreender a percepção dos militares brasileiros sobre a tecnologia militar, tendo em vista que a atribuição de competência eficiente na resolução de problemas de ordem social aos artefatos técnicos, pela mistificação de valores e relações sociais imbuídos no desenho tecnológico, reforçaria a condição dependente frente aos países do centro. Por fim, desenvolvemos algumas considerações finais a respeito dos resultados obtidos pela pesquisa e o potencial de emprego do desenho metodológico desenvolvido para outros contextos sul- americanos. 26 2 FETICHISMO DA TECNOLOGIA Neste capítulo, de caráter teórico-conceitual, apresentamos as definições de “fetichismo”, “tecnologia” e, a partir de uma reflexão acerca das diferentes abordagens em torno desses primeiros conceitos, associamos a categoria “fetichismo da tecnologia”. As reflexões sobre a ideia de fetichismo da tecnologia fornecem as bases conceituais e teóricas sobre as quais desenvolvemos os argumentos sobre o fetichismo da tecnologia militar, apresentado no capítulo seguinte. Adotando como base as reflexões propostas por Jackson (2008), um debate presente na atual agenda de pesquisa das Relações Internacionais (RI) refere-se à natureza dos fundamentos metodológicos que orientam a produção do conhecimento na área. Nesses termos, as categorias de análise, que são usualmente divorciadas da prática – ou “realidade” – pelo discurso científico tradicional, devem ser especificadas historicamente e compreendidas como produtos de conflitos. Isto é, não há nesses conceitos um atributo iminentemente neutro para a produção de um conhecimento a respeito de uma dada realidade. Sob tais pressupostos, entendemos que os conceitos, [...] são ainda menos o produto de um consenso/diálogo de uma comunidade epistêmica levando em direção a um regime objetivo da verdade cujo modelo será equivalente a lógica e matemática. Pelo contrário, são quase sempre o produto das relações e da circulação de poder dentro e entre os campos, bem como a imposição de problemas vindos de posições dominantes. (BIGO, 2011, p. 230-231, grifo nosso, tradução nossa). Em certa medida, tal perspectiva aproxima-se das reflexões desenvolvidas por Schmitt (1984) a respeito da polissemia de conceitos e termos alimentada por distintos empregos em diferentes contextos históricos. Para o autor, que reflete especificamente sobre o contexto europeu, somente a partir dos intitulados “centros de referência” – que se mantêm em contínua transformação – é possível compreender os conceitos das diferentes gerações. Nesses termos, o autor sustenta que, em quatro séculos de história europeia, transformaram-se não apenas as elites, mas também as evidências de suas convicções e argumentos, bem como “[...] o conteúdo de seus interesses espirituais, o princípio de sua ação, o segredo de seus êxitos políticos e a disposição das grandes massas a se deixarem influir por determinadas sugestões.” (SCHMITT, 1984, p. 79, tradução nossa). À luz dessas considerações, o presente capítulo possui três objetivos. Em primeiro lugar, com o objetivo de apresentar o que entendemos por fetichismo, partimos de uma abordagem genealógica a fim de explorar as diferentes definições e articulações do conceito, identificando 27 seus pontos comuns e fundamentos distintos. Em segundo lugar, revisitamos parte da literatura dos chamados EC&T com o objetivo de conceitualizar a tecnologia como política. Para tanto, mobilizamos a noção de tecno-política como perspectiva intermediária entre o chamado determinismo tecnológico e o construtivismo social. Por fim, somamos ambos os esforços às noções de sistema tecnológicos e práticas tecnológicas a fim de conceitualizar o fetichismo da tecnologia e seus efeitos. 2.1 Perspectivas em torno do conceito de fetichismo Um extenso corpo da literatura dedica-se a discutir as origens e as diferentes definições do conceito de fetichismo em distintas áreas do conhecimento. De um ponto de vista histórico, reconhece-se que o termo fetiche deriva da palavra portuguesa “feitiço”, então empregada pelos portugueses do século XVI para fazer referência àqueles objetos que os povos da costa ocidental da África cultuavam (ELLEN, 1988, p. 214; POOL, 1990, p. 114; IACONO, 2016, p. 3). Por sua vez, a palavra deriva do latim “facticius”, que denota algo artificial. Dessa forma, a palavra fetiche foi comumente empregada por europeus que indicavam os cultos indígenas da Guiné (IACONO, 2016, p. 11). Entretanto, ao longo da história, o termo foi empregado como instrumento de análise para diferentes finalidades. De maneira geral, compreende-se que o desenvolvimento histórico do conceito de fetichismo pode ser organizado em dois recortes fundamentais: história conjuntural da religião, manifestando a forma como o Ocidente observou o “Outro”; e um exercício reflexivo crítico do Ocidente sobre sua própria realidade, enfocando a relação entre homens e mercadorias e questões relativas às análises psicológicas (ELLEN, 1988; IACONO, 2016). Dessa forma, compreende-se que, mais do que permitir acessar as origens do conceito, a análise histórica sobre o fetichismo nos permite construir um quadro amplo a respeito das ideias, valores e senso crítico que moldaram a leitura ocidental sobre o Outro e sobre seu próprio mundo. Enquanto a perspectiva religiosa sobre o fetiche fomentou a construção dos valores ocidentais sobre si mesmo em contraste à imagem do Outro, a extensão do conceito ao contexto ocidental fundamentou uma análise crítica reflexiva acerca das implicações e limitações da modernidade. A partir da apresentação e discussão das diferentes perspectivas acerca do conceito de fetichismo, o objetivo desta seção é organizar as bases para, após a qualificação da tecnologia enquanto política, discutir uma concepção sobre o fetichismo da tecnologia. À luz das considerações de Ellen (1988, p. 219), nosso interesse sobre o conceito de fetichismo justifica-se pela forma como essa categoria permite o enfoque sobre a articulação entre 28 processos cognitivos individuais e a estrutura de representações coletivas. Um dos primeiros trabalhos a introduzir o termo como instrumento analítico foi a obra Du culte des dieux fetiches, publicada em 1760 por Charles de Brosses, a qual tinha como enfoque o estudo da religião. Como argumenta Leonard (2016, p. 113), ao analisar comparativamente as práticas religiosas da antiga civilização egípcia àquelas dos “selvagens” de sua época, Brosses defende a ideia de que o fetichismo representa uma fase universal no desenvolvimento da religião, anterior e distinta dos sistemas de politeísmo e monoteísmo. Segundo Brosses (1760, p. 19), os fetiches nada mais são que objetos materiais aos quais são atribuídas capacidades divinas – como uma árvore, uma montanha ou um animal, por exemplo. Entretanto, a despeito do emprego do termo como instrumento de análise de uma realidade social, Brosses não foi pioneiro na preocupação com as chamadas práticas fetichistas de povos entendidos como selvagens7. Em mesma medida, as reflexões desenvolvidas pelo autor alinharam-se a uma tradição de pensamento que já se apresentava em proeminentes trabalhos, tal como em David Hume – particularmente sua obra Natural History of Religion. Conforme argumenta Iacono (2016, p. 56), tal como Hume, Brosses esteve associado à tradição de analisar expressões primitivas da humanidade segundo a noção de gradual progresso do bárbaro à civilização. Nesses termos, a abordagem desenvolvida por Brosses sustenta uma leitura comparativa com uma teoria da mente primitiva, a qual assume o controverso pressuposto de que os ditos povos primitivos se encontram no mesmo estágio do desenvolvimento humano, o que explicaria a paridade de suas práticas religiosas (IACONO, 2016, p. 59). Adicionalmente, o autor estende o entendimento da universalidade espacial das práticas fetichistas entre povos selvagens contemporâneos à dimensão temporal, argumentando que as práticas de povos antigos se assemelham a de povos africanos e americanos devido a uma virtual congruência nas formas de pensamento. Isto é, […] uma vez que os costumes, o culto e as ações dos egípcios eram quase os mesmos que os dos negros e dos americanos, não é natural concluir que todos eles agiram em virtude de um modo quase uniforme de pensar e, portanto, concluir que precisamente esse é o mistério de um enigma para o qual procuramos há muito tempo uma palavra [?] (BROSSES, 1760, p. 77, tradução nossa). Sob essa perspectiva, o entendimento acerca dos diferentes cultos religiosos é informado pela primazia de uma classificação binária que organiza as sociedades em “antes” e “depois”. Essa leitura converge com a crítica de Iacono (2016, p. 60) sobre o argumento da mente 7 Ver mais em Iacono (2016, p. 55). 29 primitiva, para quem tal perspectiva se assenta sobre a hipótese de que a forma de desenvolvimento da mente humana progride segundo uma classificação etapista, a qual está alinhada com a forma de sociedade. Em suma, o que está implícito a tal enquadramento analítico é que a faculdade humana de representação simbólica possui etapas de desenvolvimento, no qual o fetichismo ocupa o estágio primordial. Dessa forma, torna-se claro “[…] como a arbitrária natureza dos fetiches, frequentemente mencionada pelos viajantes, é aqui inserida no âmbito de uma teoria evolutiva da mente humana, a qual a define em relação ao uso primitivo de suas faculdades.” (IACONO, 2016, p. 61, tradução nossa). Sob esse quadro, Brosses (1760) entende que uma das principais características do fetichismo como forma de religião primordial é a deificação dos objetos. Isto é, menos que representações de divindades, os fetiches consubstanciam, pela faculdade da chamada mente primitiva, a própria divindade. Dessa forma, a arbitrariedade na escolha dos fetiches somada à exterioridade da chamada religião primitiva são elementos que reforçam a leitura sobre o fetichismo baseada na ideia da limitada habilidade da mente primitiva em atribuir símbolos (IACONO, 2016, p. 64). Nesses termos, segundo a perspectiva evolutiva do autor, “quando os objetos são deificados como representando seres invisíveis, então eles devem ser classificados como uma fase mais avançada [...] O fetichismo é a primeira forma crua de religião precisamente porque os objetos são deificados em si mesmos.” (IACONO, 2016, p. 65, tradução nossa, grifo nosso). Entretanto, além de uma corrente centrada em questões de religião, o conceito forneceu importantes insumos a um espectro mais amplo de trabalhos. De acordo com Ellen (1988), Marx incorporou o conceito de fetichismo às suas reflexões por influência dos trabalhos de Brosses e Hegel, desenvolvendo em O Capital seus contornos mais conhecidos sobre o conceito8. No primeiro volume da obra, Marx associa o conceito de fetichismo a um elemento fundamental de sua análise sobre o sistema capitalista: a mercadoria. Nesse quadro, as mercadorias emergem como fontes autônomas de valor desvinculadas do trabalho humano envolvido. No contexto de sociedades capitalistas burguesas – nas quais as relações de mercado se desenvolveram –, às mercadorias é associado um valor para além daquele valor de uso constituído pelo trabalho concreto: o valor de troca. O valor de uso deriva do trabalho concreto que desabriga da matéria-prima, a partir da técnica e de aspectos fisiológicos, materiais que têm por fim atender às necessidades humanas (RUBIN, 1972). No 8 Segundo o autor, Marx introduziu o conceito em sua reflexão em 1842 – vinte e cinco anos antes da publicação do primeiro livro d’O Capital –, por ocasião de um texto publicado na revista Rheinische Zeitung (ELLEN, 1988, p. 216). 30 entanto, a característica mística da mercadoria não se manifesta em seu valor de uso, mas sim quando esta, sob o quadro da sociedade capitalista, insere-se em relações de troca. Em contrapartida ao valor de uso, as mercadorias sob as relações de troca capitalistas adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, distinta e separada de sua objetividade de uso. Analogamente à relação entre trabalho concreto e valor de uso, a noção de valor de troca deriva da abstração dos diferentes trabalhos úteis a seu fundamento comum como dispêndio de força humana de trabalho, reduzindo-os à ideia de trabalho abstrato. Sob esse quadro, como argumenta Marx (2013, p. 123), o valor de troca equaliza os diferentes tipos de processos empreendidos para a produção de um mesmo número de mercadorias, inserindo nas relações sociais entre produtores o intermédio das coisas. Frente a esse quadro, argumenta que [...], na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem. (MARX, 2013, p. 123). Esse “hieróglifo social” apontado por Marx ampara a leitura metonímica sobre as relações sociais que incorrem no fetichismo da mercadoria, obscurecendo as relações de produção relevantes para as mercadorias. A partir do emprego de um conceito tradicionalmente vinculado aos estudos antropológicos, Marx promoveu questionamentos inquietantes a respeito das semelhanças da racionalidade moderna com as tradições tribais mais supersticiosas enquanto forma de mistificação das relações sociais. Como argumenta Pietz (1993, p. 130), a mobilização do conceito de fetichismo encena uma subversão dialógica do modo como seus antecessores e contemporâneos teorizaram a realidade social. À luz dessas considerações, o fetichismo das mercadorias é definido como [...] uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (MARX, 2013, p. 122). O emprego dessa categoria analítica promove um entendimento sobre o capitalismo que é alheio à forma burguesa de compreensão sobre tal sistema, atenta estritamente às próprias categorias do capital. Para Pietz (1993, p. 130), o apelo de Marx à linguagem da mágica e da teologia em geral, e em específico ao fetichismo, fundamenta-se como forma de evocar o imaginário materialista próprio de um modo comunista de apreender a realidade capitalista. 31 Em sua obra The devil and commodity fetishism in South America, Taussig (2010) estende o conceito marxiano de fetichismo para o estudo da imagem do diabo para trabalhadores rurais proletarizados na Colômbia e na Bolívia. Para o autor, as crenças sobre o diabo podem ser interpretadas como uma reação indígena à suplantação de um fetichismo pré-moderno pelo fetichismo moderno da mercadoria. Em contraste à subordinação das pessoas às coisas, em sociedades pré-capitalistas as pessoas e as coisas que produzem e trocam são entendidas como entrelaçadas. Nesse sentido, entendemos que uma repercussão da visão pluralista sobre o conceito de fetichismo pode ser encontrada no trabalho de Taussig (2010), para quem [...] o fetichismo encontrado na economia de sociedades pré-capitalistas emerge do senso de unidade orgânica entre pessoas e seus produtos, e isso contrasta fortemente com o fetichismo das mercadorias nas sociedades capitalistas, que resulta da divisão entre as pessoas e as coisas que elas produzem e trocam. O resultado dessa divisão é a subordinação dos homens às coisas que eles produzem, que parecem ser independentes e autocapacitadas. (TAUSSIG, 2010, p. 37, tradução nossa). Adicionalmente, o conceito de fetichismo também é empregado pela literatura de psicologia para indicar a atribuição erótica a objetos inanimados ou partes assexuais do corpo humano. Dessa forma, como explica Ellen (1988, p. 218), em sua tradição psicológica, o fetiche sustenta-se sobre uma leitura metonímica da parte pelo todo; isto é, uma parte do corpo humano, ou um artefato associado, substitui o todo enquanto objeto de desejo – usualmente sexual. Nesses termos, tomando por base as distintas formas de incorporação do conceito de fetichismo às tradições analíticas – antropologia da religião, materialismo marxista e psicologia –, o autor busca identificar os processos cognitivos gerais que sustentam o fenômeno em suas diferentes concepções. Dessa forma, indica quatro processos presentes na geração de tais representações culturais: primeiro, existência concreta ou a concretização de abstrações, permitindo sua descontextualização; segundo, atribuição de qualidades de organismos vivos – usualmente, mas não exclusivamente, humanas – aos artefatos; terceiro, confusão entre significado e significante; quarto, uma relação ambígua entre controle das pessoas sobre os objetos e de controle dos objetos sobre as pessoas (ELLEN, 1988, p. 219; HORNBORG, 1992, p. 12). Como as noções do conceito em suas tradições marxista e psicológica sugerem, o fetichismo possui uma dinâmica contraditória na relação entre significado e significante. Isto é, o signo deve manter sua relação com a coisa que representa, mas ao mesmo tempo esconde essa mesma coisa, transfigurando-a em algo diferente. Essa transfiguração, por sua vez, garante não uma distorção, mas a funcionalidade de um processo simbólico que se torna um sistema. (IACONO, 2016, p. 92, tradução nossa). Nesses termos, a observação desse fenômeno não diz respeito ao resgate da pureza de 32 um objeto em contraposição ao seu simbolismo distorcido, tampouco ao acesso da verdade em oposição à aparência, mas sim a captar criticamente a lacuna que inevitavelmente se abre assim que a representação toma o lugar do objeto que está sendo representado (IACONO, 2016, p. 1). Por consequência desse processo, cada traço do objeto é perdido, tornando invisível a lacuna entre o objeto e sua representação. 2.2 Perspectivas em torno do conceito de tecnologia Tributárias de diferentes campos do conhecimento, como a filosofia e a sociologia, as abordagens compreendidas no âmbito dos chamados EC&T distinguem-se sobretudo por seus discordantes pressupostos a respeito da natureza valorativa da tecnologia e sua forma de integração com a dinâmica social. Por sua natureza interseccional, os debates inerentes ao campo de EC&T produzem relevantes repercussões para o entendimento do mundo moderno. Como argumenta Sismondo (2010, p. 8), a tecnologia tende a ocupar no imaginário acadêmico e popular o papel de aplicação direta da ciência. Sob esses termos, se a tecnologia é ciência aplicada, seus limites se dão pelos limites do conhecimento científico. As principais questões que emergem sob essa ótica referem-se aos efeitos da tecnologia, como sua capacidade de determinar diferentes dimensões das relações sociais. A despeito de suas diferentes variações, o elemento central ao determinismo tecnológico é a ideia de que a mudança tecnológica força adaptações sociais, constrangendo a trajetória histórica (SISMONDO, 2010, p. 96). Ao adotar a tecnologia como um produto acabado, esses estudos usualmente divorciam- se daqueles que analisam a criação de tecnologias. Uma leitura que contrapõe o modelo linear na relação ciência-tecnologia parte da concepção de que ambas as dimensões são fundamentalmente sociais e, portanto, ativas em suas formas de desenvolvimento. Sob esses termos, o modelo linear da inovação perde fôlego, uma vez que os produtos da ciência e da tecnologia, bem como a forma e direção de sua relação, não são em si naturais (SISMONDO, 2008, p. 14). Entendemos que, de maneira geral, duas correntes majoritárias de pensamento têm influenciado o campo de estudos nas últimas décadas: o determinismo tecnológico e o construtivismo social. Ambas abordagens divergem acerca da natureza da relação tecnologia- sociedade e das formas de agência humana sobre a evolução tecnológica. À luz dessas reflexões, e em consonância com Fritsch (2011, p. 29), entendemos que uma vertente intermediária que sintetize as virtudes de ambas as leituras fornece um campo fértil para a integração da categoria tecnologia às análises de RI. 33 Para Misa (1988, p. 309), o determinismo tecnológico assume duas formas distintas: uma relacionada à forma de desenvolvimento da tecnologia e outra relativa a mudanças sociais determinadas por mudanças na tecnologia. No entanto, interpretações dissonantes a essa leitura entendem que ambas as formas compõem duas partes de um mesmo todo (MACKENZIE; WAJCMAN, 1985, p. 5; WYATT, 2008, p. 168). Nesses termos, tanto a forma de desenvolvimento autônomo da tecnologia, atrelada à uma lógica técnica endógena alheia às relações sociais, quanto sua capacidade de determinar mudanças sociais, embebida da noção de que o progresso da tecnologia equivale ao progresso social, são elementos necessários do determinismo tecnológico. Como apontam Smith e Marx (1994, p. XI), tal narrativa reforça a imagem da tecnologia como uma entidade independente, isto é, um virtual agente autônomo da mudança. À luz dessas considerações, leituras mais gerais baseadas sobre o determinismo tecnológico tendem a reduzir períodos históricos e sociedades aos artefatos tecnológicos dominantes (PACEY, 1983, p. 24). De acordo com Mumford (1961, p. 231), a tendência de associar períodos históricos ou até mesmo nações a um artefato material deriva das primeiras disciplinas acadêmicas a lidar seriamente com a mudança tecnológica, como a antropologia e a arqueologia, que frequentemente lidam com sociedades pré-literárias, nas quais os artefatos constituem um dos poucos registros empíricos delas. A esse respeito, complementa: o fato de tais artefatos duráveis poderem ser organizados em uma série ordenada e progressiva frequentemente fez parecer que a mudança tecnológica não tinha outra fonte além da tendência de manipular os materiais, melhorar os processos, refinar as formas, tornar o produto eficiente. (MUMFORD, 1961, p. 231, tradução nossa). Críticos dessa leitura questionam a validade de atribuir à tecnologia, pensada em termos abstratos, quasi-metafísicos e indiscriminados, a capacidade de transformação em toda extensão do campo social (SMITH; MARX, 1994, p. XIII). Em sua obra The Technological System, Ellul (1980, p. 67) revisa a ideia de determinismo tecnológico como uma teoria frequentemente assimilada pela forma artificial como prioriza um fator em detrimento de outros. Todavia, questiona as noções de universalidade e monocausalidade atribuídas ao determinismo tecnológico. Nesses termos, argumenta que [...] entre os inúmeros fatores que operam dentro de uma sociedade, um fator, em um dado momento, parece mais decisivo que o resto. Esse fator, por sua vez, possui numerosas fontes – socio-intelectuais, ideológicas, políticas, etc. [...] Não estou de forma alguma dizendo que a tecnologia sempre foi, e em todas as sociedades, o fator determinante [...] [mas] que em nosso mundo Ocidental (e podemos generalizar os últimos vinte anos), a tecnologia é o fator determinante. (ELLUL, 1980, p. 67, tradução nossa). 34 Em seu trabalho seminal, Heilbroner (1967) lança uma questão que bem delineia a posição determinista: as máquinas fazem a história? Mais do que explorar de maneira ampla o impacto da tecnologia sobre a dimensão social, o autor reflete especificamente sobre o efeito da tecnologia como determinante da natureza de uma ordem socioeconômica. Nesses termos, entende que as inovações tecnológicas se realizam sob um quadro ascendente, incremental e sequencial, isto é, os avanços na tecnologia representam estágios que seguem “[...] uma e apenas uma grande avenida [...] No geral, o desenvolvimento da tecnologia de produção apresenta um perfil bastante suave e contínuo, em vez de um de picos e descontinuidades irregulares.” (HEILBRONER, 1967, p. 336-338, tradução nossa). Por consequência dessas características intrínsecas, o progresso tecnológico possui uma trajetória definida, tornando-se, portanto, previsível. Tendo sob enfoque específico a relação funcional da tecnologia e os processos de produção – e explicitamente renunciando a qualquer elemento “cultural” em sua análise –, Heilbroner (1967, p. 340) entende que a inovação tecnológica determina padrões de relações sociais de duas formas: a composição da força de trabalho e a organização hierárquica do trabalho. Nesses termos, compreende que diferentes tipos de tecnologia tanto requerem quanto são compatíveis com forças de trabalho de diferentes atributos e características, bem como formas distintas de organização das atividades de produção9. Todavia, como destacado por Herrera (2003, p. 567), Heilbroner busca qualificar seu argumento ao estreitar seus esforços de análise às sociedades capitalistas e às tecnologias industriais. Em um ensaio posterior, entende que é o comportamento pautado pela acumulação do capital próprio do sistema capitalista que age como força associativa entre os desenvolvimentos tecnológicos e suas implicações na dimensão social (HEILBRONER, 1994, p. 72-73). Sob esse quadro histórico, as considerações de mercado governam amplamente a adoção e repercussão da tecnologia na economia, dando ao progresso técnico e sua difusão social atributos de autonomia. Em outras palavras, assumindo tais processos como misteriosamente “[...] gerados pela sociedade e empurram seus membros de uma maneira tão indiferente quanto imperiosa.” (HEILBRONER, 1967, p. 345, tradução nossa). A esse respeito, como pontua Herrera (2003, p. 568), ainda que reconheça o papel das forças sociais e refute o papel de primum mobile da 9 Como argumenta o autor: “The internal organization of the eighteenth-century handicraft unit, with its typical man-master relationship, presents a social configuration of a wholly different kind from that of the nineteenth- century factory with its men-manager confrontation, and this in turn differs from the internal social structure of the continuous-flow, semi-automated plant of the present.” (HEILBRONER, 1967, p. 341). 35 tecnologia, assume uma posição determinista ao enfatizar sua influência e capacidade de gerar mudanças uma vez integrada ao sistema social. Um dos principais argumentos que fundamentam as críticas direcionadas ao determinismo tecnológico refere-se ao esvaziamento da agência humana e o caminho inexorável seguido pelo desenvolvimento tecnológico. Como argumenta Wyatt (2008, p. 169), tais elementos presentes no determinismo tecnológico implicam uma dupla consequência: ao mesmo tempo em que nos nega responsabilidade pelas escolhas tecnológicas realizadas, permite ridicularizar aqueles que desafiam o ritmo e a direção da mudança tecnológica. Em concordância com tais críticas, e com o propósito de superar as insuficiências analíticas do determinismo tecnológico, um conjunto de acadêmicos voltou-se ao estudo dos fatores sociais que incidem sobre o desenho e a mudança das tecnologias. Para esses autores, associados à agenda de pesquisa denominada Social Construction of Technology (SCOT), as características e dinâmicas sociais exercem papel primordial na adoção e nos caminhos inovativos de novas tecnologias (MACKENZIE; WAJCMAN, 1985, p. 6; PINCH; BIJKER, 2012, p. 40). Nesses termos, se um enfoque a partir da tecnologia para analisar sua relação com a sociedade leva ao entendimento de que a mudança tecnológica representa um fator independente, um enfoque alternativo a partir da sociedade torna a tecnologia, assim como a economia e os sistemas políticos, um aspecto da vida social (MACKENZIE; WAJCMAN, 1985, p. 3). Sob essa ótica, um dos principais conceitos que emergem, e que precipuamente contraria o modelo linear presente em parte da literatura sobre tecnologia, é a forma multidirecional do desenvolvimento tecnológico. Dessa forma, assume-se que o desenvolvimento associado aos artefatos tecnológicos, antes de seguir uma trajetória previsível e gradual, responde à dinâmica entre atores sociais que balizam a forma e conteúdo da transformação tecnológica. A fim de melhor compreender esse processo, Pinch e Bijker (2012, p. 23) mobilizam o conceito de “grupo social relevante” para denotar instituições e organizações, bem como grupos de indivíduos organizados ou não, que de alguma forma interferem – e têm interesse – na forma de desenvolvimento de um artefato tecnológico. Segundo os autores, o requerimento básico para um grupo social relevante consiste na percepção comum acerca de um conjunto de significados associados a um artefato específico. Sob essa ótica, assimilam a relação entre o contexto social mais amplo e o conteúdo do artefato tecnológico, uma vez que a conjuntura cultural, social e política influencia o conjunto de normas e valores compartilhados pelos distintos grupos sociais. A partir do reconhecimento 36 das influências sociais que incidem sobre o multidirecional desenvolvimento tecnológico, Pinch e Bijker (2012, p. 34) entendem que não há uma única forma – ou uma única “melhor forma” – de desenhar um artefato dessa natureza. Nesse sentido, defendem que há uma flexibilidade na forma como são desenhados e interpretados os artefatos tecnológicos. Adicionalmente, tendo em vista a multiplicidade de atores envolvidos no multidirecional desenvolvimento tecnológico, os autores apontam que tais artefatos sofrem o processo de estabilização. Grosso modo, a estabilização de um artefato tecnológico implica na solução de suas controvérsias, no entanto, para sua resolução “[…] não é preciso resolver os problemas no sentido comum da palavra. O ponto chave é se os grupos sociais relevantes veem o problema como resolvido.” (PINCH; BIJKER, 2012, p. 37, tradução nossa). Assim, a concepção e a interpretação sobre a estabilização de um artefato tecnológico estão intimamente relacionadas à ideia de grupo social relevante. À luz dessas considerações, entendemos que uma questão chave gira em torno da relevância dos grupos sociais. Para Pinch e Bijker (2012, p. 23-27), tal característica é definida a partir de um processo duplo: em primeiro lugar, examinar se o artefato em questão possui algum significado para o grupo social; em segundo lugar, avaliar se o grupo social é homogêneo ou heterogêneo – passível de distinção em outros grupos sociais – em relação ao conjunto de significados atribuídos ao artefato. O principal fundamento das críticas direcionadas a essa perspectiva refere-se à ausência da relação entre os grupos sociais relevantes, que podem evidenciar discrepâncias de capacidades e recursos. Dessa forma, para além dos significados associados aos artefatos tecnológicos, é preciso considerar a habilidade de um grupo social em afetar seu desenvolvimento e adoção. Assim, devemos “[...] não apenas relacionar seus objetivos [dos grupos sociais relevantes] à sua localização social, mas também os recursos de conhecimento e poder com os quais podem realizar mudanças para atender a esses objetivos.” (RUSSELL, 1986, p. 336, tradução nossa). Com base nesse ponto de vista, os artefatos tecnológicos, mais do que constructos interpretativos, traduzem interesses sociais e produzem resultados materiais. Nesses termos, como aponta Russell (1986, p. 337), o processo de estabilização de um artefato tecnológico pode ser muito mais arbitrário que consensual. As reflexões apresentadas e discutidas, bem como as críticas a elas endereçadas, pavimentam o caminho para uma abordagem sintética entre o determinismo tecnológico e o construtivismo social. Esse processo passa pelo reconhecimento dos fundamentos e consequências de natureza política inerentemente vinculados à tecnologia (HERRERA, 2003, p. 560). Dessa forma, pela capacidade de ordenar a atividade humana em diferentes formas, 37 bem como por traduzir interesses e valores específicos, as inovações tecnológicas assemelham- se aos processos legislativos e políticos que fundamentam um quadro para a ordem pública. Assim, as questões que dividem ou unem as pessoas na sociedade são resolvidas não apenas nas instituições e práticas da política propriamente dita, mas também, e menos obviamente, em arranjos tangíveis de aço e concreto, fios e transistores, porcas e parafusos. (WINNER, 1980, p. 128, tradução nossa). Uma abordagem dessa natureza apresenta dissonâncias fundamentais às leituras instrumentalistas sobre a tecnologia, para as quais um sistema técnico representa um meio neutro de realização de desejos e valores, enquanto instrumentos do poder. Sob a ótica instrumental, é o poder, e não o sistema técnico, que carrega conceitos valorativos. Para Winner (1980, p. 125), no entanto, uma perspectiva assentada apenas sobre categorias de ferramenta e uso, em detrimento do significado do desenho e dos arranjos dos artefatos tecnológicos, é analiticamente limitada. Para o autor, a inerência política das tecnologias pode ser compreendida a partir da forma como tais sistemas técnicos se relacionam com regimes políticos e organizações sociais específicas. Nesses termos, o enquadramento de tal relação se dá à luz de duas categorias de análise: requerimento e compatibilidade. No primeiro caso, a adoção de um sistema técnico requer a instalação e manutenção de um conjunto particular de condições sociais e materiais para sua operação. Nesse caso, certas tecnologias aparecem como virtualmente indissociáveis de padrões institucionalizados de autoridade e poder (WINNER, 1980, p. 134). No segundo caso, em uma leitura menos assertiva sobre essa questão, um sistema técnico é fortemente compatível com – mas não estritamente requer – certas condições e tipos de relações políticas e sociais. Sob essa interpretação, características específicas de um sistema técnico podem fornecer meios convenientes para o estabelecimento de certos padrões de autoridade e poder (WINNER, 1980, p. 134). É precisamente por essa não inexorabilidade, que suas consequências sociais devem ser compreendidas à luz da capacidade de influência dos atores sociais sobre o desenho e arranjos estabilizados. No entanto, mais do que categorias rígidas e excludentes de análise, Winner (1980, p. 135) indica que ambas as interpretações podem se sobrepor em diferentes circunstâncias, inclusive no âmbito de alguma tecnologia complexa – como sistema de comunicações ou transporte –, no qual certos aspectos mostram-se menos flexíveis que outros em sua relação com a dimensão social. Para além da aplicabilidade e extensão de tais categorias de análise, nos 38 interessa destacar a vinculação realizada pelo autor entre um artefato tecnológico e distintas formas de organização política e relações sociais. Essa perspectiva nos aproxima da concepção sobre tecnologia que orienta os esforços do presente trabalho. Ademais de suas características materiais, a tecnologia engloba dimensões de ordem política, organizacional e cultural, as quais comprimem crenças, valores e visões de mundo (PACEY, 1999, p. 7; HARVEY, 2003, p. 5). Nesses termos, a tecnologia é compreendida como um processo ambivalente suspenso entre diferentes possiblidades de desenvolvimento, distanciando-se da noção de neutralidade pela atribuição de valores sociais ao desenho dos sistemas técnicos, e que carrega em sua “racionalidade técnica” um conjunto de valores e interesses políticos sedimentados (FEENBERG, 2002, p. 15). No campo das RI, Mayer et al. (2014, p. 18) propõem a noção de tecno-política como espaço de reunião de diferentes concepções sobre ciência e tecnologia que possuem como denominador comum o enfoque na zona intermediária entre o determinismo tecnológico e o construtivismo social. Nesse sentido, a noção de tecno-política assenta que as práticas e desenhos tecnológicos não constituem fenômenos meramente objetivos e neutros, mas sim elementos profundamente conectados com o tecido do poder. À luz dessas considerações, voltamo-nos a discutir, a partir do exposto sobre esses dois conceitos, o que entendemos por “fetichismo da tecnologia”. 2.3 Tecnologia como fetiche A partir das considerações desenvolvidas, voltamo-nos à discussão e definição do que compreendemos por fetichismo da tecnologia. Para tanto, entendemos que dois esforços preliminares são necessários. Primeiramente, buscamos aprofundar a noção de tecnologia enquanto política a partir de uma abordagem sobre as etapas da evolução tecnológica. Adicionalmente, apresentamos e exploramos como a noção da tecnologia enquanto prática complementa essas reflexões e nos fornece as bases para compreender o fetichismo da tecnologia e suas consequências. Assim, em primeiro lugar apresentamos e discutimos a concepção de sistema tecnológico desenvolvido por Hughes (2012) que, no âmbito da literatura de EC&T representa um campo médio entre o determinismo tecnológico e o construtivismo social. Reconhecendo as virtudes de cada uma das perspectivas, o autor busca uma leitura sintética sobre o fenômeno da tecnologia, entendendo que um sistema tecnológico pode ser tanto causa quanto efeito; ou seja, pode tanto moldar quanto ser moldado socialmente. Nesses termos, entende que quanto maiores e mais complexos, os sistemas tendem a “[…] moldar mais a sociedade e ser menos 39 moldados por ela [...]. Os construtivistas sociais possuem a chave para compreender o comportamento de sistemas jovens; deterministas técnicos reconhecem-se em sistemas maduros.” (HUGHES, 1994, p. 112, tradução nossa). Conceito chave para os esforços de síntese do autor é a ideia de momentum, o qual, inspirado pela grandeza física, indica um sentido e velocidade para a mudança tecnológica, sugerindo uma trajetória. Um sistema tecnológico atinge esse estágio quando possui uma massa de componentes técnicos e organizacionais bem consolidados. Como argumenta o autor, “um alto nível de momentum frequentemente leva observadores a assumir que um sistema tecnológico se tornou autônomo. Portanto, sistemas maduros possuem a qualidade que é análoga à inércia de movimento.” (HUGHES, 2012, p. 70, tradução nossa). Nesses termos, o entendimento da mudança tecnológica em termos de sistemas tecnológicos não apenas fornece um quadro holístico sobre as formas de desenvolvimento, consolidação e difusão das tecnologias, mas também fornece importante instrumento analítico espacial e temporalmente sensível sobre o processo de amadurecimento tecnológico. Entretanto, antes de uma concepção rígida e sequencial, o autor concebe a evolução de sistemas tecnológicos de acordo com um padrão brandamente definido; ou seja, em detrimento da noção de “modelo”, adota a ideia de “padrão” para melhor indicar uma tendência flexível a ser descoberta. Sob essa leitura, Hughes (2012, p. 50) entende que a história da evolução e expansão de sistemas tecnológicos pode ser apresentada segundo algumas fases de atividade predominante10, as quais frequentemente se sobrepõem e retrocedem. A durabilidade e o crescimento de um sistema, bem como os artefatos e as formas organizadas de conhecimento que o compõem, são também facilitadas pela manutenção de tradições práticas associadas às tecnologias fomentadas por atores ou grupo de atores organizados que, não raramente, possuem interesses velados na persistência de um sistema. Em suas palavras, “artefatos físicos duráveis projetam para o futuro as características socialmente construídas adquiridas no passado quando foram desenhadas. Isso é análogo à persistência de características adquiridas em um ambiente em mudança.” (HUGHES, 2012, p. 70). Em complemento a essa abordagem, o segundo esforço preliminar que julgamos necessário empreender refere-se ao elemento que fundamenta nossa compreensão sobre a tecnologia e seus processos: a noção de prática. Sob essa leitura, as ações humanas são relacionais, movidas por um senso prático e por um grau de arbitrariedade. Dessa forma, a identificação da gênese social das instituições é fundamental para a compreensão de qualquer 10 As fases indicadas por Hughes (2012) são: invenção, desenvolvimento, inovação, transferência, crescimento, competição e consolidação. 40 curso de ação, permitindo examinar como certos conjuntos de regras tornam-se normalizados ou esquecidos. Nesse sentido, seguindo as trajetórias históricas dessas ações, podemos entender sua implantação, os repertórios limitados que cada universo social constitui, e também desembrulhar as estratégias por meio das quais qualquer instituição durável é legitimada. As normas não seguem interesses racionais nem emergem de crenças e atitudes compartilhadas, e são ainda menos resultado de suas relações dialéticas. São o produto da força das trajetórias históricas de um conjunto imanente de ações incorporadas a um ethos e a um habitus. (BIGO, 2011, p. 228, tradução nossa). Com base nessas considerações, as práticas podem ser definidas como padrões de ação socialmente significativos que [...] simultaneamente incorporam, encenam, e possivelmente reificam conhecimento de fundo e discurso no e sobre o mundo material. Práticas [...] não são meras “flechas” descritivas que conectam estrutura e agência uma a outra, mas sim o dinâmico processo material e ideacional que permite estruturas serem estáveis ou evoluir, e agentes reproduzir ou transformar as estruturas. (ADLER; POULIOUT, 2011, p. 6, tradução nossa). A partir do exposto, podemos discutir de maneira mais detida os componentes da noção de prática. Em primeiro lugar, enquanto processo e forma de ação, as práticas diferem-se das preferências e das crenças, na medida em que as expressa, e das instituições, às quais fundamenta. Nesses termos, ao contrário das entidades ou substâncias, que podem ser apreendidas de maneira reificada, as práticas não existem fora de seu próprio processo (JACKSON; NEXON, 1999, p. 301). Em segundo lugar, as práticas tendem a ser padronizadas a ponto de apresentarem certas regularidades ao longo do tempo e em diferentes espaços. Como complementa Bueger (2014, p. 387), frequentemente a forma de fazer algo está inscrito em artefatos materiais empregados para a realização da prática e, por esse motivo, também podem ser considerados veículos de práticas. Outro elemento componente das práticas é o reconhecimento social necessário para a qualificação da prática; ou seja, mais do que repetição padronizada, a dimensão estruturada das práticas deriva fundamentalmente da interpretação por parte de um conjunto de atores sociais – que compartilham certos padrões – de que uma ação constitui uma prática. Nesses termos, o reconhecimento social é um aspecto fundamental das práticas, visto que sua competência não é inerente, senão atribuída por meio das relações sociais (ADLER; POULIOT, 2011, p. 7). Em complemento a essa questão, entende-se que as práticas repousam sobre conhecimentos e significados implícitos. Como argumentam Adler e Pouliot (2011, p. 16), o conhecimento implícito consiste primariamente em expectativas e disposições intersubjetivas que podem ser apreendidas por meio das práticas, nível mediador e veiculador desse conhecimento. Nesses termos, para a 41 compreensão da ordem política, cultural e social, faz-se necessário estudar as práticas que constituem tais ordens de conhecimento (BUEGER, 2014, p. 386). Dessa forma, indivíduos e grupos agem, interagem, raciocinam, planejam e julgam, representam simbolicamente a realidade, e têm expectativas do futuro dentro de um contexto interpretativo dominante que define os termos de interação, define um horizonte de possibilidade, e fornece o conhecimento implícito das expectativas, disposições, habilidades, técnicas, e rituais que são a base para a constituição das práticas e seus limites. (ADLER; POULIOT, 2011, p. 16, tradução nossa). Entretanto, os conhecimentos implícitos não implicam na ideia de uniformidade no interior de grupos ou comunidades, mas sim organizam suas diferenças em torno de compreensões comuns sobre a realidade. Nesse sentido, as práticas representam o mundo de formas específicas; isto é, implicitamente indicam como as coisas são feitas. Assim, tipicamente promulgadas no e sobre o mundo, as práticas podem tanto modificar o ambiente físico quanto as ideias