146 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL CAMPUS DE FRANCA CASA DE PORTINARI, LUGAR DE MEMÓRIA THAÍS DE FÁTIMA VAZ FRANCA – SP 2006 147 Thaís de Fátima Vaz CASA DE PORTINARI, LUGAR DE MEMÓRIA Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Social. Orientadora: Profa. Dra. Tânia da Costa Garcia. Franca 2006 148 Thaís de Fátima Vaz CASA DE PORTINARI, LUGAR DE MEMÓRIA Banca examinadora: _____________________________ Profa. Dra. Tânia da Costa Garcia Presidente ______________________________ 1º. Examinador ______________________________ 2º. Examinador: Franca 2006 149 Dedico esse trabalho aos meus pais, que em todos os momentos me apoiaram e incentivaram, com amor e paciência. 150 AGRADECIMENTOS À minha família: meus pais, Carlos e Bernadete, e minha irmã, Sabrina, que estiveram sempre ao meu lado, me incentivando em todos os momentos. À Professora Tânia da Costa Garcia, pelos apontamentos fundamentais e pela paciência e dedicação com que acolheu meu trabalho. À Capes, pela concessão da bolsa que me auxiliou em parte desse trabalho. Aos queridos Valeriano, Luíza, Ana Lúcia e Eduardo Altoé e Maria Ivone Francischet, que com tanto carinho me acolheram em sua casa enquanto necessitava realizar pesquisas na cidade do Rio de Janeiro. A todo o pessoal da sede do Projeto Portinari, na PUC do Rio de Janeiro, pela simpatia e atenção a mim dispensadas durante minha pesquisa de documentos nos arquivos do Projeto. Aos Professores Teresa Malatian e Jean Marcel Carvalho França, pelas orientações dadas no exame de qualificação. Ao amigo Éder Grande Furlan, presidente da Associação dos Amigos do Museu Casa de Portinari, em Brodowski (SP), pelo apoio em momentos importantes desse trabalho. Aos colegas ingressantes da Pós-Graduação em História da Unesp/Franca no ano de 2004, cujas opiniões e sugestões, durante as discussões em aula, foram deveras importantes para o desenvolvimento de meu trabalho. Ao casal Roza e Arduíno Morando, de Brodowski (SP), pela atenção a mim dispensada e pela disponibilidade em conceder-me seus depoimentos. Às amigas Minisa Napolitano, Melissa Paula, Karen Bortoloti, Karina Silva e ao amigo Tércio Di Gianni, pelas conversas e trocas de experiências nessa trajetória do mestrado. Às amigas Mila Menezes, Elisa Ribeiro, Rosana Cintra, Heloísa Ferrari e Cláudia Francisco e ao amigo Fernando Pessoni, pelas risadas, momentos de descontração, conselhos e conversas. Aos novos amigos das escolas Dom Tarcísio Ariovaldo Amaral e Paulo Chaves, em Limeira (SP), e também aos amigos de longa data da escola Evaristo Fabrício, em Franca. Às amigas e companheiras de república: Jussara Souza, Celise Romeiro, Michele Silva e Marilene Mariotto, pelos momentos partilhados nesse ano de 2006. Ao pessoal da biblioteca da UNESP Franca, e aos amigos Consuelo e Danilo, cujo auxílio foi fundamental na fase final do trabalho. 151 Da minha aldeia vejo quando da terra se pode ver no Universo.... Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura... Nas cidades a vida é mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave, Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu, Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver. (Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos) Quanta coisa eu contaria se pudesse e soubesse ao menos a língua como a cor. (Cândido Portinari) 152 Resumo O objetivo do presente trabalho é analisar as pinturas realizadas por Cândido Portinari na casa onde viveu sua infância em Brodowski, vendo-as como constituição involuntária de um lugar de memória. Observaremos o acervo da casa como uma manifestação na qual o artista traduziu seus sentimentos mais profundos e pessoais, ao realizar obras que, através da temática sacra, expressam uma memória estritamente ligada ao ambiente privado da casa. Para realizar esse estudo, analisaremos, além das referidas pinturas, as correspondências trocadas entre o artista e os mais diversos interlocutores, que possuem como assunto a paulatina constituição do acervo da casa de Brodowski, considerando-o como um elemento fundamental da construção da memória e da identidade de Cândido Portinari. Palavras-chave: Cândido Portinari; Brodowski (SP); arte sacra; memória involuntária; 153 Abstract: The project objective is analisy all the painting made by Candido Portinari in the house that he lived in his childhood in Brodowski, look at how a involuntary formation of a memory place. The house collection will show us a meeting wich the artist expressing his most deep and private feelings, in order to make the masterpice by the thematic sacrament, expressing the estrict memory connected by the private house ambient. To make up this work, we will analisy, yonder the above mentioned pictures, the change conformity between the artist and his various interlocutors, with the topic by what means the formation by degrees of Brodowski house collection, considering like a fundamental element of the memory constituion and the Candido Portinari identity. Key-words: Candido Portinari; Brodowski (SP); sacred art, involuntary memory. 154 SUMÁRIO Introdução.................................................................................................................10 CAPÍTULO 1 – Cândido Portinari e a casa de sua família em Brodowski...........29 1.1) Artes e pintura no Brasil nas primeiras décadas do século XX...........................35 1.2) Arte sacra e memória involuntária em Portinari..................................................48 CAPÍTULO 2 – A constituição do acervo da casa de Portinari em Brodowski e sua legitimação através da correspondência pessoal do artista.....................62 2.1) O acervo da casa de Brodowski e usa inserção na obra de Cândido Portinari........................................................................................................62 2.2) As pinturas de Brodowski através da correspondência pessoal do artista.........79 CAPÍTULO 3 – A casa de Portinari como lugar de memória e a instituição do Museu Casa de Portinari..........................................................................................99 3.1 ) A casa de Portinari em Brodowski enquanto lugar de memória.........................99 3.2) O processo e as lutas pela transformação da casa em Museu........................110 Catálogo iconográfico............................................................................................146 155 INTRODUÇÃO Nosso objetivo nesse trabalho é analisar as pinturas realizadas por Cândido Portinari na casa onde viveu sua infância em Brodowski como constituição involuntária de um lugar de memória. Buscamos então realizar uma abordagem desse excerto da obra portinariana de maneira a observá-lo como uma manifestação na qual o artista traduziu seus sentimentos mais profundos e pessoais, ao realizar obras que, através da temática sacra, expressam uma memória do pintor estritamente ligada ao ambiente privado e familiar ao qual a casa o remetia. Na medida, portanto, em que a casa da família Portinari em Brodowski passa a ser possuidora de um acervo cujas obras diferem, especialmente na questão do estilo, das demais realizadas pelo artista, ao traduzirem lembranças remotas do pintor com relação à sua infância na casa, esta passa a apresentar-se como o lugar onde o pintor inscreve sua memória na cidade onde nasceu. Para realizar essa análise, examinaremos, além das referidas pinturas, as correspondências trocadas entre o artista e os mais diversos interlocutores – como Gustavo Capanema, Rodrigo Mello Franco de Andrade1, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, entre outros – e que possuem como assunto a paulatina constituição do acervo da casa de Brodowski, considerando-o como um elemento fundamental da construção da memória/identidade de Cândido Portinari. Dessa forma, esse trabalho inova ao observar como uma memória involuntária do artista é expressa através das obras de arte da casa, sendo essas possuidoras de características únicas, especialmente quanto à forma de retratação dos santos, que não foi utilizada em nenhuma outra obra sua. Privilegiando a 1 Diretor do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) de 1937 a 1968. 156 dimensão privada do artista, e tendo como objeto um acervo cujas potencialidades ainda não foram exploradas em outros trabalhos, buscamos contribuir para os estudos acerca do trabalho do pintor, ressaltando como Portinari teve nas reminiscências da infância em Brodowski e em sua casa na cidade o principal ponto de partida de toda sua obra. O trabalho abrangerá um recorte temporal que parte do ano de 1934, quando Portinari inicia a constituição do acervo da casa de sua família em Brodowski e são trocadas as primeiras correspondências comentando sobre o assunto. Esse recorte passará por 1945, ano da composição das últimas pinturas da casa, enfocando o estado de abandono sofrido pela casa a partir do final da década de 1950, com os debates sobre sua preservação e tombamento ocorridos nos anos 60, findando-se em 1971, data da inauguração do Museu Casa de Portinari. A bibliografia existente sobre Cândido Portinari e sua obra é bastante vasta e as abordagens são as mais diversas. Sobre a construção da imagem de “pintor oficial”, destacamos a obra de Sérgio Miceli2, onde o autor verifica qual seria o papel dos intelectuais na montagem do governo autoritário, assim como o trabalho de Simon Schwartzman, Helena Bomeny e Vanda Costa3, contemplando a ação do então ministro da educação e saúde, Gustavo Capanema, obra considerada fundamental para a análise da tensão existente à época entre a atuação dos intelectuais e as decisões do governo. O trabalho Constelação Capanema: intelectuais e política4 também perpassa a discussão, analisando como deu-se essa mesma relação em campos específicos, como o teatro, o cinema, a música, o patrimônio histórico nacional, a educação escolar e a saúde pública. 2 MICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979. 3 SCHWARTZMAN, S. (et al). Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 4 BOMENY, H. (org). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: FGV, 2001. 157 Mais próximos de nosso tema de pesquisa, há escritos que tratam da casa da família Portinari em Brodowski já enquanto Museu: o trabalho de Vanessa de Fátima Ribeiro para a conclusão do curso de História da UNESP/Franca, intitulado Portinari em Brodowski: história e memória5, vê a questão do Museu a partir de uma perspectiva local, trabalhando com aspectos biográficos do artista e com o processo que levou à sua instituição na antiga casa da família do artista em Brodowski. Nesse sentido, também destaca-se o trabalho de Angélica Fabbri6, onde não trata sobre o Museu em específico, mas traz informações gerais acerca das obras da casa, especialmente na questão de sua datação e das técnicas utilizadas em sua composição. No campo dos estudos biográficos sobre Cândido Portinari, há diversos trabalhos contemplando a questão, surgidos principalmente a partir do final da década de 1970, quando se iniciaram as atividades do Projeto Portinari, sediado na PUC do Rio de Janeiro. Um viés bastante explorado dentro da bibliografia existente sobre o artista é o da biografia. Aliás, boa parte dos trabalhos escritos sobre Portinari trata de assuntos e fatos relacionados a sua história de vida. Explorando o gênero temos, dentre outros, os trabalhos de Antônio Callado7, Rosane Acedo8, Flávio Damm9, Mário Dionísio10, Celso Kelly11, Nilson Moulin12 e Antônio Portinari13, além da própria autobiografia de Portinari, Retalhos de minha vida de infância14. 5 RIBEIRO, V. F. Portinari em Brodowski: história e memória. Franca: FHDSS/UNESP, 1998. (Trabalho de Conclusão de Curso). 6 Diretora do Museu Casa de Portinari. 7 CALLADO, A. Retrato de Portinari . São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2003. 8 ACEDO, R. Encontro com Portinari . São Paulo: Minden, 1997. 9 DAMM, F. Um Cândido pintor Portinari. ?: Expressão e cultura/AGGS Indústrias Gráficas S/A, 1971. 10 DIONÍSIO, M. Portinari 1903-1962. s.l.): Artis, 1963. 11 KELLY, C. Portinari : quarenta anos de convívio. Rio de Janeiro: GTL, 19??. 12 MOULIN, N. Portinari : vou pintar aquela gente. São Paulo: Callis, 1997. 13 PORTINARI , A. Portinari menino. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1980. 14 PORTINARI , C. Retalhos de minha vida de infância. In: Portinari, o menino de Brodowski. Rio de Janeiro: Livroarte, 1979. 158 Os estudos críticos de Paulo Mendes de Almeida, como De Anita ao Museu, consideram que “nenhum artista do País terá sofrido, tanto quanto Candido Portinari, a inconstância, a flutuação das opiniões a respeito de sua obra”. Partindo do pressuposto de que existem dois movimentos simultâneos em relação ao artista, o que chamou de “portinarismo” e “antiportinarismo”, o autor observa que em dado momento, “fazer alguém a mínima restrição aos trabalhos do grande pintor, significava atrair sobre si os raios da ira de seus exaltados admiradores”15, num sentimento de indiscriminada admiração. O grupo de amigos com os quais Portinari trocou vasta correspondência, em parte analisada nesse trabalho, esteve ao lado do artista durante praticamente toda sua trajetória, acompanhando seu trabalho e, por vezes, convivendo de maneira bastante próxima ao pintor, freqüentando sua casa e fazendo parte de seu círculo particular de amizades. Esse grupo, que se encontrava bastante próximo do artista, apoiando seu trabalho e com ele mantendo estreitas relações de amizade pode ser enquadrado no que Paulo Mendes de Almeida chamou de “portinaristas”, que tiveram em Mário de Andrade seu principal representante. Este era composto por pessoas que defendiam quase que incondicionalmente Portinari e os trabalhos que o artista desenvolvia. Em um outro momento, no entanto, muitos passaram a julgar “exagerada a solicitude com que o governo se empenhava na divulgação do nome e da obra de Portinari. Tal empresa, conceituavam-na como de verdadeira ‘promoção’, em grande estilo”16, vendo a arte de Portinari como uma propaganda do regime. Segundo Almeida, Portinari teve em Oswald de Andrade um de seus principais críticos. O escritor que anos antes, em 1934, havia feito comentários positivos a respeito do encaminhamento muralista que Portinari vinha dando à sua 15 ALMEIDA, P. M. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 141. 16 Idem, p, 142. 159 obra17 a partir de Café, em 1939 realizou duras críticas ao artista, com evidentes implicações políticas. Classificou a obra de Portinari no Ministério da Educação e Saúde como “reacionária”, onde o pintor teria regredido “à expressão acadêmica, ao uso de recursos passadistas e primários, a cópia descarada de artistas modernos nacionais e estrangeiros”18. Na mesma época, o crítico Luís Martins, juntamente com Oswald, também se incomodava com o fato de Portinari praticamente ter monopolizado o cenário artístico nacional, especialmente quando o governo americano solicitou ao Ministério da Educação material a respeito de Cândido Portinari e de Oswaldo Teixeira, conservador arquiteto que ocupava o cargo de diretor da Escola Nacional de Belas Artes à época. A polêmica tornou-se ainda maior quando o chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade, acrescentou alguns nomes à lista, deixando de fora artistas como Di Cavalcanti, Lasar Segall e Tarsila do Amaral, dentre outros19. A disputa entre “portinaristas” e “antiportinaristas” foi acirrada, manifestando-se em intrigas e entrechoque pessoais, criando inimizades definitivas, tornando os defensores de Portinari ainda mais radicais.20 Buscando contemplar a relação entre arte e sociedade no Brasil, Aracy Amaral, em seu estudo21, ao enfocar a produção de alguns artistas brasileiros, estando Portinari entre eles, aborda a questão da arte e da preocupação social que permeava a produção artística nacional principalmente entre as décadas de 1930 e 1940. Nessa mesma direção, destacamos os já citados trabalhos de Annateresa Fabris, Portinari: pintor social e Cândido Portinari como sendo fundamentais para a compreensão do que chamou de “questão Portinari”, tendo sido a autora uma das 17 FABRIS, A. Cândido Portinari. São Paulo: Edusp, 1996, p. 68. 18 Idem, ibidem. 19 ALMEIDA, P. M. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 159. 20 Idem, p. 159. 21 AMARAL, A. Arte para quê? A preocupação social na arte: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 2. ed., São Paulo: Nobel, 1987. 160 precursoras em abordar a obra de Portinari como uma arte de preocupação social. Fabris defende que, para compreendermos Portinari, é necessário que a “mística” que envolve sua figura seja esquecida, e que seja adotada uma atitude crítica a respeito de sua obra: (...) em relação a Portinari, uma atitude crítica, isenta de preconceitos e partis-pris, a qual situe sua contribuição dentro de um país (...), e duma época complexa e contraditória, que tira sua vitalidade de múltiplas linguagens configuradas nos vários ‘ismos’, combatida entre a participação social através da arte e a expressão de ideais puramente estéticos e plásticos22. Dessa forma, concordamos com a autora no sentido de que é mais esclarecedor, portanto, ver Portinari como um artista de sua época, buscando reconhecer as nuances e particularidades de sua trajetória pessoal e artística. Entendemos Portinari como um artista de seu tempo, sujeito às mesmas influências externas que outros artistas contemporâneos seus, seja na questão do tratamento plástico da obra de arte quanto na função política de sua produção artística. No entanto, Portinari soube articular de maneira bastante eficaz sua história de vida, seu talento enquanto artista e sua atuação política, fazendo com que fosse aceito nos mais diversos círculos sociais. Foram eleitas como fontes para nosso trabalho as pinturas murais realizadas por Portinari, em Brodowski, na casa de sua família e na Capela da Nonna entre os anos de 1934 e 1945, além de um conjunto de correspondências que o artista trocou com amigos, familiares e instituições durante o período da composição das pinturas. Nos apropriamos ainda de alguns depoimentos orais de familiares do artista, registrados pelo Projeto Portinari, quando esses fazem referências à casa ou quando abordam assuntos que se relacionam com a constituição daquele acervo. 22 FABRIS, A. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 26. 161 As obras situadas do interior da casa são os afrescos Cabeça de Mulata I e Cabeça de Mulata II, Perfil da Avó, São Francisco pregando aos pássaros, Sagrado Coração de Jesus23 (todos de 1934), Fuga para o Egito (1936)24 e a têmpera São Jorge e o Dragão (1945). No complexo da Capela da Nonna estão o afresco Sermão aos peixes (1942), além das têmperas em seu interior: A Visitação25, Sagrada Família26, Santa Luzia e São Pedro27, compondo essas duas últimas o altar da Capela, São João Batista, Jesus, São Francisco de Assis e Santo Antônio28, todas obras de 194129. O fato de Portinari ter eleito a casa de sua família em Brodowski para realizar essas experiências em pintura demonstra como o artista buscou um local de caráter totalmente privado, onde seus trabalhos, num primeiro momento, estariam sob os olhares somente de familiares e parentes mais próximos, não tendo que já de início submetê-los – estando a utilizar uma técnica que lhe era complemente nova – a um julgamento de valor de pessoas externas, que veriam essas obras com um olhar mais crítico. Depois de estar certo de que alcançara bons resultados, poderia revelar a experiência a outras pessoas, observando assim a opinião ou reação destas diante das pinturas. Realizando um estudo que vê a pintura como fonte histórica, buscamos tomar contato com obras que nos dessem indicadores sobre o trabalho com imagens e suas possibilidades. Foi fundamental nesse sentido o estudo empreendido por Peter 23 Com 70 x 50 cm de diâmetro, essa obra possui datação aproximada, tendo sido ela descoberta somente em 1970, quando da restauração das obras da casa para a instituição do Museu Casa de Portinari, promovida por Edson Motta, à época restaurador a serviço do Sphan. 24 155 x 170 cm. 25 180 x 160,5 cm. 26 180 x 163 cm. 27 Cada um com 161 x 55 cm. 28 Essas quatro últimas obras citadas possuem, com pequenas variações, 180 x 75 cm de diâmetro. 29 Observar as imagens citadas no catálogo em anexo. 162 Burke30. O autor destaca que “imagens, assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica”, que age como “testemunha ocular” do vivido, oferecendo “acesso a aspectos do passado que outras fontes não alcançaram”31, devendo o testemunho das imagens: ser colocado no ‘contexto’, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural, político, material, e assim por diante), (...) bem como os interesses do artista e do patrocinador original ou do cliente, e a pretendida função da imagem32. Ainda vendo as obras de arte enquanto fonte para nosso trabalho, concordamos com Pierre Francastel quando o autor considera que as artes não devem ser vistas como simples reflexo da realidade para que venham a ser utilizadas plenamente enquanto objeto da história, necessitando que sejam estudadas por si mesmas “como testemunhos de uma atividade autônoma e não somente como uma habilidade suscetível de dar forma a um pensamento determinado previamente33”, defendendo o papel da arte como sendo o de “abrir aos homens uma possibilidade de manifestar, por meios adaptados, uma série de valores que só podem ser apreendidos e notados através de um sistema autônomo de conhecimento e de atividade”34. Após constatar que suas experiências obteriam êxito, o artista não deixou de mencioná-las quando veio a trocar correspondências com diversos de seus amigos, enviando-lhes fotografias, comentando as obras, pedindo opiniões e convidando-os para que fossem a Brodowski vê-las de perto. Dessa forma, também temos como fonte um conjunto de correspondências pessoais de Portinari trocadas ao longo das décadas de 1930 e 1940, em cujo conteúdo encontram-se menções a respeito das obras executadas em Brodowski, correspondências essas levantadas através do 30 BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004. 31 Ibidem, p. 233. 32 Ibidem, p. 237. 33 FRANCASTEL. P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 82. 34 Ibidem, p. 69. 163 sítio oficial do Projeto Portinari na Internet35, onde encontra-se digitalizada, com algumas exceções, toda a massa documental levantada pelo projeto ao longo de seus 27 anos de existência. Fato a ser observado é o de que a maior parte dos amigos com os quais Portinari troca opiniões a respeito das obras da casa e da Capela nessas correspondências, são figuras de renome, constituindo-se em personagens fundamentais da cena política, cultural e artística do Governo Vargas: além de Gustavo Capanema e Carlos Drummond de Andrade, também correspondeu-se com Rodrigo Melo Franco de Andrade,36 Mário de Andrade, Lúcio Costa e Antônio Bento, dentre outros. É fundamental ressaltar que essas correspondências, além de demonstrarem opiniões positivas por parte dos interlocutores de Portinari referentes às pinturas da casa e da Capela, já possuem até mesmo menções remetendo a um possível tombamento da casa e sua transformação em local de visitação pública, por exemplo, quando Rodrigo Melo Franco de Andrade destaca que qualquer dano causado à casa de Brodowski ou suas pinturas seria um “atentado contra o patrimônio artístico”,37 ou quando Gustavo Capanema, ao ver fotografias das obras, comentou seu desejo em ver a Capela da Nonna tombada e integrada ao patrimônio histórico nacional38. Além disso, como em carta de Carlos Drummond de Andrade, alguns amigos demonstravam já possuir conhecimento do grande impacto causado 35 PROJETO Portinari. Correspondências. Disponível em . Acesso em 12/04/05. 36 Presidente do então recém-criado Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). 37 ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. Carta. Rio de Janeiro, RJ, 16 fev., 1937 [para] Cândido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 2 p. 38 CAPANEMA, Gustavo; Ministério da Educação e Saúde. Carta. Rio de Janeiro, RJ, 12 mar, 1941 [para] Cândido Portinari, Brodowski, SP. 2 p. 164 na população local pelas imagens ali executadas, que as via desde o início de sua execução como objetos de adoração39. Os interlocutores epistolares de Portinari eram amigos próximos e queridos, que poderiam contribuir com sugestões ou críticas para as obras que Portinari se propôs a realizar, mas eram também homens de destaque da política nacional. Ao mesmo tempo em que estes poderiam dar sua opinião sobre as obras, estariam também tomando conhecimento do esforço pessoal do artista na construção de um acervo de obras suas na cidade onde nasceu. Devemos levar em conta o fato de que o artista, tanto em sua trajetória pessoal como em sua atuação enquanto artista e político, sempre buscava destacar sua ligação com as origens, a cidade onde nasceu e sua gente, com o que viu e viveu em seu tempo de infância. A nosso ver, havia em Portinari uma preocupação em deixar evidente essa ligação, sendo o viés biográfico o ponto-chave de sua trajetória artística, como demonstramos. Essa preocupação moveu seu desejo de deixar inscrita sua memória para a posteridade, o que com certeza levou-o a colaborar com Antônio Callado quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro encomendou ao escritor uma biografia do artista, publicada já em 1956,40 dando depoimentos e compondo diversos desenhos especialmente para essa publicação, que retratavam passagens e sentimentos de sua época de infância41. Isso se torna ainda mais notório quando o artista escreve, entre novembro de 1957 e setembro de 1958, a citada autobiografia Retalhos de minha vida de infância, publicada em 1979, 39 ANDRADE, Carlos Drummond de. [Carta] Rio de Janeiro, RJ, 18 mar. 1941 [para] Cândido Portinari, Brodowski, SP. 3 p. 40 Reeditada nos anos de 1978 e 2003. 41 Fato interessante a ser observado é o de que, enquanto Portinari dava a Callado seu depoimento para que este construísse sua “memória escrita”, o pintor executava um retrato do amigo, escrevendo assim a “memória pictórica” de Callado. 165 onde relata passagens de sua vida de infância relacionadas às brincadeiras, à escola, aos amigos, à família, às suas peripécias e medos de menino. Ao utilizarmos a correspondência pessoal de Portinari como fonte para os objetivos aqui propostos, as formulações de Ângela Castro Gomes42 foram sobremaneira importantes na medida em que levantam formas de utilização e possibilidades interpretativas das quais se investem as cartas como indícios para a escrita da história. Para a autora, as práticas da escrita auto-referencial, ou escrita de si, “podem evidenciar (...) como uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por sucessão”, demonstrando como um mesmo período da vida de um indivíduo pode “decompor-se” em tempos com ritmos diversos: um tempo da casa, um tempo do trabalho etc43. Nesse sentido, a autora considera que, ao trabalhar com correspondências, importa para o historiador “a ótica assumida pelo registro e como seu autor se expressa. Isto é, o documento não trata de ‘dizer o que houve’, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento”44. As cartas trocadas entre Portinari e amigos narrando a constituição das obras da casa de Brodowski demonstram um período da trajetória do pintor em que buscava, sobretudo, afirmar seus ideais de construção de uma obra que estivesse intrinsecamente ligada ao que lhe era mais próximo e mais familiar. Quando a autora trata especificamente acerca de correspondências trocadas entre intelectuais e artistas, como é o caso das cartas selecionadas como fontes para nosso trabalho, afirma que a correspondência pessoal entre intelectuais é “um espaço revelador de suas idéias, projetos, opiniões, interesses e sentimentos. 42 GOMES, A. C. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004. 43 Idem, p. 13. 44 Idem, p. 15. 166 Uma escrita de si que constitui e reconstitui suas identidades pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas”45. Peter Burke aponta que, dentro da História Nova existe, em relação às correspondências, uma preocupação com sua retórica, o que chama de “retórica da identidade”. Ao verificar a questão das cartas, chama a atenção para o fato de que estas são escritas obedecendo convenções “que variavam de acordo com a época, a posição social do escritor e também do tipo de carta escrita (a carta familiar entre iguais, a carta suplicante de um inferior para um superior e assim por diante)46’. Dessa forma, congregando dois tipos de fontes, ou seja, a fonte visual e a fonte escrita, buscaremos elucidar questões acerca de como deu-se a construção desse lugar de memória, que mais tarde institucionalizou-se na forma do Museu Casa de Portinari. Nesse sentido, foi de grande interesse para nossa pesquisa o trabalho de Teresa Malatian, Oliveira Lima e a construção da nacionalidade47 pois, utilizando correspondências enviadas e recebidas pelo diplomata e historiador brasileiro, buscou tecer a conjuntura que levou à constituição da Oliveira Lima Library, vendo-a como um local que reúne a “intenção de memória” de seu idealizador à de “aparelhamento para a escrita da história”48. Consideramos a carta como “um tipo de ‘escrita de si’ que, apesar de não se pretender nem biográfica e nem autobiográfica, labuta com o desejo de memória daquele que a escreve”49, e que “toda escrita de si deseja reter o tempo”. O próprio conjunto de correspondências trocadas entre Portinari e amigos já pode ser 45 Idem, pp. 51-52. 46 Idem, p. 117. 47 MALATIAN, T. M. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade. Bauru: Edusc; São Paulo: Fapesp, 2001. 48 Idem, p. 356. 49 FREDRIGO, F. S. A escrita de si no epistolário de Simon Bolívar: uma consagração da memória à história. In: SERPA, H. C. (org). Escritas da história: memória e linguagem. Goiânia: UCG, 2004, p. 17. 167 considerado um “lugar de memória”50, ao conter indícios do momento vivido por Portinari quando da execução das obras de Brodowski, nelas estando contida a intenção do artista, ainda que subentendida, em legitimar a casa de sua família como um lugar onde inscreve-se sua “memória pictórica”. Concordamos com Le Goff quando o autor diz que a memória é “um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje” e que “não é somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”51. Portanto, verificaremos como a casa foi tema dos mais diversos debates, que explicitavam os impasses sofridos antes e durante seus processos de compra, desapropriação e restauração. Esses debates demonstram a busca empreendida pelos mais diversos agentes, como a imprensa, autoridades políticas de todas as esferas e mesmo a população local, pelo resgate da casa, tirando-a daquela situação de esquecimento para enfim dotá-la da função de guardiã da memória de seu mais ilustre morador, visto que era como representante de toda uma comunidade. Acreditamos ser a casa portadora de uma memória involuntária de Portinari, uma vez que concebeu as obras que nela se encontram pautado em lembranças remotas às quais a casa o remetia. A memória involuntária de Portinari foi inscrita nas paredes da casa de Brodowski como experimento de novas técnicas a serem dominadas pelo artista, num momento em que se transformava num dos mais eminentes pintores de sua época, quando trabalhou para o governo de Getúlio Vargas. Portinari talvez não tivesse o objetivo explícito de fazer da casa um lugar de memória, mas sabia da importância de seu trabalho, que vinha ganhando projeção 50 GOMES, A. C. Op. cit., p. 18. 51 LE GOFF, J. História e Memória. 3. ed., Campinas: Unicamp, 1992, p. 476. 168 nacional, daí a preocupação com a realização de trabalhos que não seriam meramente ensaios, e sim obras de arte totalmente finalizadas, que não poderiam de maneira alguma ser retiradas daquele local, visto ter utilizado as paredes da casa como suporte da obra. Essas obras que, após terem sido largamente comentadas e aprovadas por seus amigos em correspondências, serviram de base para que o artista viesse a empregar as mesmas técnicas ali utilizadas em trabalhos de maior vulto. As lembranças da infância são representadas, na casa, através da pintura sacra, demonstrando o quanto a mesma fazia o artista rememorar seu tempo de infância, cujas recordações mais fortes estavam ligadas à religiosidade da família, que o fez por muitas vezes, enquanto criança, temer a figura do diabo e os castigos que os santos poderiam lhe impingir. Ao adotarmos a casa de Portinari como um lugar onde está inscrita a memória de um indivíduo, na medida em ali deixou um legado pessoal através de obras de arte, as formulações de Pierre Nora no estudo Les lieux de mémoire, foram determinantes. Necessários para que a memória inscreva-se de fato, em suas dimensões concretas os lugares de memória vão remeter a museus, arquivos, cemitérios, coleções, festas, aniversários, tratados, entre outros signos de rememoração. Estes são vistos como portadores dos “testemunhos de uma época”, “deixados sem se duvidar de sua utilização futura pelos historiadores”52, na medida em que estes buscam elementos que auxiliem na compreensão de um momento histórico, ou que tragam evidências sobre a atuação de determinados grupos e indivíduos. 52 NORA, P. Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux. In: ______ (dir). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1997, p. 38. 169 Esses “lugares de memória” têm, de acordo com Maurice Halbwachs, a função de servir como pontos de referência que estruturam nossa memória, inserindo-a na memória da coletividade à qual pertencemos. Dessa forma, Pierre Nora, autor fundamental quando aqui discutimos a construção de lugares de memória, foi diretamente influenciado pela sociologia de Halbwachs. Nora opõe ainda mais radicalmente a memória e a história, vendo a história como uma espécie de “filtro” para a memória, esta última ligada à tradição vivida, à afetividade e ao tempo presente, sendo a história o seu contrário, ou seja, “uma reconstrução intelectual sempre problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação sistemática e crítica do passado”53. O autor ressalta que, atualmente, tudo o que se chama de memória não faz mais parte da memória, mas da história. A necessidade de memória tornou-se uma necessidade de história. Atualmente, especialmente na historiografia anglo-saxônica, tende-se a revisitar as questões da memória e de sua relação com a história a partir de outros enfoques, que buscam essencialmente dar maior autonomia à memória, numa crítica à sociologia da memória coletiva de Halbwachs. No entanto, esse enfoque ainda resvala na apropriação da memória pela história, onde essas duas noções são aproximadas, aplicando-se ao estudo da memória os mesmos procedimentos dos estudos ligados à historiografia54. Nora define que os conceitos de memória e história são opostos, estando a memória sempre “em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de sua sucessivas deformações, vulnerável a todas as utilizações e manipulações”55, sendo ela sempre atual por ser um processo vivido, “arraigando-se no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto”. A história, 53 Idem, p. 41. 54 Idem, ibidem. 55 NORA, P. Op. cit., p. 24. 170 em contrapartida, é uma “representação do passado” e não a sua vivência e, enquanto operação intelectual, “dessacraliza a memória”, através da análise e do discurso críticos56. Numa via de mão dupla, a história, que levaria ao esquecimento tudo o que não fosse permanentemente rememoriado e reproduzido, também é o componente- chave para que esta memória não se perca. A apropriação da memória pela história é fundamental para que lugares da memória como museus, bibliotecas, conjuntos de cartas e rituais sejam inseridos dentro da comunidade ou meio social e político nos quais foram criados, verificando como os diferentes agentes históricos se apropriaram e fizeram uso de sua memória. Corroborando com a idéia de que a memória deve ser vista enquanto objeto da história, o texto de Jacques Le Goff é fundamental para essa abordagem. Conforme o autor: (...) história é a ciência do passado, com a condição de saber que este passado se torna objeto da história, por uma reconstrução incessantemente reposta em causa (...). Tal como o passado não é a história mas o seu objeto, também a memória não é história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de elaboração histórica57. Sendo a casa de Brodowski um lugar no qual Portinari inscreveu sua memória afetiva e involuntária através de obras de arte, sua apropriação pela história faz com que esta seja vista de maneira crítica e inserida num momento da trajetória do artista, no qual buscava reafirmar o ideal de uma arte constituída a partir das memórias e episódios que lhe eram mais próximos e significativos, buscando novas soluções artísticas e também o aprimoramento de sua arte. No primeiro capítulo desse trabalho contemplaremos a trajetória da 56 Idem, p. 25. 57 LE GOFF, J. Op. cit., pp. 25 e 49. 171 constituição física da casa da família Portinari, desde o momento inicial da instalação da família na cidade, e como esta, uma casa comum num primeiro momento, recebe novas funções, tomando uma nova configuração, quando Portinari acaba por elegê-la como seu “refúgio” particular após sua volta da Europa, em 1931. Verificaremos alguns aspectos da trajetória da arte brasileira durante as duas primeiras décadas do século XX e como Portinari nela se insere, visto que este foi o período no qual o artista realizou as bases de seus estudos em artes plásticas. Também será contemplada a questão das artes no momento que sucede a chegada de Portinari da Europa, ou seja, o início dos anos 1930, quando estavam ocorrendo profundas transformações na política e também na arte e na cultura brasileiras, com a remodelação da Escola Nacional de Belas Artes e uma maior abertura da arte brasileira ao modernismo. Portinari retorna dessa viagem com uma concepção de arte bastante diversa da orientação artística que recebera no Brasil, quando buscou recuperar a relação com suas raízes e com Brodowski, sua cidade natal, e mais especificamente com a casa onde passou a infância. Nela, Portinari termina por imprimir sua marca particular ao realizar pinturas que, mesmo enquanto experimentações, foram concebidas a partir da experiência pessoal do artista à qual a casa o remetia. Juntamente com suas pinturas, também empreende a escrita de uma autobiografia, de poemas autobiográficos, auto-retratos e biografias autorizadas. Essas tentativas de construção de uma memória de si também serão tratadas nesse primeiro capítulo, e da mesma maneira, observaremos como a religiosidade de seus tempos de criança ainda eram as lembranças mais fortes às quais Portinari se remetia ao tomar contato com a casa da família. No segundo capítulo, verificaremos como as correspondências trocadas entre 172 Portinari e amigos mostram-se como importantes instrumentos que mostram como o artista, através dos mais diversos meios, terminou por construir uma memória a seu respeito. Será analisado um grupo de correspondências, datadas de 1934 a 1945, período em que Portinari mais freqüenta a casa de Brodowski, e também quando se dá a total constituição do acervo artístico da mesma. Esse acervo também será objeto desse segundo capítulo onde, considerando essas obras como fontes visuais, observaremos como também se constituem em elementos que encerram a vontade de memória de Portinari. Dessa forma, ao contemplarmos esses dois tipos de fontes distintas, a fonte escrita e a fonte visual, veremos como Portinari utilizou-se desses elementos para a construção de sua memória. No terceiro e último capítulo, será abrangido o período após 1945, período esse em que a freqüência de Portinari à casa torna-se cada vez mais rara. Observaremos como, a partir da década de 1950, quando o pintor ainda estava vivo, já discutia-se na imprensa a possibilidade da transformação da casa da família Portinari em Brodowski em museu, visando a preservação de seu acervo, como numa homenagem ao famoso pintor. Essa discussão acirra-se após sua morte, em 1962, impulsionada pela situação de abandono na qual já se encontrava a casa nesse momento. A partir de então, especialmente na imprensa, e também nos círculos políticos e intelectuais, passa a haver a discussão da necessidade do resgate da casa de Brodowski, a preservação de seu acervo, visando torná-lo de conhecimento público. Há que se sublinhar o papel fundamental de artistas, políticos e intelectuais que conviveram com Portinari nas lutas pela preservação de sua memória, muitos desses com os quais o artista trocou larga correspondência ao longo de sua carreira, muitas vezes comentando sobre as obras que realizara na casa. Aqui serão verificadas as dificuldades encontradas em torno do tombamento 173 da casa e os conflitos que pautaram esse processo. Discutiremos então mais pontualmente sobre a valorização e resgate da casa da família Portinari enquanto lugar de memória, processo que culminou com a institucionalização do Museu Casa de Portinari. 174 CAPÍTULO 1 Cândido Portinari e a casa de sua família em Brodowski A família de Cândido Portinari chegou a Brodowski58, interior de São Paulo, nos últimos anos do século XIX. A pequena cidade, que hoje conta com pouco mais de 50 mil habitantes, situa-se a cerca de 337 km da capital do Estado. O surgimento e o desenvolvimento da cidade estão estreitamente ligados aos projetos de expansão da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro no Estado de São Paulo, no final do século XIX. Brodowski é então criada no rastro da ferrovia a caminho do interior paulista, cuja principal função era realizar o escoamento do café produzido da região para a zona portuária de Santos. Através da concessão obtida junto ao governo, pela da Lei n. 18, de 21 de março de 1872, a Cia. Mogiana iniciou, em 1873, a construção da ferrovia Campinas – Mogi-Mirim, com ramal até a cidade de Amparo. O prolongamento da estrada de ferro às margens do Rio Grande contribuiu, mais tarde, para o nascimento da cidade de Brodowski. Os pais de Portinari estavam entre os muitos imigrantes italianos que afluíram ao Brasil da época com o fim de servirem de mão-de-obra na lavoura do 58 No decorrer do presente trabalho, usaremos a grafia original do nome do engenheiro polonês Alexander Brodowski – inspetor geral da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro à época da fundação da referida cidade – que rendeu a denominação de Engenheiro Brodowski ao nascente povoado, nos últimos anos do século XIX. Ariovaldo Corrêa, em Brodowski: minha terra e minha gente, entre as páginas 49-52, destaca diversos motivos pelos quais o topônimo ‘Brodowski’ não deve ser grafado da maneira aportuguesada ‘Brodósqui’, dentre os quais o de que a atual gramática da língua portuguesa aceita perfeitamente que se grafe nomes estrangeiros e palavras tidas como casos especiais com as letras y, k e w de origem, mesmo que estas tenham sido abolidas do alfabeto brasileiro e português. 175 café. Domenica Torquato – ou Domingas, como passou a ser conhecida – e Batista Portinari conheceram-se e casaram-se na Fazenda Santa Rosa, próxima a Brodowski, onde suas famílias trabalhavam na condição de colonos, quando ele contava com 18 e ela com 13 anos de idade59. Cândido Portinari, ou Candinho, como era chamado pelos familiares, nasceu nessa Fazenda, e era o segundo de doze filhos que o casal Batista e Domingas tivera. De acordo com um relato do artista em sua autobiografia Retalhos de minha vida de infância, sua família mudou-se da Fazenda Santa Rosa para a estação de Brodowski, onde não havia ainda sequer o povoado, quando ele contava com apenas dois anos de idade, não possuindo então lembranças dessa época60. Quando do momento inicial em que se mudaram para a cidade, além de Batista, Domingas e seus filhos Paulino, Cândido e Pellegrina (Tata), também moravam com a família a Nonna Pellegrina, avó paterna de Portinari, e seus filhos Bepe e Davi61. Em Brodowski, Batista exerceu diversos ofícios, tendo inclusive montado um pequeno estabelecimento comercial, vindo depois a trabalhar em casa, onde abriu uma pequena oficina de cadeiras com assento de palha. De acordo com o depoimento de Tata Portinari, irmã do artista, tendo a família se mudado para Brodowski, residiram primeiramente numa casa de aluguel, pelo qual pagavam 15 mil réis por mês. Essa casa, mais tarde, foi vendida pelo proprietário a um negociante que não morava na cidade, ficando então a família sem perspectivas sobre onde morar62. Mas logo viria a solução do problema, pois Batista Portinari, em troca de diversos serviços realizados a Sílvio Estrada, comerciante 59 FABBRI, A. P. Contando a arte de Portinari. São Paulo: Noovha América, p. 07. 60 PORTINARI , C. Retalhos de minha vida de infância. In: Portinari, o menino de Brodowski. Rio de Janeiro: Livroarte, 1979, p. 41. 61 FABBRI, A. P. Op cit., p. 09. 62 PORTINARI, Pellegrina (Tata). Depoimento ao Projeto Portinari. Campinas, SP, 1985. 73 f. [3 CDs]. Disponível no arquivo da sede do Projeto Portinari (Pontíficia Universidade Católica – Rio de Janeiro, RJ). 176 proprietário de alguns terrenos no vilarejo, recebera do mesmo um terreno que poderia ser pago de acordo com as possibilidades da família. Com a venda do terreno à família Portinari empreendida por Sílvio Estrada, iniciou-se a construção da casa no local, situado em frente à Igreja de Santo Antônio, então matriz da cidade. Não foi possível, no entanto, encontrar comprovação documental acerca dessa venda, sendo esse fato legitimado apenas por depoimentos orais concedidos por membros da família de Portinari. Angélica Fabbri, em Contando a arte de Portinari, relata que os pedreiros que auxiliaram no “mutirão” de construção da casa eram também companheiros de Batista Portinari em uma banda de música local63, alguns deles também italianos, o que demonstra o forte cooperativismo existente entre as famílias de imigrantes que ali se fixaram. Portinari, ao narrar passagens de sua infância em Brodowski, menciona: “A casa onde morávamos foi doada pelos trabalhadores a meu pai”.64 Foram construídos inicialmente quatro cômodos, onde os Portinari se instalaram. No mesmo terreno, foi construída posteriormente uma outra casa, que passou a ser ocupada pela família. A casa para a qual se mudaram inicialmente foi preservada, e nela passaram a residir somente a avó de Portinari, D. Pellegrina, e seus filhos Bepe e Davi. Em um dos cômodos dessa casa, seria construída, mais tarde, a Capela da Nona, em 1941. Feita de tijolos e argamassa de barro, a residência construída pelos Portinari possui uma estrutura bastante simples, que pouco a diferencia do estilo empregado nas casas populares do final do século XIX e início do XX, com janelas e portas em linhas retas, sendo estas últimas, em sua maior parte, bastante baixas. Ao longo do tempo, no entanto, foi sendo modificada em sua estrutura, e sua forma atual é fruto 63 FABBRI, A. P. Op. cit., p. 10. 64 PORTINARI , C. Op. cit., p. 50. 177 de sucessivas ampliações e adaptações, a maioria delas empreendida por iniciativa do próprio Cândido Portinari, quando este passou a visitar a casa com maior freqüência, após sua volta da Europa, em 1931. Esse seria o lugar onde Portinari viveria toda sua infância e a adolescência, até os 15 anos. Seu tempo de menino foi como o dos demais garotos de sua idade, marcado pelas brincadeiras, festas, jogos de futebol no campinho de terra e também pelo contato com as fazendas de café e seus trabalhadores e sua luta diária pela sobrevivência, vivendo num núcleo urbano que ainda pouco diferenciava-se da zona rural. Demonstrando precocemente o talento para o desenho, Candinho começou, apoiado por seu pai, a ter aulas de desenho e pintura com um artista local, Zé Murari, na verdade, um copiador de estampas de santos, que não possuía o domínio de técnicas avançadas de desenho e pintura. Às aulas com Murari, Portinari não faltava, apesar de ter abandonado a escola primária antes de completar a terceira série65. Por volta de 1913, uma nova igreja matriz foi construída em Brodowski, a de Nossa Senhora Aparecida. Portinari então veio a ajudar um grupo de escultores “frentistas” italianos, especializados em adornar igrejas com pinturas de santos e anjos a partir de um molde, quando usavam a técnica do spolvero66. Portinari tinha então cerca de 10 anos de idade. Sobre essa passagem, o artista narrou em sua autobiografia: O vigário João Rulli desejava encomendar uma porteira e não se entendiam, peguei um papel e desenhei a porteira. O padre ficou olhando para mim e disse: _ Amanhã chegará o frentista para 65 BALBI, M. Portinari : o pintor do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 20. 66 No spolvero, um desenho é feito em um molde, sendo esse desenho todo perfurado em seus contornos. Aplica-se o gesso na parede que receberá o afresco, e sobre o gesso ainda molhado coloca-se o molde, batendo-se nele com uma boneca de tinta em pó. Com isso o desenho fica impresso, e a partir daí realiza-se a pintura. Trata-se de uma das técnicas mais simples utilizadas em pintura, especialmente difundida entre os pintores-decoradores do início do século XX. 178 ornamentar a fachada da nova igreja. Você deve ir vê-lo e aprender. Ricardo Luini era o nome do meio escultor. Fazia ornatos e anjos diretamente na argamassa de cimento, areia e cal, trabalhou durante uns cinco meses. Quando terminou, deu-me uma prata de dois mil réis e uma viagem a Ribeirão Preto. Pessoa muito boa. Passados alguns dias, vieram os pintores de Ribeirão Preto: Vitório Gregolini e um seu cunhado. Também um mais idoso com o apelido de Barbeta devido à sua pequena barba. Eles já traziam o desenho, ajudei-os, enchi um fundo com estrelas. Mas o trabalho que mais o interessava era o seguinte: chegava às seis da manhã, abria a porta da igreja, retirava uma vasilha de mais ou menos de 20 litros, despejava 5 litros d’água e ajuntava um tanto de cola. Depois havia uma prancheta de mais ou menos 100 x 70, misturava as tintas em pó com água e colocava-as em pasta e sobre cada cor um pano bem úmido. Os andaimes de pau roliço era frágeis, ficava do solo ou piso do andaime uns 8 ou 10 metros... escapei de cair muitas vezes... 67. Decidido a dedicar-se à pintura, Portinari vê a oportunidade de tornar-se um desenhista e pintor na possibilidade de vir a morar na então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro, local onde estavam instalados alguns dos principais centros de formação de artistas plásticos do Brasil, como o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Nacional de Belas Artes. Um casal de amigos de seus pais, o dentista Quirino Toledo e sua esposa Alzira estavam mudando-se para a capital, e ofereceram-se para acompanhar Portinari na viagem, caso ele se decidisse a ir. Depois de muita resistência em deixar a sua cidade natal, Portinari mudou-se para o Rio de Janeiro, onde matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios, tendo então aulas de desenho, ingressando logo depois como aluno livre na ENBA. Após o ingresso na ENBA, Portinari passou a ter aulas com os renomados professores da Escola, cuja orientação acadêmica era estreitamente ligada à tradição francesa, mas não à França berço das escolas da arte moderna que então estremeciam a Europa, como o expressionismo e o cubismo, e sim à França do Neoclassicismo e do Realismo da segunda metade do século XIX. A obra de Portinari tem impressa em si as transformações pelas quais passou a arte brasileira nas duas primeiras décadas do século XX, mudando sua feição 67 PORTINARI , C. Op. Cit., p. 50. 179 após os anos 1930, que trouxeram uma enorme reviravolta cultural no país, data que coincide com a volta de Portinari da Europa, viagem esta que se constituiu num verdadeiro divisor de águas em sua carreira. O tópico que se segue contemplará alguns aspectos das artes brasileiras nas primeiras décadas do século XX, e como Portinari insere-se nessa trajetória. 180 1.1 Artes e pintura no Brasil nas primeiras décadas do século XX Ao refletirmos a respeito da pintura no Brasil durante as duas primeiras décadas do século XX, é preciso ter em mente que no país dois pólos artísticos desenvolviam-se de maneira análoga: Rio de Janeiro e São Paulo. As duas cidades eram os grandes centros de efervescência cultural da época. No início do século XX, especialmente no Rio de Janeiro, ainda atuavam os pintores que haviam se destacado no academismo que predominou na pintura nacional durante a segunda metade do século XIX. Nomes como Vítor Meireles, Pedro Américo e Zeferino da Costa, formados na Academia Imperial de Belas Artes, num estilo academicista, faziam ainda sentir sua influência. A orientação acadêmica dos pintores que atuavam no Rio de Janeiro perduraria até mesmo após a Semana de 1922 em São Paulo, que não fez sentir seus reflexos na então capital do país. Esse contexto de relativa resistência à mudança, certamente ligada a uma crítica de arte ainda bastante conservadora, foi o cenário que recebeu Cândido Portinari quando de seu ingresso na Escola Nacional de Belas Artes, em 1917. Algumas mudanças eram vislumbradas no cenário literário, mas tanto nas artes plásticas quanto na poesia a situação era de continuidade dos antigos modelos. Acerca dessa orientação demasiadamente européia seguida pela arte brasileira durante as duas primeiras décadas do século XX, escreveu Aracy Amaral: A geração literária, como diz Mário da Silva Brito, ‘era predominantemente parnasiana. Alguns poucos, os mais adiantados, formavam entre os simbolistas’. Mas no Rio de Janeiro, capital federal ciosa de suas tradições, onde vida literária e artística giravam em torno das Academias, pouca efervescência toca os jovens pintores e escultores. Estes, com seus mestres formandos segundo os padrões rígidos da Academia implantada no Brasil pela Missão Lebreton, seguiam uma escola estrangeira cuja excelência não estimulava a criatividade, mas antes a imitação servil dos modelos importados68. (...) No Rio de Janeiro, eclodida a primeira conflagração mundial que tantos rumos alteraria, acirrando nacionalismos como estimulando nosso desenvolvimento econômico e industrial, sucediam-se com 68 AMARAL, A. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Editora. 34, 1998, p. 51. 181 regularidade as exposições oficiais de arte na Escola Nacional de Belas Artes, sempre com a presença de seus grandes professores Batista da Costa, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo, e homenagens oficiais a artistas69. Ao contrário de São Paulo, que, nas primeiras décadas do século XX já sentia a força do modernismo em sua atividade cultural, o Rio ainda estava fortemente arraigado às tradições do realismo e do romantismo ainda seguidas pela Escola Nacional de Belas Artes, com sua orientação ligada à arte européia, especialmente à francesa, do século XIX. No entanto, não se pode dizer que esta orientação acadêmica fosse seguida sem quaisquer lampejos de inovação. Alguns pintores como Eliseu Visconti, Rafael Frederico, Lucílio e Georgina de Albuquerque e Carlos Oswald utilizavam técnicas próximas ao Impressionismo em seus trabalhos. A técnica impressionista chegara ao Brasil tardiamente, enquanto na França já desenvolviam-se o cubismo e o fauvismo. Também na arte do período faziam-se sentir algumas influências do Simbolismo e do Art Nouveau. No entanto, era bastante peculiar a forma como os artistas brasileiros do período incorporavam as soluções artísticas trazidas pelas escolas da arte moderna, sendo estas muitas vezes usadas como meros recursos estilísticos, não sendo os artistas realmente fiéis a uma determinada escola. A respeito desse fenômeno, Teixeira Leite comenta: Apesar de que ainda continuavam em atividade alguns dos impressionistas históricos, inclusive seu grande criador Claude Monet, só falecido em 1926, também se esvaziara, havia muito, o Neo- Impressionismo, que se revelara incapaz de sobreviver à morte prematura de seu grande criador Georges Seurat. Seu princípio básico da mistura ótica das cores aplicadas em pequenos toques do pincel transformara-se num mero recurso de métier à disposição de artistas de todas as tendências.70 Em São Paulo, no entanto, já delineavam-se mudanças nesse panorama, com acontecimentos que iriam abrir caminho para a revolução que causaria a Semana de Arte Moderna de 1922: a exposição de Lasar Segall na capital paulista e Campinas, em 1913; a mostra de Anita Malfatti também em São Paulo, em 1917; e a revelação de Brecheret, descoberto em 1920 por um grupo de artistas e intelectuais quando trabalhava no Pavilhão das Indústrias, também em São Paulo71. 69 Idem, p. 60. 70 TEIXEIRA LEITE, J. R. A virada dos séculos. In: ______. 500 anos de pintura brasileira. Belo Horizonte: Cedic Multimídia: Log On Informática, 1999. CD-ROM. 71 Idem, ibidem. 182 A cidade começava a metamorfosear-se em grande metrópole desde as duas últimas décadas do século XIX, após a abolição da escravidão. O novo século chegou, e trouxe para a cidade o início da industrialização e o aumento da imigração. O apogeu da produção cafeeira ainda fazia-se sentir, e traduzia-se em urbanização e execução de grandes obras arquitetônicas por toda São Paulo, que expandia-se e melhorava seus serviços de infra-estrutura. O crescimento da cidade, a expansão e o desenvolvimento da economia, o “nativismo” ou um certo sentimento de nacionalismo despertado pela guerra – fatores esses que somavam-se à inexistência de escolas oficiais de arte na capital paulista, difusoras que eram das formas artísticas tradicionais – contribuíram para a consolidação da cidade de São Paulo como um centro de renovação cultural. A afirmação da cidade como emergente centro cultural da época demonstrava-se através do desenvolvimento de sua indústria editorial e de seus espaços culturais. No campo das artes plásticas, esse fenômeno também não deixava de aplicar-se, como ressalta Sevcenko: Novos espaços de exposição surgem, outros são improvisados em hotéis, livrarias, casas comerciais e até cinemas junto à área do Triângulo central da cidade. Os artistas vêm de turnês internacionais, do Rio de Janeiro, de estados do norte e do sul, além de, é claro, suscitada pelas novas possibilidades, uma geração emergente de pintores e escultores locais72. Oswald de Andrade, poeta e escritos, já em 1915 no jornal O Pirralho, pregava a necessidade da criação de uma verdadeira arte nacional, não mais vinculada ao academismo. Da mesma forma, em uma conferência em Paris, no ano de 1923, denunciou a influência dos modelos franceses no ensino das artes no 72 SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. 2. ed., São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 96. 183 Brasil, que deformava a criatividade nacional e reproduzia um padrão internacionalista superado73. Anita Malfatti, com sua já citada exposição, realizada entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918, foi precursora do movimento modernista em São Paulo. Duramente atacada pela crítica, especialmente pelo conhecido artigo Paranóia ou mistificação, escrito por Monteiro Lobato, a exposição de Anita demonstrava um arrojo incomum à arte brasileira da época. Logo teve a seu lado um pequeno grupo, formado por Oswald e Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Di Cavalcanti, que defendiam a modernidade de sua arte, grupo esse que, mais tarde, teria a adesão fundamental de Menotti Del Picchia, jornalista do Correio Paulistano, grande articulador cultural e ferrenho defensor do modernismo. Estudiosos consideram Menotti o orador oficial da Semana de 22, tendo ele apresentado, na festividade, os poetas e prosadores representantes da nova literatura. Em conjunto com Oswald de Andrade, noticiou o advento da nova tendência literária e artística, sempre sustentando polêmica com os que ainda estavam ligados ao passado. Pertenceu à Academia Paulista e à Academia Brasileira de Letras, tendo sido deputado estadual e federal. Amigo pessoal de Cândido Portinari, Menotti, durante seu mandato de deputado estadual por São Paulo, teve papel fundamental quando do tombamento da casa da família Portinari em Brodowski, sendo um dos idealizadores do processo de compra da casa pelo poder público para sua conseqüente preservação. Menotti conviveu com o artista no circuito cultural brasileiro da década de 1930 até a de 1960, tendo estabelecido com ele larga correspondência. 73 AMARAL, A. Op. cit., p. 60. 184 No entanto, o Rio de Janeiro era ainda o maior centro de excelência no que tocava ao aprendizado das artes plásticas do país e destino certo para qualquer artista que desejava especializar-se e entrar em contato com os mais destacados professores e artistas daquela época. O desejo de tornar-se um grande pintor moveu Portinari a estabelecer-se na então capital federal. Dedicando-se à pintura acadêmica, especialmente aos retratos, Portinari foi aos poucos galgando seu lugar dentro dos salões anualmente promovidos pela ENBA e também junto à crítica carioca. Tendo realizado o óleo sobre tela Baile na Roça74 para o Salão de 1924, considerada sua primeira obra de temática popular, viu-o então ser recusado pelo júri, por não corresponder às expectativas da arte academicista que ainda era o padrão de arte digno de reconhecimento na ENBA à época. O prêmio máximo do Salão, o de Viagem à Europa, foi alcançado pelo artista somente em 1928, ao realizar um retrato do poeta Olegário Mariano, obra em que se entrevê o toque pessoal do artista, o que não a desvincula por completo dos moldes da academia. Portinari teve que, de certa forma, adaptar-se às convenções que lhe foram impostas, para ter trânsito dentro do circuito carioca das artes. Ao chegar em Paris, em junho de 1929, Portinari passou a fazer visitas a museus, especialmente aos do Louvre e o Luxemburgo. Tinha com a viagem o objetivo de “rememorar, estudar agora ‘de visu’ a velha história da arte dos séculos remotos”, concebendo-a como “uma forma de atualização, de contato direto com as grandes realizações do passado e com as propostas do presente”75, ao contrário do direcionamento tomado pela maior parte dos bolsistas brasileiros ganhadores do 74 Ver Prancha 26 no Catálogo Iconográfico. 75 FABRIS, A. Cândido Portinari. São Paulo: Edusp, 1996, p. 18. 185 mesmo prêmio, que acabavam fazendo de sua viagem ao exterior um prolongamento de sua prática de ateliê76. É interessante notar que, assim como Portinari, diversos artistas brasileiros atualizaram suas idéias estéticas a partir de modelos europeus recentes, sobretudo na área das artes plásticas: movimentos como o cubismo, o expressionismo, o futurismo e o surrealismo “resultaram em inspirações que, direta ou indiretamente, alimentaram os artistas modernistas brasileiros”77. Tal fenômeno ocorreu com diversos de nossos pintores, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret. De maneira aparentemente contraditória, nesses artistas, o “aguçamento da percepção sensível em relação à nossa realidade local se daria (...) em decorrência da ampliação dos horizontes culturais pela vivência européia”78. Com Portinari não seria diferente. Voltando ao Brasil e tomando novamente contato com o universo no qual sua visão de mundo fora forjada, pintaria a realidade brasileira, que a seu ver era profícua em cenas, paisagens e tipos humanos de grande riqueza visual, e que mereciam ser vistos como temas para a composição de obras de arte. Em carta escrita de Paris, em julho de 1930, à ex-colega de Belas Artes Rosalita Cândido Mendes, o artista criou um personagem, o Palaninho, para simbolizar o homem simples do interior, o garoto que um dia havia sido, de pés descalços e roupa surrada, e que, no fundo, achava que nunca havia deixado de ser: Vim conhecer aqui em Paris o Palaninho, depois de ter visto tantos museus e tantos castelos e tanta gente civilizada. Aí no Brasil eu nunca pensei no Palaninho. (...) D’aqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodowski como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada. Vou pintar o Palaninho. Vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor. (...) 76 FABRIS, A. Op. cit., p. 20. 77 AMARAL, A. Op. cit., p. 24. 78 Idem, p. 31. 186 A paisagem onde a gente brincou a primeira vez e a gente com quem a gente conversou a primeira vez não sai mais da gente e eu quando voltar vou ver se consigo fazer a minha terra. (...) Tenho saudades de Brodowski – pequenininha, 200 casas brancas de uma andar, no alto de um morro espiando pra todos os lugares... com a igreja sem estilo com uma torre no centro e duas pequenas dos lados... com o altar que eu fiz...79 Retornando ao Brasil em 1931, Portinari tem como ideal retratar temas ligados ao povo, com sua miséria e seus problemas, mas também seus costumes e peculiaridades. A sensação de “estranhamento” causada por sua estada em um outro país fez com que despertasse seu interesse pelo que havia de mais próximo, de mais presente em sua história de vida e em sua memória. Portinari buscou então desenvolver uma nova proposta plástica, que congregaria o métier dos grandes mestres da pintura clássica com elementos da arte moderna, além de soluções artísticas próprias, procurando criar assim uma estética verdadeiramente nacional no campo das artes plásticas. O pintor acreditava, portanto, que o ensino acadêmico da arte deveria ser conhecido antes de ser rechaçado, atribuindo ao conhecimento técnico do pintor uma função decisiva para seu fazer artístico, pois nela, mais que em seu sentimento, estava enraizada sua “individualidade variada”. Via então, no classicismo, a fundamentação necessária para a construção da arte moderna80. Começou então a concentrar-se em torno do artista um pequeno grupo de intelectuais, que passou a vê-lo como o representante do Modernismo brasileiro no campo da pintura pois, tendo aderido a novas expressões plásticas, permitia demonstrar que o uso da deformação na pintura não significava desconhecimento do desenho, mas que implicava em uma escolha estética81. 79 Portinari, Cândido. Carta. Paris, 12 jul.1930 [para] Rosalita Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, RJ, 10 p. 80 FABRIS, A. Op. cit., p. 18. 81 FABRIS, A. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 07. 187 O retorno do artista ao Brasil, em 1931, coincide com o momento pós- Revolução de 1930 e a subida de Vargas ao poder, em cujo governo foi criado o Ministério da Educação e Saúde, tendo à frente o ministro Gustavo Capanema, o que veio a assinalar grandes mudanças também no campo das artes e da cultura. Também em 1931 foi derrubada a antiga e conservadora direção da Escola Nacional de Belas Artes, que tinha à frente Oswaldo Teixeira. Lúcio Costa, arrojado arquiteto, assumiu o posto e remodelou a orientação da Escola, incluindo o Salão Anual, cuja edição de 1931 ficou conhecida como Salão Revolucionário, do qual Portinari participou como membro da comissão organizadora, além de expor 17 telas de sua autoria. À época, Vargas, auxiliado por Capanema, buscou agregar em torno de si especialistas, intelectuais e artistas que o auxiliassem no projeto de construção do Estado Nacional idealizado por seu governo, que por vezes teve ações ligadas à tradição, enquanto outras com um nítido caráter modernizante. Esses intelectuais, no entanto, apresentaram posturas diversas em relação à tentativa de cooptação do Estado Novo, que caracterizaram-se em movimentos de aceitação, respondendo “ao chamado do Estado para a construção de políticas nas mais distintas áreas da vida social”, mas também movimentos de adesão/afastamento e de entusiasmo/recusa, numa tensão que marcou a atuação de determinados intelectuais diante das decisões do governo82. A relação entre Portinari e o governo Vargas iniciou-se quando o ministro Capanema tomou conhecimento da repercussão causada pelas obras expostas pelo artista no Instituto Carnegie de Pittsburg, em 1935. A imprensa estadunidense deu 82 BOMENY, H. (org). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 26. 188 então vasta cobertura às pinturas do pintor brasileiro que compunham a mostra, especialmente o óleo sobre tela Café83, ganhador da menção honrosa da exposição. Com seus personagens de pés e mãos enormes, absorvidos pelo trabalho na colheita, Café marca o início do encaminhamento da obra de Portinari em direção à pintura monumental, de temáticas ligadas ao trabalhador e ao homem da terra, direção essa mais tarde traduzida em sua pintura mural. Largamente elogiado pela crítica internacional por seu trabalho, o pintor chamou a atenção de Capanema, que viu em Portinari o que parecia ser o artista perfeito para representar nas artes plásticas o projeto de construção da identidade nacional empreendido por Getúlio. Foi delegada então a Portinari a função de executar uma série de murais sobre os ciclos econômicos brasileiros no prédio do Ministério da Educação e Saúde, no centro do Rio de Janeiro. Aceitando a encomenda em 1936, o artista viria a iniciar a pintura dessas obras somente em 1939, devido ao longo tempo ocupado em estudos preliminares84. Portinari era então visto pelo Estado Novo como o pintor que melhor expressaria seu apelo populista, na medida em que tinha o homem do povo, o trabalhador brasileiro como elemento central de sua obra. No entanto, Portinari, mesmo anteriormente a 1935, já vinha experimentando temas que retratavam os tipos populares, através de uma proposta estética moderna. Trabalhos como Jogo de Futebol em Brodowski85 (1933), Os despejados86, Mestiço87 e Lavrador – Preto de Enxada88 (1934) demonstram a preocupação de Portinari em buscar uma nova sensibilidade para retratar o trabalhador brasileiro e o cotidiano do povo humilde e sofrido. Outros artistas já 83 Ver Prancha 27. 84 FABRIS, A. Op. cit., p. 11. 85 Ver Prancha 28. 86 Ver Prancha 29. 87 Ver Prancha 30. 88 Ver Prancha 31. 189 estavam experimentando a temática naquele momento, como Tarsila do Amaral, com suas telas voltadas para os temas do trabalho, da miséria e da injustiça social, como Operários, de 1931, mas foi Portinari quem levou a pintura social às últimas conseqüências, explorando-a durante toda sua trajetória artística, fazendo dela sua principal forma de pintura, ao contrário de Tarsila, por exemplo, cuja temática social pautou apenas uma das fases de sua carreira. Certamente, sua trajetória pessoal também colaborou com sua “eleição” a “artista oficial” do governo: ao mesmo tempo em que havia vivido a infância como um menino pobre do interior, ligado a terra e ao trabalho na lavoura, tornou-se um artista que se destacou por esforço próprio na profissão que abraçou, vindo a ter renome internacional. O pintor de Brodowski transitava então entre dois universos: o do homem do povo e o do intelectual, que viria a auxiliar o governo Vargas, no campo das artes plásticas, a legitimar seu projeto de construção da identidade nacional brasileira através dos temas de suas obras, concebidos a partir de sua vivência pessoal. No entanto, não foi somente o governo Vargas que utilizou a obra de Portinari como representativa de seu ideal de exaltação do nacional. O Partido Comunista, ao qual Portinari se vinculou em 1945, e mesmo a ditadura militar pós-1964 – período em que se concretiza a instalação do Museu Casa de Portinari – apropriaram-se, cada um à sua forma, da obra e do legado do artista para exaltação de suas propostas e ideais. Esse fenômeno deve-se certamente ao fato de Portinari ter realizado um tipo de arte que podemos considerar como engajada. Esse fator contribuiu para que o trabalho de Portinari fosse enxergado como uma forma de exaltação de valores que compunham um ideal de identidade nacional, como veremos no terceiro capítulo deste trabalho. 190 Quando afirmamos que Portinari realizou uma arte engajada, levamos em conta o conceito de Benoit Denis, em Literatura e engajamento, que sugere que a arte engajada, diferentemente da arte militante – que pressupõe a subordinação aos ideais estéticos a uma determinada doutrina política ou filiação partidária – preserva seu compromisso com o social, sem sacrificar sua liberdade criativa, sem submeter- se ao aprisionamento ideológico. Essa forma de arte é sempre interessada e tem um compromisso ético89. Considerando a arte de Portinari enquanto arte engajada, acreditamos que o próprio fato desta ter se vinculado aos temas sociais fez com que ideologias políticas de momentos decisivos na história do país o elegessem como o pintor cuja arte, em maior grau que a de outros artistas, possuía um claro compromisso com a sociedade ao retratar sua realidade e seu povo em seus mais diversos aspectos. Dessa forma, podemos perceber o quanto a arte de Portinari estava então diretamente ligada à sua percepção do mundo e à sua trajetória pessoal. Isso fica claro ao observamos, além de sua pintura social, também as obras cujos temas vinculavam-se a cenas que faziam parte de sua memória em relação aos seus primeiros anos de vida e à sua terra natal – como as brincadeiras de criança, o circo, enterros na rede – memória esta que também é representada através de sua pintura sacra, temática escolhida pelo artista para figurar nas paredes da casa de sua família em Brodowski. Após voltar da Europa, em 1931, Portinari passou a viajar com maior freqüência para sua cidade natal, voltando então a ter um contato mais efetivo com a população local, com sua família e sua casa em Brodowski. Nesse momento, todos os membros da família Portinari ainda residiam na cidade, sendo que apenas Julieta, 89 DENIS, B. Literatura e engajamento. Bauru: Edusp, 2002. Apud: GARCIA, T. C. Tarancón: invenção sonora de um Brasil latino-americano, 2006. (mimeo). 191 Paulino e Maria, irmãos do artista, haviam se casado e deixado a casa quando Portinari retornou da Europa, já casado com Maria Portinari, uruguaia radicada em Paris. Aos poucos os outros irmãos foram se mudando, sendo que Olga, Inês, Luís e Osvaldo de lá saíram, mais tarde, para residirem com Portinari e Maria no Rio de Janeiro90. Portinari via a residência de sua família em Brodowski como um local onde estaria em contato direto com suas raízes interioranas, fator fundamental em sua obra. O ambiente privado certamente também o convidava a repensar seu trabalho e a concentrar-se em estudos e experimentações. 90 PORTINARI, Maria. Depoimento ao Projeto Portinari. Rio de Janeiro, RJ, 1982, 1983. 270 f. [14 CDs], p. 52. Disponível no arquivo da sede do Projeto Portinari (Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ). 192 1.2 Arte sacra e memória involuntária em Portinari Nessa época, já um artista de renome e bastante conhecido no circuito brasileiro das artes, Portinari havia estabelecido vínculos de amizade com os mais diversos artistas e intelectuais da época. Faziam parte de sua “lista de amigos” figuras como os poetas Olegário Mariano e Manuel Bandeira, os arquitetos Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Lélio Landucci, os escritores Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, os pintores Paulo Rossi Osir, Emiliano Di Cavalcanti, Clóvis Graciano, Alfredo Volpi e Francisco Rebolo Gonzáles, além de Gustavo Capanema e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Estando Portinari em Brodowski, sempre escrevia cartas a esses amigos, comentando sobre sua família, a cidade, e principalmente sobre sua atividade artística durante sua estada na terra natal. Os mais próximos eram freqüentemente convidados a passar finais de semana ou mesmo temporadas na casa, quando estes poderiam conhecer a sua tão amada cidade, além de tomar contato com a produção artística lá desenvolvida pelo artista. Portinari percebeu então a necessidade de dotar a casa de Brodowski de uma estrutura que pudesse acolher os amigos que eventualmente o visitassem. Além disso, também precisaria, na casa, de um local próprio para o desenvolvimento de seus estudos e pinturas. Em uma correspondência do ano de 1940 endereçada ao amigo Mário de Andrade, Portinari menciona a construção de alguns cômodos para ampliar o espaço físico da casa: Recebi sua carta. Acho que você fez muito bem em descansar um pouco. O atelierzinho ficou pronto e está muito bom. Já comecei a fazer um pouco de pintura. Mandei também construir dois quartos – pensando em você – daqui a uns 2 ou 3 dias ficarão terminados. Isto aqui não é lá grande coisa, mas o clima é fabuloso. Não faça 193 cerimônia – venha, pois você bem sabe que não só nós (os do Rio) mas os d’aqui também terão grande prazer em ter você aqui.91 Em uma outra carta a Mário de Andrade, também de 1940, Portinari ainda se remete a outra ampliação realizada na casa, no intuito de melhor acomodar possíveis visitantes. Ressalta a Mário que os novos cômodos foram construídos de maneira a estarem independentes da casa, conhecedor que era do caráter reservado do amigo: (...) mandei construir, como já lhe disse, um apartamento ligado à casa e completamente independente – e só foi feito – pensando em amigos como você.92 Com as reformas e ampliações promovidas por Portinari, a casa passou a contar com dezesseis cômodos no total93. Observando sua fachada, temos a impressão de que existem duas casas anexas uma à outra. O desdobramento à direita é a “parte nova” da casa, resultado das ampliações idealizadas por Portinari, onde se situa seu ateliê. A outra parte é a “antiga”, composta pela sala de recepção, duas saletas, a cozinha, a sala de jantar e alguns quartos, cômodos estes que fazem parte da estrutura inicial da casa. A casa passou então a possuir um aspecto labiríntico, o que parece ser o resultado de uma certa falta de planejamento ao idealizar-se a construção de novos cômodos para a ampliação do espaço físico da casa, o que fica visível pela ausência de janelas em alguns quartos, prejudicando assim a iluminação interna da residência. Portinari fez então da casa de Brodowski um local onde pudesse, além de descansar, também trabalhar com tranqüilidade. Ao tratar-se de um espaço estritamente privado, o artista sentia-se livre para realizar experimentações artísticas. Com isso, já a partir do ano de 1934, iniciou a execução de algumas 91 PORTINARI, Cândido. Carta. Brodowski, SP: Jan. 1940 [para] Mário de Andrade, São Paulo, SP. 92 PORTINARI, Cândido. Carta. Brodowski, SP: 25 jan.1940 [para] Mário de Andrade, [s.l]. 93 Ver planta baixa da casa de Portinari em Brodowski, Prancha 1 do Catálogo Iconográfico em anexo. 194 pinturas no interior da casa, aplicando então efetivamente a pintura mural, cuja utilização já ensaiava em sua pintura em tela. A monumentalidade escultórica presente em telas como Preto de Enxada, Mestiço e O Operário94 demonstra como Portinari já rompia com os limites do quadro de cavalete, projetando suas figuras para fora do espaço demarcado pela moldura, encaminhando-se para o afresco e a pintura mural95, técnicas que desenvolveu efetivamente a partir da pintura dos afrescos da casa de Brodowski, e posteriormente, em maior dimensão, nos painéis dos Ciclos Econômicos para o Ministério da Educação e Saúde96. A partir daí, Portinari parecia querer integrar-se ao movimento mundial que buscava uma destinação coletiva para a arte, cujo maior expoente era então o muralismo mexicano97, que alcançara grande repercussão naquele momento com os trabalhos de Rivera, Siqueiros e Orozco. Ao analisar a correspondência pessoal de Portinari, vemos que o artista fazia questão de comunicar os amigos mais próximos a respeito das experimentações artísticas realizadas em Brodowski, fazendo com que estes lhe escrevessem apreciações e críticas a respeito das mesmas. Experimentando pela primeira vez a técnica do afresco, Portinari realizou, em 1934, três obras de pequena dimensão: duas Cabeças de Mulata e o Perfil da Avó. Especialmente as primeiras possuem um nítido caráter de ensaio, ao retratar tipos populares que possivelmente viriam a “habitar” alguma de suas telas. O Perfil pode ser visto como um reflexo de sua admiração pela avó paterna, D. Pellegrina. Esses afrescos foram realizados pelo artista nas paredes externas da casa e, quando da 94 Todas obras de 1934. 95 FABRIS, A. Cândido Portinari. São Paulo: Edusp, 1996, p. 36. 96 Ver Prancha 32. 97 Idem, p. 37. 195 instituição do Museu, em 1969, foram retiradas do local original e transferidas para seu interior, certamente para que sua conservação não fosse prejudicada. Excetuando-se as obras citadas anteriormente, as demais pinturas murais que Portinari veio a executar em Brodowski estão, sem exceção, ligadas à temática sacra. Em 1934, executou ainda o afresco São Francisco pregando aos pássaros. Posteriormente, em 1936, foi a vez de o ateliê receber em suas paredes a obra Fuga para o Egito. Ainda que Portinari não fosse mais católico praticante, sua formação estava profundamente enraizada na religiosidade de sua família, especialmente a de sua avó paterna, por quem nutria especial admiração. A Capela da Nona, decorada por Portinari em 1941 seria o expoente máximo de seu profundo respeito aos valores familiares. A temática sacra ainda estaria presente em 1942, quando Portinari executou o afresco Sermão aos peixes na sala da casa da avó, e em 1945, com o mural a têmpera São Jorge e o dragão, pintado na sala de recepção da casa da família. Na casa de Brodowski, portanto, pela primeira vez Portinari visitou a temática sacra em sua pintura. Anteriormente aos trabalhos da casa, Portinari já havia trabalhado com temas religiosos, no entanto, restringindo-se a alguns desenhos, não tendo, até a realização das obras da casa, trabalhado com pinturas que explorassem esses temas98. Dessa forma, vemos os trabalhos realizados por Portinari na casa de sua família em Brodowski como uma forma de expressão involuntária de sua memória, ficando nítido então que Portinari acabou por deixar, através do registro pictórico, inscrita sua memória nas paredes da casa de Brodowski, mesmo que o possa ter 98 PROJETO Portinari. Obras. Disponível em < http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/obra.asp? contexto=obra>. Acesso em 12/04/05. 196 feito, no caso, de forma involuntária e intuitiva, ao menos num primeiro momento. Assim, se expressa nas paredes da casa de Brodowski, a memória involuntária do artista. Essa memória involuntária é constituída de maneira espontânea, “por imagens que aparecem e desaparecem independentemente de nossa vontade”, por lampejos, e inevitavelmente carregada de afetividade99. A memória involuntária não é uniforme. Essa dimensão descontínua e afetiva da vida e das ações dos homens é o que por vezes a memória voluntária deixa escapar. Citando Proust, Jacy Seixas menciona como a memória involuntária é “instável e descontínua, não vem para preencher os espaços em branco, supõe as lacunas e constrói-se com elas100.” Tida por vezes pela historiografia como avessa à história, por essa ser “tida como constitutiva de um terreno de irracionalismo (s)”. É marcada pela descontinuidade, é uma memória fugidia, “que se movimenta para frente e para trás sem obedecer a qualquer sucessão necessária”101. Esse componente afetivo da memória involuntária é o que marca de maneira mais forte a composição das obras da casa de Portinari. Trabalhando com o tema da arte sacra, pode imprimir ao local um caráter bastante pessoal, ligado à sua formação familiar, o que pode ser visto como uma forma involuntária de Portinari manifestar os sentimentos que afloravam ao tomar contato com a casa. Levando ao conhecimento de um público seleto e especializado, através de correspondências, a forma como aquele lugar passou a possuir sua marca pessoal, com intervenções arquitetônicas e artísticas, buscou então legitimar a existência daquele local como importante também para a construção de sua concepção artística. 99 SEIXAS, J. A. Percursos de memória em terras de história: problemáticas atuais. In: NAXARA, M. R. C.; BRESCIANI, S. Memória e (re) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2002, p. 46-47. 100 Idem, p. 47. 101 Idem, p. 49. 197 Aí reside a peculiaridade das obras de Brodowski dentro da produção artística de Portinari. Na maior parte de seus quadros estão presentes elementos que remetem à sua infância, como os retirantes, os trabalhadores das lavouras e as brincadeiras de criança. A intenção de memória transpassa, de certa forma, toda sua obra. Mas, especificamente na casa, a memória involuntária se fez presente ao serem eleitas pinturas sacras, uma vez que essas podem ser vistas como representantes das lembranças mais primitivas de Portinari em relação à sua infância e sua vivência com a família na casa. Essa temática, portanto, liga-se não somente às lembranças do tempo de criança do artista, mas também ao universo estritamente familiar e privado ao qual a casa o remetia, às lembranças que lhe vinham à mente ao pensar exclusivamente no ambiente da casa. Por isso a adoção da temática para a ornamentação das paredes. Na biografia de Portinari escrita por Antonio Callado, o próprio artista nos mostra, através de seus depoimentos, o quanto as imagens religiosas povoaram sua imaginação e interferiram na construção de sua visão de mundo. Em um determinado momento, Callado pergunta a Portinari sobre as lembranças mais antigas que possuía da infância em Brodowski: _Qual é a primeira lembrança da sua vida, a mais recuada impressão que você guardou? _Um medo desgraçado do Diabo – respondeu Portinari. (...) _Havia um jardineiro que ia lá em casa comprar pedra de âmbar para o alfanje. Não sei por quê, mas vagamente eu o ligo com o Diabo. Eu também me lembro de uma estampa que havia na cabeceira da cama de meu tio: São José com o globo nas mãos, o mundo102. Vemos, portanto, que as mais recuadas lembranças de Portinari com relação a seu tempo de infância estão ligadas à religiosidade e suas figuras representativas do bem e do mal, o diabo e os santos, numa visão quase supersticiosa da religião. 102 CALLADO, A. Retrato de Portinari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 22. 198 Flávio Damm narra uma passagem da época em que Portinari era aluno da ENBA, a respeito de um colega de aulas do pintor que possuía o costume de pronunciar insultos às figuras religiosas durante as aulas, ressaltando o quanto o artista possuía um profundo respeito pela religiosidade: Sem ser religioso, temia tudo o que fosse desconhecido. Seu pai era homem de profunda fé, e vinculado à Igreja. Na Escola de Belas Artes, quando chegou ao Rio, Portinari estudava ao lado de um colega que durante as aulas de desenho tinha o hábito de blasfemar. Uma colega de aula quis saber de Portinari porque ele saia de perto do blasfemador e ele explicou: “Ele diz tantas que um dia lhe cai alguma coisa na cabeça. E eu não quero ficar perto para levar as sobras...”103. Da mesma forma, Celso Kelly, jornalista e escritor, que havia tido uma longa amizade com Portinari, ressalta o fato do artista ter realizado pintura religiosa, mesmo que houvesse, com o tempo, se distanciado da prática religiosa: Houve, pois, em Portinari – apesar de sua alegada renúncia a Deus e de sua propalada fé socialista – um pintor religioso autêntico, de profunda unção e piedade, as quais, se não suas, tomadas foram do meio, na pureza de suas intenções. Arte religiosa, Portinari a praticou desde os primeiros anos de sua aventura artística. Foi a igreja local que o atraíra para a arte. E, desde aí, quaisquer que fossem as vicissitudes, seria uma das constantes em sua obra104. Essa aparente contradição entre e o fato de o artista ter realizado um grande número de obras sacras e sua adesão ao Partido Comunista – que em sua essência defende o ateísmo – foi por várias vezes mencionada em escritos a respeito do artista, sendo que para esse fato sempre parece ser buscada uma justificativa, pautada especialmente na infância de Portinari e seu contato com a religiosidade familiar nessa fase. Em um catálogo da obra de Portinari, organizado por Antonio Bento e publicado em inglês, essa questão também é mencionada: Nós não podemos concordar que Portinari foi incoerente ou contraditório em sua política quando ele pintou trabalhos religiosos, embora contudo ele tenha parado de professar o catolicismo e tenha em geral perdido sua crença na religião organizada. Uma parte da essência humana é seu instinto religioso, e isso é especialmente verdadeiro para um artista do calibre de Portinari. 103 DAMM, F. Um Cândido pintor Portinari. [s.l.]: Expressão e cultura: AGGS Indústrias Gráficas S/A, 1971, p. 14. 104 KELLY, C. Portinari: quarenta anos de convívio. Rio de Janeiro: GTL, [196-]. 199 Investigações arqueológicas e antropológicas mostram que depois das primeiras ferramentas, os primeiros homens logo produziram objetos associados a cerimônias religiosas. Esse homem seguiu um latente ou subjacente, ainda que inato, senso espiritual. Todos os ritos, danças e festivais, máscaras e objetos decorativos do homem primitivo tinham uma função religiosa. Eles são claramente designados a re-ligar (re-ligare) uma pessoa para o grupo para prover a transcendência, amarra emocional comum. E é exatamente esse senso que os trabalhos de Portinari exaltariam. Mesmo após ter se tornado comunista, ele frequentemente observava: “Eu gosto de pintar santos e ainda tenho meus favoritos, como Santo Antonio”105. Sua sensibilidade de artista e um senso religioso inato ao ser humano são aqui evocados como motivos para que Portinari tenha realizado obras religiosas mesmo que tenha perdido sua crença na religião formal e aderido ao comunismo. Mais uma vez, a contradição é apontada, mas não condenada. Portanto, o que se vê nos escritos a respeito de Portinari, sempre é uma busca pela justificação de determinadas atitudes do artista, como também foi a questão dele ter trabalhado, primeiramente, a serviço do governo Vargas e depois, feitos obras que demonstram de maneira explícita seu engajamento com o Partido Comunista. Acerca desse aparente paradoxo entre a obra do “homem político” e a do “pintor religioso”, Alceu Amoroso Lima propõe que a questão seja justamente vista à luz da vivência pessoal de Portinari: (...) atribuo um começo de solução do paradoxo àquela atmosfera doméstica que rodeou sua infância e particularmente sua adolescência, idade humana em que não se vive apenas essa idade entre os 12 e 18 anos, mas todas as idades, pois é na infância e, sobretudo, na adolescência, que o ser humano antevive e lança os traços marcantes de sua personalidade até a morte.106 Essa busca pela construção de uma história de vida coerente a respeito de Portinari está presente em quase todos os trabalhos escritos a seu respeito, especialmente os de cunho biográfico. Como veremos no terceiro capítulo, as contradições presentes em Portinari parecem ser apagadas, ou ao menos amenizadas, quando se escreve sobre o artista, o que sugere a busca por uma 105 BENTO, A. Portinari. Rio de Janeiro: L. Christiano Editorial, 1980, p. 116. (em inglês). 106 ARTE Sacra: Portinari. Tradução Marina Cunha Brenner; apresentação Alceu Amoroso Lima; texto Frei Bruno Palma. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1982, p. 15. 200 história de vida coesa, onde o conflito é eliminado em nome da construção de uma trajetória linear, livre de rupturas e sobressaltos, exatamente como ocorre com freqüência, quando se tenta reconstituir a trajetória de indivíduos importantes para a sociedade da qual fizeram parte. Da mesma forma, a morte era temida, assim como o diabo e os castigos de Deus e dos santos, pelo menino Candinho. Algumas de suas primeiras lembranças estão relacionadas a diversos assassinatos que ocorreram em Brodowski em seu tempo de criança, como narra em sua autobiografia: Muitos crimes houve nesse tempo. Eu devia ter uns 4 ou 5 anos e estava sentado na soleira da porta da casa de minha avó. Em frente era a casa da comadre Umbelina e do Sr. Joaquim Henrique. Estavam várias pessoas sentadas do lado de fora, entre eles o Carlos Silva. Em certo momento vi o Marcos atrás de uma árvore que existia ali perto da casa de minha avó. De detrás da árvore, atirou no grupo; num segundo só estava o Carlos Silva de dentro respondendo aos tiros do Marcos que recebeu o tiro e caiu – fui o primeiro que se acercou dele. Estava agonizante107. A morte e sua conotação sobrenatural foram fatores marcantes na infância de Portinari. O mundo rural que era a Brodowski dos primeiros anos de vida do artista convivia com crimes e suicídios que ocorriam, muitas vezes, sem que a lei se fizesse valer. Enquanto criança, Portinari havia ficado profundamente impressionado com crimes e mortes que pudera presenciar em Brodowski. Esse sentimento era tão forte a ponto do pequeno Candinho temer até mesmo que lhe imputassem a responsabilidades pelos crimes que ali ocorriam: Nas fazendas de café, havia muito crime. Trouxeram de carroça um espanhol morto a machadadas, uma no rosto dava-lhe expressão apavorante. Mataram um preto e o trouxeram para a pracinha e, à espera de não sei que formalidade, foi se decompondo. Nós íamos espiar diariamente. Não nos alimentávamos e vivíamos todos cuspindo muito. Mesmo depois de passados meses, só bastava dizer (fazia-se isso de maldade): _ E o preto, hein? Ia tudo pelos ares, briga valendo tudo. Vivíamos amedrontados. Uma mulher estava lavando roupa em um riacho na fazenda, a mataram e a penduraram numa árvore e abriram-lhe o ventre. Fiquei tão impressionado e 107 PORTINARI, C. Op. cit., p. 51. 201 apavorado com medo de me culparem... Comia muito pouco e não dormia. Quando acharam o assassino, foi grande minha alegria108. Dessa forma, como ressaltou Callado, a memória de Portinari parece ter selecionado: entre as lembranças do que foi uma infância descuidada na roça, imagens básicas e representativas da angústia de seu tempo: o Diabo, Deus, Los desastres de la guerra. Como fazemos quase todos, procurou racionalizar Diabo e Deus em Mal e Bem. A casa de Brodowski, tendo sido o lugar onde passou seus primeiros anos de vida, estava para Portinari impregnada das lembranças desse tempo, quase que invariavelmente ligadas à religião. Os depoimentos reforçam o quanto a relação de Portinari com a religiosidade presente em seu ambiente familiar foi um fator extremamente marcante em sua infância. Enquanto as lembranças dos trabalhadores e da lida no campo – também representadas em suas obras – remetem à sua experiência de vida em um ambiente externo à casa, os santos e a religião estão ligados exclusivamente ao universo da casa e à sua história de vida e à de sua família. Mesmo que não tenha continuado a ser uma pessoa religiosa quando adulto, Portinari parecia guardar um grande respeito pelas figuras e crenças religiosas. Esse propalado respeito à religião foi um dos motivos pelos quais jamais foi vista contradição entre o indivíduo que havia perdido sua crença em Deus, que foi inclusive integrante do Partido Comunista, e o pintor de obras sacras. Em trabalhos escritos a respeito de Portinari, especialmente em suas biografias, sempre são narradas passagens que buscam demonstrar o quanto a religiosidade pautava a vida do pintor, estando ela intimamente relacionada à sua formação pessoal. Mesmo que o artista tenha, aos poucos, cada vez mais se distanciado da religiosidade formal, tinha em sua mente indelevelmente marcado o 108 PORTINARI, C. Op. cit., p. 52. 202 temor, mas também a proximidade que sentia, quando criança, em relação a Deus e aos santos. Esse seu sentimento em relação às figuras religiosas sempre era manifestado em suas falas. Mesmo em seus Poemas, escritos em sua maior parte em 1958, durante viagens à Europa, Portinari manifesta sua ligação com o religioso, quando parece ligar-se ainda mais à infância. Nesse momento, quando Portinari passava pela fase mais crítica de sua doença, seus poemas parecem refletir o quanto o artista parecia voltar às suas reminiscências da infância. Como no poema Aparições: Recostado no céu adormeci Sonhei que os santos e os anjos me vieram ver Doía nos olhos a luz que suas vestes refulgia Sabiam que sofria – penavam no meu entristecer Cada um dizia o que convinha e sumia Ficou o mais velho para me fazer companhia Sugeriu uma viagem à Lua Para visitar São Jorge (...)109. O poema Deus de violência, por sua vez, demonstra a relação paradoxal entre Portinari e a crença em Deus: Estou com vida mas estive sempre à espera De viver. Não sei porque estou isolado e só Sentimos a inutilidade em existir. Se houver Deus É de violência; nos deixa apodrecer ainda caminhando É o dono de moléstias pavorosas. Alimenta As dores dos recém-nascidos, do homem, da mulher, Do velho e do cão. Há repetição de ruídos Furacões, lamentos de crianças