UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL ANTÔNIO JOSÉ MAGDALENA O DIREITO FUNDAMENTAL A PROCESSO EM TEMPO RAZOÁVEL: SATISFAÇÃO DE OBRIGAÇÕES MEDIANTE AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA FRANCA 2008 ANTÔNIO JOSÉ MAGDALENA O DIREITO FUNDAMENTAL A PROCESSO EM TEMPO RAZOÁVEL: SATISFAÇÃO DE OBRIGAÇÕES MEDIANTE AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientador: Prof. Dr. Artur Marques da Silva Filho FRANCA 2008 Magdalena, Antônio José O direito fundamental a processo em tempo razoável : satisfação de obrigações mediante ação monitória contra a Fazenda Pública / Antônio José Magdalena. –Franca : UNESP, 2008 Dissertação – Mestrado – Direito – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP. 1. Direitos fundamentais. 2. Direito processual – Ação monitória – Fazenda Pública CDD – 341.4622 ANTÔNIO JOSÉ MAGDALENA O DIREITO FUNDAMENTAL A PROCESSO EM TEMPO RAZOÁVEL: SATISFAÇÃO DE OBRIGAÇÕES MEDIANTE AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. BANCA EXAMINADORA Presidente:__________________________________________________________ Prof. Dr. Artur Marques da Silva Filho 1º Examinador:______________________________________________________ Prof. Dr. Euclides Celso Berardo 2º Examinador:______________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz Franca, _____ de _______________ de 2008. A todos aqueles que já sofreram, um dia, as agruras da tardança de uma decisão judicial de interesse. AGRADECIMENTOS À Presidência da Associação Paulista de Magistrados e à Direção da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp, que ousaram trazer à realidade, mediante celebração de oportuno convênio, o sonho de maior contato entre a pesquisa acadêmica e a prática dos operadores judiciários do Direito, em valiosa contribuição prestada pelos quadros universitários ao aprimoramento da atividade jurisdicional, garantia primeira do Estado Democrático de Direito. A meu orientador, Prof. Dr. Artur Marques da Silva Filho, cujas lições de generosidade e paciência foram estímulo constante e pedra angular na construção do presente trabalho. A meus colegas de turma, com os quais muito aprendi. Aos dedicados e competentes funcionários da Secretaria de Pós-graduação e da Biblioteca da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Unesp - Campus de Franca / SP, pelo inestimável apoio. “... quello che occupa gli studiosi è non il giudizio ma il processo. Ciò vuol dire che essi hanno studiato assai più il meccanismo che il dinamismo del processo; hanno smontato la macchina pezzo per pezzo com grandissima attenzione e ne hanno fato pregevolissime descrizioni; ma della forza, che la fa muovere, si sono curati assai poco. In termini precisi, per quanto pericolosi, si dovrebbe dire che essi hanno costruito assai più la física che la metafisica del processo. Il che corrisponde puntualmente alle direttive del positivismo giuridico, le cui benemerenze non vogliono qui certo essere contestate, ma del qual pure ormai i più avvisati riconoscono l’insufficienza.” (Francesco Carnelutti, Diritto e processo). MAGDALENA, Antônio José. O direito fundamental a processo em tempo razoável: satisfação de obrigações mediante ação monitória contra a fazenda pública. 2008. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2008. RESUMO A partir do panorama geral dos chamados direitos fundamentais, o presente trabalho busca, com particular enfoque no princípio que estabelece o direito a processo em tempo razoável, examinar a possibilidade do uso da ação monitória como instrumento eficiente de coerção jurisdicional da Fazenda Pública a mais célere adimplemento de certas obrigações, representadas em documento desprovido de força executiva. Considera, inicialmente, que a garantia de integral observância dos preceitos constitucionais correspondentes àqueles, voltados à construção de uma ordem jurídica justa, constitui razão essencial do moderno Estado Democrático de Direito, cuja concepção importa em admitir, muitas vezes, o uso de mecanismos de defesa das pessoas contra a força do próprio aparelho estatal. Analisa, nesse quadro, a importância de assegurar efetivo acesso de todos à Justiça, bem como discorre sobre o papel exercido pela jurisdição e sobre a necessidade de haver um sistema processual eficaz à concreta realização de direitos. Refere o esforço mais atual de legisladores, administradores públicos e operadores jurídicos, no Brasil, para o desenvolvimento de meios eficazes à solução de litígios, notadamente no âmbito do processo judicial, mediante inovações diversas, incluída previsão de tutelas jurisdicionais diferenciadas, entre as quais se inscreve aquela propiciada pela ação de conteúdo monitório, introduzida em data relativamente recente na legislação brasileira. Depois de insistir no caráter de instrumentalidade do sistema processual, que se deve prestar à pacificação da sociedade, com justiça, e à realização dos objetivos constitucionais, o trabalho aponta as características da ação monitória, avaliando a aptidão desta para servir à satisfação de determinados tipos de crédito, em tempo razoável. Finalmente, diante das especificidades do crédito constituído em face da Fazenda Pública, pondera quanto à viabilidade de uso do processo monitório contra entes públicos, consideradas a indisponibilidade do interesse e as várias prerrogativas processuais a eles concedidas pela lei. Palavras-chave: direitos fundamentais. razoável duração do processo. obrigações. ação monitória. Fazenda Pública. MAGDALENA, Antônio José. The fundamental right to a lawsuit within a reasonable length of time: fulfillment of obligations through admonition action against the Public Treasury. 2008. 139 f. Dissertation (Degree in Law) – Faculty of History, Law e Social Work, University São Paulo State “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2008. ABSTRACT From an analysis of the fundamental rights, especially the right to a lawsuit within a reasonable length of time, this study aims to examine the use of the admonition action as an efficient instrument to compel the Public Treasury to carry out Court orders. The work ponders that the complete observance of the constitutional rules related to essential rights constitutes the main cause of the Democratic Constitutional State, whose conception sometimes involves the use of people’s defense mechanisms against the State itself. In this sense the study analyzes the importance to assecure everyone’s access to Justice and examines the necessity of a process system that guarantees concrete rights. It also mentions the present effort of the Parliament, the Government and the jurists in Brazil to develop effective ways to solve conflicts, especially in the lawsuit ambit. This objective is achieved by several innovations as differentiated jurisdictional tutelages such as the admonition action, which has recently been introduced in the Brazilian legislation. After insisting on the instrumental aspect of the process system, which must reach social pacification and constitutional aims, the work points out the admonition action characteristics and evaluates its possibility to fulfill certain credits within a reasonable period of time. Finally the study reflects on the peculiarities of the credits opposed to the Public Treasury and ponders the viability of the admonition action use against public entities, considering their process prerogatives and the public interest. Key words: fundamental rights. reasonable duration of a lawsuit. obligations. admonition action. Public Treasury. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS....................................................................................10 CAPÍTULO 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ESTADO DE DIREITO .................13 1.1 Direitos fundamentais: origem, evolução .......................................................13 1.2 Relação entre o sistema de direitos fundamentais e o Estado de Direito....18 1.3 Garantia constitucional de acesso à ordem jurídica justa: a situação brasileira ..................................................................................................................22 1.4 A reforma do sistema judiciário no Brasil.......................................................28 CAPÍTULO 2 A GARANTIA DO PROCESSO EM TEMPO RAZOÁVEL .................34 2.1 Apontamentos históricos e difusão do princípio ...........................................34 2.2 Ordenamento jurídico brasileiro ......................................................................40 2.3 Natureza jurídica................................................................................................46 2.4 Critérios de aferição da razoabilidade do prazo.............................................48 2.5 Âmbito de incidência da garantia ....................................................................56 CAPÍTULO 3 SATISFAÇÃO DE OBRIGAÇÕES .....................................................61 3.1 A realização dos direitos substanciais............................................................61 3.2 Indispensabilidade da jurisdição .....................................................................63 3.3 Instrumentalidade e aptidão do processo judicial .........................................65 3.4 Tutelas diferenciadas........................................................................................68 CAPÍTULO 4 AÇÃO DE CONTEÚDO MONITÓRIO ................................................71 4.1 Via injuncional e razoável duração do processo............................................71 42. Antecedentes.....................................................................................................74 4.3 Características essenciais................................................................................76 4.4 Requisitos da ação............................................................................................83 4.5 Embargos ao mandado monitório ...................................................................91 4.6 Julgamento dos embargos e fase executiva ..................................................99 CAPÍTULO 5 PROCESSO MONITÓRIO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA .........105 5.1 A indisponibilidade do interesse público......................................................105 5.2 Revelia, sentença e reexame necessário ......................................................111 5.3 Particularidades da execução contra o poder público ................................117 5.4 A Súmula 339 do STJ e a Lei nº. 11.232/05 ...................................................121 CONCLUSÕES .......................................................................................................129 REFERÊNCIAS.......................................................................................................132 CONSIDERAÇÕES INICIAIS De há muito se reclama, no país, contra o tempo despendido para a solução de lides no âmbito do Poder Judiciário. Em qualquer sistema legal, no entanto, o ritmo de funcionamento do aparelho de Justiça, definido especialmente pela busca de segurança jurídica das decisões, mostrou-se sempre ao longo das épocas - é possível afirmar - em descompasso com o sentimento de urgência ínsito à condição daqueles que se sentiram de alguma forma lesados em seus direitos e ansiaram por reparação eficiente e rápida. Expressivo aumento das ações judiciais havido a partir da promulgação da Carta Constitucional Brasileira de 1988, acentuando-se na medida em que cresceram as demandas de cunho social e a consciência dos indivíduos a respeito de seus direitos, notadamente aqueles representativos de valores essenciais, despertou preocupação dos operadores do Direito quanto à flagrante incapacidade do Poder Judiciário para efetivamente cumprir, em tempo útil, seu papel de aplicador da lei aos casos que lhe são levados a exame. Submetidas a colossal volume de processos, as estruturas judiciárias existentes, assim como os mecanismos processuais conhecidos, revelaram-se frágeis e insuficientes para atender, com a celeridade que o dinamismo da vida atual reclama, as exigências de vazão aos pleitos ingressados no sistema. Em poucos anos a situação agravou-se sobremaneira, a ponto de se converter em verdadeira crise, cujo reconhecimento deu causa a debates acalorados e trouxe propostas muitas de modernização do funcionamento do Judiciário, com a finalidade de torná-lo apto a solver mais rapidamente as lides. O movimento desaguou na promulgação da assim chamada Reforma do Poder Judiciário, representada pela Emenda nº. 45 à Constituição Federal. Nela, dentre outras disposições orientadas a suprimir entraves ao mais ágil funcionamento da Justiça, estabeleceu-se com natureza de fundamental, de modo explícito, o direito à razoável duração do processo. A explicitação desse direito e a categoria a que foi alçado traduzem consciência da importância da tempestiva atuação do Estado, por intermédio do Poder competente, para assegurar o cumprimento da lei e garantir reparação aos lesados quando infringido o ordenamento jurídico. Com efeito, da eficiência dos mecanismos estatais de distribuição de Justiça dependem diretamente a paz social, a ordem pública, a credibilidade do sistema legal. Nesse sentido, dela depende a própria sobrevivência do Estado de Direito. Assumir como fundamental, para atendimento às necessidades do homem, o direito à razoável duração do processo significa, portanto, adotar instrumento com que, para além de se garantir acesso de todos a uma ordem jurídica justa, assegura- se a estabilidade do Estado, de modo contrário posta sob risco pela disseminada descrença na capacidade estatal de prover Justiça. Quando os direitos individuais e sociais são respeitados, mercê de eficiente atuação do sistema legal, adequadamente aparelhado para corrigir, de modo pronto, eventuais violações, bem como para garantir compulsoriamente, se necessário, a satisfação de obrigações, consolida-se a confiança de todos nele. Sob tal enfoque, busca-se aqui perscrutar dimensões do citado direito e sentido de caminho processual visto como potencialmente apto a ensejar, de maneira simples e célere, atendimento àqueles que, titulares de direito ao recebimento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de bem móvel determinado, constituído em base documental - até mesmo contra o poder público - desprovida de executividade, se deparam com recusa dos devedores em cumprir a obrigação e, por isso, são lançados à necessidade das vias judiciais, ali sofrendo, caso eleitos ritos ordinários, as agruras da lentidão própria desses procedimentos. Fala-se, então, do processo monitório, modernamente adotado pela legislação brasileira, cuja estrutura procedimental oferece ao credor a oportunidade de constituir título judicial em mais breve ou em até brevíssimo tempo, a depender da posição assumida pelo devedor. Assim se presta a via monitória, de um só golpe, com obediência ao princípio constitucional que prevê ao processo duração não mais do que razoável, para servir à realização da garantia fundamental e para atender o direito material do credor. Muito se debate sobre a possibilidade da utilização desse tipo de processo quando é devedora a Fazenda Pública, em cujo benefício multiplicam-se, a pretexto de resguardar o erário, prerrogativas legais as mais variadas, afinal constituídas verdadeiro embaraço à realização da Justiça em tempo razoável. No presente trabalho, estabelecidas as relações entre direitos fundamentais e processo judicial, intenta-se investigar a possibilidade de se admitir, com as vantagens daí decorrentes, mediante interpretação de normas processuais à luz das razões que inspiraram a Reforma do Poder Judiciário, o uso do processo monitório - entre outros meios de tutela jurisdicional diferenciada - para se obter satisfação mais célere de certas obrigações das quais seja devedor o poder público. Este há de ser visto, de resto, em uma perspectiva ideal, como o maior interessado em facilitar a distribuição da Justiça e em contribuir para a solidificação do Estado de Direito. CAPÍTULO 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ESTADO DE DIREITO 1.1 Direitos fundamentais: origem, evolução Nos primórdios da vida humana, a sobrevivência do indivíduo em meio a condições que lhe eram naturalmente adversas logo impôs, com a espontânea formação dos grupamentos sociais, irresistível adesão a determinados padrões de conduta coletiva, mediante renúncia a comportamentos marcados pela individualidade. Acentuou-se a expressão do fenômeno à medida que cresciam as expectativas do homem no tocante à obtenção de variados bens de vida, como a segurança, e com elas aumentavam, precisamente para melhor atendê-las, as exigências de divisão de tarefas, bem como de adequada coordenação das atividades dos componentes de cada grupo, resultando no surgimento de regras voltadas a seu controle. Nasceu, assim, o embrião das sociedades juridicamente organizadas, cujo evoluir, ligando-se ao fato de domínio de grupos sobre territórios determinados, deu origem, mais tarde, às formas incipientes de Estado. A coerção exercida sobre as pessoas, para levá-las a observar normas de conduta estabelecidas pela coletividade, tornou cada vez mais restritos os limites dentro dos quais podia expressar-se, livre de sanções, a vontade individual. Hipertrofia do Estado, ao longo dos séculos, e opressão instalada com os regimes absolutistas de governo passaram, depois, a literalmente sufocar as manifestações de individualidade dos integrantes das sociedades. O homem, destinatário original das vantagens advindas da organizada convivência em grupo, foi posto na situação de mero serviente das estruturas originalmente criadas para atendê-lo em suas necessidades de vida. Parece natural, diante disso, que reagisse na defesa de valores intrínsecos à sua condição humana. Tempos imemoriais certamente viram as primeiras manifestações do homem em seu anseio por liberdade e preservação de esfera mínima de autonomia pessoal diante de costumes e hábitos estabelecidos pela convivência coletiva e pela necessidade de organização social. Todavia, quando mais pesaram as estruturas do Estado sobre os indivíduos, tolhendo-lhes o acesso a bens essenciais de vida em vez de propiciá-lo, notadamente nos regimes ditos absolutistas, é que a reação mais fortemente se fez sentir. Surgiram as chamadas declarações de direitos, disposições declaratórias das principais liberdades humanas, cuja origem histórica a doutrina costuma situar na Inglaterra, apontando a Magna Carta de 1215 como a primeira dessas manifestações1, cujos antecedentes foram, já na Idade Média, os forais e as cartas de franquia, contendo enumeração de direitos superiores ao próprio poder concedente e relacionados ao homem, pela sua simples condição de ser humano ou por pertencer a determinadas categorias sociais2. A seguir vieram a Petição de Direitos de 1629 e a Lei de Habeas Corpus de 1679, esta última destinada a garantir ao indivíduo a liberdade e a segurança pessoais, bem como a propriedade privada, protegendo-o contra prisões arbitrárias3. Em todas essas manifestações desponta a afirmação de direitos individuais, a serem exercidos contra o soberano ou contra o Estado, característica que se tornou marcante na declaração do Estado da Virgínia, votada em 12 de junho de 1776, durante o processo da independência norte-americana, e adquiriu mais forte expressão na conhecida Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, editada em 1789 pela Revolução Francesa. Esta exerceu grande influência nos sistemas constitucionais do ocidente, a partir do fato de haver condicionado à proteção dos direitos individuais a existência mesma da Constituição4. Na verdade, estabeleceu-se relação indissociável entre texto constitucional e direitos fundamentais, na medida da progressiva explicitação destes nos textos das 1 Observa FERREIRA, Pinto Curso de direito constitucional. 10. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 99 (grifos do autor): “Jellinek, na sua obra A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enuncia a filiação dessas declarações à reforma religiosa de Lutero, atribuindo sua paternidade à Alemanha. Entretanto, é mais correto verificar a sua origem na Inglaterra, pois, na verdade, a Magna Carta de 1215, como o seu próprio nome indica, Magna Charta Libertatum, foi a primeira declaração histórica dos direitos, embora bastante incompleta.”. 2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 27. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 282. 3 FERREIRA, op. cit., p. 99. 4 FERREIRA FILHO, loc. cit. Cartas promulgadas desde então. As Constituições passaram a garantir ao indivíduo uma esfera autônoma de ação, livre da interferência do Estado. Tratou-se de assegurar as assim chamadas liberdades públicas, direitos fundamentais que a doutrina classifica como de primeira geração. São direitos civis e políticos, como o direito à vida e à inviolabilidade de domicílio, delimitadores do campo de interferência legítima do Estado nas relações individuais, obrigando-o a um comportamento de abstenção. Sob inspiração do momento histórico correspondente à Revolução Industrial, no século XIX nasceu a consciência de outros direitos, ligados à proteção da dignidade humana. As más condições de trabalho e a situação de penúria de grande parte da população fizeram eclodir, na Inglaterra e na França, reivindicações trabalhistas e de assistência social. Cuida-se agora dos direitos sociais, cujo objetivo é o de conferir ao ser humano condições materiais mínimas para uma vida digna. Ligam-se à noção de igualdade e se ampliam para garantir acesso a bens econômicos e culturais, constituindo os direitos fundamentais de segunda geração. O Estado, anteriormente visto como inimigo, em oposição ao anseio de liberdades, passa a ter sua presença convocada e a atuar no sentido de promover atividades destinadas à superação das carências individuais e sociais5. No início do século XX evidencia-se a consolidação dos direitos sociais, consoante se pode extrair dos textos da Constituição de Weimar, de 1919, e do Tratado de Versalhes, do mesmo ano6. 5 A propósito, ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÜNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 87-88 consideram (destaque dos autores): “Se os direitos fundamentais de primeira geração tinham como preocupação a liberdade contra o arbítrio estatal, os de segunda geração partem de um patamar mais evoluído: o homem, liberto do jugo do Poder Público, reclama agora uma nova forma de proteção de sua dignidade, como seja, a satisfação das necessidades mínimas para que se tenha dignidade e sentido na vida humana. A posição inicial (Estado apenas como policial das liberdades negativas) recebe novo enfoque. Essa nova forma de alforria coloca o Estado em uma posição diametralmente oposta àquela em que foi posicionado com relação aos direitos fundamentais de primeira geração. Se o objetivo dos direitos aqui estudados é o de dotar o ser humano das condições materiais minimamente necessárias ao exercício de uma vida digna, o Estado, em vez de se abster, deve fazer-se presente, mediante prestações que venham a imunizar o ser humano de injunções dessas necessidades mínimas que pudessem tolher a dignidade de sua vida. Por isso, os direitos fundamentais de segunda geração são aqueles que exigem uma atividade prestacional do Estado, no sentido de buscar a superação das carências individuais e sociais.”. 6 Cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2004. As mudanças sociais posteriores, que deram origem ao conceito de sociedade de massa, trouxeram novas preocupações e novas necessidades a serem atendidas, ligadas à essência do ser humano e aos destinos da humanidade. O ser humano passou a ser visto em sua dimensão social ou, mais precisamente, como integrante de uma determinada coletividade. Direito à paz mundial, à preservação do meio ambiente, ao respeito ao patrimônio comum da humanidade, ao desenvolvimento econômico dos países7, à comunicação8, à defesa dos consumidores9, e outros, de caráter acentuadamente solidário, expressam consciência da humanidade quanto à conquista de novas fronteiras de proteção. Voltam-se à defesa do homem contra todas as formas de dominação ensejadas pelo desenvolvimento científico-tecnológico. Denominados pela doutrina como de terceira geração, são direitos fundamentais vistos por alguns quais simples aspirações, sem força jurídica vinculante10. Nos dias atuais fala-se em direitos mais propriamente designados humanos, de quarta geração, que Pedro Lenza, citando Norberto Bobbio, diz11 serem representados pelas novas experiências decorrentes dos avanços das pesquisas científicas no campo de engenharia genética, que permitirão manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. Segundo evolui o homem em seu processo civilizatório e alteram-se as circunstâncias de convivência em sociedade, modificam-se e crescem potencialmente as ameaças de agressão a valores fundamentais do ser humano, hauridos de sua própria condição, plasmados no reconhecimento da existência de direitos naturais intangíveis, e decorrentes dos dogmas cristãos, entre os quais se situam a crença na igualdade fundamental dos homens todos e na liberdade fundamental de fazer o bem, ou de não o fazer. Assim discorrendo sobre as causas do surgimento das Declarações de Direitos e sobre aquilo que designa como base filosófico-religiosa do fenômeno, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, depois de lembrar doutrina de Santo Tomás de Aquino, anota que a dimensão religiosa do direito 7 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 288. 8 Cf. BONAVIDES, Paulo. apud ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, op. cit., p. 88. 9 LENZA, 2004, op. cit., p. 409. 10 FERREIRA FILHO, loc. cit. 11 LENZA, loc. cit. natural cedeu lugar ao primado da razão, acolhido com ênfase no movimento iluminista12. Na mesma medida em que se alteram e aumentam os riscos a esses valores essenciais, amplia-se a consciência do homem sobre sua qualidade de titular de direitos imanentes à humanidade e alarga-se o espectro daqueles reconhecidos como fundamentais à afirmação do ser no mundo, em dignidade plena. Refletida na generalidade das legislações nacionais, a partir notadamente do movimento constitucionalista, que adotou os princípios inscritos nas citadas Declarações de Direitos, essa realidade tem repercussão claramente identificável nas Constituições brasileiras, desde o século XIX. Uma a uma, gradativamente ampliaram o rol de direitos fundamentais reconhecidos de forma explícita, dotando- os de força jurídica vinculante. Em especial, a Carta de 1988 contém, ao longo de seu texto, extensa lista de direitos e garantias voltados à proteção de valores essenciais da pessoa humana. Esses direitos fundamentais encontram-se ali classificados em cinco espécies13, correspondentes a cinco capítulos do Título II, contudo não exaurientes da enunciação daqueles direitos, porquanto são encontráveis também em outras disposições esparsas no texto. Assim, têm-se direitos e garantias individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade, direitos políticos e, por último, direitos relacionados à atividade político-partidária. A vigente Constituição brasileira ostenta, sob o prisma dos direitos fundamentais, caráter declaradamente protetivo, ajustado aos mais recentes avanços na afirmação dos valores humanos. Cabe lembrar que mesmo direitos fundamentais ditos de terceira geração tiveram acolhida no texto, como é o caso do 12 Disserta o referido doutrinador: “A igualdade fundamental de natureza entre todos os homens, criados à imagem e semelhança de Deus, a liberdade fundamental de fazer o bem, ou de não o fazer, decorrem dos mais remotos ensinamentos bíblicos. Dessa inspiração religiosa, ainda que por outros influenciada, é que deflui a lição de Sto. Tomás de Aquino sobre o direito natural. Seria este aquela participação na lei eterna que o homem alcança, considerando o seu íntimo: a vontade de Deus, o criador, desvendada pela razão da criatura, por sua inclinação própria, na própria criação. Essa base religiosa do Direito natural foi substituída sem modificação profunda do edifício em sua exterioridade pela obra dos racionalistas do século XVII, Grócio e outros. Para estes o fundamento do Direito natural não seria a vontade de Deus mas a razão, medida última do certo e do errado, do bom e do mau, do verdadeiro e do falso. Esta versão racionalista do Direito natural, inserida no Iluminismo, é que inspira as primeiras declarações”. FERREIRA FILHO, op. cit., p. 283-284. 13 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 61. direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com explicitação no art. 225, por seu caput e extensas disposições ao longo de parágrafos e incisos. 1.2 Relação entre o sistema de direitos fundamentais e o Estado de Direito Consoante visto, no panorama histórico é indissolúvel a ligação entre as Declarações de Direitos e os movimentos de estruturação do Estado em bases constitucionais. Desde a Revolução Francesa, o regime constitucional vem sendo associado à garantia de direitos fundamentais14. Os abusos do absolutismo ao longo dos tempos geraram, como causa próxima, o surgimento das referidas Declarações, cartas voltadas à exaltação das liberdades individuais, cuja garantia efetiva foi gradualmente obtida mediante sucessivas conquistas de imposição de limites ao poder estatal, processo que terminou coroado com o advento do constitucionalismo. As Constituições, cujo conceito nasce, segundo Pinto Ferreira15, da definição dada por Aristóteles - ordem da vida em comum naturalmente existente entre os homens de uma determinada cidade ou de um território -, são conjunto de normas, usualmente contidas em documento escrito, que, refletindo a organização das forças sociais atuantes sobre a organização dos Estados, estabelecem, de modo fundamental, os princípios sobre os quais se assenta o governo e regulam a divisão de poderes, com fixação de limites das relações entre governantes e governados. Pelo seu caráter de lei fundamental anterior e superior a todas as outras, foram compreendidas desde logo - assim, pelos revolucionários de 1789 -, como instrumento adequado de proteção às liberdades individuais, representativas dos direitos fundamentais do homem naquele passo da história. A grande bandeira do liberalismo, qual seja, a defesa da garantia dos direitos do homem como razão de ser do Estado, impunha o princípio da limitação ao poder deste, a fim de ser evitada interferência indevida na esfera de liberdade individual. 14 “Não é ocioso recordar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. 16) condicionou à proteção dos direitos individuais a própria existência da Constituição.” (destaque do autor). FERREIRA FILHO, op. cit., p. 282. 15 FERREIRA, op. cit., p. 8. Manoel Gonçalves Ferreira Filho16 ensina que tal princípio se fez presente na origem da idéia de Constituição, quando ainda não firmado o princípio democrático, acrescentando que a democracia moderna surge como democracia liberal, dada a relação entre os dois princípios, posta em evidência com a consagração do segundo. Governo pelo povo e imposição de limites ao poder público constituem postulados unidos de forma indissociável. O fenômeno da estruturação do Estado em bases constitucionais leva, por vezes, a uma compreensão do conceito de Estado de Direito em sentido apenas formal, como mera sujeição do Estado a regras de separação entre os poderes e de condutas a serem por ele observadas no tocante aos cidadãos. Seria, assim, pouco relevante a matéria intrínseca a esse regramento17. Diversamente, no entanto, o conceito de Estado de Direito, sem prescindir dessa dimensão formal, estabelece-se instruído de modo substancial pelos limites fixados como proteção aos direitos fundamentais e pelos princípios de igualdade, de legalidade e de proteção judiciária. Nessa linha, o Estado de Direito passa a ser entendido como Estado de direitos fundamentais. Vista como princípio inerente à democracia, a igualdade teve buscado seu reconhecimento nas manifestações de resistência aos privilégios da monarquia - regime associado a excessos do absolutismo - e da nobreza, consagrando-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Atualmente é entendida indispensável ao conceito material de Estado de Direito, uma vez que este último desenvolveu-se, ao longo da história, como estrutura de proteção a valores humanos essenciais. Vedam-se as diferenciações arbitrárias, as discriminações destituídas de senso, já que o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, constitui exigência do próprio conceito de Justiça, sem que se esqueça que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais18. 16 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 273. 17 Segundo ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental à razoável duração do processo. Brasília, DF: Brasília Jurídica, 2006. p. 55: “Uma tal interpretação pressuporia verdadeira a expressão kelseniana ‘todo Estado é um Estado de direito’” (destaque do autor). 18 MORAES, 2004, op. cit., p. 66. A garantia atua notadamente pela observância de outro princípio, qual seja, o da legalidade, significando que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Para obstar o arbítrio, somente a lei, expressão da vontade geral votada no Parlamento, pode obrigar cada indivíduo, submetendo igualmente a todos. Além da garantia individual, o princípio da legalidade igualmente propicia garantia institucional de estabilidade das relações jurídicas, porquanto as leis significam, de um modo geral, anteparos a modificações muito freqüentes na base jurídica em que se assentam as relações sociais19. Pouco ou nada poderia a lei, entretanto, não fosse prevista uma instância de garantia da sua concreta atuação. Assim, faz-se presente com destacada importância dentro da arquitetura do Estado a jurisdição, instância incumbida de assegurar o respeito às leis e a prevalência do justo20. O primado do direito e o obséquio ao ordenamento jurídico supõem controle judicial, que se legitima, no Estado de Direito, a partir do reconhecimento do fato de ser este o dispensador de justiça aos cidadãos. Realiza-se tal função mediante direta intervenção do poder público nas relações interpessoais, quando a tanto provocado, para solução de conflitos os mais diversos, surgidos de entrechoques de interesses que a convivência em sociedade naturalmente provoca. Em conformidade com procedimentos orientados a garantir observância de direitos subjetivos e a repor o lesado, quanto possível, em sua situação anterior à lesão, o Estado diretamente intervém, com força coercitiva que é o sucedâneo da auto-tutela. Para alcançar aquela finalidade, por vezes há de compelir o próprio poder público, representado por entes e agentes públicos, a se manter contido nos limites do regramento jurídico que a ele mesmo dá sustentação. Com efeito, em sua atuação no plano interno o Estado pode eventualmente lesar, de forma injurídica, direitos assegurados às pessoas em geral. Trata-se, aqui, de assegurar a submissão 19 ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, op. cit., p. 94. 20 O princípio da proteção judiciária, também chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, constitui em verdade a principal garantia dos direitos subjetivos. Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, com remissão a WATANABE, Kazuo e GRINOVER. de entes e agentes estatais ao império da lei, que a tudo e a todos vincula no Estado de Direito. Despontam, desenhados nesse quadro, dois princípios fundamentais complementares, cuja observância qualifica o Estado de Direito: o de acesso à jurisdição, para invocar proteção estatal contra lesões ou ameaças a direitos, e o de garantia do devido processo legal. A possibilidade de o indivíduo levar ao Judiciário pedido de exame e solução de lides em que se vir envolvido, bem como, a par disso, sua certeza de não ser privado de bens nem ter restringida sua liberdade senão mediante procedimentos preordenados a tanto, nos quais assegurada ampla defesa, constituem esteios essenciais na estruturação jurídica dos regimes erigidos sobre a concepção de respeito aos direitos fundamentais do homem21. A indispensabilidade da jurisdição é, mesmo, princípio incrustado na idéia de Estado de Direito, porquanto a intervenção deste para a proteção jurídica aos indivíduos, segundo disposições do ordenamento legal, não prescinde da via judicial, considerada o mais adequado meio de conferir concretude à proposta de um sistema voltado à garantia de direitos fundamentais. Desse modo, o assento do princípio de tutela judicial dos direitos estaria posto não propriamente em isolado dispositivo constitucional, mas sim na cláusula geral do Estado de Direito, segundo considera, v.g., relativamente à Constituição alemã, a doutrina local22. Cabe lembrar que, de par com a direta interveniência nas situações de agressão a direitos, confia-se à jurisdição a salvaguarda mesma do ordenamento jurídico, em sua organicidade e consistência, precipuamente mediante controle de constitucionalidade das leis. Tal atribuição evidencia, de um lado, o relevo conferido aos direitos fundamentais, de regra enunciados de forma explícita nos textos das 21 V. ARRUDA, op. cit., p. 58-59. Este autor considera, com citação de ANDRADE, J.C. Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998, p. 338, e CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 459 (destaque do autor): “Em realidade, de nada adiantaria a previsão e existência do mais completo catálogo de direitos, se não houvesse possibilidade de lhes dar efetividade. Para tanto, é determinante a via judicial de proteção dos direitos fundamentais, sendo o recurso aos tribunais o ‘meio de defesa por excelência’ desses direitos. A doutrina moderna reconhece nesta garantia um dos pilares ou elemento essencial de proteção dos direitos fundamentais, tanto no âmbito individual como no plano coletivo.”. 22 Ibid. Constituições, a cuja luz há de ser interpretada toda a legislação; de outro, a destacada importância da atividade jurisdicional, porquanto dirigida, nisso, à defesa da própria estrutura objetiva do Estado de Direito. O princípio da prevalência do Estado de Direito lastreia o dever estatal de conferir proteção jurídica. Pode-se mesmo inferir que tanto mais fortemente estará caracterizado aquele, quanto melhor garantir contra ilegalidades ou abusos cometidos pelo próprio poder público, lesivos ao cidadão. A proteção se dá originariamente pela atividade legislativa, mas se concretiza na jurisdição, vista como proteção jurídica em sentido estrito. A jurisdição é, por excelência, a atividade estatal que garante o respeito às leis e o império da justiça, pois lhe cabe aplicar concretamente o direito. 1.3 Garantia constitucional de acesso à ordem jurídica justa: a situação brasileira Quem suportou agressão a valor integrante de seu pessoal patrimônio jurídico, em resultado de injusto ato alheio, e busca o socorro da intervenção do Estado-juiz tende a interpretar o processo judicial e os mecanismos processuais como verdadeiro embaraço à obtenção de justiça, e não como meio de realização efetiva de direitos materiais. Isso ocorre porque se embebe de ânsia reparatória o ânimo daquele que foi injustamente lesado. O processo é, assim, freqüentemente visto pelo destinatário da prestação jurisdicional qual mero conjunto de formas destinadas a compor aquilo que se poderia denominar de liturgia judiciária, em vez de instrumento apropriado para garantir, em caso de lesão ou ameaça a direito, efetividade ao antigo brocardo segundo o qual dar a cada um o que é seu constitui um dos princípios da ordem jurídica justa. Ainda que distorcida pela lente do interesse pessoal imediato, tal visão revela a tensão imanente à conjuntura nascida do encontro entre a compreensível indignação normalmente gerada pelo ato injusto, no espírito do lesado, e a necessidade que este tem de valer-se, no Estado de Direito, do aparelho judiciário para alcançar o restabelecimento da integridade de seus direitos. Contido pelo sistema legal em seu natural impulso de fazer justiça pelo desforço próprio e imediato, em raras situações admitido, aquele que injustamente suportou agravo espera possa o Estado efetivamente fazê-la, quanto possível completa, em prazo não mais que razoável. Liebman lecionava que o poder de agir em Juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica [...] como atributo imediato da personalidade e pertencem, por isso, à categoria dos denominados direitos cívicos.23 Referida tensão, conquanto presente onde quer que haja povos juridicamente organizados e mesmo nas mais rudimentares formas de estrutura social, nas quais uma determinada instância recebe a incumbência de dirimir conflitos entre os indivíduos, manifesta-se de modo mais nítido e forte nas organizações sociais em adiantado grau de civilização, porque nelas muito se espera do Estado, em termos de atuação eficiente, no papel de dispenseiro de justiça, mesmo se possa exatamente nelas estimar poucas as violações da ordem jurídica. Também se manifesta a tensão, em aparente paradoxo, naquelas organizações em que o ainda incipiente desenvolvimento do hábito de utilização das formas refinadas de convivência social harmônica provoca ocorrência de alto número de conflitos interpessoais, a exigir constantemente intervenção estatal por intermédio do Poder Judiciário para dirimi-los, em prol da ordem justa. No primeiro caso, o acirramento da tensão dá-se em conseqüência da maior expectativa que se guarda quanto à pronta e eficaz atuação do Estado; no segundo caso, por força da crescente indignação de todo o corpo social e das pessoas em particular, diante das reiteradas violações de direitos, às vezes praticadas pelo próprio Estado. Situação sui generis vive nosso país, relativamente a essas questões, na atual quadra. Partindo de um pouco sofisticado sistema jurídico regulador das atividades estatais e das relações entre pessoas, bem como de uma situação de generalizada indiferença dos destinatários das leis com o reiterado desrespeito a elas, transitou para um mais alto patamar de sofisticação jurídica. Passou, em 23 apud SILVA, J. A., 2006. p. 431. poucos anos, na vigência da presente ordem constitucional, à adoção de normas legais de conteúdo juridicamente refinado. No texto da Constituição de 1988, vários dispositivos buscaram dar garantia de observância a direitos fundamentais da pessoa humana. Enquanto isso, a legislação infraconstitucional estabeleceu regras de atendimento aos princípios que devem nortear a atuação dos agentes do Estado, à preservação de atributos da cidadania, ao controle das atividades financeiras, à proteção do meio-ambiente, do consumidor, das pessoas portadoras de necessidades especiais, do idoso, das minorias economicamente desfavorecidas, dos adolescentes e crianças, da produção intelectual e artística. Chegou, paralelamente, a uma situação em que a consciência de titularidade de direitos - disseminada, entre outros fatores, pela facilidade de informação advinda com o incremento de uso dos meios de comunicação - estimula as pessoas, ainda desatentas às vantagens da auto-composição e às formas alternativas de solução de conflitos, a litigarem judicialmente umas contra as outras por quase tudo, na expectativa de que o Poder Judiciário diga concretamente o direito aplicável até mesmo a corriqueiras questões do cotidiano. O panorama assim desenhado a partir notadamente da promulgação da Carta Constitucional de 1988, como dito, levou a uma verdadeira explosão do número das demandas judiciais, com intensidade tal que literalmente soterrou sob avalanche incontida de ações a capacidade de atendimento dos órgãos judiciários24, lançando- os dentro de crise sem precedentes, para cuja solução buscam-se de modo frenético idéias e meios. Escancara-se de público a magnitude do problema e suas proporções mostram-se suscetíveis de serem ampliadas ainda mais, quando se constata que, a despeito das facilidades nos últimos tempos criadas para acesso à Justiça, largos contingentes da população brasileira permanecem juridicamente 24 Em março de 2007, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, onde compareceu para firmar termos de cooperação destinados à criação de câmara de mediação e conciliação extrajudicial, bem como ao desenvolvimento de programas de capacitação de detentos para sua reinserção social, a então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie, referiu a existência de 62 milhões de processos em curso no país, aduzindo que tal número, traduzido em média de 4.400 processos a serem decididos por magistrado, significa realmente “uma marca impossível.” BRANDT, Ricardo. Súmula vinculante começará por tema tributário. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 mar. 2007. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2007. desatendidos, enquanto grande número de ações judiciais em curso tem como parte, repetidamente, os mesmos litigantes. Significa dizer, em relação de proporcionalidade ao contingente populacional, que poucos litigam muito, enquanto extensas parcelas da sociedade nada demandam em Juízo25. Destarte, se o aparato judiciário revela-se incapaz de, com adequada qualidade de trabalho, dar vazão, em tempo razoável, à mole de processos que hoje o desafia, imagina-se qual será a dimensão do problema no caso de virem bater às suas portas aqueles muitos que se mantêm, por ora, alheios à possibilidade de solução de conflitos na via judicial. Preocupam-se os operadores do Direito, os legisladores e, por suas parcelas mais informadas, a sociedade como um todo - esta, principalmente porque tangida a tanto pelo medo que lhe inspira a criminalidade crescente em número de ocorrências e crueldade de seus agentes, a gerar reclamos constantes de maior eficiência dos mecanismos de segurança pública, neles incluída a atuação do Poder Judiciário - com as pouco animadoras perspectivas no tocante ao quadro, pois, mantida a tendência inercial, prevê-se esteja ele mais e mais agravado em tempo breve, caso não sejam tomadas de logo providências eficazes para reverter o risco de colapso iminente. Já se ouvem vozes defendendo a re-interpretação do princípio constitucional de acesso ao Judiciário, para aplicá-lo mediante adoção de critérios de filtragem do recebimento de novas demandas judiciais26, aptos para dissuadir ab ovo a propositura de ações temerárias e sancionar os litigantes de má-fé. Diz-se mesmo, não sem alguma pitada de galhofa, que se falou muito até aqui em facilitar o acesso 25 Segundo Pierpaolo Bottini - então titular da Secretaria da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça -, no Brasil que clama por justiça ágil e desburocratizada a relação é de um processo para cada cinco habitantes, dando a falsa impressão de amplo acesso ao Judiciário, “ [...] mas o que acontece é que poucas pessoas, ou poucas instituições, utilizam excessivamente o Judiciário. A grande parte da população efetivamente está fora, não tem acesso aos serviços judiciais.” MACEDO, Fausto. Poucos têm acesso à Justiça, diz especialista. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 fev. 2007. Disponível em: Acesso em: 21 fev. 2007. 26 Nesse sentido manifestou-se Joaquim Falcão, membro do Conselho Nacional de Justiça: “O Judiciário é um sistema em que há mais demanda do que oferta, ou seja, entram mais conflitos do que saem sentenças. A lentidão é exatamente o excesso de demanda diante da pouca oferta. A demanda se perde no sistema, demora muito e não sai em um tempo de pacificação social ou de pacificação econômica. Então, [...] você tem que pensar como atuar no lado da demanda e como atuar no lado da oferta. [...] por mais eficiente que seja a Justiça, a demanda vai crescer sempre muito mais. A reforma precisa frear o aumento da demanda.” TEIXEIRA, Fernando. Reforma será focada na demanda. Valor Online, São Paulo, 6 fev. 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 fev. 2007. das pessoas ao Poder Judiciário, enquanto hoje, diversamente, cumpre falar em estabelecer facilidades para aqueles que já ingressaram em Juízo poderem dali sair com seu pleito resolvido. A crise instalada, a partir da incapacidade de os órgãos judiciários darem pronta resposta aos pedidos de solução de conflitos, gera ambiente propício a nele medrarem intentos de má-fé de quantos não se pejam de usar as vias judiciais e o processo para, sabendo-se devedores, protelar ao máximo, mercê da lentidão dos ritos procedimentais e da demora das decisões, o momento em que finalmente terão de satisfazer os credores. Nesse quadro, cabe reconhecer, o acesso ao Judiciário transmuda-se em mecanismo de injustiça, verdadeiro embaraço à realização de direitos, privilegiando quem deve e desonestamente age, valendo-se dos recursos estatais, com a finalidade de frustrar o tempestivo adimplemento das obrigações. Ao fim e ao cabo, defrauda-se com isso no ânimo do credor a crença, que de outro modo se desejaria consolidada, na eficiência do Estado de Direito para prover ordem jurídica justa. Por desvio no uso do sistema, atinge-se resultado diametralmente oposto àquele pretendido pela garantia inscrita na carta constitucional. Dentre os que utilizam as vias judiciais e a lentidão dos ritos processuais para, de forma patológica, tomar a existência do processo instaurado como indevido escudo contra a legítima pretensão do titular de direito, desponta - é de pasmar - o poder público, representado pelas pessoas jurídicas de direito público interno, pelas autarquias e pelos agentes públicos nessa condição. Estima-se que entre setenta e oitenta por cento dos processos em curso nos tribunais superiores têm como parte o poder público, na condição de autor, réu ou interveniente. Esse número, mesmo isoladamente considerado, permite vislumbrar a real medida da contribuição malsã dos entes públicos ao complexo de fatores que conspiram contra maior eficiência do Judiciário e geram a crise que atinge, em última instância, o próprio Estado. Sob o falso argumento de proteção ao erário - não bastassem os privilégios outorgados pela legislação processual ao poder público, quando lhe confere prazos em dobro ou quádruplo e, entre outras benesses, quando impõe, na generalidade dos casos que envolvem interesse da fazenda pública, o necessário reexame das decisões de primeiro grau a esta desfavoráveis -, eternizam-se, mercê da utilização abusiva de recursos e meios processuais vários, as demandas judiciais em que intervém diretamente o Estado. Tendências jurisprudenciais claras e consolidadas interpretações da lei desfavoráveis às teses estatais com freqüência são despudoradamente postas em oblívio pelos representantes do poder público, no afã de pleitear o sabidamente indevido e prolongar ao máximo o tempo de satisfação do direito da parte contrária, a pretexto de assim proteger o tesouro27. Parece pouco importar, em tal prática, que a estratégia signifique acréscimos ao valor a ser futuramente despendido e, em especial, traduza rematada investida do Estado contra sua própria credibilidade de garante da ordem jurídica justa. Sendo essa a realidade vigente, não surpreende que, a despeito do consenso existente sobre a insuficiência de meios disponíveis para dar vazão à massa descomunal de processos, relute o poder público em conferir mais recursos ao Judiciário, cuja inoperância ou baixa eficiência, se não desejada, é certamente vista como condição favorável à protelação do cumprimento de obrigações que têm como sujeito passivo o Estado. Urge, portanto, mais do que clamar pelo adequado aparelhamento do Poder Judiciário, urgentemente descobrir soluções outras para a crise, sob pena de se ver instalada, com os riscos daí decorrentes à convivência social harmônica, generalizada descrença na capacidade do Estado de Direito como provedor de justiça aos cidadãos. Nessa linha, importa não apenas, entre outras medidas possíveis, a busca de legislação processual livre do apego ao formalismo e a ritos incompatíveis com a celeridade que a vida atual exige, mas também interpretar à luz dessa realidade e com o auxílio de novas categorias jurídicas os mecanismos processuais já existentes, em ordem a deles extrair funcionalidade apta para ensejar, quanto possível, consecução do resultado a que visam, em razoável tempo. A leitura assim 27 Na mesma oportunidade referida na anterior nota, Joaquim Falcão observou, quanto ao impacto da chamada súmula vinculante sobre a estratégia de protelação freqüentemente empregada por órgãos públicos, mediante remessa da solução às vias judiciais mesmo em litígios relativos a questões já antes resolvidas na jurisprudência de forma assentada e pacífica: “Se você desobstrui o Judiciário de questões que poderiam não estar lá, você acelera a solução das questões que estavam lá. Uma medida positiva seria se o Governo fizer um planejamento judicial, como as empresas fazem, porque a súmula vai implicar em desembolsos de caixa expressivos a partir dessas decisões que o Supremo pode tomar.” TEIXEIRA, op. cit, on-line. proposta, inspirada nos princípios fundamentais de proteção à dignidade da pessoa humana abrigados na Carta Constitucional, poderá constituir vertente em que se verá fluir, ao menos em parte, a solução da grave crise hoje instalada no tocante à distribuição de justiça. Com efeito, na medida em que, sem ofensa à lei, se submeterem os cânones processuais aos postulados da Constituição, máxime àqueles que dizem com os direitos fundamentais28, entre os quais se situa o de garantia à razoável duração do processo, melhor e mais rapidamente se atingirá a finalidade de realização da ordem jurídica justa e, com ela, o objetivo maior de consolidação do Estado de Direito como seu provedor. 1.4 A reforma do sistema judiciário no Brasil Repercutem sobre as organizações políticas a grande variedade das demandas sociais da atual quadra histórica e sua alta complexidade. O vigoroso progresso tecnológico, o desenvolvimento dos meios de comunicação, o surgimento do conceito de sociedade de massa trouxeram novas exigências quanto à atuação do Estado, para atender à crescente expectativa de acesso de largos contingentes de pessoas a bens fundamentais de vida e manter equilibradas as relações de forças entre os diversos segmentos sociais. O modelo clássico de Estado que prevaleceu no Ocidente, nos últimos dois séculos, concebido a partir da construção teórica de Montesquieu e fundado na idéia de separação dos poderes, vem sofrendo alterações significativas. Disso é exemplo uma maior preponderância das atividades do Poder Executivo, cuja atuação avança, ao influxo da necessidade de conferir atendimento a situações emergentes, sobre áreas tradicionalmente reservadas à atividade legislativa do Parlamento. Inovações constitucionais como os decretti-legge, na Itália, seus correspondentes, em outros 28 “O hiato entre os fatos e o direito nas sociedades democráticas de massa é uma das causas da crise do positivismo jurídico. Uma das respostas da Teoria do Direito a esta crise é a distinção entre regras específicas e princípios gerais. Estes têm como função a expansão axiológica do ordenamento para buscar conferir uma integridade moral ao Direito. Neste processo, no entanto, surgem conflitos entre os valores contemplados nos princípios. [...] Por isso a ponderação de princípios é um jusfilosófico parar para pensar o significado do direito positivo.” LAFER, Celso. Variações sobre os direitos humanos. Estadão Online, São Paulo, 19 mar. 2007. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2007. países da Europa, e as chamadas medidas provisórias29, no Brasil, bem expressam a hipertrofia de um dos poderes de Estado relativamente a outro. Seria talvez de esperar que não apenas o Legislativo, mas também o Judiciário se ressentisse dessa invasão de competências e estivesse apequenado no exercício de suas funções próprias. Contrariamente, todavia, percebe-se na sociedade o emergir de mais intenso reclamo por atividade jurisdicional efetiva, nascido da multiplicidade mesma de interesses a serem conciliados, da maior consciência quanto à titularidade de direitos, da difusa percepção de que estes pouco valem efetivamente sem a presença de uma instância estatal de garantia30. Ademais, cabe ao Judiciário, como guarda da Constituição, zelando pelo cumprimento desta em conformidade com os princípios que a inspiraram e de acordo com as regras de atribuição de competências, mediar eventuais conflitos entre os outros poderes para, em última análise, preservar a higidez da estrutura do Estado de Direito. É certo que, na generalidade dos países, hodiernamente, críticas muitas são feitas à atuação do Judiciário, em especial quanto à morosidade na tramitação dos processos e à baixa eficácia das decisões judiciais. Porém, longe de refletirem queda na expectativa de solução judicial de conflitos, tais críticas traduzem, em verdade, exacerbação da crença no papel desempenhado por esse Poder, para proteção às liberdades e aos bens de vida, nos regimes embasados sobre o sistema de direitos fundamentais. Até mesmo a intensidade das investidas que por vezes partem de agentes políticos - a tanto animados pelo desagrado advindo do fato de terem coarctada por intervenção judicial a realização de interesses ilegítimos ou simplesmente contrários ao ordenamento jurídico - revela, qual fosse espelho, a dimensão da força conferida à atividade jurisdicional, instrumento de preservação dos princípios que informam o regular funcionamento do Estado. 29 “[...] o instrumento da medida provisória adotado pela Lei Maior Brasileira teve, como se sabe, mais que inspiração, verdadeiramente decalque em semelhante dispositivo da Constituição da República Italiana, cujo art. 77 fala expressamente em medidas provisórias com força de lei, conhecidas tradicionalmente, em uso corrente, inclusive no âmbito da doutrina, como decretti- legge.” (grifo do autor). SOUZA, Carlos Aurélio Mota de (Coord.). Medidas provisórias e segurança jurídica. São Paulo: J. de Oliveira, 2003. p. 375. 30 V. a respeito ARRUDA, op. cit., p. 57. No Brasil, há tempo e com grande ênfase verberam-se as insuficiências do aparelho judiciário. Censuras nesse sentido cresceram na exata medida da expansão da consciência de cidadania, bem como na velocidade de incremento da produção legislativa referenciada a direitos de recente extração, notadamente ao longo das duas últimas décadas do século XX e no início do atual31. Critica-se hoje, acerbamente, desde a estruturação dos órgãos de poder até a postura dos magistrados, em evidência inequívoca da ânsia geral por um Judiciário apto a cumprir sua missão constitucional de defensor da ordem jurídica e dispensador de justiça aos cidadãos. Amplia-se o nível de exigência no tocante à sua atuação, quanto mais aumenta a convicção de sua indispensabilidade para a garantia de direitos, uma vez que não se poderia nunca depender exclusiva e primordialmente de outros meios de solução de litígios, como a auto-composição, a conciliação mediada, o juízo arbitral, pese embora a importância desses mecanismos para o objetivo de pacificação social. Ampliação desse anseio levou ao aprofundamento de análises relativas às insuficiências do Poder Judiciário e ao despontar de variadas propostas para sua superação. Surgiram iniciativas no âmbito legislativo, quase todas creditadas ao esforço de institutos de pesquisa e estudos jurídicos ou ao empenho individual de profissionais e operadores do direito. Algumas frutificaram para oferecer saídas parciais à crise que, já então, se fazia sentir. Assim foi o caso dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, introduzidos pela Lei nº. 7.244, de 7 de novembro de 1984, na esteira dos quais vieram, com a Constituição de 1988, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, previstos em seu art. 98, I, e regulamentados pela Lei nº. 9.099/95, depois admitidos na competência 31 “Até o final da década de 80, as discussões sobre a reforma do Judiciário limitavam-se ao restrito conjunto de operadores do direito. Advogados, magistrados, promotores e defensores apresentavam e refletiam sobre propostas de organização do aparato judicial, muitas vezes com uma perspectiva limitada, resumida ao papel de cada categoria e ao espaço de atribuições a ser ocupado por seus respectivos membros. Após a Constituição de 88, inicia-se um processo contínuo de democratização do debate sobre o modelo de Justiça mais adequado. A sociedade civil percebe-se interessada no funcionamento do sistema judicial quando descobre os impactos cotidianos da crise de morosidade e de acessibilidade do Poder Judiciário. Os economistas iniciam uma reflexão sobre o custo e o risco de uma Justiça ineficiente para o desenvolvimento da nação. Enfim, inúmeros segmentos sociais fazem com que o discurso da reforma judicial entre na pauta política e consolidam a demanda por uma atividade de transformação.” BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. Reforma infraconstitucional do Judiciário. Apresentação de Pierpaolo Bottini. Brasília, DF, 2007. da Justiça Federal a partir da Emenda Constitucional nº. 22/99, que dispôs sobre sua criação, efetivada pela Lei nº. 10.259/01. Contribuição trazida por esse novo sistema de atuação judicial previsto para facilitar o acesso à justiça pode ser mensurada, em visão retrospectiva, pelo expressivo afluxo de causas que de imediato atraiu, a ponto de logo estarem os juizados, comparativamente às varas da Justiça comum, tão ou mais sobrecarregados de processos, de modo incompatível com suas estruturas, usualmente providas - ao longo de mais de uma década e ainda hoje - somente por pequeno corpo de funcionários e pela disposição de juízes que, embora não lotados em cargos próprios de juizado, em larga medida inexistentes, dispõem-se a ampliar a própria jornada de trabalho para atender também a essa jurisdição. Não bastaram, entretanto, esforços como esse. A despeito deles, acentuou- se a crise de operacionalidade do Judiciário, a ponto de compelir as instituições públicas, já então mais sensíveis às expectativas sociais, a contribuírem para o debate e a procura de soluções. Enquanto o Poder Executivo criava, em 2003, no âmbito do Ministério da Justiça, a Secretaria de Reforma do Judiciário, os tribunais superiores estimulavam, dentro do Poder Judiciário, iniciativas voltadas à busca de caminhos de saída da crise. Em dezembro de 2004, os chefes dos três Poderes firmaram um Pacto de Estado por um Judiciário mais Rápido e Republicano, explicitando compromissos e metas de melhor prestação jurisdicional. Conjuntamente, brotaram no plano objetivo mudanças na organização do sistema judiciário, efetivadas por via da Emenda nº. 45 à Constituição Federal, promulgada em 8 de dezembro de 2004, além de alterações na legislação processual, mediante vinte e seis projetos de lei que, dando seguimento ao trabalho iniciado pelo Congresso na década anterior, buscam melhorar significativamente o processo civil, o penal e o trabalhista. O problema da falta de celeridade na distribuição de justiça, reconhecido já no título do citado Pacto de Estado como importante entrave a mais eficiente garantia de direitos, recebeu tratamento constitucional, mediante explicitação do direito à razoável duração do processo entre os direitos fundamentais (art. 5º., LXXVIII, CF) 32. Outras modificações introduzidas no texto da Carta visaram à maior facilidade de acesso à Justiça, à melhor qualidade da atuação judicial, a mais ampla publicidade das atividades judiciárias, de modo ordenado a prover justiça a todos. Nesse sentido, previu-se a Justiça itinerante; a autonomia funcional, administrativa e financeira das Defensorias Públicas estaduais (arts. 107, §§ 2º. e 3º., 115, §§ 1º. e 2º., 125, §§ 6º. e 7º., 134, § 2º., 168); a possibilidade de criação de varas especializadas para a questão agrária (art. 126, caput); o caráter constitucional dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, quando aprovados pelo quorum qualificado das emendas constitucionais (art. 5º., § 3º.); a previsão de Conselhos para controle externo da Magistratura e do Ministério Público, bem como a instalação de ouvidorias (arts. 52, II, 92, I-A, e § 1º., 102, I, “r”, 103-A, 103-B); o estabelecimento de regras mínimas a serem observadas na elaboração do Estatuto da Magistratura, como, entre outras, exigência de três anos de atividade jurídica para o bacharel em Direito como requisito ao ingresso na carreira da Magistratura, aferição do merecimento para a promoção segundo critério objetivos de produtividade e desempenho, previsão de número de juízes compatível com a população, proibição de férias coletivas no Judiciário, para tornar a atividade jurisdicional ininterrupta (art. 93); a ampliação da garantia de imparcialidade dos órgãos judiciais (art. 95, parágrafo único, IV e V, e 128, § 6º.); a previsão de que as custas e os emolumentos sejam destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça (art. 98, § 2º.); a criação da súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal (art. 103-A)33. Além disso, previram-se modificações na competência dos tribunais superiores, regras para encaminhamento da previsão orçamentária e execução do orçamento, mudanças nos mecanismos de controle da constitucionalidade, 32 “Esse direito foi instituído pela EC-45/2004 mediante o acréscimo do inc. LXXVIII ao art. 5º. da Constituição, para estatuir que a todos são assegurados , no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Aqui interessa o processo judicial, que é o resultado do exercício do direito de acesso à Justiça previsto no inc. XXXV [..].” (destaque do autor). SILVA, J. A., op. cit., p. 432. 33 Cf. LENZA, Pedro. Reforma do Judiciário. Emenda Constitucional nº. 45/2004. Esquematização das principais novidades. Jus Navigandi, Teresina, 18 mar. 2005a. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2007. funcionamento da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, instalação do Conselho de Justiça Federal como órgão central do sistema. Essas mencionadas alterações constitucionais, cujo enunciado não esgota o rol daquelas introduzidas pela Emenda nº. 45, servem todas ao escopo de se dar maior efetividade34 e transparência à atividade jurisdicional. Dentre todas as modificações, avulta, pelo status a ela conferido, a previsão do direito à razoável duração do processo, erigido à categoria de norma constitucional explícita, na esfera particularmente relevante dos direitos fundamentais da pessoa humana. A par dele, a garantia de meios que assegurem a celeridade da tramitação processual35. Com efeito, não basta prever canais de acesso à Justiça e atuação idônea, independente e isenta dos órgãos jurisdicionais, mas cumpre fazer com que a proteção àqueles que tiveram direitos lesados ou os vêem ameaçados chegue a tempo útil, sob pena de ineficácia do sistema de garantia que caracteriza o Estado de Direito. Proteger a destempo é, certamente, deixar perecer. Bem por isso, propõe-se interpretação das regras processuais sempre à luz do princípio segundo o qual a distribuição da justiça há de ser tempestiva, para que não se torne providência inócua e, assim, não se exiba como injustiça manifesta. 34 Alexandre de Moraes pondera: “A EC nº. 45/04, porém, trouxe poucos mecanismos processuais que possibilitem maior celeridade na tramitação dos processos e redução na morosidade da Justiça brasileira. O sistema processual judiciário necessita de alterações infraconstitucionais, que privilegiem a solução dos conflitos, a distribuição de Justiça e maior segurança jurídica, afastando-se tecnicismos exagerados.” MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 94. 35 Ibid., com citação de passagem do voto proferido pelo ministro Celso de Mello no julgamento do Mandado de Injunção nº. 715/DF: “Essas previsões - razoável duração do processo e celeridade processual -, em nosso entender, já estavam contempladas no texto constitucional, seja na consagração do princípio do devido processo legal, seja na previsão do princípio da eficiência aplicável à Administração Pública (CF, art. 37, caput).” (destaques do autor). CAPÍTULO 2 A GARANTIA DE PROCESSO EM TEMPO RAZOÁVEL 2.1 Apontamentos históricos e difusão do princípio O caráter eminentemente evolutivo dos direitos fundamentais impõe, para sua melhor compreensão, exame de seu desenvolvimento ao longo da história. Tratando-se de categoria constituída por direitos imanentes à condição humana, não poderá ser bem apreendida em seus múltiplos aspectos sem um olhar retrospectivo sobre eventos que marcaram indelevelmente a evolução do homem, quanto à progressiva conquista de proteção jurídica a valores essenciais de vida. Nesse sentido, cuidou-se alhures de apontar as principais ocorrências tidas indisputadamente como marcos do gradual reconhecimento jurídico de direitos fundamentais, ao longo dos tempos, a começar das chamadas liberdades públicas. No tocante ao direito à duração razoável do processo, cuja essencialidade para a efetiva proteção estatal ao indivíduo e à sua dignidade humana admite-se constituir verdade indiscutível, encontram-se sinais embrionários de seu reconhecimento nos mesmos eventos que assinalaram passagens importantes na evolução dos demais direitos de mesma categoria. Na verdade, o processo evolutivo se deu pari passu, relativamente a um e outros, ao longo do tempo, desde a inicial defesa do indivíduo contra o arbítrio do monarca e os abusos do Estado até alcançar a atual dimensão propiciadora da expectativa de realização dos mais altos valores do espírito humano, passando antes pela fase em que, sob a influência das demandas sociais típicas do processo de industrialização do final do século XIX e começo do século XX, buscou-se dar concretude ao princípio de igualdade entre os homens, garantindo direitos básicos às classes trabalhadoras ou economicamente desfavorecidas. Surge ligado de modo intrínseco ao conceito do devido processo legal o direito à razoável duração do processo. A Magna Carta das Liberdades, imposta a João Sem Terra em 1215, ao lado da consagração do direito ao devido processo (cláusula 39) - princípio que ficou, então, conhecido por law of the land e, mais à frente, pela expressão due process of law, de uso ainda atual -, estabeleceu (cláusula 40) a exigência do desenvolvimento do processo livre de maiores delongas (“to no one we will sell, to no one we will refuse or delay, right or justice”). Da leitura mesma do enunciado extrai-se que o atraso na prestação da justiça frustra a realização de direitos e equivale a recusa à proteção destes. É de ser ressaltada, no texto desse antigo documento, a ligação entre prisão e tempo adequado para o processo, característica da fase inicial de reconhecimento do direito. Abstraído o fato de a Carta surgir como instrumento de limitação do poder real em benefício da nobreza, tem-se demonstrada naquela finalidade a idéia de afirmação dos primeiros direitos de proteção do indivíduo contra o Estado, do qual poderia exigir não apenas abstenção de atos lesivos a determinadas liberdades, mas também, em hipótese diversa, exigir que a restrição não se fizesse sem o devido processo, ademais desenvolvido sem procrastinações. Tal cláusula passou a constituir fundamento de todo um sistema de garantia de proteção judicial dos cidadãos, na Inglaterra e, com o decorrer dos séculos, na generalidade dos países do ocidente36. Ainda não seria de ver, no citado dispositivo, propriamente afirmação do direito a um processo célere ou desenvolvido em tempo razoável; o propósito, embora fosse o de garantir obtenção de justiça, era buscado mediante vedação a interferências do rei na marcha dos procedimentos. Nesse sentido, cuidava-se de norma de conteúdo negativo, atuando somente de forma indireta na promoção de maior celeridade processual. Todavia, sua posterior afirmação na doutrina e na jurisprudência inglesas, nos períodos seguintes, leva à constatação da importância atribuída à efetividade do comando jurisdicional na common law37. De recordar que a Magna Carta, buscando conferir efetividade a seu próprio conteúdo, previu, em passagem da cláusula 61, que as transgressões às garantias 36 “É sabido que o princípio do devido processo legal, que originariamente era aplicado aos processos penais, estendeu seu campo de aplicação aos processos civil e administrativo, graças às reflexões da doutrina durante o final do século XIX e o transcurso do século XX. Fortaleceu, assim, sua dimensão adjetiva, que compreende um conjunto de direitos e garantias em favor das pessoas no processo.” TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; LORA ALARCÓN, Pietro de Jésus (Coord.). Reforma do judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005. p. 32. 37 ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental à razoável duração do processo. Brasília, DF: Brasília Jurídica, 2006. op. cit., p. 32, lembra que “Shakespeare, através de seu personagem Hamlet, já colocava o ‘law’s delay’ como um dos males de seu tempo, sendo lícito supor que o combate a esse problema fosse relevante e caro à sociedade inglesa da época.” (destaque do autor). estabelecidas no documento haveriam de ser reparadas imediatamente ou em até quarenta dias a partir da apresentação de queixa do lesado, sob pena de sanções, como a que admitia aos nobres o avanço sobre propriedades do rei. Esse dispositivo, não obstante relacionado à efetivação das garantias enunciadas na Carta, faz evidenciar, pelo exíguo prazo previsto à solução da queixa, a recorrente preocupação com a celeridade do procedimento e significa não mais simples impedimento a postergações da justiça, porém, diversamente, verdadeira exigência de justiça em tempo pré-determinado como sendo hábil. No século XVII, consolidando-se na Inglaterra, mercê da Petição de Direitos e do Regulamento do Habeas Corpus, o modelo local de proteção a direitos fundamentais, restaram com ele reafirmadas disposições tendentes à obtenção de pronunciamento judicial em prazo adequado. De forma reflexa, mediante ampliação de garantias de efetividade da prestação jurisdicional, o primeiro documento solidificou o direito à rápida resolução de processos, enquanto o outro trouxe mais explícitas menções à inconveniência da morosidade, ao referir no preâmbulo, entre as justificativas para adoção do regulamento, a tardança de resposta aos pedidos enviados aos oficiais do rei e a necessidade de obter maior rapidez na soltura de encarcerados. A defesa da liberdade ganhou, assim, instrumento formal de atuação, com garantia de exame judicial em tempo reduzido. Passa o poder estatal a intervir em modo a dotar de eficácia determinado procedimento previsto como remédio contra a lentidão, valendo recordar, nesta passagem, que o instituto do habeas corpus já era então tradicional no direito consuetudinário daquele país, por isso sendo correto reconhecer como objetivo do regulamento surgido em 1679 a maior eficácia daquele instrumento processual de garantia da liberdade. No direito norte-americano, herdeiro do secular sistema inglês da common law, aponta-se como precursor da garantia de rápido julgamento, dentre cartas de liberdade outorgadas para asseguração de direitos aos colonos, o documento de estruturação do Governo da Pennsylvania, de 1682, cujo texto, semelhante em algumas passagens ao da Magna Carta, assegura direito a julgamento sem postergações38. A seguir, no contexto do movimento pela independência, a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia consignou, em sua cláusula 8ª., que todo cidadão acusado em processo criminal tem direito a julgamento célere. Já não se tratava mais de afirmar direito à celeridade em um tipo de procedimento específico, como o de habeas corpus, e sim em qualquer procedimento criminal. As declarações de Delaware e Maryland, promulgadas na seqüência, junto às de outras colônias americanas, conferiram importante ampliação ao direito, ao prever a celeridade como garantia a ser observada em procedimentos cíveis39. Desse modo, é possível reconhecer nos dois citados sistemas, quais sejam, o inglês e o norte-americano, a origem das normas representativas da admissão do direito ao processo em tempo razoável. Na Europa continental, o desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais, que teve em França seu maior e mais significativo avanço, deixou de contemplar proteção correspondente à garantia de celeridade de procedimentos. Surgida logo depois das declarações das colônias americanas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pese embora o importante alento dado à solidificação do sistema de direitos fundamentais, não chegou a contribuir para afirmação da defesa contra os males da morosidade processual, uma vez nem mesmo contemplou, antes, as garantias de acesso à justiça, limitando-se ao enunciado dos princípios da legalidade e da anterioridade penal, bem como da presunção de inocência (art. 9º.), e a estabelecer proibição de aprisionamento ou submissão a processo, senão em estrita consonância com a forma prevista na lei (art. 7º.)40. Entretanto, chegados ao século XX, países do continente europeu passaram a afirmar, de modo inequívoco, o direito ao tempo razoável do processo. Conjuntamente, fizeram-no mediante a Convenção Européia para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, cujo texto consolidou 38 ARRUDA, op. cit., p. 36. 39 “Esses entes da Federação americana consagraram à celeridade processual dois distintos dispositivos de suas declarações. Um deles, à semelhança do que foi inserido na Declaração de Virgínia, assegurava aos acusados em procedimento criminal o direito ao speedy trial. Em outra passagem, bem mais ampla, reconhece-se que todo homem livre, ‘em razão de ofensa a seus bens, terras ou pessoa’, deve ter à sua disposição um remédio adequado à obtenção da justiça ‘speedily without delay’.” ARRUDA, op. cit., p. 36.(destaque do autor). 40 Ibid., p. 39. entendimento sobre a relevância da garantia, reconhecida como fundamental ao indivíduo. Subscrito originalmente por treze Estados, o documento veio datado de 4 de novembro de 1950 e, entre outras disposições inspiradas em princípios norteadores de harmônico convívio em sociedade e de respeito à dignidade da pessoa humana, estabeleceu, logo ao início do primeiro parágrafo do artigo 6º, que toda pessoa tem direito a uma justa e pública audiência dentro de prazo razoável, diante de um tribunal independente e imparcial constituído por lei, com a finalidade de precisar, sejam seus direitos e seus deveres de caráter civil, seja a consistência de toda acusação penal contra ela formulada. Além disso, para assegurar observância a seus preceitos, a Convenção instituiu (artigos 19 e 20) a Corte Européia. Com sede em Estrasburgo e funcionamento permanente, integrada por juízes representantes dos países membros, atende à previsão (artigos 34 e 35) da possibilidade de recurso de cidadãos, entidades não-governamentais ou empresas privadas, articulado sob fundamento da ocorrência de violação de direito reconhecido pela Convenção, depois de exauridos recursos internos no país infrator. Outra disposição (artigo 41) prevê a justa reparação ao lesado, se a lei interna do Estado membro assim não estabelecer, nos casos em que a Corte declarar que houve afronta a direito protegido por aquelas normas supranacionais41. Todos esses dispositivos revelam a preocupação com a efetividade da proteção aos direitos fundamentais e, dentre eles, nomeadamente àquele referido ao tempo do processo. Ainda antes da Convenção Européia, porém, o princípio de garantia à temporalidade razoável dos procedimentos ganhou presença e relevo na legislação interna de vários países do continente europeu, chegando ao status de norma constitucional. Nas Constituições portuguesas de 1826 (artigo 145, parágrafo sétimo) e de 1838, são encontradas referências à razoabilidade temporal da formação de culpa em processos criminais com réu preso42 e a Constituição lusitana de 1976 dispõe, em seu artigo 20º., nº. 4, de modo a abranger qualquer espécie de 41 Cf. HOFFMAN, Paulo. Razoável duração do processo. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 54-56. 42 ARRUDA, op. cit., p. 42. procedimento: “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo eqüitativo.”43. Na Itália, a morosidade processual mostrou-se sempre notória e chegou mesmo a repercutir na Corte de Estrasburgo, causando-lhe, a ela própria, expressivo atraso nos julgamentos, em razão da quantidade de reclamações formuladas por cidadãos italianos com base em alegação de descumprimento do preceito fundamental relativo à agilidade processual previsto na Convenção Européia dos Direitos do Homem. O fenômeno ganhou grandes proporções e significativas mudanças foram, então, introduzidas na legislação do país44. Ao influxo da censura daquela Corte, bem como das reiteradas decisões condenatórias a ressarcimento por agravo ao direito do justo processo, ocorreu, em 1999, modificação do artigo 111 do texto constitucional italiano, atualmente redigido de modo a garantir jurisdição mediante processo justo, em tempo razoável, nos termos da lei45. Mais adiante, em 2001, aprovou-se lei específica dispondo sobre indenização a quem for prejudicado em decorrência da exagerada duração de processo, a chamada “Legge Pinto”46. A Constituição espanhola de 1978, com inequívoca ênfase na proteção do indivíduo contra a lentidão processual imotivada, explicita tal garantia entre os direitos fundamentais. Reza seu artigo 24 que todas as pessoas, no exercício de seus direitos e interesses legítimos, têm assegurada a efetiva tutela dos juízes e tribunais, mediante processo público sem dilações indevidas, apreciado por juiz competente, nos termos da lei, facultado o uso, sob presunção de inocência, dos meios de prova pertinentes para defesa, sem que possam, de qualquer modo, ser obrigadas a confessar culpa47. 43 NICOLITT, André Luiz. A duração razoável do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 14. 44 HOFFMAN, op. cit., p. 52-53. 45 Art. 111: La giurisdizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge. 46 Legge 24 marzo 2001, n. 89 – “Previsione di equa riparazione in caso di violazione del termine ragionevole del processo e modifica dell’articolo 375 del codice di procedura civile” (pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 78 del 3 aprile 2001). 47 Cf. NICOLITT, op. cit., p. 14-15. No continente africano, a Carta de Banjul sobre Direitos Humanos, de 1981, estabelece em seu artigo 7º., 1, “d”, o direito de toda pessoa ser julgada em prazo razoável por um tribunal imparcial48. 2.2 Ordenamento jurídico brasileiro No Brasil, malgrado se aponte o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, como primeira norma de vigência sobre a questão do tempo razoável para o processo judicial, seguida por disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, denominado Pacto de São José da Costa Rica49, é de lembrar que a Constituição de 1934, mesmo promulgada em período histórico que se desenvolvia sob inspiração autoritária, já havia feito menção explícita ao tema. Com efeito, seu artigo 113, nº. 35, inserido no título dedicado à declaração de direitos e no capítulo correspondente aos direitos e garantias individuais, dispunha que a lei deveria assegurar o rápido andamento dos processos nas repartições públicas50. A expressão “repartições públicas” há de ser entendida como abrangente das repartições judiciais, até porque os ofícios de Justiça sempre foram assim considerados51, valendo dizer que a Carta Constitucional assegurava direito ao rápido andamento dos processos em geral, administrativos e judiciais. Revelava-se no dispositivo a preocupação do Constituinte em destinar ao legislador a regulação efetiva do direito, ao qual, de toda sorte, já se conferia feição constitucional e, ainda mais, reconhecimento de seu caráter fundamental, considerada a inserção entre os demais direitos e garantias assegurados ao indivíduo. As Constituições brasileiras posteriores, entretanto, não fizeram sequer alusão ao devido processo legal. A Carta de 1937, promulgada no chamado Estado Novo, e a de 1946, tida como democrática, bem como as Constituições de 1967 e 48 NICOLITT, op. cit., p. 14. 49 Ibid., p. 18. 50 In verbis: “A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e a expedição das certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para esclarecimento dos cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse público imponha segredo, ou reserva.”. 51 Neste sentido, ARRUDA, op. cit., p. 43. 1969 deixaram de estabelecer a citada garantia, a despeito de as três últimas afirmarem proteção a direitos fundamentais52. A respeito dos retro referidos tratados internacionais, cumpre assinalar que somente após o processo de redemocratização do país, que se pode considerar deflagrado em 1985, o Estado brasileiro passou a ratificar importantes documentos internacionais de proteção a direitos humanos53. Assim, embora esteja datado de 1966, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos apenas entrou em vigor no Brasil, depois de aprovado seu texto pelo Decreto Legislativo 226/91, em 24 de abril de 1992, três meses após o depósito da carta de adesão, em respeito ao artigo 49, parágrafo 2º., do Pacto54. Da mesma forma, a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, passou a integrar o nosso ordenamento jurídico em 6 de novembro de 1992, com a promulgação do Decreto Presidencial nº. 678. Esse processo de adesão aos tratados internacionais de direitos humanos gerou grande debate acerca da hierarquia das normas constantes de tais documentos, no ordenamento jurídico brasileiro. Formaram-se, a respeito, quatro correntes doutrinárias: a primeira sustenta que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm hierarquia supra-constitucional; a segunda defende a natureza constitucional desses tratados; a terceira argumenta que a posição seria infraconstitucional, mas supra-legal, e a última advoga a paridade entre tratado e lei federal. Duas das citadas correntes interpretativas merecem destaque, quais sejam, aquela defensora da hierarquia constitucional dos referidos tratados e a que se bate pelo reconhecimento da natureza de lei federal ordinária, posição esta sustentada, majoritariamente, pelo Supremo Tribunal Federal55. Aqueles que acreditam na natureza constitucional dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos argumentam que tal fato decorre do disposto no parágrafo 2º. do artigo 5º. da Lei Maior, norma caracterizada como cláusula 52 NICOLITT, op. cit., p. 17. 53 TAVARES; LENZA; LORA ALARCÓN, op. cit., p. 68. 54 NICOLITT, op. cit., p. 18. 55 TAVARES; LENZA; LORA ALARCÓN, op. cit., p. 69. constitucional aberta56. Isto porque o mencionado dispositivo estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Assim, por meio de interpretação sistemática e teleológica, concluem que a Carta Magna atribui aos direitos humanos previstos em tratados dos quais o Brasil seja signatário a mesma hierarquia das normas constitucionais. Os direitos constantes dos tratados, integram e complementam o catálogo dos direitos constitucionalmente previstos57. Tal interpretação está de acordo com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, pelo qual às normas de natureza constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe proporcione58. A este argumento soma-se o fato de que os tratados acima citados são materialmente constitucionais, isto é, cuidam de matéria eminentemente constitucional, qual seja, direitos fundamentais da pessoa. Haveria, portanto, um regime jurídico diferenciado para os tratados de direitos humanos, comparativamente aos demais tratados internacionais. Os primeiros, por veicularem normas de conteúdo constitucional, relacionadas à dignidade humana, transcendem os interesses dos Estados partes e ostentam natureza verdadeiramente constitucional, enquanto os segundos estão sujeitos à mesma hierarquia das leis federais ordinárias, visto que buscam o equilíbrio e a reciprocidade entre os Estados pactuantes59. Cabe ainda ressaltar que, ao admitir a natureza constitucional das normas de direitos humanos consagrados em tratados internacionais, deve-se reconhecer constituem cláusula pétrea e não podem ser abolidos por emenda constitucional, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º., IV, da Carta60. Por outro lado, a corrente doutrinária e jurisprudencial que sustenta a hierarquia de lei ordinária federal para as normas de tratados internacionais relativos a direitos humanos acredita em um só regime para todos os tratados dos quais o Brasil seja signatário. Todos são recepcionados pelo nosso ordenamento jurídico como normas infraconstitucionais. Fundamenta esta orientação o disposto no artigo 56 Neste sentido, com citação de CANOTILHO, PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 55. 57 PIOVESAN, op. cit., p. 58. 58 Ibid., p. 59. 59 TAVARES; LENZA; LORA ALARCÓN, op. cit., p. 71. 60 Ibid., p. 73. 102, III, b, do texto constitucional. Dessa posição é partidário, majoritariamente, o Supremo Tribunal Federal, desde 1977. No julgamento do Recurso Extraordinário nº. 80.004, daquele ano, a Corte Suprema firmou o entendimento de que as disposições contidas nos tratados internacionais, uma vez integradas ao ordenamento jurídico brasileiro, incluem-se em paridade com a lei federal. Como conseqüência, foi admitida a aplicação do princípio de que lei posterior pode revogar norma anterior decorrente de tratado, com ela incompatível61. Após a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal reiterou seu posicionamento ao julgar, em sede de habeas corpus, um caso relativo à prisão de infiel depositário. No julgamento do HC 72.131-RJ, em 22.11.95, ao enfrentar questão relativa à aplicação de disposições contidas no Pacto de São José da Costa Rica, relativas à proibição de prisão por dívida, exceto no caso de alimentos, a Corte, em votação não unânime, decidiu, mais uma vez, pela natureza infraconstitucional dos tratados internacionais, afirmando a possibilidade da prisão do depositário infiel, permitida pela nossa Constituição, em seu artigo 5º, inciso LXVII62. Não bastasse a controvérsia já antes existente, ocorreu de a inclusão do parágrafo 3º. no artigo 5º. da Constituição trazer discussão sobre o tema. Diz o referido dispositivo: ”Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Doutrinadores que defendiam a natureza constitucional dos tratados sobre direitos humanos passaram a sustentar que o referido § 3º. apenas trouxe a possibilidade de as normas dos tratados, que já eram materialmente constitucionais, tornarem-se, também, formalmente constitucionais. Desse modo, a natureza constitucional dos tratados já estaria sempre extraída do § 2º. do artigo 5º. O § 3º., ao conferir natureza formal constitucional aos tratados e convenções sobre direitos humanos eventualmente aprovados nos termos da Carta Magna, apenas impedirá que sejam objeto de denúncia pelo Presidente da República, ato unilateral pelo qual um Estado retira sua subscrição a um tratado. Portanto, a partir da Emenda 61 ARRUDA, op. cit., p. 166. 62 Ibid. Constitucional nº. 45, teriam surgido duas categorias de tratados de direitos humanos: os materialmente constitucionais, passíveis de denúncia, e aqueles material e formalmente constitucionais, que não podem ser denunciados pelo Brasil63. O quórum qualificado introduzido pelo § 3º apenas reforça, para os que assim vêem a questão, o reconhecimento da natureza constitucional dos tratados relativos a direitos humanos, propiciando sua “constitucionalização formal”64 no âmbito jurídico interno. Paralelamente, a corrente doutrinária que sustentava a natureza de lei ordinária para os tratados de direitos humanos passou, após o § 3º., a entender que o dispositivo trouxe a possibilidade de os tratados internacionais sobre tal matéria adquirirem natureza equivalente a emenda constitucional. Aprovados segundo as exigências do § 3º. , teriam natureza constitucional, enquanto os outr