MAURÍCIO DE AQUINO MODERNIDADE REPUBLICANA E DIOCESANIZAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL: a construção do bispado de Botucatu no sertão paulista (1890-1923). ASSIS 2012 MAURÍCIO DE AQUINO MODERNIDADE REPUBLICANA E DIOCESANIZAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL: a construção do bispado de Botucatu no sertão paulista (1890-1923). Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha ASSIS 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Aquino, Maurício de A657m Modernidade republicana e diocesanização do catolicis- mo no Brasil: a construção do bispado de Botucatu no sertão paulista (1890-1923) / Maurício de Aquino. Assis, 2012 301 f. : il. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Ivan Esperança Rocha 1. Brasil – História – República Velha, 1889-1930. 2. Re- ligião e política. 3. Modernidade. 4. Modernismo – Igreja Católica. 5. Dioceses. I. Título. CDD 282.81 981.05 PRODUÇÃO FOMENTADA PELO CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. ESTA TESE DE DOUTORAMENTO FOI PRODUZIDA COM O APOIO FINANCEIRO DO CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – POR MEIO DE BOLSA DE DOUTORADO CONCEDIDA, ENTRE AGOSTO DE 2010 E SETEMBRO DE 2012, APÓS AVALIAÇÃO DE MÉRITO DA COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS – UNESP. O AUTOR AGRADECE AO IMPRESCINDÍVEL APOIO FINANCEIRO DO CNPq A ESTA PESQUISA E AUTORIZA A REPRODUÇÃO PARCIAL OU INTEGRAL DESTA TESE PARA FINS NÃO COMERCIAIS COM A DEVIDA REFERENCIAÇÃO. DEDICATÓRIA À Luciana, minha amada e dedicada companheira de todos os momentos. Este trabalho é para você que sempre me animou, auxiliou-me em alguns trabalhos de arquivo e soube compreender as renúncias inerentes ao meu trabalho de pesquisa histórica no mestrado e no doutorado em meio a tantos outros compromissos profissionais na educação básica e no ensino superior. Aos meus veneráveis pais, Antônio e Joana, que mesmo em tempos de pobreza material enriqueceram minha existência com muito afeto e zelo, ensinando-me desde cedo a respeitar o Outro e a valorizar a educação e o trabalho. À minha querida irmã, Mauricéia, professora de Língua Portuguesa, que persistentemente acredita no poder transformador da educação, na escola, e em casa, junto ao seu esposo Junio e à sua filha Isabela. À memória do Prof. Dr. Eduardo Basto de Albuquerque (1942-2009). AGRADECIMENTOS Agradeço ao Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha, orientador desta tese, pela confiança incondicional em meu trabalho ao longo de todo o período da pesquisa. Sua conduta profissional exemplar, sua serenidade nos períodos de maior dificuldade e o sério acompanhamento das atividades que desenvolvi estabeleceram o ambiente ideal para que eu realizasse a investigação apresentada aqui. Agradeço ao Prof. Dr. Áureo Busetto, Coordenador do Programa de Pós- Graduação em História, e à Zélia Maria de Souza Barros, secretária administrativa do Programa de Pós-Graduação em História, pela paciência e solicitude em orientações e esclarecimentos pertinentes à legislação e trâmites acadêmicos. Agradeço aos meus colegas professores da EE Domingos Camerlingo Caló, em Ourinhos-SP, sobretudo, a Luís Horta e Marcos Corrêa, pelos incentivos, e a João Cavallari Neto pelo apoio e pelas concessões que me fez em atribuições e horários de aula, nos anos letivos de 2009 e 2010, de modo a que eu pudesse frequentar as disciplinas do curso de doutorado. Agradeço aos colegas professores do Centro de Ciências Humanas e da Educação e do Centro de Letras, Comunicação e Artes da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Jacarezinho, pelos diálogos e incentivos ao longo da realização deste trabalho, principalmente, a Pedro Bonoto, pela leitura do texto em suas primeiras versões e pelo apoio oferecido na condição de coordenador do Colegiado de História, a Roberto Massei, pela permanente disposição em estabelecer diálogos sobre questões teórico-metodológicas da pesquisa histórica que contribuíram para o aprimoramento da abordagem exposta nesta tese, e a Rodrigo Modesto Nascimento, pelas inúmeras conversas sobre o processo de elaboração da tese uma vez que ambos estávamos envolvidos com essa tarefa. Agradeço aos colegas pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em História das Religiões (NPHR) da UENP, sobretudo, a Alfredo Moreira da Silva Jr., Luís de Castro Campos Jr. e André Pires do Prado, pelos muitos diálogos sobre teoria e metodologia da história das religiões e das ciências da religião durante as atividades do NPHR e em cursos e eventos da área pelo Brasil. Agradeço aos colegas pesquisadores da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), em especial, a Tiago Watanabe, Mabel Salgado, Ítalo Santirrochi pelos periódicos diálogos sobre história e religião proporcionados por ocasião dos simpósios da ABHR. Agradeço ao amigo de longa data, Altair Aparecido Gaiquer, atualmente padre da diocese de Ourinhos-SP, pelo incentivo de sempre. Agradeço aos diretores e funcionários dos arquivos, centros de pesquisa e bibliotecas nos quais realizei consultas, particularmente, ao jornalista João Figueiroa responsável pelo Centro Cultural de Botucatu, ao diretor técnico Jair Mongelli Jr. do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, à diretora técnica Verônica de Mendonça Motta do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina, ao monsenhor Edmílson Zanin e à sua secretária Luiza na Paróquia de Águas de Santa Bárbara, ao secretário Fagner do Arquivo da Cúria de Botucatu, aos funcionários do Arquivo Secreto Vaticano e aos padres do Colégio Pio Latino- americano de Roma. Agradeço ao Prof. Dr. Dilermando Ramos Vieira, padre da Ordem dos Servos de Maria e docente da Facoltà Marianum, que durante meu tempo de pesquisa em Roma dispôs-se a discutir e refletir sobre as características das fontes do Arquivo Secreto Vaticano, bem como acerca da história da Igreja Católica no Brasil e das relações entre o Estado brasileiro e a Santa Sé. Agradeço aos professores integrantes da banca de exame geral de qualificação desta tese: ao prof. Dr. Ricardo Gião Bortolotti (UNESP/Assis), pelas considerações sobre os fundamentos teórico-metodológicos da pesquisa, e, ao prof. Dr. Fernando Torres Londoño (PUC-SP), pela leitura cuidadosa e profunda da tese, desde sua ampla experiência e competência nessa área, salientando os avanços da interpretação histórica apresentada e os devidos ajustes para aprimorar a abordagem defendida. Agradeço aos professores integrantes da banca de defesa desta tese: profª Drª Andréa Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP/Assis), prof. Dr. Fernando Torres Londoño (PUC-SP), Prof. Dr. Ricardo Gião Bortolotti (UNESP/Assis) e profª Drª Solange Ramos de Andrade (UEM). Pode-se perguntar também: tratar-se-ia do mesmo tipo de “religião”, a da Idade Média, a do século XVII ou a do século XIX? O conceito e a experiência da religião não se referem à mesma coisa. Trata-se de sistemas entre os quais o termo comum “religião” seria equívoco. Desta perspectiva, a história social desmistifica a história religiosa no singular (e, portanto, a univocidade dos seus instrumentos conceituais), mas não suprime a necessidade de histórias religiosas. Pelo menos, as que teriam como papel impedir que um tipo de interpretação se proponha como único. Deste ponto de vista, elas se tornariam críticas com relação a modelos explicativos (contemporâneos) e assegurariam a resistência de outros passados: defenderiam a própria história e, por esta distância entre sistemas explicativos nunca verdadeiramente globais, a possibilidade de uma opção quanto ao sentido da história. Tanto num caso como no outro será preciso, pois, inicialmente, diferenciar as maneiras pelas quais os “fatos” religiosos (supondo-se que estes fatos sejam idênticos) funcionam, quer dizer, distinguir as ordens que determinam os reempregos destes fatos e, portanto, suas significações sucessivas – isto antes e a fim de poder apreender qual é a relação histórica entre essas formas e, assim, nosso meio de “compreendê-las” ou de interpretá-las “fielmente”. Michel de Certeau, A Escrita da História, p. 146-7. AQUINO, Maurício de. MODERNIDADE REPUBLICANA E DIOCESANIZAÇÃO DO CATOLICISMO NO BRASIL: a construção do bispado de Botucatu no sertão paulista (1890- 1923). 2012. 301f. Tese (Doutorado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. RESUMO Este trabalho defende a tese segundo a qual as relações entre Estado, Igreja Católica e Sociedade no prelúdio da ordem republicana brasileira devem ser entendidas no âmbito das articulações e tensões entre a modernidade e a diocesanização. Esse conceito, entendido a partir da categoria de estratégia como formulada por Michel de Certeau, indica nesta pesquisa um amplo e complexo processo de recomposição de lugares físicos, de lugares políticos e de lugares teóricos a partir da expansão do número de dioceses criadas na Primeira República brasileira. No campo da historiografia, diocesanização apresenta-se como um contraponto crítico ao uso interpretativo do conceito de estadualização da organização eclesiástica consagrado em influente livro de Sérgio Miceli, escrito nos anos 1980, sob o título de A Elite Eclesiástica Brasileira (1890-1930), sobretudo, em análises que reduzem as ações eclesiásticas à finalidade de obtenção de um pacto oligárquico. Postulando as relações entre Estado republicano e Igreja Católica desde a noção de equilíbrio móvel das tensões, inspiração teórica que remete aos trabalhos de Norbert Elias, esta pesquisa demonstra, a partir do estudo da criação e construção da diocese de Botucatu no interior do estado de São Paulo, as dinâmicas rearticulações de aproximação e de conflito entre os membros dessas instituições e entre os projetos civilizatórios civis e eclesiásticos do período, assentadas, de um lado, na laicidade pragmática do Estado ainda muito pautada pelo regalismo do período imperial; e, de outro lado, na autocompreensão de “sociedade perfeita” da Igreja, desde a “teoria teológico-política dos dois poderes” na qual as sociedades “civil” e “eclesiástica” eram consideradas distintas e complementares. Os acordos e rupturas entre essas instituições desdobraram-se do encontro e do confronto entre o laicismo pragmático do Estado e a autocompreensão eclesiástica de “sociedade perfeita” como se depreende da crítica e interpretação das fontes históricas dispostas neste trabalho, obtidas em diversas instituições, com destaque para aquelas consultadas no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo e no Arquivo Secreto Vaticano. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Primeira República. Religião. Igreja Católica. Diocese de Botucatu. AQUINO, Maurício de. Modernity republican and diocesanization of Catholicism in Brazil: the construction of the bishopric of Botucatu in hinterland the state of Saint Paul (1890-1923). 2012. 301p. Thesis (Ph.D. in History). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis – Brazil, 2012. ABSTRACT This works supports the argument that the relationship between State, Church e Society in the prelude to the Brazilian republican order must be understood within the joints and tensions between modernity and diocesanization – a concept inspired in the works of Michel de Certeau and this research indicates that a broad and complex process of rebuilding territorial, political and theoretical from the expansion of the creation of dioceses in the First Brazilian Republic (1889-1930). In the historiography, this concept of diocesanization presents itself as a critical counterpoint to the interpretative use of influential ideas of the book “The Ecclesiastical Elite Brazilian (1890-1930)” written by sociologist Sérgio Miceli, especially in analyses that reduce the actions ecclesiastical purpose of obtaining an oligarchic pact. Postulating the relations between the state Republican and Catholic Church since the concept of moving equilibrium of tensions, theoretical inspiration which refers to the work of Norbert Elias, this research demonstrates, from the study of creation and construction of the Diocese of Botucatu in the state of St. Paul, the dynamic approach and re-articulations of conflict between members of these institutions and projects between the civil and ecclesiastical civilization of the period, settled on the one hand, the pragmatic secularism of the state still ruled by regalism the imperial age (1822-1889), and on the other hand, the self of "perfect society" of the Church from the "theological-political theory of the two powers" in which societies "civil" and "ecclesiastical" were considered distinct and complementary. The agreements between these institutions and ruptures unfolded the meeting and confrontation between the pragmatic secularism of the State and self-ecclesiastical “perfect society” as reflected in the critic and interpretation of historical sources and arranged this work were obtained at various institutions, especially those found in the Archive of the Metropolitan Curia of St. Paul [Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo] and the Vatican Secret Archives [Archivio Segreto Vaticano]. Keywords: Modernity. First Brazilian Republic (1889-1930). Religion. Catholic Church. Diocese of Botucatu. SUMÁRIO Lista de Figuras.......................................................................................................... 11 Lista de Gráficos e Lista de Tabelas........................................................................... 12 Lista de Siglas e Abreviaturas.................................................................................... 13 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 15 Capítulo 1. ESTADO E IGREJA CATÓLICA NA MODERNIDADE REPUBLICANA BRASILEIRA. 1.1 O Quinze de Novembro e a modernidade republicana......................................... 38 1.2 A Era Pós-Padroado e as novas modalidades de relacionamento entre Estado e Igreja Católica no Brasil............................................................................................. 56 1.3 A diocesanização, estratégia da Igreja Católica na modernidade republicana..... 82 Capítulo 2. BOTUCATU NO PROCESSO DE DIOCESANIZAÇÃO DO CATOLICISMO EM SÃO PAULO. 2.1 Diocesanização do catolicismo em São Paulo..................................................... 104 2.2 Botucatu e os projetos civis e eclesiásticos para o sertão paulista....................... 134 2.3 A criação e instalação da diocese de Botucatu..................................................... 154 Capítulo 3. D. LÚCIO ANTUNES DE SOUZA E A CONSTRUÇÃO DO BISPADO DE BOTUCATU NO SERTÃO PAULISTA. 3.1 D. Lúcio, o representante da elite eclesiástica brasileira no sertão paulista......... 167 3.2 As visitas pastorais, o bispado e as realidades sociopolíticas do interior paulista........................................................................................................................ 198 3.3 As congregações religiosas, o patrimônio eclesiástico e os marcos territoriais de uma diocese em construção................................................................................... 220 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 262 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 268 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mappa Geral da Viação Ferrea do Estado de São Paulo (1901). ......115 Figura 2 – Mapa: Exploração do Extremo Sertão do Estado (1905). ......116 Figura 3 – Mapa: Estado de São Paulo (1909). ......117 Figura 4 – Mapa das dioceses paulistas em 1908, com destaque para o território do bispado de Botucatu. ......133 Figura 5 – Foto de D. Duarte Leopoldo e Silva e a Comissão de Patrimônio do Bispado de Botucatu. ......155 Figura 6 – Foto do Presidente Afonso Pena no trecho Botucatu-Bauru da Sorocabana no ano de 1908. ......158 Figura 7 – Mapa: Arquidiocese e dioceses em 1908. Destaque para as principais paróquias da diocese de Botucatu. ......163 Figura 8 – Foto de seminaristas e padres formadores do Seminário de Diamantina (1881). ......177 Figura 9 – Foto de D. Lúcio Antunes de Souza no dia de sua ordenação episcopal (15/11/1908). ......189 Figura 10 – Bênção Apostólica e Indulgência do Papa Pio X a Lúcio Antunes de Souza, eleito bispo de Botucatu [23.10.1908]. ......190 Figura 11 – Foto da Escola Normal Dr. Cardoso de Almeida de Botucatu. ......236 Figura 12 – Foto da primeira ala do Colégio dos Anjos de Botucatu dirigido pelas freiras da Congregação de Santa Marcelina. ......251 Figura 13 – Foto do primeiro prédio do Seminário São José de Botucatu. ......253 Figura 14 – Foto do Hospital Misericórdia de Botucatu. ......255 Figura 15 – Foto de Iguape no início dos anos 1910 com o Santuário do Senhor Bom Jesus de Iguape. ......259 Figura 16 – Foto do Palácio Episcopal de Botucatu. ......260 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – A expansão do número de arquidioceses, dioceses e prelaturas no Brasil entre 1551 e 1930. ......98 Gráfico 2 – Percentual de dioceses criadas durante a Primeira República nos cinco “brasis”. .....101 Gráfico 3 – Percentual de prelaturas e prefeituras criadas durante a Primeira República nos cinco “brasis”. .....101 Gráfico 4 – A entrada de congregações religiosas estrangeiras no Brasil entre 1890 e 1922. .....245 Gráfico 5 – Freiras brasileiras e estrangeiras no Brasil em 1920. .....245 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Dioceses paulistas (1745-1929). .......104 Tabela 2 – Extensão territorial, número de habitantes e de paróquias das dioceses paulistas criadas no ano de 1908. .....132 Tabela 3 – Comissão de Patrimônio do Bispado de Botucatu. .......149 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ACMSP – Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. ACMB – Arquivo da Cúria Metropolitana de Botucatu-SP. AEAD – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina – MG. APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo. APNSL – Arquivo da Paróquia-Santuário Nossa Senhora de Lourdes, Botucatu-SP. Art. – Artigo. ASSF – Arquivo do Seminário São Fidélis de Piracicaba-SP. ASV – Arquivo Secreto Vaticano. BCSM – Biblioteca do Colégio Santa Marcelina de Botucatu-SP. BCPL – Biblioteca do Colégio Pio Latino-americano de Roma. BDJG – Biblioteca D. José Gaspar – Campus Ipiranga, PUC-SP. BNGK – Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri – Campus Monte Alegre, PUC-SP. BSDM – Biblioteca do Seminário Divino Mestre – Jacarezinho-PR. CCB – Centro Cultural de Botucatu-SP. CEDAP – Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa – FCL- UNESP/Assis. Cf. – Conforme/conferir. Coord. – Coordenador (a)/coordenação. D. – Dom – designativo de título honorífico atribuído a monarcas e nobres, bem como a membros da alta hierarquia eclesiástica católica. Ed. – Edição. Et al. – E outros. f. – Folha. fasc. – Fascículo. Ibidem – Mesma obra. Idem – Mesmo autor. Ir. – Irmã (freira). n. – Número. Org. – Organizador (a). p. – Página. Passim – Aqui e ali (em vários lugares). v. – Volume. t. – Tomo. 15 INTRODUÇÃO 16 No prefácio que escreveu para o livro O Eclipse de um Farol, o historiador Eduardo Basto de Albuquerque afirmou que “A história das relações entre o Estado republicano brasileiro e a religião, nas mais diversas formas, revela a luta pela hegemonia, em todos os sentidos pensados e tem muitas entradas”.1 Nessa direção, esta tese de doutoramento que objetiva explicar as conexões entre a modernidade republicana2 e a diocesanização do catolicismo no Brasil durante a Primeira República desde a reconstituição histórica do processo de criação da diocese de Botucatu no interior paulista, de 1890 a 1923, pretende ser uma dessas “muitas [possíveis] entradas” de compreensão das relações entre Estado republicano3, Igreja4 e Sociedade no limiar da Era Pós-Padroado. A propósito, foi também em um prefácio, do ano de 1963, que o historiador Sérgio Buarque de Holanda reconheceu ser impossível estudar certas 1 ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Prefácio. In: LINDVALDO, Antônio. O Eclipse de um Farol: contribuição aos estudos sobre a romanização da Igreja Católica no Brasil (1911-1917). São Cristóvão: Editora UFS: Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008, p. 16. 2 Discute-se na primeira parte do primeiro capítulo desta tese os significados do ambíguo e polêmico conceito de modernidade procurando entendê-lo como uma noção de sentidos cambiantes associada à ideia de progresso na dinâmica sociopolítica brasileira da virada do século XIX para o século XX. 3 Na ciência política, a discussão sobre o Estado contemporâneo é extensa e complexa, tal como seu objeto. Nas sociedades ditas modernas, o Estado é um conceito capaz de arregimentar uma série de princípios jurídicos e filosóficos, caracterizando-se pela articulação de um conjunto de aparatos policiais, fiscais, instrucionais e organizativos reconhecidos pela força e pelo consenso. Inscrito na teoria das formas de governo, o Estado republicano ou o Estado monárquico não apresentam necessariamente profundas divergências uma vez que governos republicanos ou monárquicos podem assumir formas ditatoriais ou democráticas. O Estado republicano implantado no Brasil a partir de 15 de novembro de 1889 suplantou uma monarquia que mantinha laços com as dinastias portuguesas dos tempos coloniais, estabeleceu o regime presidencialista em bases federalistas, mas não revolucionou a natureza do Estado brasileiro construída ao longo, sobretudo, do Segundo Reinado, como se verá adiante no primeiro capítulo. Cf. GOZZI, Gustavo. Estado Contemporâneo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. Tradução Carmen C. Varriale et al. 5.ed. Brasília: UnB: São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 401-409; PASQUINO, Gianfranco. Formas de governo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. Tradução Carmen C. Varriale et al. 5.ed. Brasília: UnB: São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 517-521; BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelangelo Bovero. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000; BORNHEIM, Gerd. Natureza do Estado Moderno. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise do Estado- Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 117-136; CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006; CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2009; HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: do Império à República. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 402-416. [História Geral da Civilização Brasileira; t.II; v.7]; FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, v.2. 10. ed. São Paulo: Globo: Publifolha, 2000, p. 47-108. 4 O Cristianismo constituiu-se historicamente em diferentes Igrejas e ritos. A Igreja Católica Apostólica Romana é atualmente apenas uma dessas Igrejas e seu rito romano é um dentre outros ritos católicos. Nesta tese, os termos “Igreja” e “Igreja Católica” remetem à Igreja Católica Apostólica Romana. 17 questões da história do Brasil “sem a exploração prévia e isenta de nossa história eclesiástica”.5 Mais de uma década depois dessa exortação de Holanda, o descaso acadêmico com a história eclesiástica persistia como asseverou o padre e historiador José Oscar Beozzo, em capítulo do volume 11, da coleção História Geral da Civilização Brasileira: “Os livros de História, mesmo os mais recentes, não dedicam espaço, a não ser acidental, à questão da Igreja no período republicano”. 6 Nessa época, anos 1970, entretanto, os estudos do catolicismo e da Igreja Católica começaram a ascender ao estatuto de legítimo objeto das ciências sociais, não obstante o predomínio de leituras históricas pautadas no materialismo histórico-dialético, vinculadas a diferentes grupos de marxianos ou de marxistas, como, por exemplo, em se tratando da Primeira República, ao da produção de Edgard Carone7, que desconsiderou o papel da religião e da Igreja Católica em sua análise da história brasileira. Ao longo das duas décadas seguintes a criação de cursos, programas de pós-graduação e associações de pesquisadores da área, bem como a realização de eventos, a tradução de livros estrangeiros e a crescente produção nacional sobre a história das religiões consolidaram esse campo de estudos que, malgrado os renitentes preconceitos acadêmicos e sociais, têm oferecido grande contribuição para o conhecimento histórico. Enfim, no ano de 2006, a situação desse campo de estudos já havia se transformado reunindo uma consistente produção como informou Ivan Aparecido 5 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Prefácio. In: CARRATO, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Ed. Nacional, 1963, p. XIII. 6 BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a Redemocratização. In: O Brasil Republicano: economia e cultura (1930-1964). 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 338. [História Geral da Civilização Brasileira; t.III; v.11; texto de 1977] 7 Cf. CARONE, Edgar. A Primeira República (1889-1930). São Paulo: Difel, 1969; CARONE, Edgar. A República Velha I: instituições e classes sociais (1889-1930). Rio de Janeiro: São Paulo: Difel, 1970; CARONE, Edgar. A República Velha II: evolução política (1889-1930). Rio de Janeiro: São Paulo: Difel, 1971. 18 Manoel: “Nos últimos vinte e cinco anos, a história das religiões firmou-se na academia brasileira, na graduação e na pós-graduação”.8 Destarte, atualmente os estudos (marcados no conjunto por uma profunda diversidade teórico-metodológica) sobre catolicismo “popular”, romanização9, reforma e reorganização da Igreja, dioceses e paróquias, ou, em maior medida, acerca do governo ou da personalidade de alguns bispos, têm-se multiplicado, constituindo um expressivo acervo bibliográfico responsável pela alteração das formas de abordagem dos problemas eclesiásticos, e também pela revisão crítica de aspectos importantes da história brasileira, tais como: colonização, política imperial, imigração, festas e sociabilidades, urbanização, educação, papel social das mulheres, direitos humanos etc.10 8 MANOEL, Ivan Aparecido. Apresentação. In: _____; FREITAS, Nainora M. B. de (orgs.). História das Religiões: desafios, problemas e avanços teóricos, metodológicos e historiográficos. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 11-12. 9 Para o que interessa ao debate historiográfico contemporâneo, o termo romanização foi usado pelo teólogo alemão Johann Joseptz Ignatz von Döllinger (1799-1890), de pseudônimo Janus, em seu livro O Papa e o Concílio, de 1869, para se referir e se opor ao que considerou processo de expansão do poder centralizador da Cúria Romana. Com efeito, von Döllinger também opôs-se ao dogma da infalibilidade papal sancionado no Primeiro Concílio Vaticano (1869-1870). Ele foi excomungado pela Igreja Católica no ano de 1871. Assim, o termo romanização surgiu entre os adversários dos ultramontanos. E, por essa razão, o livro de von Döllinger foi traduzido no Brasil, ainda em 1877, por Rui Barbosa, sob encomenda do líder maçônico Joaquim Saldanha Marinho. Na primeira metade do século XX, o termo transformou- se em conceito nos trabalhos de Roger Bastide e Ralph Della Cava, até estabelecer-se de vez na produção historiográfica da Comissão de Estudos da História da Igreja Latino Americana (CEHILA). Sobre esse debate, conferir: SANTIROCCHI, Ítalo. Uma questão de revisão de conceitos: Romanização – Ultramontanismo – Reforma. Revista Temporalidades, Belo Horizonte, UFMG, vol. 2, n.º 2, p. 24-33, Agosto/Dezembro de 2010. Disponível: www.fafich.ufmg.br/temporalidades Acesso: 15 jan. 2011; AQUINO, Maurício de. Romanização, historiografia, tensões sociais. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, ano VIII, v. 8, n. 2, maio-jun. 2011. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/PDF26/Artigo_5_Mauricio_de_Aquino.pdf Acesso em: 20 nov. 2011. 10 Cf. QUADROS, Eduardo Gusmão de; SILVA, Maria da Conceição (orgs.). Sociabilidades religiosas: mitos, ritos, identidades. São Paulo: Paulinas, 2011; PASSOS, Mauro (org.). Diálogos Cruzados: religião, história e construção social. Belo Horizonte: Argumentum, 2010; MANOEL, Ivan Aparecido; ANDRADE, Solange Ramos de (orgs.). Tolerância e intolerância nas manifestações religiosas. Franca, SP: UNESP-FHDSS, 2010; ALMEIDA, Adroaldo J. S.; SANTOS, Lyndon de A.; FERRETTI, Sérgio F. (orgs.). Religião, Raça e Identidade. São Paulo: Paulinas, 2009; USARSKI, Frank (org.). O espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007; MANOEL, Ivan Aparecido; FREITAS, Nainora M. B. de (orgs.). História das Religiões: desafios, problemas e avanços teóricos, metodológicos e historiográficos. São Paulo: Paulinas, 2006; BRANDÃO, Sylvana; MARQUES, Luiz Carlos Luz; CABRAL, Newton D. de Andrade. História das religiões no Brasil: volume 4. Recife: Ed. da UFPE, 2006; GUERRIERO, Silas (org.). O Estudo das Religiões: desafios contemporâneos. São Paulo: Paulinas, 2003; LIMA, Lana L. da Gama; HONORATO, Cezar T.; CIRIBELLI, Marilda C.; SILVA, Francisco C. Teixeira da (orgs.). História & Religião: VIII Encontro Regional de História da Anpuh – Núcleo Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002; LONDOÑO, Fernando Torres (org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997; MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja 19 É nessa hodierna rede de estudos acadêmicos das religiões que se situa esta tese de doutoramento delineada a partir do clássico problema das relações entre Estado e Igreja, com o pano de fundo revestido pelos embates ideológicos e institucionais suscitados pela modernidade no Brasil, tendo em primeiro plano o processo de construção do bispado de Botucatu, criado em 1908, em área conhecida como sertão paulista. Num duplo movimento, procura- se explicar a ereção dessa diocese recorrendo ao conjunto mais amplo das relações institucionais entre o Brasil e a Santa Sé, entre o Estado republicano e a Igreja, sem deixar de percorrer o caminho inverso que faz da reconstituição da história da diocese de Botucatu um exercício fundamental de compreensão regional dessas macrorrelações o que possibilita, nesses jogos de escalas11, problematizar certas situações consideradas desde interpretações universalizantes. Da mesma maneira, busca-se conciliar as duas vertentes metodológicas predominantes nesses estudos produzindo uma argumentação capaz de articular percursos institucionais e trajetórias individuais, seguindo uma abordagem cronológica, mas não linear, que se justifica pela intenção de surpreender esse processo em sua formação e nuances, considerando suas tensões internas como fulcro da explicação histórica. Nessa operação historiográfica, a religião apresenta-se como mais um dos setores técnicos do trabalho do historiador. Ato que remete ao século XVIII quando o movimento iluminista atribuiu novos significados ao antigo termo latino-cristão: “Religião não significa mais uma Ordem religiosa ou igreja no singular: ‘religião, de agora em diante, se pode dizer no plural’. É uma positividade sócio-histórica ligada a um corpus de hipóteses abstratas”.12 Essa definição de religião (transformada em categoria analítica) fez com que o conteúdo da crença fosse passível de crítica enquanto objeto de estudo, e educação feminina (1859-1919). São Paulo: Ed. UNESP, 1996; WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no século XIX: A Reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987. 11 Cf. REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 1998. 12 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 157. 20 instaurando aí, todavia, uma primeira tensão interna entre a religião vivida e a religião pensada, entre a experiência da religião e a análise conceitual da religião. Dessa primeira tensão desdobra-se outra, inscrita na teoria propriamente historiográfica, esboçada nas rivalidades epistemológicas e nas filosofias da história que acompanham a “história social” (sociológica) e a “história religiosa” (confessional), colocando em relação distintos modelos de inteligibilidade que são utilizados de modo ímpar em constructos formulados pelos historiadores de acordo com a sua localização epistemológica. 13 Acerca dessa tensão entre “história social” e “história religiosa”, Michel de Certeau asseverou que: Tanto num caso como no outro será preciso, pois, inicialmente, diferenciar as maneiras pelas quais os “fatos” religiosos (supondo-se que estes fatos sejam idênticos) funcionam, quer dizer, distinguir as ordens que determinam os reempregos destes fatos e, portanto, suas significações sucessivas – isto antes e a fim de poder apreender qual é a relação histórica entre essas formas e, assim, nosso meio de “compreendê-las” ou de interpretá-las “fielmente”. 14 Problematizando o postulado iluminista impresso na categoria “religião”, a abordagem histórica das religiões deve ser constituída na tensão entre essas duas formas de inteligibilidade, a “social” e a “religiosa”, de modo a não reduzir, por exemplo, no caso do cristianismo católico romano, afirmações doutrinárias em epifenômenos sociais, procurando evitar aquilo que Michel Lagrée chamou de “Fascinação do interface”, situação na qual o conectivo “e” (religião e cultura, religião e sociedade) apenas ocultaria uma instrumentalização do “religioso” – transformado em “binóculo particular para a observação do objecto social”. 15 A história das religiões, como prática científica, tem suas 13 Ibidem, p. 31. 14 Ibidem, p. 147. 15 LAGRÉE, Michel. História religiosa e história cultural. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean- François (dir.). Para uma história cultural. Tradução de Ana Moura. Lisboa, Portugal: Estampa, 1998, p. 372. 21 especificidades teórico-metodológicas que justificam entendê-la como domínio autônomo no campo disciplinar da história, sem submetê-la a “rótulos” ou a “etiquetas” da historiografia. Com efeito, ao se tratar da noção de Igreja, urge defini-la operatoriamente a partir de seus dois significados recorrentes e concorrentes na literatura eclesiástica e sociológica: a Igreja enquanto “corpo místico de Jesus Cristo” e enquanto “corpo político”. Pressupondo essa tensão definidora, pode-se considerar, com Bronislaw Geremek, a Igreja “como um conjunto institucional capaz de organizar em torno de um sistema de crenças uma comunidade hierarquizada de fiéis, procedendo à estandardização de um sistema de sinais rituais”. 16 É também nessa direção teórico-metodológica que se pode entender a caracterização do discurso17 da Igreja Católica como um discurso teológico-político, na esteira da refinada análise, já clássica, de Roberto Romano no livro Brasil: Igreja contra Estado. Para esse filósofo político, outrora frade da Ordem dos Pregadores (dominicanos), o discurso católico está investido de intenções soteriológicas que incidem sobre suas proposições políticas, constituindo-se em meio a conflitos e tensões, ad intra (interna) e ad extra (externa) da Igreja, garantindo-lhe através de leituras que articulam e rearticulam imagens e elementos culturais, políticos e econômicos de seu tempo, desde 16 GEREMEK, Bronislaw. Igreja. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi: Mythos/Logos; Sagrado/Profano. Tradução de Bernardo Leitão. Lisboa, Portugal: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 167. Essa discussão aparece também em texto clássico de Aline Coutrot: COUTROT, Aline. Religião e Política. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Tradução de Dora Rocha. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 331-364. Esse trabalho de Geremek é assumido nesta tese como referência para um aspecto determinado: a Igreja enquanto uma instituição religiosa. A propósito, considerando a produção histórica e sociológica brasileira arrolada nas referências urge distinguir analiticamente o uso do termo “Igreja” para se referir à instituição, e “catolicismo” para se referir às práticas católicas, institucionais ou não. 17 Discurso pode ser concebido, grosso modo, como uma articulação ordenada de certos princípios e valores sociais com determinada finalidade representada de diferentes formas (oral, escrita, imagética etc.). Assim, o discurso não se reduz a um texto ou pronunciamento, que são algumas de suas formas concretas, mas os antecede, constitui e sustenta. Ademais, essa categoria aponta para os vínculos existentes entre modos de pensar e práticas sociais. Para Michel de Certeau, os discursos estão inscritos nas relações entre produtos e lugares de produção. Cf. RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006; CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 22 princípios da tradição eclesiástica que postula o domínio sobre a dimensão do “transcendente”, uma racionalidade única em relação a outros discursos. 18 Nesta tese pretende-se pensar também a constituição desse discurso eclesiástico no curso do processo de reforma e reorganização da Igreja Católica na Primeira República que por estar assentado na criação de dioceses19 pode ser representado pelo conceito de diocesanização, entendido a partir da categoria analítica de estratégia, assim definida por Michel de Certeau: As estratégias são portanto ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugar e visam dominá-los uns pelos outros. Privilegiam portanto as relações espaciais. 20 18 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p. 19-44. Desde as bases teóricas da análise de discurso, sobretudo de Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi definiu o discurso religioso “como aquele em que fala a voz de Deus: a voz do padre – ou do pregador, ou, em geral, de qualquer representante seu – é a voz de Deus. (...) o locutor é do plano espiritual (o Sujeito, Deus) e o ouvinte é do plano temporal (os sujeitos, os homens). Isto é, locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal”. ORLANDI, Eni Puccinelli. O discurso religioso. In: _____. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 5.ed. Campinas, SP: Pontes, 2009, p. 242-243. 19 O dicionário veneziano de erudição histórico-eclesiástica, compilado por Gaetano Moroni, do século XIX, assim define diocese: “território no qual se estende a jurisdição espiritual, administrativa, e o governo eclesiástico de um bispo ou de um arcebispo (...) Leibniz concordou, que a dependência de uma diocese de um só bispo, aquela de muitos bispos de um só arcebispo metropolitano, a subordinação de todos ao sumo Pontífice, é o modelo de um governo perfeito”. DIZIONARIO di Erudizione Storico- Ecclesiastica. Compilazione: Gaetano Moroni Romano. Venezia: Tip. Emiliana, 1843, v. XIX, p. 75-76. ASV – Biblioteca. [“(...) território su cui si estende la spirituale giurisdizione, l’amministrazione, e il governo ecclesiastico d’un vescovo o d’un arcivescovo (...) Leibnizio accordò, che la dipendenza di una diocesi da un solo vescovo, quella di molti vescovi da un solo metropolitano, la subordinazione di tutti al sommo Pontefice, è il modello d’un perfetto governo”.] Nesta tese, diocese/bispado será concebida como uma realidade geográfica e teológico-política. Em alguns pontos os termos diocese e bispado se equivalem, em outros, indicados ao longo do texto, eles se distinguem, entendendo-se a diocese como território eclesiástico e o bispado, mais especificamente, como área de poder, de domínio de um determinado bispo. Realidade geográfica, o espaço diocesano não é imutável e homogêneo. Realidade teológico-política, a diocese representa em seus espaços as doutrinas católicas, garante em seu território a soberania da Igreja, estabelecendo-se como um poder socialmente constituído que afronta outros poderes, com os quais mantém um equilíbrio móvel de tensões. O movimento de paroquialização é entendido como parte do processo de diocesanização. Sobre a paroquialização: CASTILHO, José Manuel Sanz del. O Movimento da Reforma e a “paroquialização” do espaço eclesial do século XIX ao XX. In: LONDOÑO, Fernando Torres (org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 91-130. 20 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 11.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 102. 23 O conceito de diocesanização considerado aqui como um conjunto de intervenções da Igreja Católica que ativa seu poderio institucional para criar lugares próprios, justificando suas práticas através de um discurso teológico-político que repercute sobre a construção e organização dos espaços, permite repensar, desde novas bases, as relações entre o Estado republicano, a Igreja e a Sociedade no Brasil, do final do século XIX às primeiras décadas do século XX, ao propor novas indagações aos documentos clássicos desse problema, ao abrir caminho para que novos documentos sejam considerados na análise, bem como problematizar certas interpretações históricas e sociológicas recorrentes que merecem reparos e ajustes ao serem rigorosamente confrontadas com a documentação e a historiografia pertinentes. Ressalte-se aqui que a diocesanização não se restringe a um processo territorial (geográfico), mas, sob a inspiração da categoria de estratégia de Michel de Certeau, envolveria além dos lugares físicos, os lugares políticos (relações e situações de poder) e os lugares teóricos (discursos). Sabe-se que o reconhecimento da importância da criação de dioceses na Primeira República brasileira não é nenhuma novidade na literatura especializada. Aliás, quando se trata da história da Igreja Católica nesse período é lugar-comum fazer menção ao seu desenvolvimento institucional citando o aumento do número de dioceses, como fez, por exemplo, o cientista social Thales de Azevedo, em texto clássico do ano de 195521, ou ainda, como fizeram, nos anos 1970, os historiadores e frades dominicanos Sérgio Lobo de Moura e José Maria Gouvêa de Almeida, em capítulo do volume 9, da coleção História Geral da Civilização Brasileira: No que tange, por exemplo, à organização hierárquica, as injunções do padroado e do regalismo tolheram enormemente, durante o período imperial, as nomeações episcopais e a criação de novas dioceses pela Santa Sé. A Primeira República significou deste ponto de vista uma acelerada recuperação de terreno. Em 1889, constituía o Brasil uma única província 21 AZEVEDO, Thales de. O Catolicismo no Brasil: um campo para a pesquisa social. Salvador: Edufba, 2002, p. 44. [Texto de 1955] 24 eclesiástica, constando de uma arquidiocese e 11 dioceses. Em 1930, havia no Brasil 16 arquidioceses, 50 dioceses, 20 prelazias ou prefeituras apostólicas. 22 Não obstante esse reconhecimento da expansão institucional através do aumento do número de dioceses, na historiografia brasileira ainda não há um acúmulo de pesquisas que se compare ao conjunto de investigações realizadas em Portugal23, ou em França24, nas quais a diocese é concebida como real objeto de estudo. E mesmo as investigações realizadas nas últimas décadas nas áreas da geografia cultural e da história cultural não fizeram da criação e construção de uma diocese realmente um problema de pesquisa. A diocese é comumente incorporada às pesquisas desenvolvidas no Brasil como elemento secundário, marginal, simples recorte espacial para a discussão central que pode ser a gestão de um bispo específico ou a formação da elite eclesiástica ou ainda os processos de reforma, reorganização, restauração, romanização da Igreja no Brasil.25 Neste trabalho de pesquisa histórica a criação de dioceses, em particular a de Botucatu, apresenta-se como problema, não como dado. Daí a tese segundo a qual as relações entre o Estado republicano e a Igreja Católica na Primeira República devem ser entendidas no quadro das conexões e das tensões entre a modernidade republicana e a diocesanização do catolicismo no Brasil. 22 MOURA, Sérgio Lobo de; Almeida, José Gouvêa de. A Igreja na Primeira República. In: FAUSTO, Bóris (dir.). O Brasil Republicano: sociedade e instituições (1889-1930). 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 356. [História Geral da Civilização Brasileira; t.III; v.9; texto de 1977] 23 Por exemplo: VILAR, Hermínia Vasconcelos. As dimensões de um poder: a Diocese de Évora na Idade Média. Lisboa, Portugal: Estampa, 1999. 24 Por exemplo: CHAIX, Gérald (dir.) Le Diocèse: espaces, représentations, pouvoirs. France, XVe-XXe siècle. Paris: Cerf, 2002. 25 Como, por exemplo, nos seguintes trabalhos: VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de reforma e reorganização da Igreja no Brasil (1844-1926). Aparecida, SP: Ed. Santuário, 2007; MICELI, Sérgio. A Elite Eclesiástica Brasileira: 1890-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 2009; WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no século XIX: A Reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987. São poucas, como se afirmou, as produções que se detêm a pensar especificamente o processo de criação de dioceses, valendo citar duas delas: ROSENDAHL, Z; CORRÊA, Roberto Lobato. Difusão e territórios diocesanos no Brasil, 1551-1930. Scripta Nova. Revista Eletronica de Geografia y Ciencias Sociales. v. X, n. 218, ago 2006, Barcelona: Universidad de Barcelona, p.7. Disponível em: www.Ub.Es/geocrit/sn/sn-218-65.htm Acesso em: 30 out 2008; e, alguns capítulos do seguinte livro: SOUZA, Rogério Luiz de; OTTO, Clarícia (orgs.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Insular, 2008. 25 Ademais, em termos de abordagem, o uso do conceito de diocesanização apresenta-se como contraponto crítico àquele de estadualização da organização eclesiástica (consagrado no influente livro A Elite Eclesiástica Brasileira26, do sociólogo Sérgio Miceli) com a intenção de ressaltar que as ações dos bispos católicos responderam às injunções da implantação da república segundo os interesses da própria Igreja, expressos em documentos oficiais e correspondências privadas consultadas em arquivos do Brasil e do Vaticano, demonstrando, assim, a inadequação histórica de qualquer explicação que reduza as práticas eclesiásticas à finalidade de um pacto oligárquico. Se houve certa estadualização da organização eclesiástica27, defende-se aqui outro movimento, o de certa diocesanização dos poderes regionais e das formas e dinâmicas de controle do território nacional. Esta tese foi elaborada com base em uma diversificada documentação, civil e eclesiástica, submetida ao crivo analítico dos princípios gerais de análise documental expostos por Jacques Le Goff em texto dos anos 1970, intitulado Documento/Monumento.28 Além disso, cada tipo de fonte histórica demandou ainda, como de praxe, um tratamento metodológico específico.29 26 MICELI, Sérgio. A Elite Eclesiástica Brasileira: 1890-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. [Texto de 1988] 27 Cf. GOMES, Edgar da Silva. O catolicismo nas tramas do poder: a estadualização diocesana na Primeira República (1889-1930). Tese (Doutorado em História). PUC, São Paulo, 2012. 28 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: _____. História e Memória. Tradução de Irene Ferreira et al. 5.ed. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2003, p. 525-541. O estudo de história institucional exige também um exame acurado das características e implicações próprias desse modo de escrita da história conforme assinalaram Michel de Certeau e Marc Ferro. Cf. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 69-71 et passim; FERRO, Marc. A história institucional. In: _____. A história vigiada. Tradução de Doris Sanches Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 11-40. 29 Acerca dessa questão do tratamento metodológico dos diferentes tipos de documentos históricos, conferir as seguintes obras gerais de referência desta tese: ARÓSTEGUI, Julio. A Pesquisa histórica: teoria e método. Tradução de Andréa Dore. Bauru, SP: Edusc, 2006; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005; PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009; SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T. História & Documento e metodologia de pesquisa. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. As correspondências têm lugar de destaque nesta tese e sua análise se fundamentou nas referências metodológicas oferecidas pelos autores de trabalhos dos seguintes livros: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Cia. 26 Dentre os documentos eclesiásticos utilizados destacam-se as Atas e Decretos do Concílio Plenário Latino-americano de 1899 (muito citadas, mas pouco utilizadas na condição de fonte primária), as cartas circulares e pastorais do episcopado brasileiro, o Código de Direito Canônico de 1917, as bulas, as encíclicas, os decretos, os diários, as correspondências de padres, bispos, cardeais e núncios, os relatórios, as instruções, os manuscritos, os periódicos e as fotos. Esses documentos foram consultados nos seguintes arquivos e bibliotecas: Arquivo da Cúria Metropolitana de Botucatu, Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina, Arquivo do Seminário São Fidélis de Piracicaba (da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos), Arquivo Secreto Vaticano, Biblioteca do Colégio Santa Marcelina de Botucatu, Biblioteca D. José Gaspar (PUC-SP/Ipiranga), Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri (PUC-SP/Monte Alegre) e a Biblioteca do Seminário Divino Mestre de Jacarezinho (Paraná). Dos documentos civis, ou não eclesiásticos, despontam os periódicos anarquistas (A Lanterna e La Battaglia) e botucatuenses (Correio de Botucatú e O Botucatuense), a literatura memorialista concernente a Botucatu, os maços de documentação da Instrução Pública de São Paulo, fotos diversas, constituição e decretos da Primeira República, o Código Civil brasileiro de 1916 e os relatórios da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo do início do século XX. Esses documentos foram consultados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Centro Cultural de Botucatu, no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras de Assis (CEDAP/UNESP) e na Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri (PUC-SP/Monte Alegre). Alguns desses documentos civis e eclesiásticos também foram consultados em sítios eletrônicos (geralmente institucionais) da rede mundial de computadores. Essa diversidade de informação historiográfica permitiu articular, cotejar, discutir e problematizar as diferentes perspectivas dos sujeitos, das Letras, 2000; GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. 27 grupos sociais e instituições envolvidos com o problema da criação de dioceses no Brasil da Primeira República, em particular, no caso da diocese de Botucatu, no interior do estado de São Paulo. Essa documentação viabilizou a reconstrução histórica dessas relações entre Estado republicano, Igreja e Sociedade, desde o problema da criação da diocese de Botucatu, apresentada neste texto em movimentos que vão da descrição à análise, da narração à teorização. O marco temporal inicial do processo examinado nesta tese pode ser remetido ao dia 07 de janeiro de 1890, quando o decreto 119-A determinou o fim do Padroado e estabeleceu a liberdade de culto público no Brasil. O Estado republicano demarcou sua autonomia e soberania, impondo-se como construtor e gerente da realidade sociopolítica. Ainda que a separação não tenha surpreendido por completo o episcopado brasileiro em virtude dos desdobramentos da chamada “Questão Religiosa” (1872-1875), os bispos colocaram-se vigilantes diante da nova situação sociopolítica. O ano de 1890 marcou o início da Era Pós- Padroado no Brasil e deixou suas impressões nas modalidades de relacionamento entre a Igreja e o Estado republicano nas décadas posteriores. Relações de equilíbrio e de tensão. De acordos e de rupturas, sobretudo porque nesse período, não obstante o término do Padroado, o Estado continuou a agir em relação à Igreja segundo princípios regalistas, e a Igreja agiu em relação ao Estado a partir de sua autocompreensão de “sociedade perfeita”, no quadro da “teoria teológico- política dos dois poderes”, de complementação entre a “sociedade eclesiástica” e a “sociedade civil”. A adoção do regalismo, de um lado, e, da autocompreensão institucional de “sociedade perfeita”, de outro, sustentou as articulações e os conflitos entre essas instituições ao longo da Primeira República. O marco temporal final da pesquisa aqui apresentada remete ao dia 19 de outubro de 192330 quando faleceu o primeiro bispo de Botucatu, D. 30 Ademais, esta pesquisa assume a premissa de periodização defendida por Riolando Azzi que considera, na esteira de Alceu Amoroso Lima, 1922/1923 como marco cronológico de um novo período do catolicismo no Brasil por ocasião da fundação do Centro Dom Vital e da revista A Ordem. Cf. AZZI, Riolando. Introdução. In: AZZI, Riolando; VAN DER GRIPJ, Klaus. História da Igreja no Brasil: terceira época – 1930-1964. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 07-08. 28 Lúcio Antunes de Souza, homem ordenado “príncipe da Igreja” em Roma pela imposição das mãos da principal figura eclesiástica do período estudado nessa tese: o Cardeal Arcoverde. O bispado de Botucatu foi criado, em 1908, a partir da articulação de projetos civis e eclesiásticos para o sertão paulista – considerado pelas elites como uma “mancha” no mapa do progresso do estado de São Paulo na passagem do século XIX para o século XX. Mas, não bastou criar uma diocese em cujos limites existiam cidades muito diferentes em termos sociopolíticos e econômicos, ideologias variadas que iam do protestantismo ao anarquismo, etnias diversas como as de italianos e guaranis, ecossistemas e formas geográficas distintas entre as regiões próximas do rio Tietê e aquelas vizinhas do litoral. A heterogeneidade marcante dessa diocese foi sentida no interior do próprio catolicismo uma vez que no mesmo território diocesano se misturavam crenças e práticas de clérigos e leigos que destoavam muito do catolicismo mais ortodoxo, enfatizado pela Santa Sé a partir do Concílio de Trento (1545-1563), e assumido pela maioria do episcopado brasileiro na última metade do século XIX sob o nome de ultramontanismo.31 Assim, de fato, não bastou criar a diocese, foi preciso construir um bispado, dar existência e forma ultramontana a esse território reivindicado pela Igreja Católica e reconhecido pelo Estado republicano brasileiro. E essa tarefa cabia principalmente aos primeiros bispos diocesanos, e no caso de Botucatu, coube a D. Lúcio Antunes de Souza empreender a construção da diocese do sertão paulista. Enfim, esses são os principais aspectos, pressupostos e propósitos desta tese de doutoramento organizada em três capítulos. No primeiro capítulo, intitulado Estado e Igreja Católica na modernidade republicana, discute-se inicialmente a “utopia do progresso” das 31 Segundo o historiador Augustin Wernet: “Etimologicamente falando, ultramontano ou outremontagne foi a expressão usada, no início do século XIX, na França e na Alemanha, para indicar, na rosa-dos- ventos, o ponto escolhido de referência e fidelidade: ele está para lá das montanhas, além dos Alpes. Seu nome é Roma, é Pedro, o papa. A reação ultramontana [diante do racionalismo iluminista e da revolução francesa] se desenvolveu sobre um plano duplo: tendência a reconhecer no Papa da Igreja, uma autoridade espiritual total, e a reivindicação para a Igreja da independência a respeito do poder civil, e mesmo de um certo poder ao menos indireto sobre o Estado”.WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no século XIX: A Reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987, p. 178. 29 elites brasileiras no âmbito da internacionalização do capitalismo na virada do século XIX para o século XX, ressaltando o fato de que para algumas parcelas dessas elites o progresso só viria a acontecer plenamente com o fim da monarquia. Assim, o Quinze de Novembro teria inaugurado um novo estágio no progresso nacional proclamando a modernidade republicana desde bases científico-tecnológicas. Em meio às concorrências ideológicas da época, o governo provisório da República dos Estados Unidos do Brazil determinou o fim do Padroado através do decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890, com o objetivo inicial de neutralizar os conflitos de valores morais e impor o Estado republicano como construtor e gestor, ao menos juridicamente, da realidade sociopolítica. O Estado buscou na laicidade o princípio moderno para reger-se de maneira plenamente independente e soberana. Uma laicidade que se mostrou distinta daquela praticada nos Estados Unidos da América ou na França, afinal não foi juridicamente nem religiosa, nem antirreligiosa. Considera-se nesta tese a laicidade do Estado republicano na Primeira República por meio da expressão laicidade pragmática uma vez que a palavra “pragmática” designa tanto a finalidade utilitária ou prática das aproximações e dos distanciamentos do Estado em relação à Igreja quanto o modo como se davam essas relações, isto é, seguindo certa pragmática, ou seja, um conjunto de cerimônias próprias das cortes civis e eclesiásticas. Nada mais adequado para uma República dos Conselheiros. Abre-se aí outro ponto de discussão do capítulo. Trata-se de examinar o posicionamento institucional, e em alguns casos individual, do episcopado brasileiro e do internúncio apostólico diante das novas circunstâncias impostas pela república brasileira. Nesse ponto procede-se à releitura analítica de documentos há muito estabelecidos nesse debate, como as cartas pastorais do episcopado, os textos do decreto 119-A e da constituição de 1891, bem como as correspondências trocadas entre Rui Barbosa e D. Macedo Costa em dezembro de 1889. Mas, essa análise avança em relação às anteriores dispostas na historiografia brasileira na medida em que coteja essa documentação nuclear com 30 informações históricas pouco ou ainda não utilizadas, como as correspondências e os relatórios do internúncio com o episcopado brasileiro e com o secretário da Santa Sé, ou mesmo interrogando, na perspectiva do problema de criação de dioceses, a encíclica Litteras a vobis, de 1894, pela qual o papa Leão XIII dirigiu-se aos bispos do Brasil solicitando a aceitação da ordem política estabelecida, isto é, o regime republicano. Postulando a dinâmica de relacionamento entre Estado e Igreja no Brasil a partir da noção de equilíbrio móvel das tensões32 entre instituições e entre instituições e indivíduos, no quadro da teoria sociológica figuracional de Norbert Elias (1897-1990)33, o primeiro capítulo se finda com a análise do processo de diocesanização do catolicismo no Brasil como estratégia (no sentido certeauniano) da Igreja para fazer frente à modernidade, inscrevendo no espaço seu discurso teológico-político, servindo-se do reconhecimento governamental das novas dioceses para ampliar sua influência na sociedade ao mesmo tempo em que a entrada de congregações religiosas estrangeiras masculinas e femininas, para atuarem em colégios, hospitais e missões junto aos índios, tornou a Igreja uma instituição atraente para os projetos civilizatórios dos estados federais que compunham a nascente república brasileira. 32 Cf. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 158; ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 121. 33 Para Norbert Elias, o “que distingue o conceito de figuração dos conceitos mais antigos com os quais se pode compará-lo é precisamente que ele constitui um olhar sobre os homens. Ele ajuda a escapar de armadilhas tradicionais, as das polarizações, como a do “indivíduo” e da “sociedade”, do atomismo e do coletivismo sociológico”. ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 146. Com efeito, para Elias, a sociedade é entendida como uma rede de funções que se delineiam historicamente em determinadas figurações que estabelecem certa interdependência dos indivíduos entre si, envolvida pela dinâmica social que distingue os estabelecidos dos outsiders: “Assim, cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que chamamos ‘sociedade’”. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 23. Ver também: ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 31 No segundo capítulo, sob o título A criação do bispado de Botucatu no processo de diocesanização do catolicismo em São Paulo, aborda-se o processo regional de diocesanização no estado de São Paulo, em particular, no caso da criação do bispado de Botucatu. No início do século XX, no contexto da belle époque, o estado paulista cresceu vertiginosamente a partir dos fenômenos sociopolíticos e econômicos de expansão da cafeicultura, da construção de ferrovias, da imigração e da urbanização. Tal como a capital federal da República, a cidade de São Paulo passou por uma ampla reforma urbanística, com a derrubada de antigas casas e a abertura de avenidas e bairros de luxo. No interior, o Oeste Paulista passou a atrair investimentos e mão de obra de estrangeiros e habitantes de outros estados da federação, sobretudo, depois de as estradas de ferro estenderam suas malhas ferroviárias até o extremo sertão paulista, área que desafiou os discursos de progresso dos políticos do estado desde o final do século XIX quando foi criada a Comissão Geográfica e Geológica com a intenção de explorar e mapear essa região visando incorporá-la ao que as elites políticas consideravam como civilização. Para a Igreja, o acelerado crescimento da cidade de São Paulo, então já “metrópole do café”, e também do ritmo constante de desenvolvimento do interior do estado, implicou no surgimento de um ambiente social instável e, por vezes, hostil ao catolicismo. A força política de grupos positivistas e maçons, o fortalecimento do protestantismo, o despontar do espiritismo e as ações dos anarquistas em passeatas e periódicos, como a folha anticlerical A Lanterna, colocaram em xeque a autoridade da instituição eclesiástica e exigiram práticas mais intensas do episcopado, do clero e das congregações religiosas femininas e masculinas estrangeiras que chegaram para atender, em um primeiro momento, os seus patrícios imigrantes. A solução da Igreja para enfrentar essas ideologias concorrentes e envidar ações para fortalecer sua presença na sociedade consistiu, em primeiro lugar, na criação de dioceses. Os pedidos para a ereção dessas circunscrições eclesiásticas são recorrentes na documentação analisada. E daí é 32 possível acompanhar analiticamente toda a complexidade burocrática e sociopolítica que envolveu a criação de uma diocese na Primeira República. Observa-se, aliás, que apesar da separação entre o Estado e a Igreja, as lideranças civis locais e regionais reconheceram o poderio institucional católico, sobretudo em sua capacidade de formar a opinião popular e mobilizar o povo. Por essas e outras razões, as lideranças políticas envolveram-se nas comissões de criação de bispados em meio às concorrências que foram se estabelecendo entre as cidades candidatas a sedes diocesanas. A escolha de uma cidade a sede de bispado foi considerada como sinal de distinção. Mas, nem todos os habitantes e grupos sociais desejaram ver um bispo residindo em sua terra, o que gerou também conflitos, resistências e tensões, principalmente, no que diz respeito à formação do patrimônio financeiro elementar para a eleição da cidade-sede exigido pela Santa Sé. O caso da criação da diocese de Botucatu é significativo para o entendimento dos projetos civis e eclesiásticos, bem como das tensões inerentes a esse processo na modernidade republicana uma vez que essa cidade situava-se na chamada “boca do sertão”. Isso quer dizer que a cidade foi o ponto de partida do governo estadual para atingir as regiões paulistas mais extremas onde índios caingangues e guaranis resistiram até o limite aos avanços das estradas de ferro e das companhias de colonização. Sob a inspiração de Norbert Elias, pode-se afirmar que Botucatu foi o núcleo do processo civilizador e de seus desdobramentos no estado de São Paulo do início do século XX. Para a Igreja, essa cidade situada entre a zona de antiga e nova colonização, com significativa presença de imigrantes italianos, envolvida pelas ações protestantes e anarquistas, reuniu as condições ideais para sediar um bispado a partir do qual se desenvolveriam as ações de reforma do clero e do laicato, bem como o combate às ideologias contrárias ao catolicismo e a expansão da instituição através de uma rede de colégios e hospitais sob a direção da Igreja. Assim, no final do capítulo é possível entender a criação da diocese de Botucatu como resultado de uma 33 intrincada e tensa articulação de projetos civis e eclesiásticos voltados para o sertão paulista. No terceiro capítulo, com o título D. Lúcio Antunes de Souza e a construção do bispado de Botucatu, examina-se o processo de construção do bispado que aqui se distingue analiticamente do termo diocese ao indicar o exercício da autoridade episcopal em seu território, no caso em estudo, o de Botucatu. Não bastou criar e instalar juridicamente a diocese. Foi preciso um intenso trabalho de D. Lúcio Antunes de Souza para dar existência social à sua diocese, para estabelecer sua autoridade, formar o patrimônio diocesano, combater as doutrinas anticatólicas, criar uma rede de lugares (santuários, colégios, seminário, palácio episcopal etc.) que inscreveriam no espaço o discurso teológico-político da Igreja... Enfim, foi preciso construir o bispado de Botucatu. De fato, à época o Código de Direito Canônico determinou uma interpretação da diocese que enfatizava dois aspectos: o território e o bispo. Uma diocese era seu território e seu bispo. A diocese era entendida a partir de seu bispo, daí bispado. Por essa razão, a parte inicial desse capítulo detém-se na investigação da trajetória eclesiástica de Lúcio Antunes de Souza, eleito para ser o primeiro bispo da diocese de Botucatu. A análise da trajetória desse mineiro, nascido em Lençóis do Rio Verde no ano de 1863, estudante do seminário de Diamantina entre 1880 e 1890, depois professor do mesmo seminário, pároco de Montes Claros, secretário do bispado de Diamantina e redator-chefe do periódico católico A Estrella Polar, permite acompanhar um dos possíveis percursos da carreira eclesiástica à posição de bispo durante a Primeira República. Eleito, Lúcio dirigiu-se à cidade de Roma, sede institucional do sacerdócio católico, para receber sua ordenação episcopal na capela do Colégio Pio Latino-americano no dia 15 de novembro de 1908. Essa parte biográfica do estudo permite contrapor os discursos oficiais aos textos privados, das correspondências, por exemplo, além de proporcionar o cotejamento das informações historiográficas coletadas 34 com as narrativas biográficas ou hagiográficas sobre o primeiro bispo de Botucatu. A análise prossegue na observação crítica dos documentos pertinentes às visitas pastorais empreendidas por D. Lúcio no sertão paulista, em especial, o manuscrito de Frei Modesto Rezende, intitulado As minhas viagens pela Diocese de Botucatú em Visita Pastoral com D. Lucio Antunes de Souza, além de correspondências, diário e matérias jornalísticas. Se, na maioria das vezes, o bispo e sua comitiva foram bem recebidos, não são raros, entretanto, os casos de indiferença e, mesmo, de hostilidade aos representantes da Igreja. O bispo, personagem mais fictícia do que real no imaginário dos habitantes do sertão paulista, seguiu de perto as determinações da Santa Sé e do episcopado brasileiro visitando toda a sua extensa diocese em pouco mais de um ano. No percurso, D. Lúcio desentendeu-se com coronéis, obteve doações, pregou contra o divórcio, estabeleceu pactos com as lideranças políticas, repreendeu padres amancebados e leigos desobedientes, deu-se a ver, e reconheceu seu território buscando impor-se como autoridade religiosa católica do sertão paulista. Nesse sentido, as visitas pastorais que distinguiram os bispos ultramontanos na história do catolicismo no Brasil foram imprescindíveis na construção da diocese de Botucatu uma vez que elas oportunizaram aparições oficiais do bispo, muitas vezes em cerimônias pomposas, ritualizando o exercício de um poder que deveria estender-se da liturgia para outras práticas sociais. A última parte do terceiro capítulo examina mais algumas dimensões desse processo de construção de um bispado: a formação, manutenção e expansão do patrimônio diocesano e a reorganização dos espaços. Desde o fim do Padroado o episcopado brasileiro passou a preocupar-se seriamente com as questões financeiras. No documento intitulado Alguns pontos de reforma na Egreja do Brasil – Memória para servir às discussões e resoluções nas Conferencias dos Snrs. Bispos, escrito por D. Macedo Costa, em agosto de 1890, a questão do patrimônio das dioceses apareceu como um dos pontos centrais 35 daquelas conferências. Na virada do século XIX para o século XX, as novas dioceses de Goiás e de Niterói enfrentaram enormes dificuldades econômicas e praticamente faliram. Sem os recursos regulares do Estado, os bispos foram assombrados pelos espectros da precariedade de fundos essenciais para o expediente mínimo das secretarias dos bispados e para o financiamento de obras diocesanas. Por essa razão, logo que tomou posse de sua diocese D. Lúcio empreendeu uma série de ações voltadas para a manutenção e expansão de seu patrimônio. Primeiro, reclamou junto ao arcebispo D. Duarte Leopoldo e Silva dos parcos recursos que encontrou em Botucatu ao tomar posse, exigindo o dinheiro de um prédio local que foi vendido pelo arcebispo quando este era o administrador da diocese botucatuense, depois, solicitou ainda parte dos recursos do santuário do Senhor Bom Jesus de Pirapora onde, afirmou, os fiéis de Botucatu deixavam muitas esmolas. Chegou mesmo a recorrer ao núncio apostólico que em carta severa respondeu ao prelado botucatuense que a situação de seu bispado era normal visto que em todo o Brasil as dioceses sofriam com a falta de recursos e de clero. Após esta carta do núncio, o primeiro bispo de Botucatu resolveu intensificar os trabalhos nessa questão financeira, esmolando com sucesso junto aos grandes fazendeiros, centralizando a administração do santuário do Senhor Bom Jesus de Iguape, recorrendo ao dinheiro das taxas de crisma e outras paroquiais, investindo em casas de aluguel e títulos, comprando terras onde no final dos anos 1910 cresceram cerca de setenta mil pés de café. Os resultados não tardaram a chegar. Em relatório de 1915 da nunciatura apostólica no Brasil, a diocese de Botucatu foi arrolada entre aquelas que já possuíam bens regulares de subsistência e já haviam consolidado certo patrimônio. A formação de um sólido patrimônio financeiro da diocese foi acompanhada de ações direcionadas à reorganização dos espaços. Primeiro, uma reorganização dos espaços interiores dos antigos templos. Durante as visitas pastorais o bispo, ou seu visitador, observava atentamente a limpeza, a ordem dos 36 móveis e objetos, além dos gestos e comportamentos dentro das igrejas. O higienismo34 e o ultramontanismo exigiram mudanças comportamentais e organizativas dos espaços sagrados rigorosamente controlados pela hierarquia eclesiástica. Em segundo lugar, a construção social da diocese exigiu a edificação de colégios, seminário e palácio episcopal que deveriam ombrear em monumentalidade com os prédios do Estado, constituindo-se em marcos territoriais do bispado do sertão paulista. 34 Designa-se higienismo, no âmbito das reformas urbanas e sanitárias típicas da Primeira República sob o lema da “regeneração”, a um conjunto de medidas empreendidas com a finalidade de “estabelecer normas de higiene e legislar sobre o estado sanitário que deveria ser almejado a partir de então”. COSTA, Angela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. 2.reimp. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p.42. 37 CAPÍTULO 1 ESTADO E IGREJA CATÓLICA NA MODERNIDADE REPUBLICANA BRASILEIRA: o laicismo pragmático do Estado e a diocesanização como estratégia eclesial. 38 1.1 – O Quinze de Novembro e a modernidade republicana. A legitimidade da república proclamada no Brasil em 15 de novembro de 1889 consistiu principalmente na ideia difusa de que ela seria a portadora de progresso, de civilização – noções associadas à modernidade. A atual historiografia da Primeira República corrobora essa afirmação, sobretudo, ao evidenciar que a modernidade brasileira, em sua versão belle époque, tornou- se questão palpitante entre as elites intelectuais, políticas, militares e eclesiásticas, definindo a pauta de realizações de todas as principais instâncias do Estado brasileiro que se refazia na era dos nacionalismos.35 O termo modernidade surgiu, em França e na Inglaterra, na virada do século XVIII para o século XIX e paulatinamente passou a designar um hodierno, novo e amplo conjunto de modificações sociais do Ocidente36 consubstanciado aos fenômenos de crescimento demográfico e urbano, bem 35 GOMES, Ângela de Castro. História, ciência e historiadores na Primeira República. In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antônio A. P. (orgs.). Ciência, Civilização e República nos Trópicos. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2010, p. 11-30; COSTA, Angela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. 2.reimp. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 15 et passim; HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (orgs.). Ciência, civilização e república nos trópicos. Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2010, p. 07 et passim; SEVCENKO, Nicolau. Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e as ilusões do progresso. In: _____(org.vol.). República: da Belle Époque à Era do Rádio. 8.reimp. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, v.3, p. 07-48 [História da Vida Privada no Brasil, v.3]; HARDMANN, Francisco Foot. Trem-Fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2.ed. rev. ampl. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 63 et passim; NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 13-44 [O Brasil Republicano, v.1]; RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2.ed.rev.ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 21-33; MELLO, Maria Tereza Chaves de. A Modernidade Republicana. Revista Tempo, Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, v. 13, n. 26, p. 15-31, 2009; JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O diálogo convergente: Políticos e Historiadores no Início da República. In: FREITAS, Marcos C. (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 119-144; LUCA, Tânia Regina de. República Velha: temas, interpretações, abordagens. In: SILVA, Fernando Teixeira da; NAXARA, Márcia R. Capelari; CAMILOTTI, Virginia C. (orgs.). República, Liberalismo, Cidadania. Piracicaba, SP: UNIMEP, 2003, p. 33-49; FALCON, Francisco J.C. Historiografia Republicana e Historiografia da República. In: HOMEM, Amadeu Carvalho; SILVA, Armando Malheiro da; ISAÍA, Artur César (coords.). Progresso e Religião: A República no Brasil e em Portugal 1889-1910. Coimbra, Portugal: UC: Uberlândia, MG: UFU, 2007, p. 389-410; GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Marieta de Moraes. Primeira República: um balanço historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 244-280. 36 Das discussões acerca do par conceitual “Ocidente-Oriente”, conferir: GOODY, Jack. O roubo da história: como os europeus se apropriaram das idéias e invenções do Oriente. Tradução de Luiz Sérgio Duarte da Silva. São Paulo: Contexto, 2008, p. 14 et passim. 39 como de disciplinarização racionalizada dos comportamentos e de mecanização da produção e dos transportes. Modernidade, um sentido deslizado de moderno que obteve status próprio. De fato, “moderno” é uma palavra de sentidos deslizantes que significa nuclearmente “o agora, o recente”, contrapondo-se, assim, ao que já ocorreu, ao antigo.37 Moderno e antigo. Antigo e moderno. Eis aí uma espécie de estrutura diádica ou eixo dialético da própria história do Ocidente. É o que defendeu o historiador Jacques Le Goff, em texto clássico dos anos 1970: O par antigo/moderno está ligado à história do Ocidente, embora possamos encontrar equivalentes para ele em outras civilizações e em outras historiografias. Durante o período pré-industrial, do século V ao XIX, marcou o ritmo de uma oposição cultural que, no fim da Idade Média e durante as Luzes, irrompeu na ribalta da cena intelectual. Na metade do século XIX, transforma-se, com o aparecimento do conceito de “modernidade”, que constitui uma reação ambígua da cultura à agressão do mundo industrial. Na segunda metade do século XX, generaliza-se no Ocidente, ao mesmo tempo em que é introduzido em outros locais, principalmente no Terceiro Mundo, privilegiando a idéia de “modernização”, nascida do contato com o Ocidente.38 Da cultura à economia, passando pela política e pela religião, o “par e o seu jogo dialético são gerados por “moderno”, e a consciência da modernidade nasce do sentimento de ruptura com o passado”.39 Por ter sido gerada em meio às batalhas intelectuais entre “antigos” e “modernos”, principalmente nas artes e na literatura, a modernidade instaurou uma nova maneira de pensar o mundo e o homem no mundo, expressa, entre o final do 37 LE GOFF, Jacques. Antigo/Moderno. In:_____. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 5.ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 174; WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. Tradução de Sandra G. Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 281; BEDESCHI, Lorenzo. Modernismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. Tradução Carmen C. Varriale et al. 5.ed. Brasília: UnB: São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 766. 38 LE GOFF, Jacques. Antigo/Moderno. In:_____. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 5.ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 173. 39 Ibidem, p. 175. 40 século XVIII e o início do século XX, pela noção de progresso.40 É ainda Jacques Le Goff quem apresenta com propriedade o contexto de surgimento dessa noção: Mas o século XIX foi o grande século da idéia de progresso, na linha dos dados adquiridos e das idéias da Revolução Francesa. Como sempre, o que mantém esta concepção e a faz desenvolver são os progressos científicos e técnicos, os sucessos da Revolução Industrial, a melhoria, pelo menos para as elites ocidentais, do conforto, do bem-estar e da segurança, mas também os progressos do liberalismo, da alfabetização, da instrução e da democracia. Na França da Segunda República e na Prússia do século XIX, por exemplo, as instituições difundem eficazmente a idéia de progresso.41 E mais, para a socióloga Danièle Hervieu-Léger, foi a ideia de progresso que mobilizou as ações da chamada modernidade: “No fim do século XVIII, a modernidade já era (mesmo se o vocábulo ainda não existe) um tema mobilizador, na medida em que ele está associado à noção de progresso”.42 Não sendo ainda realidade, mas desejo lançado ao futuro, a modernidade, sob a roupagem da ideia de progresso, apresentou-se também como mitologia burguesa ao tornar-se um valor transcendente, uma moral, um mito que encobriu as contradições históricas de sua origem e de seu funcionamento. Em busca de uma definição operatória para o ambíguo e problemático conceito de modernidade, Danièle Hervieu-Léger sugeriu tratá-lo a partir de três planos: Progressivamente constituída através desse processo histórico de longa duração, a noção de modernidade é ela mesma portadora da complexidade das transformações que a fez nascer: ela designa ao mesmo tempo uma realidade técnico-econômica, 40 HERVIEU-LÉGER, Danièle. Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental. Paris: Cerf, 1986, p. 198. 41 LE GOFF, Jacques. Antigo/Moderno. In:_____. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 5.ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 257-8. 42 HERVIEU-LÉGER, Danièle. Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental. Paris: Cerf, 1986, p. 198. [« A la fin du XVIIIe siècle, la modernitè est déjà (même si le vocable n’existe pas encore) un thème mobilisateur, dans la mesure où elle est associée à la notion de progrès »] 41 uma construção jurídico-política e uma situação psicológico- cultural.43 No plano técnico-econômico, a modernidade definiu um tipo de relação com a natureza que induziu à busca sistemática de aumento da produtividade. O homem deixou de ser pensado como situado na natureza e passou a ser interpretado como se estivesse diante dela. É a modernidade como conhecimento científico a serviço da organização racional da produção capitalista. No plano jurídico-político, Hervieu-Léger considerou fundamental a separação entre a esfera da vida pública e a esfera da vida privada como característica da modernidade. Assim, de um lado, está o Estado com o conjunto de regras formais do direito que lhe correspondem, e, de outro, estão os indivíduos e suas liberdades. Essa separação legitima as ações do Estado, definido de forma abstrata, no sentido de modelar, segundo a sua própria racionalidade, todos os setores da vida social reduzindo constantemente os espaços de autonomia dos grupos e dos indivíduos. Por fim, no plano psicológico-cultural, Hervieu-Léger destacou que simultaneamente ao desenvolvimento dos dois primeiros planos emergiu uma “modernidade filosófica”, por exemplo, com a separação entre sujeito e objeto; bem como uma “modernidade psicológica” que estabeleceu uma nova maneira do homem se pensar como individualidade desdobrando-se em um trabalho de criação da própria identidade em meio a reivindicações de direitos para a realização pessoal.44 A formação desses três planos constituintes da modernidade ocorreu durante o século XIX: tempo de rupturas. No início desse século as sociedades ocidentais foram alteradas, em maior ou menor medida, pelas repercussões da chamada Revolução Industrial, de fins do século XVIII. Essa 43 Ibidem, p. 199. (« Progressivement constituée à travers ce processus historique de longue durée, la notion de modernité est elle-même porteuse de la complexité des bouleversements qui l’ont fait naître : elle désigne tout à la fois une réalité technico-économique, une construction juridico-politique et une situation psychologico-culturelle. ») 44 Ibidem, p. 199-202. 42 revolução desencadeou o primeiro grande surto da economia industrial a partir de três fatores essenciais: o ferro, o carvão e as máquinas a vapor que oportunizaram o surgimento das primeiras fábricas. O epicentro da revolução foi a Inglaterra voltada para a produção têxtil que era distribuída internacionalmente pelas novas ferrovias e navios a vapor. Sem dúvida, a junção da ciência à técnica viabilizou mudanças profundas nas comunicações e nos transportes alterando drasticamente o ritmo da vida e as concepções sociais de tempo e de história. Na última metade do século XIX, a partir de 1870, a economia capitalista, servindo-se das mais importantes descobertas científicas da época, potencializou a produção com novas formas de energia, como a eletricidade e os derivados do petróleo, oportunizando, desse modo, a exploração industrial de altos-fornos, indústrias químicas, metalurgia, sem falar dos avanços até então inimagináveis nas áreas da microbiologia, bacteriologia e bioquímica, possibilitando, por exemplo, a conservação de alimentos, ou, ainda, na farmacologia, medicina e sanitarismo, com impactos incisivos sobre o controle do corpo a partir dos novos conhecimentos a respeito das moléstias e da fisiologia humana. Esse novo momento do desenvolvimento da ciência, da indústria e do capital foi denominado de Revolução Científico-Tecnológica.45 Essa Revolução Científico-Tecnológica engendrou dois grandes símbolos da modernidade à época: a luz e a velocidade. Eles estiveram no centro do exibicionismo burguês das Exposições Universais que anteciparam as maravilhas mecânicas e os novos processos técnicos com os olhos postos no futuro sem, no entanto, que a tradição perdesse a sua força. A primeira Exposição data de 1851, em Londres, onde foi apresentado o deslumbrante Palácio de Cristal. Ela contou com 13.937 expositores e 6.000.000 de visitantes. Trinta e 45 SEVCENKO, Nicolau. Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e as ilusões do progresso. In: _____(org.vol.). República: da Belle Époque à Era do Rádio. 8.reimp. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, v.3, p. 07-48 [História da Vida Privada no Brasil, v.3]; HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios – 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. 13.ed.rev. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 63-95; RÉMOND, René. Introdução à História do nosso tempo: do Antigo Regime aos nossos dias. Tradução de Teresa Loureiro. 3.ed. Lisboa, Portugal: Gradiva, 2009, p. 225 et passim. 43 oito anos depois, na famosa Exposição Universal de 188946, que apresentou ao mundo a Torre Eiffel, já eram 61.722 expositores com a presença de mais de 32.000.000 de visitantes. Ao analisar o caráter dessas exposições e os números de seus expositores e visitantes, o historiador Francisco Foot Hardman considerou que: No período compreendido entre a Great Exhibition de 1851 e a Primeira Guerra Mundial, as exposições assumiram vulto crescente. Além das grandes mostras, consideradas “universais”, inúmeros outros eventos similares realizaram-se em nível local, nacional e internacional. Paris, Cidade-Luz, não poderia deixar de compor a linha de frente das metrópoles que abrigaram esses espetáculos. Afora nações européias, somente os EUA figuram como país-sede. O que mais impressiona, contudo, é o número elevado de exibidores e, em especial, de visitantes, presentes aos milhões, indicando o forte atrativo que representavam essas festas da modernidade, sua relevância econômica e sociocultural.47 Essas exposições, contudo, não se restringiram a mostrar os avanços científico-tecnológicos, sendo constituídas também por objetos extravagantes, exóticos. O ideal era exibir o mundo a partir da Europa consolidando uma perspectiva universalista da história, no tempo em que os historiadores vitorianos descreviam “o passado como sendo um progresso inevitável que levou a um presente glorioso quando a Inglaterra dominava o mundo”.48 Daí o amplo espaço ocupado por uma heterogeneidade de formas, técnicas e ramos, com produtos oriundos da agricultura, da mineração e do artesanato, das mais variadas partes do mundo. As exposições, em si mesmas, apresentavam os contrastes internacionais da época, a hierarquia civilizatória e as múltiplas faces de uma modernidade assimétrica. 46 BARBUY, Heloísa. A exposição universal de 1889 em Paris: visão e representação na sociedade industrial. S. Paulo: Loyola, 1999. 47 HARDMANN, Francisco Foot. Trem-Fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2.ed. rev. ampl. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 63. 48 MACMILLAN, Margaret. Usos e abusos da História. Tradução Carlos Duarte e Anna Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 56. 44 Essas contradições da modernidade europeia se revelaram nessas exposições pelo fato de estarem atreladas aos Estados e às casas reais que as patrocinavam com certa prodigalidade. Curiosamente, a nobreza virou algo a ser exibido, entre ostentações gestuais e discursos progressistas: o príncipe Alberto, marido da rainha Vitória, foi o grande herói protetor da Exposição Universal de 1851, enquanto o imperador brasileiro, D. Pedro II, foi a cabeça coroada da Exposição do Centenário da Revolução Americana, na cidade estadunidense de Filadélfia, no ano de 1876, aliás, com muito sucesso junto à imprensa que o chamou de “o imperador ianque”.49 Assim, pode-se considerar que o progresso surgiu no seio da ordem, a modernidade desenvolveu-se tensamente em meio aos persistentes anciens régimes, conforme alertou Arno Mayer50, indicando o caráter inconcluso da modernidade e sua face mítica, no sentido anteriormente proposto por Daniéle Hervieu-Lèger. As Exposições Universais atraíram um número crescente de Estados que não queriam ficar de fora dessas vitrines do progresso, consagrando a “cultura das exposições”. Foi assim com o Império do Brasil que, em 1861, promoveu a sua primeira Exposição Nacional caracterizada pelo realce das riquezas naturais aliada a uma visão romantizada do indígena, pela representação da máquina como símbolo do progresso e pela valorização de materiais exóticos e pitorescos. Para a historiadora Lúcia Guimarães, essa Exposição Nacional, visitada por 50.739 pessoas, “possuía um caráter prospectivo, já que o seu aperfeiçoamento era percebido como uma via segura para alcançar o progresso e a civilização”.51 A Exposição Nacional de 1861 preparou o Brasil para a Exposição Universal de 1862, em Londres. Foi a entrada brasileira no clube dos 49 HARDMANN, Francisco Foot. Trem-Fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2.ed. rev. ampl. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 72; CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 157-70; HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital – 1848-1875. Tradução Luciano Costa Neto. 15.ed.rev. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 81. 50 MAYER, Arno J. A Força da Tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914). Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 14. 51 GUIMARÃES, Lúcia. Exposições. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 252. 45 exibidores internacionais. Daí em diante o Brasil participou assiduamente desses eventos: Paris (1867), Viena (1873), Filadélfia (1876) e novamente Paris (1889), além de exposições nacionais fora do Brasil, como em Buenos Aires (1882), Amsterdam (1883), São Petersburgo (1884) e Antuérpia (1885). Nessas ocasiões, entretanto, o Brasil se destacou pela exposição de suas riquezas agrícolas, sobretudo o café, em detrimento dos produtos da incipiente indústria nacional. Exibia-se a “vocação agrícola” do Brasil ao mesmo tempo em que se indicava o seu lugar na economia internacional capitalista. Os estandes se responsabilizaram em classificar não apenas os produtos, mas também os países.52 Com efeito, quando a República foi proclamada em Quinze de Novembro esses ideais de progresso, desejos de modernidade e projetos de civilidade já faziam parte dos compromissos das elites brasileiras, em virtude, substancialmente, da dedicação e paixão do segundo imperador brasileiro às ciências e às letras. De fato, D. Pedro II foi responsável pela introdução dos manuais de boas maneiras na corte, pelo combate ao entrudo53, pela constante participação brasileira em exposições e feiras científicas, e pela criação, em nome da ciência, da Escola de Minas de Ouro Preto.54 D. Pedro II financiou ainda estudantes brasileiros no exterior, com as famosas “pensões”, dos quais se destacaram o advogado Perdigão Malheiros, o pintor Pedro Américo e o engenheiro Guilherme Schüch Capanema.55 D. Pedro II frequentou regularmente o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), do qual foi patrono, assistiu a conferências públicas, participou de concursos públicos arguindo os candidatos e em todas as suas viagens, no Brasil ou no exterior, visitou escolas e institutos 52 HARDMANN, Francisco Foot. Trem-Fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2.ed. rev. ampl. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 75; HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital – 1848- 1875. Tradução Luciano Costa Neto. 15.ed.rev. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 268; GUIMARÃES, Lúcia. Exposições. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 253; COSTA, Angela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. 2.reimp. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 127. 53 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 315-50. 54 CARVALHO, José Murilo de. A Escola de Minas de Ouro Preto: O peso da glória. 2.ed.rev. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 29-86. 55 CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 98. 46 culturais56, além de ter participado da Exposição Universal de 1889, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa, quebrando o boicote organizado pelas monarquias da época a essa Exposição. Ironicamente essa foi a última apresentação pública internacional de D. Pedro II como imperador do Brasil.57 A imagem pública de homem das letras e das ciências construída por D. Pedro II não desfez, entretanto, o fato de o Brasil ser ainda uma monarquia escravocrata em plena segunda metade do século XIX. Os adversários do Império salientaram essa primitiva condição brasileira. Para a historiadora Maria Tereza Chaves de Mello, os republicanos iniciaram nos anos 1870 o trabalho de associação entre república e progresso para minar as bases ideológicas do regime monárquico personificadas em D. Pedro