DEIVID APARECIDO COSTRUBA PARA ALÉM DO SUFRAGISMO: A contribuição de Júlia Lopes de Almeida à história do feminismo no Brasil (1892-1934) ASSIS 2017 DEIVID APARECIDO COSTRUBA PARA ALÉM DO SUFRAGISMO: A contribuição de Júlia Lopes de Almeida à história do feminismo no Brasil (1892-1934) Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Prof.ª Dra. Zélia Lopes da Silva Bolsista: CNPq ASSIS 2017 Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C842p Costruba, Deivid Aparecido Para além do sufragismo: a contribuição de Júlia Lopes de Almeida à história do feminismo no Brasil (1892-1934) / Deivid Costruba Aparecido, 2018. 200 f. : il. Orientador: Zélia Lopes da Silva Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade de Ciências e Letras, Assis. Inclui Bibliografia. 1. Feminismo - Brasil. 2. Mulheres. 3. Intelectuais. 4. Sufrágio. 5. Almeida, Julia Lopes de. I. Silva, Zélia Lopes da. II. Título. 396 (81)(091) DEIVID APARECIDO COSTRUBA Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História. (Área de conhecimento: História e Sociedade) Data da Aprovação 01/12/17 COMISSÃO EXAMINADORA ___________________________________________________________ PRESIDENTE: PROFA. DRA. Zélia Lopes da Silva – UNESP/ASSIS ___________________________________________________________ MEMBROS: PROFA DRA. Tânia Regina de Luca – UNESP/ASSIS ___________________________________________________________ PROFA DRA. Lídia Maria Vianna Possas – UNESP/Marília ___________________________________________________________ PROFA DRA. Roseli Teresinha Boschilia – UFPR/Curitiba ___________________________________________________________ PROFA DRA. Priscila David – UNIP/ASSIS À minha mãe AGRADECIMENTOS A elaboração de uma tese de doutorado demanda tempo e auxílio de inúmeras pessoas que possibilitam ao historiador uma pesquisa tranquila e sem atropelos. Com o pesar de algum esquecimento, agradeço aqueles que colaboraram diretamente ao longo dessa trajetória. À professora Zélia Lopes da Silva, pela amizade, dedicação e empenho na orientação desta pesquisa. A ela, registro minha eterna gratidão. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento da pesquisa. Ao professor da banca de qualificação, Antônio Celso Ferreira, pelas orientações precisas e substanciais. Aos professores da defesa deste doutorado, Lídia Maria Vianna Possas, Roseli Boschilia, Priscila David Domingos, pela leitura cuidadosa do texto. À professora Tania Regina de Luca, pela participação e arguição sempre atenta na qualificação e na defesa deste doutorado. Ao neto da escritora Júlia Lopes de Almeida, Dr. Claudio, pela generosa recepção no Rio de Janeiro, quando estive em sua casa para consultar o acervo que permanece sob sua curadoria. À bibliotecária Marilene Maria Lopes Lucena, que confeccionou a ficha catalográfica deste trabalho. Aos funcionários do Real Gabinete de Leitura (RJ), da Biblioteca Nacional (RJ), do Arquivo Nacional (RJ) e da Biblioteca Mário de Andrade (SP). Aos secretários e amigos do Programa de Pós-Graduação da UNESP, do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) e da biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras de Assis (FCL/UNESP). À minha mãe, Alice Costruba, por sempre me apoiar no caminho da leitura e das artes. À Patrícia Trindade Trizotti, pelo amor e pela companhia nesses mais de onze anos de união. Aos amigos da biblioteca da UNESP de São Vicente, especialmente Maria da Conceição Gomes da Silva e Dirceu Simighini. Aos amigos da UNESP de Assis, Anelize Vergara, Danilo Silva, Danilo Bezerra, Danilo Ferrari, Camila Bueno, Mirian Garrido, Carolina Duarte, Wellington Amarante, Adriana Poor e Samara Lucas Yonamine. Em especial para aos estimados amigos Daniel da Silva Bernardo, Renan Bertotti Guedes, Ellen Karin Dainese Maziero e Edilce Macedo Hampe Barbosa. As minhas leitoras que me desculpem, Lembrando-se que isto não é literatura, mas uma palestra apenas. (Julia Lopes de Almeida) COSTRUBA, Deivid Aparecido. PARA ALÉM DO SUFRAGISMO: A contribuição de Júlia Lopes de Almeida à história do feminismo no Brasil (1892-1934). 2017. 200f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2017. RESUMO O objetivo desta pesquisa é analisar a trajetória feminista de Júlia Lopes de Almeida no complexo cenário de luta pela emancipação da mulher, na virada do século XIX até o início da década de 1930. A escritora, não raro, foi caracterizada pela cordialidade e afabilidade de suas posturas, ao julgar pela sua atitude de não confronto ao status quo. Por pertencer a um grupo de mulheres letradas e ricas, na condição de filhas, esposas, mães de homens poderosos, que integravam altas esferas políticas, conquistou crescente aceitação e reconhecimento social, ensejo dedicado a alargar e tencionar os limites do feminino, radicalizando seu pensamento e atitudes de maneira progressiva. A trajetória de manifestações dessas mulheres de elite, entretanto, originou-se na década de 1830. No decorrer de tal século, de ações isoladas de diferentes protagonistas ou grupo de mulheres que reivindicaram o direito à instrução e ao trabalho, passou-se no século seguinte à criação de instituições que acarretaram, em meio a ações de um novo tipo de filantropia a um incipiente e organizado movimento feminista. Este contou com a liderança de figuras que marcaram a cena política e cultural do país. Neste cenário de luta pela independência, pelo trabalho, pelo divórcio e pelo sufrágio feminino, pode-se destacar a escritora Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que fazia parte de um grupo que se empenhou pelo “progresso” da mulher brasileira. Cabe destacar, que outra vertente do movimento contava com mulheres de camadas sociais mais pobres, cuja educação ocorrera muitas vezes pelo autodidatismo, mas que também encontraram mecanismos para proporem suas pautas. Dessa forma, no que diz respeito ao suporte teórico-metodológico dessa pesquisa, de acordo com Joan W. Scott, essas mulheres sufragistas, as cidadãs paradoxais, podem ser interpretadas como arenas, tendo em vista os embates políticos e culturais que enfrentavam, bem como as múltiplas maneiras pelas quais essas mulheres se construíram como “atores históricos”. Além de Scott, Jean-François Sirinelli elucidou a importância de se verificar as estruturas elementares do microcosmo social, ambiente profícuo para analisar o movimento de ideias, a fermentação intelectual e o debate de profusões e convicções. Cumpre lembrar, ainda, que a escritora Júlia Lopes de Almeida, além do envolvimento na área intelectual, utilizou-se dessa profissão para promover eventos beneficentes, oportunidade que viajou o país com sua literatura e sua política de cuidados aos mais necessitados. Mais do que isso, na companhia de seu marido, o poeta Filinto de Almeida (1857-1945), Júlia Lopes realizou nas dependências do “Salão Verde”, espaço localizado na casa da família no bairro de Santa Tereza, eventos de caridade, encenação de peças teatrais autorais e concertos musicais. Em tal espaço também discutiu-se sobre as ideias e movimentos literários no Brasil, oportunidade em que a escritora divulgou suas ideias e valores sobre o papel das mulheres na sociedade brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Feminismo. Mulheres. Intelectuais. Sufrágio. Julia Lopes de Almeida. COSTRUBA, Deivid Aparecido. BEYOND SUFFERING: Julia Lopes de Almeida´s contribution to the history of feminism in Brazil (1892-1934). 2017. 200f. Thesis (Doctorate in History) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2017. ABSTRACT The objective of this research is to analyze the feminist trajectory of Júlia Lopes de Almeida in the complex scenario of the struggle for the emancipation of women, in the turn of the nineteenth century until the beginning of the 1930s. The writer was often characterized by the cordiality and affability of their positions, judging by their attitude of non-confrontation with the status quo. Because they belonged to a group of literate and wealthy women, as daughters, wives, mothers of powerful men, who integrated high political spheres, they gained increasing acceptance and social recognition, an opportunity dedicated to extending and intending the limits of the feminine, radicalizing their thinking and attitudes in a progressive way. The trajectory of manifestations of these elite women, however, originated in the 1830s. In the course of that century, of isolated actions of different protagonists or group of women who demanded the right to education and to work, it happened in the century following the creation of institutions that entailed, in the midst of actions of a new type of philanthropy in which they were involved, in an incipient and organized feminist movement. This one counted on the leadership of figures who marked the political and cultural scene of the country. In this scenario of struggle for independence, work, divorce and female suffrage, we can highlight the writer Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), who was part of a group that worked for the "progress" of Brazilian women. It should be noted that another aspect of the movement had women from the poorer social strata, whose education had often occurred through self-education, but also found mechanisms to propose their guidelines. Thus, with regard to the theoretical-methodological support of this research, according to Joan W. Scott, these suffragette women, the paradoxical citizens, can be interpreted as arenas, in view of the political and cultural struggles they faced, as well as the multiple ways in which these women have built themselves up as "historical actors." In addition to Scott, Jean-François Sirinelli elucidated the importance of verifying the elemental structures of the social microcosm, a profitable environment for analyzing the movement of ideas, intellectual ferment and the debate of profusion and conviction. It should also be remembered that the writer Júlia Lopes de Almeida, besides the involvement in the intellectual area, used this profession to promote charitable events, an opportunity that traveled the country with its literature and its care policy to those most in need. More than that, in the company of her husband, the poet Filinto de Almeida (1857- 1945), Júlia Lopes held in the dependencies of the "Green Room", space located in the family home in the neighborhood of Santa Tereza, charity events, staged theatrical plays, was the scene of musical concerts, discussions about ideas and literary movements in Brazil, as well as a favorable space for the writer to disseminate her ideas and values about the role of women in Brazilian society. KEYWORDS: Feminism. Women. Intellectuals. Suffrage. Julia Lopes de Almeida. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 19 CAPÍTULO 1- JÚLIA LOPES DE ALMEIDA E O FEMINISMO DE SEU TEMPO: LITERATURA, ESCRITA FEMININA E A BUSCA PELO SUFRÁGIO DAS MULHERES (1892- 1934) 36 1.1 – A historiografia sobre o sufrágio feminino no Brasil 38 1.2 – Aspectos histórico-literários do Pré-Modernismo e do Modernismo brasileiro 40 1.3 – Mulheres de letras, escrita e imprensa feminina: a busca pelo espaço no mundo letrado de homens 45 1.4 – Feminismo à brasileira: origem do termo, influências e o(s) movimento(s) sufragista(s) de mulheres no Brasil 51 1.5 – O Partido Republicano Feminino (PRF) – (1910) 63 1.6 – Julia Lopes de Almeida: aspectos gerais da vida e obra da escritora. 71 CAPÍTULO 2 – O CULTO DA SANTA MÃE: OS MANUAIS DE CIVILIDADE E A FILANTROPIA NAS PÁGINAS E AÇÕES DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA (1892-1906) 95 2.1 – O Livro das Noivas (1896) 99 2.1.1 – A higienização no âmbito familiar 105 2.1.2 – A educação feminina 111 2.2 – O Livro das Donas e Donzelas (1906) 115 2.2.1– A situação dos conventos 119 2.2.2 – A visão de D. Júlia sobre o feminismo 124 2.3 – A filantropia de Julia Lopes de Almeida 126 CAPÍTULO 3 – A PARTICIPAÇÃO DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA NO DEBATE PÚBLICO E NOS CÍRCULOS SOCIAIS FLUMINENSES (1910-1934) 131 3.1 – O embate entre os sexos 132 3.1.1 – A violência psicológica contra a mulher 133 3.1.2 – O divórcio 135 3.2 – Eventos sociais e literários: das reuniões beneficentes à fundação da Associação da Mulher Brasileira (AMB) 137 3.3 – Cidade jardim: um projeto ambiental para o Rio de Janeiro 142 3.3.1 – Correio da Roça (1913) 145 3.3.2 – A Árvore (1916) 147 3.3.3 – Jardim Florido (1922) 148 3.3.4 – Oração à Santa Doroteia (1923) 150 3.4 – As reuniões intelectuais e artísticas do “Salão Verde” (1896-1925) 151 3.5 – A participação de Júlia Lopes de Almeida na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) - (1922) 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS 180 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 183 ANEXOS 192 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Sessão solene de inauguração da Escola de Ciências e Artes Orsina da Fonseca 65 Figura 2 – Marechal Hermes da Fonseca e sua esposa, Orsina da Fonseca, ao receberem no Catete Leolinda Daltro e representantes do Partido Republicano Feminino 67 Figura 3 – Destaque do jornal à professora Leolinda Daltro 68 Figura 4 – Júlia Lopes de Almeida na época da infância 73 Figura 5 – Retrato de Júlia Lopes de Almeida (1895). Obra de Berthe Worms (1868-1937) 82 Figura 6 – Dedicatória encontrada no verso da obra Retrato de Júlia Lopes de Almeida 83 Figura 7 – Júlia Lopes de Almeida com seus filhos 84 Figura 8 – Júlia Lopes de Almeida em seu ambiente intelectual 85 Figura 9 – Recibo da máquina de escrever comprada pelo casal na época em que moravam em Paris 86 Figura 10 – Casal Júlia Lopes de Almeida e Filinto de Almeida na maturidade 87 Figura 11 – Residência do casal Almeida situada à Avenida Nossa Senhora de Copacabana 87 Figura 12 – Júlia Lopes de Almeida com os netos na praia de Copacabana 88 Figura 13 – Retrato a óleo de Júlia Lopes de Almeida, pintado por Richard Hall, 1914 90 Figura 14 – Capa do Livro das Noivas (1896) 100 Figura 15 – Capa do Livro das Donas e Donzelas (1906) 116 Figura 16 – Estação Termal em Poços de Caldas 137 Figura 17 – No sofá principal: D. Julia Lopes, Medeiros de Albuquerque, D. Nicola de Teffé e a senhorita Astréa Palm 139 Figura 18 – Fachada da residência do casal Julia e Filinto, localizada no bairro de Santa Tereza 153 Figura 19 – Subida para a residência do casal Julia e Filinto, localizada no bairro de Santa Tereza 155 Figura 20 – Aquarela de Rodolfo Amoedo (1857-1941) 157 Figura 21 – Residência do casal Júlia e Filinto, localizada no bairro de Santa Tereza 158 Figura 22 – Festa no jardim do “Salão Verde” 160 Figura 23 – Comemoração do regresso de Bertha Lutz do Congresso Internacional Feminino 164 Figura 24 – Carrie Chapman discursando sua tese As organizações femininas: métodos de organização no I Congresso Feminista 167 Figura 25 – I Congresso Feminista do Brasil (1922) 169 Figura 26 – Delegadas brasileiras e estrangeiras no palácio do Catete 171 Figura 27 – II Congresso Feminista, realizado no Salão Nobre do Automóvel Club 176 Figura 28 – II Congresso Feminista do Brasil (1931) 177 LISTA DE MAPAS MAPA 1 – CIRCULARIDADE INTELECTUAL DOS FREQUENTADORES DO “SALÃO VERDE” 156 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – A CONQUISTA DO SUFRÁGIO FEMININO INTERNACIONAL (1788-1934) 53 Quadro 2 – CRONOLOGIA ESPAÇO-TEMPORAL DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA (1862-1934) 74 Quadro 3 – COLABORAÇÃO DA ESCRITORA EM JORNAIS E REVISTAS 77 Quadro 4 – FILHOS DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA E FILINTO DE ALMEIDA 80 Quadro 5 – FONTES DA PRESENTE PESQUISA 93 Quadro 6 – TEMAS DEBATIDOS NO I CONGRESSO FEMINISTA (1922) 168 Quadro 7 – TEMAS DEBATIDOS NO II CONGRESSO FEMINISTA (1931) 171 LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO I – TIPOLOGIA DOS ESCRITOS DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA 93 LISTA DE SIGLAS ABL Academia Brasileira de Letras ACB Associação das Crianças Brasileiras AMB Associação da Mulher Brasileira AWSA American Woman Suffrage Association CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil FBPF Federação Brasileira pelo Progresso Feminino LEIM Liga para Emancipação Intelectual da Mulher LMB Legião da Mulher Brasileira LPF Liga pelo Progresso Feminino LWV League of Women Voters NAWSA National American Woman Suffrage Association NWSA National Woman Suffrage Association PRF Partido Republicano Feminino LISTA DE ANEXOS A - LIVROS PUBLICADOS POR JÚLIA LOPES DE ALMEIDA (1886 – 1934) 192 B - ESTATUTO DO PARTIDO REPUBLICANO FEMININO 199 20 INTRODUÇÃO Esta pesquisa sobre Júlia Lopes de Almeida compreende o período de 1892 a 1934 e se insere no campo de reflexões e releitura da obra de mulheres escritoras brasileiras que fizeram parte da luta pelos direitos civis femininos e que se projetaram por suas contribuições nessa área.1 O foco, entretanto, volta-se à atuação da escritora em torno de suas ações filantrópicas e da luta pela emancipação feminina, motes que inquietavam as mulheres de elite de seu tempo, tomando como referência a sua produção literária e suas atividades político- culturais expressas nesses campos. As preocupações emancipatórias tiveram algumas antecessoras. A pioneira foi Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), que escreveu o primeiro livro do gênero no Brasil intitulado Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), que versava sobre os direitos das mulheres à instrução e ao trabalho. Já Leolinda Daltro (1859-1935), após separar-se do marido, lutou pela conquista do divórcio das mulheres, bem como pela situação dos índios no país. Conhecida como a miss Pankhurst brasileira, fundou o Partido Republicano Feminino, em 1910. Maria Lacerda de Moura (1887-1945), por sua vez, se interessou pela situação das mulheres operárias. Anticlerical, escreveu inúmeros artigos criticando a moral sexual burguesa. No que diz respeito à Bertha Lutz (1894-1976), foi a principal responsável por organizar e liderar uma instituição de repercussão nacional e internacional que tinha como propósito debater todas as questões referentes ao sufrágio de mulheres. Para isso, em 1922, criou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. 2 Ecos dessas dificuldades de reconhecimento pleno de direitos às mulheres projetaram- se além de seu tempo. Tanto é assim que os escritores da Academia Brasileira de Letras (ABL) prepararam, em julho de 2017, uma homenagem à cadeira de nº41,3 o que poderia parecer estranho, tendo em vista que a instituição possui apenas 40 cadeiras. A idealizadora 1 Outras mulheres, além das citadas, apareceram em cena. Como exemplo tem-se: Júlia Cortines (1868-1948), Francisca Júlia (1871-1920), Jerônima Mesquita (1880-1972), Maria Eugenia Celso (1886-1963), Ana Amélia Carneiro de Mendonça (1896-1971), Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), Mirtes de Campos, Natércia Silveira, entre outras. 2 Ver SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Érico Vital. Dicionário de mulheres no Brasil: de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 3 Ver MEIRELES, Maurício. Imortais da ABL preparam evento para celebrar cadeira imaginária. Folha de S. Paulo, on-line, São Paulo, 28 de jan. de 2017. Disponível: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mauricio- meireles/2017/01/1853572-imortais-da-abl-preparam-evento-para-celebrar-cadeira-imaginaria.shtml. Acesso em 22 de mar. de 2017 e FANINI, Michele Asmar. Estamos ainda diante de um ambiente refratário à presença feminina. Revista Cult, on-line, São Paulo, 01 de mar. de 2017. Disponível: http://revistacult.uol.com.br/home/estamos-ainda-diante-de-um-ambiente-refratario-a-presenca-feminina-diz- pesquisadora-sobre-abl/. Acesso em 22 de mar. de 2017. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mauricio-meireles/2017/01/1853572-imortais-da-abl-preparam-evento-para-celebrar-cadeira-imaginaria.shtml http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mauricio-meireles/2017/01/1853572-imortais-da-abl-preparam-evento-para-celebrar-cadeira-imaginaria.shtml http://revistacult.uol.com.br/home/estamos-ainda-diante-de-um-ambiente-refratario-a-presenca-feminina-diz-pesquisadora-sobre-abl/ http://revistacult.uol.com.br/home/estamos-ainda-diante-de-um-ambiente-refratario-a-presenca-feminina-diz-pesquisadora-sobre-abl/ 21 do projeto, Ana Maria Machado (1941-__),4 resolveu celebrar uma vaga imaginária a fim de prestigiar todos aqueles escritores que nunca entraram para a instituição. Decidiu-se que a primeira cadeira seria destinada à figura de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) que, além da importância literária inegável, esteve presente nas discussões da fundação dessa agremiação de letras no Brasil, mas que, no entanto, foi excluída por seus pares do rol dos imortais justamente por ser do sexo feminino. O debate acerca da criação da entidade iniciou-se nos últimos anos do século XIX, pelos esforços de Lúcio de Mendonça (1854-1909), conforme exposto na notícia veiculada pelo jornal O Estado de S. Paulo, ao comunicar os informes da Gazeta de Notícia, em 11 de novembro de 1896: Noticia a fundação de uma Academia de Letras. A iniciativa foi do Sr. Lucio de Mendonça, que aproveitou a circunstância de se achar na direção do ministério do interior o sr. A. Torres, um homem de letras. A Academia será criada, provavelmente, por decreto de 15 de novembro deste ano. Na mesma data o governo nomeará os primeiros dez acadêmicos e estes elegerão outros vinte e mais dez correspondentes, dentre os escritores nacionais residentes no Estado ou no estrangeiro. 5 Lúcio de Mendonça, um dos entusiastas da criação de uma instituição oficial de letras no país, escreveu uma série de artigos, com o título de Cartas Literárias, a fim de enumerar quarenta nomes dignos de figurar entre os patronos da instituição. Dentre esses nomes, consta o de Júlia Lopes de Almeida, que sobrepujaria não só o do marido, Filinto de Almeida (1857- 1945),6 como também o de José do Patrocínio (1854-1905), Lima Barreto (1881-1922), Silvio 4 Sobre a escritora, ver: http://www.academia.org.br/academicos/ana-maria-machado. Acesso em 21 de mar. de 2017. 5 O Estado de S. Paulo, 11/11/1896, p.01. 6 Francisco Filinto de Almeida (1857-1945) nasceu na cidade do Porto, no dia 4 de dezembro e desembarcou em 15 de janeiro de 1868 na cidade do Rio Grande, quando tinha dez anos de idade. De lá se transferiu para o Rio de Janeiro no mesmo ano. Empregou-se como caixeirinho em uma papelaria e estreou como literato aos 19 anos, ao escrever o entre ato cômico Um idioma, que foi representado em 16 de julho de 1876 no Teatro Vaudeville. Em 1887, publicou Os mosquitos, monólogo cômico em versos e Lírica. Fundou com Valentim de Magalhães o jornal literário A Semana, no qual escreveu, de 1886 a 1887, crônicas hebdomadárias, com o pseudônimo de Filindal. Além disso, foi redator de O Estado de S. Paulo, de 1889 a 1895 e deputado da Assembleia Legislativa de S. Paulo, de 1892 a 1897. Escreveu, em colaboração com a esposa o romance A Casa Verde, publicado em folhetim pelo Jornal do Comércio. Foi considerado brasileiro em virtude da lei da grande naturalização, adotada pela Constituição de 1891. O marido de Júlia Lopes de Almeida foi ainda um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de nº3, cujo patrono foi Artur de Oliveira, de quem fora amigo. Filinto morreu em 28 de janeiro de 1945 de uma moléstia não identificada na então capital federal. Ver MACHADO, Raul. Filinto de Almeida (Anotações biográficas). Revista Brasileira, Rio de Janeiro, ano V, n.13, p. 11-21, 1945. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=139955&PagFis=10443&Pesq=Filinto%20de%20Almeid a. Acesso em 22 de jul. de 2017. http://www.academia.org.br/academicos/ana-maria-machado http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=139955&PagFis=10443&Pesq=Filinto%20de%20Almeida http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=139955&PagFis=10443&Pesq=Filinto%20de%20Almeida 22 Romero (1851-1914), Domício da Gama (1862-1925), Eduardo Prado (1860-1901), Clóvis Bevilacqua (1859-1944), Raimundo Correia (1859-1911) e Oliveira Lima (1867-1928). 7 No entanto, mesmo com os votos favoráveis de Filinto de Almeida, Valentim de Magalhães (1859-1903) e José Veríssimo (1857-1916) em prol da inclusão da escritora, o apoio não abrangeu a totalidade dos demais “homens de letras”. Estes, imbuídos dos ideais positivistas e do determinismo biológico que inferiorizava o sexo feminino, acreditavam num conjunto de estereótipos negativos e contrários à fixação da mulher no espaço público literário. Sabe-se que Mendonça revelou-se desgostoso por conta da negação do nome de Júlia Lopes de Almeida para a instituição, tendo em vista, que a definição dos critérios adotados na escolha de seus membros efetivos, nos mesmos moldes da Académie Française de Lettres, não acolhia mulheres em seus quadros literários: Na fundação da Academia Brasileira de Letras, era ideia de alguns de nós, como Valentim de Magalhães e Filinto de Almeida, admitirmos a gente de outro sexo; mas a ideia caiu, foi vivamente combatida por outros, irredutíveis inimigos das machonas [...] Com tal exclusão, ficamos inibidos a oferecer a espíritos tão finamente literários como o das três Júlias, o cenário em que poderiam brilhar a toda luz. 8 Cumpre lembrar ainda, que o fato de ser casada com Filinto de Almeida e de ter relações bem próximas com os intelectuais do período, permitiu a Julia Lopes sedimentar sua inserção informal a esse quadro literário. A residência do casal, conhecida nesse meio por “Salão Verde”, 9 localizada no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, transformou-se, de acordo com Michele Fanini, em uma espécie de antessala da Academia Brasileira de Letras, considerando-se os acalorados debates literários que esse ambiente proporcionou. Polêmicas à parte, no que diz respeito à inclusão ou não da escritora na ABL, o presente estudo, portanto, ao analisar a trajetória de Júlia Lopes de Almeida, pretende alinhar- se aos estudos de Miriam Moreira Leite,10 centrado nos caminhos de Maria Lacerda de Moura 7 Ver VENÂNCIO FILHO, A. As mulheres na Academia. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 49, p.07-46, 2006. p. 08-09. 8 As “Júlias” que o escritor faz referência trata-se de Julia Cortines (1868-1948), Francisca Julia (1871-1920) e Julia Lopes de Almeida (1862-1934). Ver MENDONÇA, Lúcio de. As três Júlias. Jornal Republica, Rio de Janeiro, 06 mar. 1897e MENDONÇA, Lúcio de. As três Júlias. Almanaque Brasileiro Garnier, v.5, p. 246-249, 1907.p. 249. 9 As discussões acerca da sociabilidade intelectual na residência do casal serão detalhadas no terceiro capítulo. Ver, ainda, FANINI, Michele Asmar. Julia Lopes de Almeida: entre o salão literário e a antessala da Academia Brasileira de Letras. Estudos de Sociologia (São Paulo), v.14, p. 317-338, 2009. 10 Ver LEITE, Miriam Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Editora Ática, 1984; _____. Maria Lacerda de Moura: uma feminista utópica. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. 23 (1887-1945); de Rachel Soihet,11 cuja investigação direcionou-se para a compreensão de um “feminismo tático” em Bertha Lutz (1894-1976) e de Constância Lima Duarte,12 que desvendou o percurso nacional e internacional de Nísia Floresta (1810-1885), considerada pela pesquisadora, talvez a precursora do feminismo na América Latina.13 Esses trabalhos tentaram mostrar, assim como tencionou a presente pesquisa, as práticas feministas de mulheres que pertenciam ao cenário cultural do Brasil entre os séculos XIX e XX. Todavia, antes de dar prosseguimento a essa discussão, cabe destacar que Júlia Valentina da Silveira Lopes,14 D. Júlia para seus contemporâneos, nasceu no dia 24 de setembro de 1862, no casarão da Rua do Lavradio, nº 53, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda na infância, transferiu-se com a família para Campinas, interior de São Paulo e iniciou seu trabalho na imprensa aos 19 anos, ao publicar, em A Gazeta de Campinas, uma apreciação sobre o desempenho da atriz italiana Gemma Cunibert. O artigo, publicado em 07 de dezembro de 1881, foi produzido a pedido de seu pai, Valentim José da Silveira Lopes (1830- 1915), médico e diletante das letras, que, para convencer a filha, afirmou estar impossibilitado de fazê-lo.15 A partir de então, Júlia Lopes passou a colaborar nesse jornal e em outros periódicos indicada16 por Carlos Ferreira (1846-1913),17 redator e posteriormente diretor de A Gazeta de Campinas, que lhe escreveu pedindo a resenha da nova edição de um livro de Casemiro de Abreu. A fama literária conquistada na região de Campinas determinou o convite para escrever em periódicos na cidade do Rio de Janeiro. Dentre esses, consta A Semana, fundada pelos escritores Valentim de Magalhães e Filinto de Almeida. Das reuniões intelectuais surgiu uma atração entre D. Júlia e Filinto de Almeida a partir de 1885, que logo se transformou em romance. No entanto foi na cidade de Lisboa, para onde se mudou em 1886, que se lançou definitivamente como escritora, ao publicar a obra Contos Infantis, em parceria com sua irmã 11 Ver SOIHET, Rachel. O feminismo tático de Bertha Lutz. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006. 12 Ver DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2005. 13 Idem. p.18. 14 As informações biográficas citadas aqui sobre a escritora foram encontradas em: BRASIL, Érico Vital & SCHUMAHER, Schuma (org.). Op. cit. 15 Ver o capítulo intitulado “Um lar de artistas”. RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Dep. Nacional do Livro, 1994. 16 No que diz respeito à indicação ver ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. VIDAS DE ROMANCE: As mulheres e o exercício de ler e escrever no entresséculos 1890-1930. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2005. p.78. 17 Carlos Augusto Ferreira (1846-1913), gaúcho, foi colaborador do Correio Paulistano e redator-chefe, diretor e depois proprietário do jornal Gazeta de Campinas. Morou na cidade de Amparo, interior de São Paulo, abriu um colégio só para meninos, que funcionava como internato e externato. Também foi, possivelmente, o primeiro tradutor de Baudelaire no Brasil e ficou conhecido como ex-noivo de sua conterrânea Amália dos Passos Figueiroa (1846-1875), integrante da família de mulheres literatas e editoras da revista Corimbo. Ver MENEZES, Raimundo de. Dicionário literário brasileiro ilustrado. São Paulo, Saraiva, 1969. p. 498. 24 Adelina Vieira. Foi em terras portuguesas também que o enlace matrimonial com o jovem Filinto de Almeida finalmente aconteceu, após quase dois anos de namoro, em 28 de novembro de 1887. Segundo o relato do Dr. Claudio Lopes de Almeida,18 neto da escritora, o pai de Júlia Lopes, desconfiado das reais intenções de seu pretendente, deixou claro que o casamento só aconteceria caso Filinto de Almeida se dispusesse a ir até Portugal e lá se casasse. Tal ato seria considerado pela família uma prova real de seu sentimento pela escritora. Após a cerimônia, Júlia, que até então assinava apenas Lopes, incorporou o sobrenome do marido e tornou-se Julia Lopes de Almeida. De volta ao Brasil, em 1888, publicou seu primeiro romance, Memórias de Marta, que veio a público inicialmente em folhetins veiculados pelo jornal diário O País. Em 1892, a escritora se tornou colunista dessa folha, colaboração que durou mais de três décadas, sendo que em seus primeiros anos escrevia sob o pseudônimo de Ecila Worms. Sua atividade em jornais e revistas, como no Jornal do Comercio, A Semana, Ilustração Brasileira, Tribuna Liberal, entre outros, foi incessante e, na maior parte das vezes, tocava em temas profundos, sendo, por exemplo, explicitamente a favor da abolição e da República, em artigos que tratavam da questão. A escritora foi uma das primeiras romancistas brasileiras e sua produção literária foi prolífica,19 abrangendo vários gêneros, como contos, romances, peças teatrais, crônicas, livros de jardinagens, manuais de civilidade e literatura infantil. A presente pesquisa tem, portanto, como foco o feminismo de Júlia Lopes de Almeida capturado a partir de sua trajetória intelectual e de sua atuação em espaços político-culturais, como o seu “Salão Verde”, instituições filantrópicas e na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, entidade que agregava parcela das feministas de seu tempo. Convém lembrar que na virada do século XIX para o XX até os anos iniciais da década de 1930, a ideia de feminismo estava diretamente ligada ao conceito de sufrágio. Mais do que o direito completo à cidadania, o termo remetia à independência da mulher, à garantia de uma profissão, bem como à dedicação aos estudos.20 De fato, tais prerrogativas foram 18 A entrevista foi realizada na casa do neto de Júlia Lopes de Almeida, Dr. Claudio Lopes de Almeida, em 11 de janeiro de 2016. ALMEIDA, Claudio Lopes de. Júlia Lopes de Almeida. [11 de jan. 2016]. Entrevistador: Deivid Aparecido Costruba. Rio de Janeiro, janeiro de 2016. 19 Seu estilo foi marcado pela influência do realismo e do naturalismo francês, especialmente aquele pertencente à obra de Guy de Maupassant (1850 - 1893) e Émile Zola (1840 - 1902), dos quais era uma profunda admiradora. Ver DE LUCA, Leonora. O “feminismo possível” de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). Cadernos Pagu. Campinas, vol.12, p. 275-299, 1999. 20 No primeiro capítulo se analisará as propostas e perspectivas da chamada primeira “onda” ou “vaga” feminista, cuja pauta se alicerçou, sobretudo, no sufrágio feminino. Ver GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2011; SCAVONE, Lucila. Estudos de Gênero: uma sociologia feminista? Revista Estudos Feministas, v.8, n.2. Florianópolis, 2000; COLLING, Ana Maria & TEDESCHI, Losandro 25 proporcionadas à Julia Lopes tendo em vista o status de sua família na sociedade. Oriunda da elite carioca, ela soube usar de sua condição social para trazer à tona o debate sobre os direitos políticos e civis das mulheres nas primeiras décadas do século XX. Portanto, a tese que esta investigação defendeu é a de que a escritora foi uma feminista de múltiplas facetas expressas em sua atuação sociocultural em vários campos, isto é, seja como mãe, esposa, intelectual, jornalista, anfitriã do salão verde ou como sufragista, que objetivou o alargamento daquilo que a sociedade creditava ao papel da mulher. Assim sendo, utilizou-se de sua posição social para, gradativamente, pontuar suas críticas à sociedade e, sobretudo, rediscutir o papel da mulher na coletividade. Mas, de que forma Júlia Lopes conseguiu notabilizar suas posturas sem ser percebida como uma mulher radical? Por que um estudo sobre a escritora se faz necessário, se a protagonista já foi bastante pesquisada? De que forma a rede de relações sociais ajudou na afirmação de suas posições em defesa das causas relativas às mulheres? E os circuitos mais amplos que frequentava, permitiram consolidar sua atuação em defesa dos direitos civis e políticos das mulheres? Essas preocupações traduzem-se no título da pesquisa. Se a pauta principal da agenda feminista no período era o sufrágio das mulheres, pode-se inferir que Julia Lopes de Almeida alargou tal programa ao abordar outras questões também complexas, que estendiam os direitos das mulheres para além do voto feminino. Nesta direção está a luta da escritora pela instrução da mulher, pela independência em relação aos homens, pelo estímulo à profissionalização das moças, pelo incentivo ao debate público,21 bem como, a participação feminina em organizações (como ligas, federações e partidos) que se propunham a defender causas inerentes ao sexo. Neste sentido, a proposta deste trabalho será identificar o itinerário intelectual de uma escritora, que fazia parte de um grupo social específico do Rio de Janeiro composto por mulheres brancas, instruídas e oriundas da elite. Além disso, a proposta aqui delineada também tentou perceber, de que modo, em meio a todo o processo de profissionalização do escritor,22 Julia Lopes de Almeida conseguiu viver de seu próprio ofício, oportunidade em que pôde desfrutar de reconhecimento nacional e internacional, tendo em vista o cenário adverso para aquelas que almejavam viver apenas da sua produção literária. Antonio (org.). Dicionário crítico de gênero. Dourados: Editora da Universidade Federal da Grande Dourados, 2015. 21 Aqui se destaca a colaboração em O País, folha na qual Júlia Lopes incentivou o embelezamento da cidade, a preservação das matas e o ajardinamento das praças. Cumpre lembrar que um dos temas polêmicos dos primeiros anos do século XX era o arrazoamento do morro do Castelo e do morro do Santo Antônio, no Rio de Janeiro. Questão que também fazia parte da pauta da escritora. 22 Ver SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 26 Além disso, a pesquisa se propõe a analisar o papel desempenhado por Júlia Lopes de Almeida na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. A entidade foi criada por Bertha Lutz, no ano de 1922 e tinha como objetivo discutir e lutar pelo sufrágio feminino. Cumpre lembrar, de acordo com os documentos analisados,23 que a escritora Julia Lopes, além de ser a presidente de honra da instituição, era também a representante internacional da organização na ausência de Bertha Lutz. Pode-se levantar alguns pontos: quais foram os vínculos sociais e afetivos formados nessa participação? Como se deu o funcionamento da instituição? Quem eram as mulheres que figuraram na busca pelo sufrágio feminino? Qual a importância de Júlia Lopes de Almeida no desenvolvimento dessa e de outras questões? A partir dessas e outras indagações e na tentativa de identificar como o itinerário intelectual de Júlia Lopes de Almeida foi constituído, selecionou-se textos que abordavam a questão do feminino e optou-se por analisar uma documentação diversificada que incluiu: manuais de civilidade, como o Livro das Noivas (1896) e o Livro das Donas e Donzelas (1906); uma coletânea de crônicas, como o compêndio Eles e Elas: monólogos e diálogos (1910); livros atrelados às questões ambientais, destacando-se Correio da Roça (1913), A Árvore (1916) e Jardim Florido (1922); conferências realizadas pelo Brasil e na Argentina, caso Brasil (1922) e Oração à Santa Doroteia (1923); bem como os documentos do I e II Congresso Feminista no Rio de Janeiro, organizado pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Também se pode destacar aqui o acervo pessoal da escritora que está sob os cuidados de seu neto, Dr. Claudio, do qual se obteve amplo acesso. Além dessas fontes também foram consultados os jornais e revistas da grande imprensa, disponibilizados digitalmente pela hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, tais como: A Cigarra, A Época, A Noite, A Rua: Semanário Ilustrado, A União, Correio da Manhã, Fon-fon, Gazeta de Magé, Jornal do Brasil, Jornal do Comércio, O Estado de S. Paulo, O Jornal, O Imparcial, O Malho, O País e Revista da Semana. Mesmo com toda a volumosa produção literária, tendo em conta a quantidade, qualidade, assiduidade na produção e, ainda, a forma como desempenhava diversas tarefas ligadas à intelectualidade como cronista, conferencista, escritora, prosadora; não se percebeu qualquer menção a figura de Julia Lopes de Almeida como “mulher de letras” em antologias publicadas no decorrer do século XX. Nas últimas três décadas, entretanto, a crítica feminista tem se esforçado em recuperar a escrita literária das mulheres no Brasil. A partir de uma perspectiva teórica, procurou-se 23 A documentação da Federação encontra-se sob a guarda do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro – RJ. 27 identificar os fundamentos que galgaram as conceituações e juízos de valor que ajudaram a firmar os parâmetros responsáveis pela formação dos cânones nacionais. Nesta revisão, entende-se que o sentido de “literário” não esteja atrelado ao sentido de “arte”, ao passo que se relacionaria diretamente ao conceito de “cultura” e, desta forma, está incorporado ao espaço histórico social.24 Este ambiente não era propício às mulheres, assim sendo, as relações se davam pelo poder, sendo os homens aqueles que definiam o cânone literário.25 No que tange este campo, as avaliações bibliográficas sobre a vida e obra de Júlia Lopes de Almeida, pelo menos até a década de 1980, mostram seu protagonismo por meio de citações ou excertos que apenas simplificam sua produção literária. Outras análises tratam-na como uma representante feminina na literatura, mas com um viés menor.26 A partir do decênio seguinte, a fortuna crítica sobre sua obra começou a se adensar em diversos núcleos de pesquisas que abrangiam várias áreas do conhecimento – Letras, Ciências Sociais, História –, impulsionados, ainda, pelas novas discussões sobre o status da categoria de gênero27 na análise histórica. De um modo geral, Julia Lopes de Almeida não foi identificada como uma escritora radical em sua época, se comparada a outras figuras contemporâneas que foram duramente criticadas por suas atitudes.28 Isso se deve ao fato da escritora não confrontar diretamente o status quo da época e, neste sentido, conforme se consolidava sua crescente aceitação e reconhecimento social, aproveitava para alargar e tencionar os limites do feminino, radicalizando assim seu pensamento e atitudes de maneira progressiva. Julia Lopes, então, articulou-se na linha tênue entre a ordem e a transgressão, ou seja, soube avançar quando podia e recuar quando o ambiente não lhe era favorável. Esse método de abordagem talvez 24 Ver SCHIMIDT, Rita Terezinha. Historiografia literária e discurso crítico: memória e exclusão. Disponível em: http://www.mshs.univ-poitiers.fr/crla/contenidos/AV/CONFERENCIAS/Conferences/Schmidt.html. Acesso em: 30 de jan. de 2017. 25 Schmidt e Navarro argumentam que “cânone é o termo hoje utilizado para referir ao conjunto de obras literárias representativas – o que de melhor foi escrito – no espaço geográfico de uma cultura nacional ou mesmo da cultura ocidental. A constituição de um corpo canônico opera como um sistema de significações culturais que autoriza certas representações na medida em que elas preenchem um certo padrão de valores e um desejo de verdade. O elenco das obras consideradas de mérito para integrar um cânone é definido pelos críticos literários e historiadores da literatura, o que significa dizer que o cânone é resultado, entre outras coisas, do prestígio e poder dos discursos críticos por meio dos quais um segmento da cultura letrada exerce controle e define que representações têm legitimidade para circularem de forma a se tornarem representativas do corpo social de uma cultura”. Ver NAVARRO, M. H.; SCHIMIDT, R. T.. A questão de gênero: ideologia e exclusão. IN: II Congresso Internacional sobre a mulher, gênero e relações de trabalho. Goiânia. ANAIS do II Congresso Internacional sobre a mulher, gênero e relações de trabalho. Goiânia: Cir Gráfica e Editora, 2007.p. 86. 26 Trata-se da avaliação de escritores de referências na história literária, como, no primeiro caso, José Veríssimo (1919) e Lúcia Miguel Pereira (1957). Já no segundo destaca-se a obra de Agripino Grieco (1947). 27 Ver SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, p.5-22, jul./dez., 1990. 28 Aqui se pode citar o exemplo de Patrícia Rehder Galvão (1910-1962) e Maria Lacerda de Moura (1887-1945). http://www.mshs.univ-poitiers.fr/crla/contenidos/AV/CONFERENCIAS/Conferences/Schmidt.html 28 possa ser entendido como um “feminismo possível”, expressão cunhada pela pesquisadora Leonora de Luca29 e o que Maria Fernanda Bicalho considerou por “feminismo esclarecido”.30 Ainda nesta discussão, June Hahner evidenciou que tal característica era bem recebida desde que não afetasse a conduta da mulher em relação ao lar e à família: As atividades literárias, que podiam ser realizadas em casa, eram um escape aceitável para as energias femininas, e um escape cada vez mais usado pelas mulheres de classe superior. As escritoras menos controversas, que elogiavam o lar e a família, podiam ser vistas como uma prova das aptidões intelectuais femininas por homens simpáticos a uma emancipação feminina moderada. Além do mais, nem sua pessoa, nem suas ideias deixaram os homens de sua própria classe muito constrangidos. Ao contrário das mulheres da classe inferior, elas ainda poderiam ser vistas como criaturas delicadas e gentis. Suas manifestações literárias benignas não causavam preocupações. 31 Inversamente a essa perspectiva, Júlia Lopes de Almeida valeu-se de sua condição de literata para propor suas pautas e ações sociais. Dessa forma, se a conjuntura do século XIX no Brasil não era tão favorável ao desenvolvimento de atividades femininas, em um tempo em que a esmagadora maioria das mulheres vivia trancafiada em casa sem nenhum direito, Nísia Floresta dirigia um colégio para moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livros para defender os direitos não só femininos, como também de índios e escravos. 32 Já a anarquista Maria Lacerda de Moura, a mais jovem do grupo, cujas críticas eram mais incisivas ao status quo, foi analisada por Miriam Moreira Leite nos seguintes termos: O pioneirismo de Maria Lacerda de Moura foi na área de estudos sobre a condição feminina. A tônica de seus escritos iniciais era a existência de padrões ideais e reais contraditórios na vida das mulheres, levando a uma hipocrisia social constante em suas relações interpessoais. Divulgou luta empreendida pelo direito à cidadania e à educação, a necessidade de resistência ao papel exclusivo para a mulher de procriadora e o esclarecimento de seu direito ao amor e ao casamento de livre escolha, a necessidade de uma maternidade consciente e aos problemas da solteirona e da prostituta, provocados pela família burguesa. 33 29 Ver DE LUCA, Leonora. O “feminismo possível” Op. cit. p. (275-299). 30 Segundo Maria Fernanda Bicalho, esta expressão foi usada em uma reportagem publicada na Revista Feminina em 1916, para se referir ao feminismo praticado pela Associação da Mulher Brasileira, da qual Júlia Lopes foi uma das integrantes desde o início. BICALHO, Maria Fernanda B. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do XX. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia – UFRJ, Rio de Janeiro, 1988. p. 227. 31 Ver HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. p. (89-90). 32 Idem. p.14. 33 Ver LEITE, Miriam Moreira. Maria Lacerda... Op. cit. p. 16-17. 29 É importante lembrar que além da crítica no que diz respeito ao sexo, Maria Lacerda de Moura não se adequava aos valores considerados burgueses. Em outras palavras, aquele universo ao qual pertencia a Julia Lopes de Almeida e Bertha Lutz, na ótica de Moura, também era um problema para a libertação feminina. Inclusive, o tom moderado de Bertha Lutz se assemelhava a forma conciliatória de Julia Lopes. Rachel Soihet analisa Lutz: O cuidado em demonstrar sua moderação estava presente ao afirmar que não pretendia uma associação de sufragettes, que ameaçassem quebrar as vidraças da Avenida, demonstrando sua oposição a certas medidas que caracterizavam o feminismo inglês e norte-americano em determinadas fases. 34 Neste cenário sufragista, de acordo com a pesquisadora Celi Pinto, havia pelo menos três vertentes feministas nas primeiras décadas do século XX: a primeira, defendida por Bertha Lutz, entendia que a mulher deveria incorporar direitos políticos, a segunda, denominada como “feminismo difuso”, era uma tendência que se expressou nas diversas manifestações da imprensa alternativa, cuja liderança coube a professoras, escritoras, jornalistas e, de acordo com a presente pesquisa, identificou-se Júlia Lopes de Almeida como uma das representantes. A mais radical delas, cuja manifestação se deu no movimento anarquista e no partido comunista, defendia a radicalização total dos costumes e foi atribuída a Maria Lacerda de Moura. 35 Dessa forma, a experiência de Júlia Lopes e de outras feministas foi a expressão política do movimento feminista no Brasil das primeiras décadas do século XX, o que evidenciaria “reconhecer os muitos fatores que fazem dela um agente, bem como as múltiplas e complexas maneiras pelas quais ela se constrói como ator histórico”.36 Concorda-se, pois, igualmente a Rachel Soihet e Suely Gomes Costa, que analisaram a trajetória de Bertha Lutz, que Julia Lopes de Almeida e suas contemporâneas na luta pela conquista do voto faziam parte de um processo de tomada de consciência que, de um lado, estava alicerçado na experiência de opressão e negação de direitos, e de outro, nas inúmeras manifestações por essas garantias. Logo, considera-se que mulheres, desses e de outros tempos e espaços, tinham consciência da trilha mais adequada a seguir para a conquista de seus objetivos.37 34 Ver SOIHET, Rachel. O feminismo... Op. cit. p. 29. 35 Ver PINTO, Celi Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. p.14. 36 Ver SCOTT, Joan. A cidadã... Op. cit. p. 45. 37 Ver SOIHET, R.; COSTA, Suely Gomes. Interdisciplinaridade: história das mulheres e estudos de gênero. Gragoatá (UFF), v. 25, p. 29-49, 2008. p. 11. http://lattes.cnpq.br/3443783965119780 http://lattes.cnpq.br/4687269215330437 30 Em relação à discussão bibliográfico-historiográfica sobre a vida e obra de Júlia Lopes de Almeida, os estudos se avolumaram nas últimas décadas. Destaca-se o artigo de Leonora De Luca que, ao pesquisar simultaneamente a vida e a obra da escritora, engendrou a discussão sobre o feminismo praticado por Júlia Lopes, dentro dos limites sociais que lhe eram comuns.38 No entanto, cabe destacar sua tese de doutoramento intitulada “Amazonas do pensamento”: A Gênese de uma intelectualidade feminina no Brasil, que analisou um universo amplo de escritoras brasileiras arroladas pelo dicionário do Sacramento Blake, divulgado entre 1883 e 1902. Neste trabalho, De Luca descreveu e caracterizou a participação de um numeroso contingente feminino no país, na constituição de uma coletividade de mulheres reunidas em torno de objetivos comuns nas décadas finais dos oitocentos. É importante notar a periodização desenvolvida pela pesquisadora. Em um primeiro momento, selecionou-se 15 mulheres consideradas “ancestrais”, cuja atuação limitou-se aos séculos XVII, XVIII e início do XIX, mas que ainda tinham o pensamento atrelado ao Antigo Regime. Já no segundo, se constituiu um grupo intermediário de 17 escritoras, que atuaram principalmente no terceiro quartel do século XIX. A última categoria possuía majoritariamente o total das escritoras, na qual se incluiu Júlia Lopes de Almeida. Também se deve ressaltar o pioneirismo da tese de doutorado denominada Encantações: Escritora e imaginação literária no Brasil, século XIX, da antropóloga Norma Telles, que examinou inúmeros romances de autoria feminina produzidos no Brasil, ao longo daquele século. Além disso, Telles descreveu sobre a existência de toda uma tradição literária feminina ao realçar a figura de mulheres como Narcisa Amália de Campos (1856-1924), Maria Benedicta Bormann (1853-1895), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Maria Firmina dos Reis (1825-1917), Ignez Sabino (1853-1911), Josefina Alvarez de Azevedo (1851-?), Eufrosina de Barandas (1806-?), entre outras. Ainda no âmbito sociológico, o trabalho de fôlego de Maria Thereza Caiuby Crescenti Bernardes denominado Mulheres de Ontem? Rio de Janeiro Século XIX merece destaque, pois, uma vez conhecida à existência de algumas mulheres de letras no passado, a pesquisadora preocupou-se em fazer um levantamento sobre a quantidade existente nesse ramo e sua maneira de expressar-se diante dos problemas femininos. Tem-se ainda o trabalho de Michele Asmar Fanini, Fardos e Fardões: Mulheres na Academia Brasileira de Letras 38 Convém lembrar que este estudo, apesar de introdutório, teve a preocupação de perceber, dentro de um quadro de valores dos quais Júlia Lopes pertencia, um “possível feminismo”. Ver DE LUCA, Leonora. O “feminismo possível” Op. cit. p. (275-299). 31 (1897-2003), com destaque para o capítulo intitulado Portas fechadas: Julia Lopes entre o salão literário e a ante-sala da ABL, no qual analisou a não admissão da escritora na Academia Brasileira de Letras. No campo literário, Rosane Saint-Denis Salomoni, no trabalho Sob o Olhar do narrador: representações e discursos em A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida buscou fazer uma releitura crítica baseada em conceitos relacionados à narratologia, à crítica feminista e aos estudos sobre o discurso, que permitiram desvendar os processos de produção e construção de sentido dentro da obra. Já em sua tese de doutoramento, A Escritora/ Os Críticos / a Escritura: o Lugar de Júlia Lopes de Almeida na ficção brasileira, a pesquisadora seguiu duas linhas paralelas. Na primeira, de viés historiográfico, acrescentou informações relevantes sobre a vida da escritora fluminense e sua trajetória na “República das Letras”. A segunda, mais analítica, buscou em determinados romances como Memórias de Marta (1889), A Família Medeiros (1892) e Cruel Amor (1911), rastrear indícios que pudessem revelar o posicionamento estético-ideológico de Júlia Lopes, a leitura que fez da sociedade de seu tempo e das questões mais importantes que estavam em pauta quando tais obras vieram a público. Ainda nesta esfera, Nadilza Martins de Barros Moreira cujo trabalho intitulou-se A condição feminina revisitada: Júlia Lopes de Almeida e Kate Chopin, recuperou uma literatura feita por mulheres, ao valorizar as obras de autoria feminina, bem como uma memória literária nacional que estava revelada nas narrativas de ambas as escritoras. Desta forma, o estudo se propôs a situar cada uma e posteriormente, confrontá-las levando em consideração aspectos sociais, culturais e literários que perpassam as narrativas de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Kate Chopin (1850-1904). Por fim, Nahete de Alcântara Silva, na tese Júlia Lopes de Almeida e sua trajetória de consagração em O País, teve por objetivo pesquisar a produção literária de autoria feminina na imprensa, em especial, a de Julia Lopes de Almeida. Para isso, elegeu como fonte o jornal O País, periódico no qual D. Júlia colaborou por quase duas décadas e que foi espaço de publicação dos vários gêneros utilizados em sua vida intelectual. Na área da História, cabe destacar o trabalho de Jussara Parada Amed, nomeado Escrita e experiência na obra de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que esclareceu alguns aspectos da recepção que as obras de Júlia tiveram no momento de sua publicação. Mais do que isso, Amed analisou a percepção da escritora sobre a época em que vivia e como a retratava em seus romances, crônicas e contos. Em um período em que as populações urbanas cresciam e apresentava-se um reordenamento das formas de educação, sobretudo feminina, 32 algumas mulheres, ao perceber as transformações no campo cultural, buscaram inserir-se no campo das letras. Há também a tese de Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi intitulada LIÇÕES DE CASA: Discursos Pedagógicos Destinados à Família no Brasil, que teve por objetivo mostrar a missão “civilizadora” conduzida por vários intelectuais em relação aos valores, atitudes e comportamentos da sociedade, o que atingiria os recônditos da privacidade individual. Neste sentido, a pesquisa se debruçou sobre a análise de alguns dos discursos – articulados às suas práticas – produzidos por educadores que, individualmente ou como representantes de espaços institucionais, dedicaram-se à reflexão sobre a situação da família brasileira e sobre o seu papel educativo. Para isto, a pesquisadora decidiu investigar a contribuição dos seguintes intelectuais-educadores: Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Armanda Álvaro Alberto (1892-1974), Cecília Meirelles (1901-1964), Padre Leonel Franca (1893-1948) e Júlio Porto- Carrero (1887-1937). Tendo presente a discussão bibliográfica aqui focalizada, qual seria a especificidade desse trabalho? Acredito que a organização e a sistematização da vida e obra de Júlia Lopes de Almeida, somada às fotografias e às imagens pessoais, que ampliaram a percepção de foro íntimo da vida da pesquisada; a busca por um itinerário intelectual feminista, do qual se percebeu inúmeros vínculos: sociais, intelectuais, caritativos e humanos; a importância social e intelectual do “Salão Verde” para os grupos de intelectuais que se encontravam no Rio de Janeiro, além de um refúgio aos amigos lusitanos do casal Almeida, bem como a participação nacional e internacional de Júlia Lopes frente à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino; são alguns dos aportes dessa pesquisa. Já no que diz respeito à baliza cronológica deste trabalho, tem como ano inicial 1892 e vai até a morte da escritora, em 1934.39 São textos escritos nesse período, portanto, indissociáveis da questão que se compromete em alcançar sua práxis feminista, que foram analisados e aliados a outras fontes essenciais. De um lado, a divulgação pela imprensa das tertúlias intelectuais que ocorriam na casa da escritora, que permitiram rastrear a sociabilidade intelectual que ela estava inserida. De outro, os embates e debates da Federação da qual era integrante, ajudaram a entender as relações sociais e sua cooperação feminista nesta instituição. 39 O ano de 1892 refere-se à publicação da primeira coluna em O País, sob o pseudônimo de Écila Worms. Este foi o primeiro jornal de grande circulação que Júlia Lopes participou e que, posteriormente, a tornou conhecida pelas suas inúmeras campanhas em prol da mulher, do voto, do embelezamento da cidade do Rio de Janeiro etc. O ano de 1934 remete à morte da escritora e da concessão do direito de voto às mulheres, promulgada no dia 16 de julho. 33 Ao se trabalhar com estas fontes, sobretudo as literárias, foi preciso entender o imaginário do qual Júlia Lopes de Almeida estava inserida. De acordo com as proposições de Cornelius Castoriadis, este não pode ser definido como oposto do que é real, mas uma criação ex nihilo daquilo que chamamos de realidade.40 Por conseguinte, o imaginário cria o mundo, pois está na base de todo o pensamento e possibilidade de sentido: O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos. 41 Assim, complementando esta reflexão, utilizou-se as propostas metodológicas de Sandra Pesavento, oriundas de História & Literatura: uma velha nova história,42 tendo em vista que o ambiente frequentado por Júlia Lopes foi um “sistema produtor de ideias e imagens que suportava, na sua feitura, as duas formas de apreensão do mundo: a racional e a conceitual, que forma o conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao conhecimento sensível”.43 Dentre as indicações da historiadora foi importante à sugestão de que se deve entender que história e literatura correspondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espaço: A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das diferentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua “Poética”, ela é o discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficando a história como a narrativa dos fatos verídicos. Mas o que vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são historiadores que trabalham com o imaginário e que discutem não só o uso da literatura como acesso privilegiado ao passado — logo, tomando o não-acontecido para recuperar o que aconteceu! — como colocam em pauta a discussão do próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa portadora de ficção!44 Ainda no que diz respeito ao imaginário do escritor, Nicolau Sevcenko elucidou: [...] todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam. Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar uma 40 O conceito de ex nihilo significa “a criação a partir do nada”. E, desta forma, enquanto criação, o ser não se fecha em uma única determinação possível, ao contrário, está sempre aberto. Ver CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.233. 41 Idem p.13. 42 Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Enlínea], Debates, 2008. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/1560. Acesso em: 20 jul. 2016. 43 Idem. 44 Idem. http://nuevomundo.revues.org/1560 34 árvore sem raízes, ou como pode a qualidade dos seus frutos não depender das características do solo, da natureza, do clima e das condições ambientais? 45 Ainda em relação à literatura, Antônio Celso Ferreira esclareceu a incerteza que geralmente atormenta o pesquisador que se dedica ao estudo de fontes literárias no que concerne à “análise textual” (interna) ou à “contextual” (externa). A preocupação do historiador deve se pautar pela “operação historiográfica que é a interpretação das fontes em determinadas circunstâncias sociais, isto é, nos contextos, que só podem ser reconstruídos, ainda que de modo parcial, lacunar e aproximado, pela mediação de outros textos”.46 Portanto, pode se concluir que: [...] é imprescindível criar estratégias para estabelecer o diálogo entre textos e o mundo circundante. Isso leva aos modos de interação entre as várias dimensões culturais numa determinada sociedade (oral, letrada, popular, erudita, religiosa, científica, política, jurídica ou de gênero, caso se queira), problema que tem sido abordado com muita pertinência pela historiografia contemporânea. 47 Ao se dedicar às questões mais contundentes da sociedade que se estendiam além da literatura em si, Julia Lopes se tornou uma intelectual respeitada e solicitada de seu tempo. No que diz respeito a essa profissão, Jean-François Sirinelli esclareceu a importância das estruturas elementares de sociabilidade de tal microcosmo, uma vez que é um lugar precioso para analisar o movimento de ideias, tendo em vista que é um ambiente de intensa fermentação intelectual, de discussão e profusão de convicções. Pode-se perceber, ainda, que este universo opera como um lugar de estabelecimentos afetivos como a afinidade, lealdade, apadrinhamentos e pertencimento a determinado grupo.48 Ainda no âmbito das fontes, esta pesquisa também se utilizou da imprensa. Como revelou Tânia Regina de Luca, é importante observar a dimensão do objeto investigado. Dito de outra forma, “estar alerta aos aspectos que envolvem a materialidade... e seus suportes, que nada têm de natural”.49 Neste sentido, “historicizar a fonte requer ter em conta, portanto, as condições técnicas de produção vigentes e averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que 45 Ver SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 29. 46 Ver FERREIRA, Antonio Celso. “A fonte fecunda”. IN: PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tania Regina de. O Historiador e suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 75. 47 Idem. 48 Ver SIRINELLI, Jean- François. Os intelectuais. In: REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2003. 2 ed. P. 232 – 253. p. 249. 49 Ver LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. IN: PINSKY, Carla B. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2011.p. 132. 35 foi escolhido e por quê”.50 Esse tratamento, portanto, foi fundamental para entender, relacionar e identificar os editores/editoras/jornais que publicaram os livros de Júlia Lopes e da rede de sociabilidade que envolvia sua produção. Deste modo o trabalho comportou três capítulos. No primeiro os esforços caminharam no sentido de traçar o cenário intelectual do período. Mais do que isso, estabelecer o horizonte literário de mulheres que enxergavam no debate público, uma possibilidade para que suas demandas fossem atendidas. Coube também analisar os balanços realizados pela historiografia acerca do feminismo praticado no Brasil, desde o final do século XIX a meados da década de 1930. Desta forma, problematizar o significado histórico que o termo adquiriu no Brasil nas primeiras décadas do século passado também pareceu pertinente, bem como traçar um painel cultural/familiar da vida e obra de Júlia Lopes de Almeida. No capítulo subsequente, as discussões se concentraram na análise dos manuais de civilidade da escritora. Esses compêndios que intencionavam instruir a sociedade em vários aspectos surgiram na França e cruzaram as fronteiras, chegando ao Brasil em fins do século XIX. Nomes como o de Júlia Lopes foram imbuídos na tarefa de “civilizar” aqueles que precisavam de apoio para colocar certos projetos em prática. Ainda nesta discussão, buscou-se identificar a importância da filantropia para o sexo feminino e sinalizar a entrada de Júlia Lopes de Almeida em um jornal de grande circulação do Rio de Janeiro, efetivada em O País no ano de 1892. No terceiro e último capítulo, a ideia foi mostrar de que forma a escritora, a partir de sua produção escrita, não só questionou o papel do homem na vida familiar e social, mas debateu a independência da mulher em relação à figura masculina. Para isso, em Eles e Elas: monólogos e diálogos D. Júlia aludiu a um momento de inversão dos papeis masculino/feminino e/ou homem/público e mulher/privado, dissonantes com as propostas conservadores de Auguste Comte (1798-1857). Para o filósofo francês havia uma divisão natural entre atributos masculinos e femininos. Júlia Lopes, além de discordar dessa naturalização, também se preocupou com o meio ambiente e passou não só a escrever a respeito na imprensa, como também em suas obras. Essas, especificamente, ficaram conhecidas como “ciclo verde” e foram analisadas no capítulo de forma a mostrar como D. Júlia passou a se preocupar e questionar sobre tal agenda no período. Outra temática abordada neste terceiro capítulo foi a sociabilidade na residência da família Almeida em Santa Tereza, que possuía uma espaço conhecido pelo nome de “Salão 50 Idem. 36 Verde”. Lá se organizavam festas literárias, encenavam-se peças teatrais escritas pela autora, além de ter sido palco de estreias musicais que chegavam ao Rio de Janeiro, sendo, portanto, um local para ampliar e consolidar sua rede de relações. Procurou-se, ainda, compreender a atuação de D. Júlia na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, uma vez que a escritora participou das reuniões mais importantes, ao lado de outras feministas estrangeiras, como Carrie Chapman Catt (1859-1947) e Mary Allen. 51 Ademais, percebeu-se até aqui, que uma participação mais efetiva na associação se deu ao aceitar o convite para representar a Federação não só no Brasil, mas também no exterior. Por fim, a trajetória intelectual de Júlia Lopes de Almeida é extensa, tanto do ponto de vista de sua produção como escritora, quanto pela forma com que desempenhava diversas tarefas ligadas à intelectualidade. Cabe destacar, ainda, os inúmeros locais por onde transitou e a quantidade de pautas que introduziu, a fim de questionar, ainda que de forma cordial, o mundo que a cercava, como se verá a seguir. 51 Quando não houver nenhuma indicação de nascimento e morte dos personagens em análise, indica que essa pesquisa não conseguiu encontrar esses dados. 37 CAPÍTULO 1 - Julia Lopes de Almeida e o feminismo de seu tempo: literatura, escrita feminina e a busca pelo sufrágio das mulheres (1892-1934) “O feminismo abrange todos os aspectos da emancipação das mulheres e inclui qualquer luta projetada para elevar seu status social, político ou econômico; diz respeito à maneira de se perceber da mulher e também à sua posição na sociedade” (June Hahner) Entre fins do século XIX e início do XX, a cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, experimentava ares de cosmopolitismo e havia o desejo, por parte de intelectuais, de estabelecer uma sociedade cada vez mais “civilizada”. Dentre os inúmeros acontecimentos do período, destacaram-se as novas formas de viver em sociedade, novos ambientes de diversão, a reordenação do carnaval, as reformas sanitárias, o nascimento do cinema nacional, a profissionalização do homem de letras e os movimentos sociais. Além desses, houve também novidades no campo da medicina, astronomia e aeronáutica. 52 Nesse contexto, a luta das mulheres pela emancipação e pelo sufrágio feminino,53 ampliava-se cada vez mais e tinha nesse movimento, como sua principal agenda, a garantia integral de direitos à mulher. Considerando tal perspectiva, o século XIX pode ser interpretado sob duas óticas. A primeira, sombria e opressiva, quando se nota, no desenrolar de uma história pessoal, as mulheres serem submetidas a uma codificação de condutas coletivas e socialmente elaboradas. Por outro lado, assinala o nascimento do feminismo, palavra que, nesse contexto, expressou tanto as mudanças estruturais (trabalho assalariado, autonomia do indivíduo civil, direito à instrução) como a ascensão das mulheres na cena política. 54 Apesar da conhecida luta de mulheres desde a Antiguidade até a chegada à Idade Moderna, foi durante o século XIX que às mulheres do ocidente tiveram grandes oportunidades de mudança. Muito do que se passou a ser discutido na pauta feminista foi ancorado nas contribuições teóricas da obra de Mary Wollstonecraft (1759-1797). 55 52 Ver COSTA, Luiz Antonio Severino da. Brasil 1900-1910. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1980 e SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In:_____. História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 53 Tal agenda pode ser atribuída ao feminismo de fins de século XIX e das primeiras décadas do século XX, denominado de feminismo de primeira onda/vaga. Essa discussão será mais bem trabalhada no decorrer do presente capítulo. 54 Ver PERROT, Michelle; FRAISSE, Geneviève. Introdução: Ordens e Liberdade In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges. História das Mulheres no Ocidente: o século XIX. Porto: Edições Afrontamento, 1994. p. 9. 55 Cabe aqui destacar algumas dessas figuras que foram representativas na história ocidental das mulheres como Christine de Pizan (1363-1431) considerada a primeira escritora profissional, tendo em vista que sua produção escrita pôde sustentar seus três filhos pequenos quando da morte do marido. Algumas mulheres que atuaram no contexto da Reforma Protestante, oriundas do grupo dos quakers, encontraram uma via essencial à emancipação, 38 Assim, no decorrer do século XIX, o feminismo apareceu, pela primeira vez, como um movimento social de âmbito internacional, com identidade autônoma e caráter organizativo. 56 Na Europa, por exemplo, a luta das sufragistas estava intimamente ligada à questão do movimento operário contra a exploração dos trabalhadores, identificados nos partidos de esquerda como socialistas e comunistas. Nos Estados Unidos, as mulheres partiram dos problemas sociais que se desenvolviam à sua volta, caso específico da escravidão, e organizaram-se na tentativa de aboli-la. Fato significativo do período foi que o primeiro romance antiescravista dos Estados Unidos foi escrito por uma mulher, Harriet Beecher Stowe (1811-1896),57 autora de A cabana do pai Tomás, lançado em 1852. No presente capítulo, portanto, os esforços caminharão no sentido de traçar o cenário intelectual do período e estabelecer o horizonte literário de mulheres que enxergavam no debate público, uma possibilidade para que suas demandas fossem atendidas. Na trilha dessas discussões, coube também analisar a historiografia acerca do feminismo praticado no Brasil, compreendido desde o final do século XIX a meados da década de 1930. Desta forma, problematizar o significado histórico que o termo adquiriu no Brasil nas primeiras décadas do por meio do Unitarismo. Este expressava a ideia de que o Espírito podia induzi-las ao celibato, ou tirar o direito do marido de governar sua consciência, o que levou algumas delas a serem acusadas de fazer pacto com o demônio. Já nos salões franceses, as mulheres do Antigo Regime lideraram um movimento denominado Preciosismo, que se apresentou como um modelo de comportamento, um movimento de ideias, cuja característica principal era afrontar temas que iam muito além do âmbito da cultura. Em Veneza, no século XVII, a República de Paolo Sarpi (1552-1623), rica e culta tentava manter aberto o enfrentamento crítico com o papado, mas desde o Renascimento a cidade havia dado livre acesso à cultura às mulheres. Destacaram-se três intelectuais nesse período como precursoras do feminismo: Lucrécia Marinelli (1571-1653), Moderata Fonte (1555-1592) e Arcângela Tarabotti (1604-1652). Às vésperas da Revolução Francesa, Olympe de Gouges (1748- 1793) vivia em Paris e produzia textos teatrais. Também escreveu a Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs, em 1791, e a dedicou à rainha Maria Antonieta (1755-1793), a quem considerava uma mulher oprimida como as demais. A declaração foi escrita na tentativa de despertar uma tomada de consciência feminina, tendo em vista que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), mesmo sendo inspirada nos pensamentos iluministas e tomada a palavra “homem” como sinônimo de “seres humanos”, Gouges não via o documento como uma possibilidade de ação feminista. Nesse mesmo século XVIII, nasceu em Londres Mary Wollstonecraft (1759-1797). Sabe-se que foi autodidata e com apenas 19 anos, abandonou o lar paterno para viver com um rico negociante, viúvo, na cidade de Bath, sudoeste da Inglaterra. Sua primeira obra foi Reflexões sobre educação de filhas (1786), na qual analisou as restrições educacionais impostas às jovens, assim mantidas em um estado de “ignorância e dependência”. Contudo, a obra mais importante foi A reivindicação dos direitos da mulher (1790), na qual lançou as bases do feminismo moderno. Tratava-se de uma pauta que advogava pelo igualitarismo entre homens e mulheres, a independência econômica e a necessidade da participação política e da representação parlamentar. Neste sentido, para Wollstonecraft, a educação era um caminho útil para as mulheres conquistarem uma melhor condição econômica, política, social e intelectual. Ver Cap. 1 - O feminismo nas origens do mundo moderno e Cap. 2 - A primeira onda do feminismo em GARCIA, Carla Cristina. Breve... Op.cit. 56 Idem. p. 51. 57 Harriet Beecher Stowe (1811-1896) foi uma escritora e abolicionista norte-americana a qual o presidente Abraham Lincoln (1809-1865), ao encontra-la na Casa Branca, no ano de 1862, teria dito que a obra, A cabana do pai Tomás (1852), ensejou o início da Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865). Ver HEDRICK, Joan. Harriet Beecher Stowe: a life. New York: Oxford University Press. 1994. p.vii. 39 século passado parece oportuno, bem como o de traçar um painel cultural/familiar da vida e obra de Júlia Lopes de Almeida. 1.1 – A historiografia sobre o sufrágio feminino no Brasil No Brasil, a origem do feminismo remonta a meados do século XIX, sendo que alguns pesquisadores consideram o ano de 1934,58 como aquele que marcou o término de seu propósito inicial. De acordo com a historiografia sobre o tema, nesse século pode-se notar alguns acontecimentos e datas importantes que indicam os primórdios das conquistas femininas. Leonora de Luca reconheceu grupos de mulheres que lutavam por seus direitos antes do período de análise, ou seja, reivindicavam garantias já nos idos do século XVII e XVIII. Esse primeiro conjunto compunha-se de quinze mulheres “ancestrais”, cujo pensamento estava atrelado ao Antigo Regime. A pesquisadora também verificou, ao analisar as mulheres da segunda metade do XIX, um momento importante na tomada de consciência de uma coletividade feminina. Todo o esforço intelectual empreendido, desde meados dos setecentos até as primeiras décadas do século XX, objetivava defender questões comuns e constituiu naquilo que De Luca definiu como a “gênese de uma intelectualidade feminina no Brasil”. 59 Nessa mesma perspectiva, de acordo com Constância Lima Duarte, o ano de 1830 evidenciou-se revelador, pelo fato de Nísia Floresta ser “uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço público e a publicar textos na grande imprensa”. Assim 58 Cumpre lembrar que a Constituição promulgada em 16 de julho de 1934 concedeu o direito de voto às mulheres, quando elas exerciam função pública remunerada. Contudo, dois anos antes, por meio do Decreto nº 21.076, instituído no Código Eleitoral Brasileiro, esclarecia que seriam admitidas a inscrever-se como eleitoras a mulher solteira sui juris, que tinha economia própria e vivia de seu trabalho honesto ou do que lhe rendiam bens, ou qualquer outra fonte de renda lícita. Também seria concedida a permissão à viúva em iguais condições e a mulher casada que exercia efetivamente o comércio ou indústria por conta própria ou como chefe, gerente, empregada ou simples operária de estabelecimento comercial e bem assim que exercia efetivamente qualquer lícita profissão, com escritório, consultório ou estabelecimento próprio ou que tinham funções devidamente autorizadas pelo marido, na forma da Lei Civil. Em relação às mulheres separadas, consideravam-se alistáveis aquelas que passaram por desquite amigável ou judicial, enquanto durou a separação. Também se incluía aquelas que, em consequência da declaração judicial da ausência do marido, estivessem na direção dos bens do casal, ou na direção da família e por fim, aquelas deixadas pelo marido durante mais de dois anos, embora este estivesse em lugar conhecido. Convém destacar, ainda, que na Constituição de 1937, o artigo 4º esclarecia ser obrigatório o alistamento para ambos os sexos, salvo àquelas mulheres que não exerciam profissão lucrativa. A ressalva só foi abolida com a Carta de 1946, que não especificou exceções para um ou outro sexo. Ver Voto da Mulher. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/voto-da-mulher. Acesso em 02 de abr. de 2017; BRASIL. Decreto nº 21.076, de 24 de Fevereiro de 1932. Código que regula em todo o país o alistamento eleitoral e as eleições federais, estaduais e municipais. Diário Oficial, Rio de Janeiro, RJ, 26 de fev. 1932. Seção 1, p.1 e Constituições de 1891, 1934, 1937 e 1946. 59 Pode-se destacar dentre essas mulheres “ancestrais” Zaíra Americana (?), autora do livro Ilustração, Virtudes e perfeita educação da mulher como mãe e esposa do homem (1853). Para entender a divisão dessa coletividade de mulheres ver (DE LUCA, 2004). http://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/voto-da-mulher 40 tornou-se uma personalidade ainda mais conhecida devido a sua “presença constante em periódicos nacionais, tratando de questões polêmicas, como o direito das mulheres, índios e escravos a uma vida digna e respeitável”. 60 Já a professora Dulcínia Schroeder Buitoni elegeu as transformações ocorridas na imprensa feminina, a partir da segunda metade do século XIX. Essa imprensa foi mais ‘ideologizada’ em relação àquela dedicada ao público em geral. Sob a aparência da neutralidade, essas folhas veiculavam conteúdos muito fortes, reivindicando uma maior participação da mulher no espaço público. No entanto, as críticas eram atenuadas ao intercalarem-se entre textos culinários e outros que se dedicavam aos cuidados da casa e da família.61 Ainda segunda a autora, nesse mesmo século, as folhas publicadas por mulheres se desenvolveram sob duas direções distintas: a tradicional, que não permitiu liberdade de ação fora do lar e que engrandeceu as virtudes domésticas e as qualidades “femininas”; e a progressista, que defendeu os direitos das mulheres, dando grande ênfase à educação.62 Mônica Karawejczyk, destacou o ano de 1850,63 ao identificá-lo como oportuno ao surgimento de uma imprensa feminina no Brasil, cuja exigência assentava-se em uma maior participação da mulher no espaço público. As manifestações estavam atreladas às discussões políticas sobre a ideia de sufrágio universal, termo que, em sua origem, referia-se ao fim da obrigatoriedade monetária para ser eleitor. Mais do que esse significado original, o termo, conforme Karawejczyk, deve ser analisado em dois contextos importantes para a ascensão das mulheres no mundo público: A Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789). Tais acontecimentos, conclui a pesquisadora, mostraram que o mundo estava em mutação e as velhas regras não tinham mais a obrigação de serem seguidas, o que colocou em xeque crenças há tanto tempo consolidadas.64 Por fim, June Hahner deu ênfase à última metade do século XIX, ao entendê-la como uma época em que surgiu um grande número de jornais editados por mulheres nas cidades das zonas centro e sul do Brasil. Esses jornais, ao contrário daqueles que versavam sobre moda, pregavam mais abertamente pelos direitos femininos. Algumas dessas folhas, de grande 60 Ver DUARTE, Constância Lima. O discurso autobriográfico de Nísia Floresta. Labrys – Estudos Feministas, jan/jun 2006. Disponível em: http://www.labrys.net.br/labrys9/libre/constancia1.htm. Acesso em 01 de mai. de 2017. p.1. 61 Ver BUITONI, Dulcília Schroeder. Mulher de Papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009. p. 21. 62 Idem. p. 47. 63 Ver KARAWEJCZYK, Monica. As filhas de Eva querem voar: dos primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil (c. 1850-1932). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. p. 18. 64 Idem. p. (39-40). http://www.labrys.net.br/labrys9/libre/constancia1.htm 41 repercussão, foram editadas por Francisca Senhorinha,65 professora oriunda de Minas Gerais. Para Hahner: No Brasil, como em qualquer outra parte, o ensino foi, por muitos anos, uma das poucas ocupações “finas” acessíveis a uma dama. Ao mesmo tempo, as professoras podiam servir como agentes de mudanças e como disseminadoras de novas ideias. Um ponto chave constantemente reiterado por esses jornais era a necessidade de melhor nível de educação para as mulheres. 66 O incentivo à instrução, portanto, possibilitou melhor formação e erudição às mulheres. Consequentemente, quando instruídas, estas passaram a ter uma maior participação no espaço público. Os direitos eletivos plenos às mulheres, seja como eleitoras ou candidatas, foram reconhecidos nos primeiros anos da década de 1930. Além disso, esse cenário propiciou manifestações tanto coletivas quanto solitárias de mulheres que não concordavam com a ordenação dos sexos imposta pela sociedade. Diante do certame, como apontado na epígrafe deste capítulo, o feminismo praticado no Brasil pretendeu elevar o status social, político e econômico da mulher com o objetivo de majorar a sua posição na sociedade. 67 Antes de inserir as mulheres neste horizonte feminista, cabe apresentar os motivos histórico-literários pelos quais o Rio de Janeiro, foi eleito como centro propulsor de cultura no país e compreender as polêmicas dos movimentos literários das primeiras décadas do século XX. Ademais, é preciso entender a qual contexto literário a escritora Julia Lopes e seus contemporâneos estavam inseridos, isto é, problematizar o debate sobre a terminologia “pré- modernismo” e dar o devido crédito aos escritores desse tempo. 1.2 – Aspectos histórico-literários do Pré-Modernismo e do Modernismo brasileiro De acordo com Sergio Miceli, o termo Pré-Modernismo constituiu-se num recurso político dos modernistas, que se elegeram os detentores da autoridade intelectual nos anos de 1920. Eles seriam pertencentes à geração seguinte das escolas dominantes no final do século 65 Francisca Senhorinha da Mota Diniz nasceu em São João d´El Rei (MG), filha de Gertrudes Alves de Melo Ramos e Eduardo Gonçalves da Mota Ramos. Casou-se com o advogado José Joaquim da Silva, com quem teve duas filhas. Dedicou-se ao magistério da instrução primária, lecionando em Minas Gerais e, posteriormente, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Iniciou-se no jornalismo colaborando com o seminário Estação, jornal de modas, mas sua mais importante contribuição para a imprensa feminina da época foi no periódico O Sexo Feminino, que começou a produzir em Campanha (MG), em 1873. Dois anos depois o reeditou na cidade do Rio de Janeiro, tendo circulado durante quinze anos. SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Érico Vital. Op. cit. p. 246. 66 Ver capítulo 9: Os primórdios da imprensa feminista no Brasil. In: HAHNER, June. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1978. p.79. 67 Cabe destacar ainda, os trabalhos de Celi Regina Jardim Pinto, Uma história do feminismo no Brasil (2003), e de Norma Telles, Encantações: escritora e imaginação literária no Brasil (2012), textos fundamentais para a discussão proposta. 42 XIX, considerados deserdados das grandes causas políticas, como por exemplo, a importância da Independência para os românticos, o Abolicionismo e o movimento republicano para a geração naturalista, os importadores otimistas das escolas europeias periféricas ao Simbolismo etc. 68 Neste sentido, para reconstituir o momento histórico-literário de fins do século XIX e das primeiras décadas do XX no Rio de Janeiro, a fim de contestar essa visão modernista, é preciso entender as análises de Jeffrey Needell e José Murilo de Carvalho. É interessante perceber como tal cidade, que possuía uma população amplamente iletrada, tornou-se o centro de produção cultural do país. Para Needell, a literatura brasileira estava associada principalmente ao Rio de Janeiro, como centro tanto de sua produção quanto de sua difusão, tendo em vista a grande atividade intelectual oriunda na Belle Époque. No entanto, José Murilo acredita que a cidade fluminense era um centro consumidor de cultura, oposto de São Paulo que, segundo ele, seria apenas um núcleo produtor. 69 Cabe destacar, ainda, que desde o início da campanha abolicionista até a década de 1920, grande parte da produção literária nacional foi elaborada no Rio de Janeiro, voltada para esta cidade ou tomando-a em conta. Nicolau Sevcenko elucida a questão: Palco principal de todo esse processo radical de mudança, a capital centralizou ainda os principais acontecimentos desde a desestabilização paulatina do Império até a consolidação definitiva da ordem republicana. Ela centrava também o maior mercado de emprego para os homens de letras. Sua posição de proeminência se consagrou definitivamente em 1897, com a inauguração ali da Academia Brasileira de Letras. 70 Ao retomar as ideias de José Murilo de Carvalho, em artigo intitulado Aspectos Históricos do Pré-Modernismo Brasileiro, o historiador elegeu em fins do século XIX e início do XX duas cidades como centros culturais do país: Rio de Janeiro e São Paulo. Denominou a primeira de ortogenética,71 pois participava das funções administrativas do cenário nacional e, no momento em que se tornou capital da república, tal fato acentuou-se. Já a capital paulista foi denominada de heterogenética, pois até meados do XIX era uma pequena vila que só se tornou grande economicamente a partir da expansão do café e do processo de imigração. 68 Ver MICELI, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos anatolianos). São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 13. 69 Ver NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 211 e CARVALHO, José Murilo de ... et al. Sobre o pré- modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988. p.14. 70 Ver SEVCENKO, Nicolau. Literatura... Op. cit. p. 117. 71 Ortogenética e heterogenética foram termos criados por José Murilo de Carvalho que serão discutidos a seguir. Ver CARVALHO, José Murilo de ... et al. Op. cit. 43 A produção cultural do Rio de Janeiro, denominada ortogenética, foi muitas vezes influenciada pela política governista que, como centro administrativo do país, limitava a liberdade de criação. Além disso, o poder público juntou esforços para a estabilização política e priorizou o pagamento da dívida externa, o que de certa maneira, deixou a produção cultural sob o jugo dos literatos e muitos deles trabalhavam para o governo federal. Com o advento da República, a cultura europeia foi apontada como sinônimo de elegância. Na tentativa de manter a economia estável e introduzir uma nova perspectiva “civilizadora” se privilegiou a importação das culturas francesa e inglesa, de perfil aristocrático e conservador como analisa Needell. Mas por que, ao apropriar-se do padrão francófono e anglófono, deixou-se de lado aspectos fundamentais da cultura popular brasileira? Assim, esta preocupação “europeizante” se tornou contraditória, pois alguns intelectuais como Lima Barreto (1881-1922), se distinguiu como representante do povo do Rio de Janeiro, mas tinham aversão a outros aspectos que faziam parte da mesma constituição cultural da cidade, como o futebol e o carnaval.72 Desta forma, como privilegiar o modelo oficial estabelecido na capital da República, visto que este era incompatível com a diversidade cultural do cotidiano fluminense e, por consequência, do próprio país? De fato, como seria possível recuperar a realidade da cidade, se sua cultura estava atrelada a uma população que havia sido anteriormente escravizada e vivia à margem? Ao refletir sobre essas questões, José Murilo de Carvalho apontou a razão pela qual o Rio de Janeiro foi denominado de “pré” ou “pós” alguma outra escola literária pelos seus sucessores. Segundo o pesquisador, a fase compreendida entre fins do século XIX e a segunda década do século XX, portanto, não propagandeou a chamada explosão criativa que caracterizou o Modernismo. O período que antecedeu a Semana de 1922 caracterizou-se pela incorporação desenfreada da cultura europeia, sem um projeto definido de como usar o produto importado.73 Já para os artífices de 1922, a preocupação se direcionou para a busca do passado, da tradição artística colonial e da herança indígena. Por isso, muitas vezes, pejorativamente, o período estudado foi tachado de “pré”. Ao aprofundar a discussão, cabe mostrar que a narrativa hegemônica do Modernismo74 foi uma idealização proposta pelas vanguardas paulistas, que a atualizaram ao longo das 72 Idem p. 19. 73 Idem p. 20. 74 Ao conceitualizar os termos “modernos”, “modernidade” e “modernismo” Monica Pimenta Velloso explica que tais definições são correlatas, mas não têm o mesmo significado. O binômio antigo/moderno apresenta-se como um dos pilares da história da cultura ocidental, e os seus sentidos se mostram altamente variáveis. Ao se apoiar em Le Goff, esclareceu que, quem conduz o par é o moderno, por isso cabe aos indivíduos, às sociedades e às épocas o trabalho de defini-lo perante o passado. Ao prosseguir na análise, Velloso atribuiu a Charles 44 décadas de 1930 e 1950. 75 Também é importante observar o enfoque que a historiografia deu aos personagens modernistas, pautada pela ação das vanguardas e dos marcos cronológicos do movimento, o que ressalta, ainda mais, a cidade de São Paulo como centro inaugural. A Semana de Arte Moderna, que ocorreu em São Paulo, entre os dias 12, 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, é tomada como acontecimento fundador do Modernismo brasileiro. O fato pode ser constatado na própria adoção, na consagração e nos usos do termo Modernismo. A terminologia está de tal forma relacionada à cidade de São Paulo que frequentemente deixa-se de contextualizá-la na articulação com o conjunto da dinâmica brasileira.76 De acordo com a historiografia tradicional, tanto o Rio de Janeiro como a São Paulo pré-modernista tiveram um bloqueio ao pensar o Brasil como nação.77 Porém, a liberdade criativa literária de São Paulo como centro produtor de cultura, para José Murilo de Carvalho, foi fator determinante para que o Modernismo na capital paulista tivesse maior repercussão nacional. Sem as preocupações político-administrativas que a capital federal possuía e a não vinculação da intelectualidade ao Estado, os paulistas, patrocinados por seus mecenas – no caso os Prado e os Penteado – interpretava o Brasil como uma forma de cultura estética, diferente do Rio de Janeiro, que o concebia como Estado.78 Sob a batuta de seus mecenas, os paulistas conseguiram doações e consolidaram uma das primeiras manifestações coletivas públicas na história cultural brasileira a favor de um espírito novo e moderno, popularmente Baudelaire (1821-1867) ter conferido à palavra modernité o seu sentido definitivo, de tal modo que a percebeu como mediação entre duas percepções, isto é, uma dualidade que se definia com harmonia. Já no que diz respeito ao termo “modernismo”, a pesquisadora acredita que ele possui múltiplos sentidos, alguns deles contraditórios. De forma geral, associa-se de imediato aos movimentos artísticos que percorreram todo o século XX. Em muitas vezes predominava o imaginário da ruptura e da libertação do passado, visto como um fardo a ser abandonado. Essa perspectiva acabou favorecendo um aspecto que privilegiava o espírito do novo, a partir do obscurecimento e da diluição de sua relação com as tradições. Tal percepção do Modernismo como urgência de uma demanda – “tornar-se novo” – foi particularmente experimentada nos países da América Latina. Para entender a genealogia do termo “moderno” ver introdução de Velloso, Monica Pimenta. História & Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 75 Heloisa Pontes investigou o grupo de intelectuais em torno da revista Clima e como eles foram reconhecidos como herdeiros do movimento modernista no Brasil. Ver PONTES, Heloísa. Destinos misto