UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DOCÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA MÚLTIPLAS LINGUAGENS E LUDICIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CAMINHOS QUE POTENCIALIZAM O LETRAMENTO SOCIAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA DANIELA VIOLIM DA SILVA BAURU 2016 DANIELA VIOLIM DA SILVA MÚLTIPLAS LINGUAGENS E LUDICIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CAMINHOS QUE POTENCIALIZAM O LETRAMENTO SOCIAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências, Campus de Bauru – Programa de Pós- graduação em Docência para a Educação Básica, sob orientação da Profa. Dra. Maria do Carmo Monteiro Kobayashi, BAURU 2016 Silva, Daniela Violim. Múltiplas linguagens e ludicidade na Educação Infantil: caminhos que potencializam o letramento social na primeira infância / Daniela Violim da Silva, 2016 131 f. Orientador: Maria do Carmo Monteiro Kobayashi Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2016 1. Educação infantil. 2. Letramento social. 3. Múltiplas linguagens. 4. Ludicidade. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. Dedico este trabalho aos meus pais, Adinael e Maria Helena, e à minha família em geral, pessoas mais importantes em minha vida. Vocês são parte essencial disso tudo! AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, ao meu Deus, pelo dom da vida e por suas misericórdias derramadas sobre mim a cada novo amanhecer! Aos meus pais, Adinael e Maria Helena, doutores na arte de amar e educar, meus melhores exemplos de seres humanos íntegros e bondosos. À minha família, minha base e meu alicerce mais seguro e ao meu amado companheiro, parceiro e amigo, Erlon César, presente em todos os momentos, ainda que tão difíceis... À minha amiga e orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo Monteiro Kobayashi, por seus conhecimentos, ensinamentos e dedicação, e por acreditar em mim, incentivando-me de maneira perseverante nas pesquisas. Aos membros da banca examinadora, Prof.ª Dr.ª Aline Sommerhalder e Prof.ª Dr.ª Cinthia Magda Fernandes Ariosi que, de forma gentil e competente, enriqueceram o trabalho com aprimoramentos e sugestões à pesquisa. À Mari Santi, que de forma tão prestativa, criativa e competente, produziu o Livro Ilustrado, produto final deste estudo. Aos amigos conquistados durante o Mestrado Profissional que, presencial ou virtualmente, vibramos, rimos, choramos e lutamos juntos por nossas conquistas. A todos os Professores que, com sabedoria, contribuíram para meu enriquecimento acadêmico. À amiga mais chegada que irmã, Fernanda Aparecida de Souza Corrêa Costa, pela amizade, apoio, palavras de incentivo e carinho. À equipe da Unidade Escolar, sede desta pesquisa, pela autorização e colaboração no desenvolvimento da mesma. Às famílias e às minhas eternas crianças da turma do Maternal I e II, do ano de 2015. Crianças, vocês foram minha inspiração! Aos demais amigos de jornada que, de uma forma ou de outra, colaboraram e me apoiaram nessa jornada. Meu desejo é que todos também alcancem seus sonhos e objetivos! A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos Cem pensamentos Cem modos de pensar De jogar e de falar. Cem sempre cem Modos de escutar As maravilhas de amar. Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para descobrir. Cem mundos para inventar. Cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem) Mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura Lhe separam a cabeça do corpo. Dizem-lhe: De pensar sem as mãos De fazer sem a cabeça De escutar e de não falar De compreender sem alegrias De amar e maravilhar-se Só na Páscoa e no Natal. Dizem-lhe de descobrir o mundo que já existe. E de cem roubaram-lhe noventa e nove. Dizem-lhe: Que o jogo e o trabalho A realidade e a fantasia A ciência e a imaginação O céu e a terra A razão e o sonho São coisas que não estão juntas. Dizem-lhe: Que as cem não existem. A criança diz: Ao contrário, as cem existem. Loris Malaguzzi RESUMO A pesquisa desenvolvida teve como objetivo identificar, registrar, descrever e analisar o estudo e a aplicabilidade de ações lúdicas e artísticas, na Educação Infantil, que desafiem e apoiem os processos de apropriação das práticas sociais do letramento na primeira infância. Sua execução foi por meio de pesquisa qualitativa, um estudo de caso, no qual foi apresentado o cenário histórico da infância e Educação Infantil no Brasil; as relações, implicações e diferenças entre os processos de letramento social e alfabetização e suas aproximações com a ludicidade e as múltiplas linguagens da criança de Educação Infantil. A bibliografia pesquisada orientou a elaboração dos instrumentos de coleta, registro e análises dos dados de campo. Foram sujeitos desta pesquisa oito professoras de uma escola municipal de Educação Infantil do interior de São Paulo. Os dados analisados apontam que há um trabalho que atende às especificidades das crianças de Educação Infantil, ainda que sem um aporte teórico que dê continuidade e aprofundamento das ações de letramento social e do uso da ludicidade e das múltiplas linguagens. A pesquisa culminou com a elaboração de um Livro Ilustrado como produto final apresentado em resposta ao Mestrado Profissional. Palavras-chave: Educação Infantil. Letramento Social. Múltiplas Linguagens. Ludicidade. ABSTRACT The aim of the research was to identify, record, describe and analyze the study and applicability of playful and artistic actions in Early Childhood Education that challenge and support the processes of appropriation of social practices of literacy in early childhood. Its execution was through a qualitative research, a case study, in which it was presented the historical scenario of childhood and Early Childhood Education in Brazil; The relationships, implications and differences between the processes of social literacy and literacy and their approaches to playfulness and the multiple languages of children in Early Childhood Education. The bibliography researched guided the elaboration of the instruments for collecting, recording and analyzing the field data. Eight female teachers of a municipal school of Early Childhood Education in the interior of São Paulo were subjected to this research. The data analyzed indicate that there is a work that attends to the specifics of children in Early Childhood Education, although without a theoretical contribution that gives continuity and deepening of the actions of social literacy and the use of playfulness and multiple languages. The research culminated in the elaboration of an Illustrated Book as final product presented in response to the Professional Master's Degree. Keywords: Early Childhood Education. Social Literacy. Multiple Languages. Ludicity ou PLayfull. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Idade (em anos) das professoras. ............................................................ 59 Figura 2 – Gráfico referente à formação acadêmica das professoras. ...................... 60 Figura 3 – Tempo de trabalho pelas professoras no Ensino Público ou Privado. ..... 60 Figura 4 – Tempo de trabalho das professoras com Educação Infantil. .................... 61 Figura 5 – Definições dadas por professoras ao termo Letramento. ......................... 62 Figura 6 – Definições dadas por professoras ao termo Ludicidade. .......................... 63 Figura 7 – Percepção do próprio corpo no espelho. .................................................. 73 Figura 8 – Percepção do próprio corpo no espelho. .................................................. 74 Figura 9 – Contorno do corpo humano. ..................................................................... 74 Figura 10 – Completando o desenho e escrevendo o nome das partes do corpo. ... 75 Figuras 11 e 12 – Registro de atividade em desenho. .............................................. 76 Figura 13 – Hora do Conto. ....................................................................................... 77 Figura 14 – História com fantoches. .......................................................................... 78 Figura 15 – Reconto de história com fantoche. ......................................................... 79 Figura 16 – Reconto de história com fantoche. ......................................................... 80 Figura 17 – Imitando um avião. ................................................................................. 80 Figura 18 – Imitando um sapo. .................................................................................. 81 Figura 19 – Imitando um gato.................................................................................... 81 Figura 20 – Rolando como a bola. ............................................................................ 82 Figura 21 – Imitando um trem. .................................................................................. 82 Figura 22 – Manuseio e leitura de livros. ................................................................... 83 Figura 23 – Manuseio e leitura de livros. ................................................................... 84 Figura 24 – Brincadeira/cantiga de roda. .................................................................. 84 Figura 25 – Brincadeira/cantiga de roda. .................................................................. 85 Figura 26 – Exploração de sons do ambiente natural. .............................................. 86 Figura 27 – Exploração de sons e silêncio com as vagens. ...................................... 86 Figura 28 – Conhecendo e escolhendo os instrumentos da bandinha. ..................... 87 Figura 29 – Escolha dos instrumentos. ..................................................................... 87 Figura 30 – Manuseio dos instrumentos e integração entre as crianças. .................. 88 Figura 31 – Momento de tocar e cantar. ................................................................... 88 Figura 32 – Danças e gestos como livres expressões infantis. ................................. 89 Figura 33 – Danças e gestos como livres expressões infantis. ................................. 89 Figura 34 – Danças e gestos como livres expressões infantis. ................................. 90 Figura 35 – Conhecendo e explorando o giz cera. .................................................... 91 Figura 36 – Produção infantil com giz cera. .............................................................. 91 Figura 37 – Desenho, no chão, com caneta hidrocor. ............................................... 92 Figura 38 – Desenho no chão. .................................................................................. 92 Figura 39 – Desenho na parede. ............................................................................... 93 Figura 40 – Desenho com carvão vegetal. ................................................................ 93 Figura 41 – Desenho com carvão vegetal. ................................................................ 94 Figura 42 – Produção infantil com intervenção. ........................................................ 95 Figura 43 – Produção infantil com intervenção. ........................................................ 95 Figura 44 – Produção infantil com intervenção. ........................................................ 95 Figura 45 – Produção infantil com esponja. .............................................................. 96 Figura 46 – Pintura a dedo com suportes coloridos. ................................................. 96 Figura 47 – Produção infantil com palitos de sorvete. ............................................... 97 Figura 48 – Produção infantil com palitos de sorvete. ............................................... 97 Figura 49 – Pintura na parede. .................................................................................. 98 Figura 50 – Pintura com bolinhas de sabão. ............................................................. 98 Figura 51 – Pintura com bolinhas de sabão. ............................................................. 99 Figura 52 – Recorte, colagem, desenho e pintura. .................................................... 99 Figura 53 – Pintura de pratos. ................................................................................. 100 Figura 54 – Pintura de pratos. ................................................................................. 100 Figura 55 – Materiais diversos na mesma produção. .............................................. 101 Figura 56 – Composição de vários materiais. ......................................................... 101 Figuras 57 e 58 – Desenhos com canetas “hidrocor”. ............................................. 102 Figuras 59 e 60 – Representação da família. .......................................................... 102 Figuras 61 e 62 – Desenho no chão. ...................................................................... 103 Figuras 63 e 64 – Produção com carvão vegetal. ................................................... 103 Figuras 65 e 66 – Mistura de cores com pincel. ...................................................... 103 Figuras 67 e 68 – Pintura a dedo com cola colorida. .............................................. 104 Figuras 69 e 70 – Produção com esponjas. ............................................................ 104 Figuras 71 e 72 – Técnica de pintura com bolinhas de sabão. ............................... 104 Figuras 73 e 74 – Pintura com suporte fixo na parede (produção coletiva). ........... 105 Figuras 75 e 76 – Produção realizada com palito de sorvete. ................................. 105 Figuras 77 e 78 – Desenho com intervenção. ......................................................... 105 Figuras 79 e 80 – Pintura de pratos e composição com materiais diversos. ........... 106 Figuras 81 e 82 – Pintura de pratos e composição com materiais diversos. ........... 106 Figura 83 – Primeiros saltos. ................................................................................... 107 Figura 84 – Noções de lateralidade. ........................................................................ 108 Figura 85 – Lateralidade com brincadeira de roda. ................................................. 108 Figura 86 – Saltos e flexibilidade na cama elástica. ................................................ 109 Figura 87 – Jogo com regras (Patinho-feio). ........................................................... 110 Figura 88 – Jogo com regras (Patinho-feio). ........................................................... 110 Figura 89 – Construção com materiais. ................................................................... 112 Figura 90 – Construção com materiais. ................................................................... 112 Figura 91 – Jogo simbólico. ..................................................................................... 113 Figura 92 – Jogo simbólico. ..................................................................................... 114 Figura 93 – Jogo simbólico. ..................................................................................... 114 Figura 94 – Jogo simbólico. ..................................................................................... 115 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 11 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15 UM OLHAR SOBRE A TEORIA ................................................................................ 17 1 BREVE HISTÓRICO E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA E DE EDUCAÇÃO INFANTIL .................................................................................................................. 17 1.1 HISTÓRICO E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA .............................................. 17 1.2 HISTÓRICO E CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO INFANTIL .......................... 24 2 ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E MÚLTIPLAS LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO INFANTIL .................................................................................................................. 33 2.1 ALFABETIZAÇÃO x LETRAMENTO ............................................................ 33 2.2 MÚLTIPLAS LINGUAGENS E CULTURA LETRADA NA EDUCAÇÃO INFANTIL ............................................................................................................... 37 2.2.1 Jogos e brincadeiras .............................................................................. 40 2.2.2 Linguagens da Arte ................................................................................ 46 2.2.3 Linguagens Musicais ............................................................................. 49 3 CAMINHOS METODOLÓGICOS ....................................................................... 52 3.1 FUNDAMENTAÇÃO ..................................................................................... 52 3.2 CONTEXTUALIZAÇÃO ................................................................................ 53 3.3 A PESQUISA ............................................................................................... 55 4 SOBRE OS DADOS – INSTRUMENTOS .................................................... 58 4 .1 INTERVENÇÕES VISANDO ATENDER AS RELAÇÕES ENTRE MÚLTIPLAS LINGUAGENS E LETRAMENTO .............................................................................. 71 4.2 O início... ...................................................................................................... 72 4.3 Ações planejadas e desenvolvidas para trabalhar as múltiplas linguagens e os processos de letramento por meio da ludicidade .............................................. 73 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 116 APRESENTAÇÃO DO PRODUTO RESULTANTE DA PESQUISA ........................ 120 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 122 ANEXOS ................................................................................................................. 127 11 APRESENTAÇÃO O interesse pela temática deste estudo surgiu de minhas experiências de vida pessoal, familiar e profissional. Por meio da oportunidade de cursar a disciplina “Múltiplas Linguagens na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Arte”, integrante do Programa de Pós- graduação em Docência para a Educação Básica, ministrada pela Professora Maria do Carmo Monteiro Kobayashi, tive o privilégio de participar de reflexões acerca de minha história enquanto criança, adolescente e jovem que fui, e no que minhas experiências e vivências foram cruciais para me tornar o que sou e como penso hoje. De acordo com Kenski (1994), discutir e analisar o passado possibilita compreender as diversas situações vividas durante a vida e a repercussão que isso tem nas vivências atuais. Para esta autora, Esse conhecimento possibilita ao professor tomar iniciativas no sentido de superar determinados problemas, reformular as próprias concepções pessoais sobre a maneira como ensina, seu relacionamento com a disciplina, as formas que utiliza para avaliar seus alunos, etc., além de resgatar a imagem pessoal do “bom professor”, construída a partir dos contatos efetuados durante toda a sua trajetória escolar. (KENSKI, 1994, p. 47). Para Friedmann (2013), o resgate de memórias é importante para que o indivíduo se autoconheça. A autora afirma que Estes exercícios despertam em nós emoções e sentimentos que se mostram vivos, vibrantes, alegres ou doloridos se os estivéssemos revivendo. Narrativas, desenhos, memórias, tudo mobiliza para um núcleo profundo que permanece presente e que não pode ser abafado, esquecido, oculto. Este é o núcleo onde mora a criatividade do ser humano. (FRIEDMANN, 2013, p. 18). Inicio, assim, meu percurso na tentativa de me conhecer um pouco mais. Nasci no ano de 1983, em uma cidadezinha do interior de São Paulo – Andradina (conhecida por “Terra do Rei do Gado” – Moura Andrade), integrando uma família que já contava com duas irmãs mais velhas, uma com 11 anos e outra com 7 anos de diferença. Acredito ter sido a tentativa frustrada de um filho homem. 12 Contudo, isso não causou qualquer trauma ou sentimento de rejeição. Sempre me senti muito querida e amada por meus pais. Meu pai foi motorista/caminhoneiro praticamente a vida toda e, com isso, o “grosso” da educação, bem como dos cuidados, ficou sob a responsabilidade de minha mãe. E ela realizou sua tarefa de forma brilhante. Logo no primeiro ano de vida, mudamo-nos para Bauru devido à mudança de emprego do meu pai. Porém, de tempo em tempo, retornávamos à Andradina juntamente com minha mãe, pois ela acompanhava meu avô, pai dela, à cidade de São José do Rio Preto para tratamento médico. Meu avô materno tinha sérios problemas cardíacos. Assim, eu ficava sob os cuidados de minha avó materna, que também cuidava do meu primo enquanto minha tia trabalhava. E algumas dessas viagens eram especiais por serem feitas de trem. Minhas irmãs ficavam em Bauru com minha avó paterna, que morava conosco, pois já frequentavam a escola e não podiam faltar vários dias seguidos. Tive uma infância agitada devido às constantes viagens, mas era muito tranquila também. Não tínhamos luxo com roupas, brinquedos, comidas, tudo era muito simples e adquirido com bastante dificuldade. Brincava e brigava demais com esse meu primo que ficava junto na casa de minha avó materna. Meu primeiro contato com a escola ocorreu na Educação de Jovens e Adultos. Eu acompanhava minha avó paterna às aulas e lá aprendi as primeiras letras e palavras, com 4 anos. No ano seguinte, foi a minha vez! Ingressei na pré- escola aos 5 anos muito ansiosa e foi uma experiência tranquila e bastante positiva. Gostava da professora, gostava das atividades e, claro, da hora do parque. Amava o balanço amarelo e tinha competição de corrida para ver quem chegava primeiro a ele. Também tive minhas primeiras decepções, pois, na hora do lanche (levávamos lancheira na época), meu sanduíche (pão caseiro com margarina) sempre estava mordido e nunca descobri quem fazia isso... Eu não me recordo de ter uma variedade grande de brincadeiras na educação infantil. Lembro-me de que brincávamos de massinha de modelagem, de Patinho- Feio, Batata-Quente e os momentos livres no parque. Em minha casa havia alguns brinquedos “atuais e industrializados”: trenzinho movido a pilhas, pega-varetas, Boca-Rica® e pega-peixes. Divertia-me muito durante a montagem dos trilhos do trenzinho. 13 Foi um período feliz da minha vida. Ia para a escola no período da manhã, voltava para casa na hora do almoço, descansava, brincava com as vizinhas, geralmente de casinha ou de bonecas, e aguardava o retorno do meu pai aos fins de semana. No ano de 1991, aos 7 anos, ingressei na Primeira Série do Ensino Fundamental. Aqui, as coisas se complicaram. Foi um ano bastante difícil para mim e para toda a família. Perdi minha avó paterna devido a um câncer terrível, minha irmã mais velha – que fez papel de minha mãe em muitas ocasiões – casou-se e foi morar em outra cidade e, logo em seguida, meu avô materno também nos deixou. Como se não bastasse, a professora da primeira série não era muito carinhosa, digamos assim. Já era uma senhora caminhando para a aposentadoria e muito rígida também. Aprendíamos por meio de cartilhas e me lembro de uma situação em que ela, na lição do “R”, exigiu que todos tremessem a língua ao pronunciar as palavras com essa letra. Eu tinha sérias dificuldades para falar como ela queria, não conseguia, ela ficava brava e eu me fechava. Já era um pouco tímida por natureza e acredito que essas vivências acabaram por contribuir para a dificuldade que, hoje, sinto em falar em público. E a situação não mudou muito durante todo o Ensino Fundamental. Professores sempre rígidos, sérios, quase não brincavam conosco, tínhamos os momentos certos para estudar e para brincar, este último, cada vez mais raro. A rotina era praticamente a mesma: brincar com os vizinhos pela manhã e escola à tarde. Nossas brincadeiras consistiam em: casinha, boneca, pular elástico, pular corda, “bets” (sic), esconde-esconde, pega-pega, alerta, salada mista, “stop” (sic), enfim, brincadeiras que envolviam muito movimento e momentos de grande diversão. Só parávamos de brincar quando nossas mães saíam com o chinelo nas mãos e nos colocavam para dentro de casa. Cresci nessa rotina até por volta dos 14 anos, onde já não tinha mais tanto tempo para brincar e experimentei meu primeiro emprego, nas férias, em uma fábrica de camisas masculinas. As tarefas da escola eram, agora, mais numerosas e difíceis. Logo ingressei no Magistério – extinto Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM) – aos 15 anos, onde estudei pelos quatro anos seguintes em período integral e vi a vida ficando cada vez mais séria e com grandes responsabilidades. 14 Os estudos e as aprendizagens adquiridos no CEFAM fizeram total diferença em minha vida profissional. Lá, percebi que era possível ser uma professora alegre e “ouvir e ver” as reais necessidades da criança. Lá também me encontrei enquanto professora de educação infantil. O processo de estágio, até então, era voltado para o ensino fundamental e nós, alunos, solicitamos que este ocorresse em escolas de educação infantil. Foi o divisor de águas. Ali vi que queria mesmo trabalhar com crianças pequenas. Logo que me formei no Magistério, prestei vestibular para Pedagogia na Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e concurso para ser professora de educação infantil no município de Lençóis Paulista (SP). Alcancei os dois objetivos e passei os três anos e meio seguintes viajando para trabalhar durante o dia e voltando à noite para cursar a graduação. Hoje vejo o quanto essa vida corrida e agitada contribuiu para o meu amadurecimento. Costumo dizer que nada em minha vida e família foi adquirido com facilidade e isso nos traz um sentimento de respeito e valorização pelas conquistas tanto nossas quanto dos nossos semelhantes. No último ano da graduação, fui chamada, também em concurso público, para trabalhar na educação infantil do município de Bauru, onde permaneço até hoje. Tenho aprendido muito nos últimos anos e tentado melhorar a cada dia minha prática na educação de crianças pequenas. Talvez por ser fruto de uma educação rígida, eu tenha essa inquietação por buscar possibilidades de desenvolver um trabalho diferenciado com meus alunos, onde possam brincar, desenhar, cantar, dançar, expressarem-se por meio de suas diversas linguagens e possam, de fato, ser crianças. 15 INTRODUÇÃO O desenvolvimento de ações pedagógicas, em qualquer nível de educação e ensino, necessita considerar a realidade dos educandos, sua cultura e seus saberes, bem como as características cognitivas, afetivas, emocionais, motoras, entre outras. O problema central deste estudo é o fato de percebermos que os modelos didáticos do ensino do processo de alfabetização, provenientes do ensino fundamental, sejam aplicados na educação infantil adotando-se transposições na tentativa de adequá-los a esse nível de educação, sobrepujando a ludicidade para fins de alfabetização e não de desenvolverem outras linguagens que são necessárias às práticas de letramento social como, por exemplo, as linguagens artísticas (desenho, pintura), a simbólica (faz-de-conta), a musical, a corporal, a verbal e o brincar. A respeito da educação infantil, como hipótese inicial, acredita-se que a ludicidade no contexto pedagógico é fundamental para o crescimento e o desenvolvimento global da criança, incluindo a aquisição de capacidades e habilidades, tais como as práticas sociais de leitura e de escrita. As questões investigativas deste estudo foram: como ocorrem as relações entre os processos lúdicos e as práticas sociais do letramento na educação infantil? As ações planejadas, registradas, realizadas e avaliadas pelos professores de crianças de educação infantil apoiam as ações lúdicas e os processos de letramento? O processo de sistematização e apropriação das capacidades linguísticas da criança de educação infantil, que ocorre na educação escolarizada, tem nas brincadeiras e nas interações seu eixo estruturante (BRASIL, 2010), no qual a ludicidade é a linguagem da criança. Sendo a educação infantil a primeira etapa da Educação Básica, é necessário abordar o papel fundamental da ludicidade na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças, pois esta é a característica da infância. É importante ressaltar que o brincar é uma prática socialmente aprendida. Assim, é necessário trazer materiais apropriados à especificidade da educação infantil que contribuam para a reflexão sobre as práticas educativas referentes ao letramento com ações lúdicas mediadoras desse processo. 16 Esta pesquisa teve como objetivo geral identificar, registrar, descrever e analisar o estudo e a aplicabilidade de ações lúdicas na educação infantil que desafiem e apoiem os processos de apropriação das práticas sociais do letramento na primeira infância. Para tanto, os objetivos específicos foram: • Levantar referencial teórico sobre as temáticas centrais deste estudo: concepções e histórico sobre infância e educação infantil; relações entre letramento social e alfabetização; as múltiplas linguagens e ludicidade na aprendizagem e desenvolvimento de crianças na primeira infância; • Observar, identificar, descrever e analisar dados relativos ao ambiente escolar e aos conhecimentos de professores de educação infantil, por meio de questionário embasado nos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009) – Dimensões 2, 3 e 5 – para a elaboração de orientações sobre os usos da temática desta pesquisa no planejamento, na realização e na avaliação do cotidiano da educação infantil; • Elaborar, frente aos dados coletados e analisados na pesquisa de campo – questionário aos professores – e com base no referencial teórico selecionado na pesquisa bibliográfica, um rol de ações significativas para o desenvolvimento dos processos de letramento na primeira infância mediados por ações lúdicas; • Aplicar e registrar essas ações elaboradas junto às crianças dos agrupamentos de 2 e 3 anos e utilizá-las para a elaboração de um Livro Ilustrado como produto final apresentado em resposta ao Mestrado Profissional. O fato de ser a educadora responsável por uma turma de crianças com idades de 2 a 3 anos propiciou a aplicação, o acompanhamento e a avaliação da pesquisa proposta. A participação em Atividade de Trabalho Pedagógico (ATP) previsto na Lei Municipal n.° 5.999, de 2010, favorecerá, futuramente, a reflexão das ações indicadas e a disseminação dos estudos realizados junto aos professores da Unidade Escolar, sede da pesquisa. 17 UM OLHAR SOBRE A TEORIA 1 BREVE HISTÓRICO E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA E DE EDUCAÇÃO INFANTIL Elucidaremos, neste capítulo, um breve histórico sobre as concepções de infância e de Educação Infantil. 1.1 HISTÓRICO E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA A criança, como qualquer ser humano, é um sujeito social, histórico e de direitos que integra uma organização social e familiar em um determinado momento histórico e cultural (BRASIL, 1998) e tem nas interações e práticas vivenciadas a possibilidade de construir sua identidade pessoal e coletiva por meio de brincadeiras, do desenvolvimento da imaginação e da fantasia, das aprendizagens, observações, experimentos e questionamentos que levam à construção de sentidos sobre a natureza e a sociedade produzindo, assim, cultura (BRASIL, 2010). O termo infância remete ao sentido de “não fala” (in-fans). Contudo, é necessária uma reflexão sobre esse conceito partindo do questionamento a respeito de qual período da vida humana ele se refere. Oliveira (2010) relata que, referente aos primeiros meses de vida, quando o bebê ainda não adquiriu a linguagem de seu meio cultural, é preciso lembrar que “[...] desde o nascimento, já começam a ser construídos sistemas de comunicação entre o bebê e seu entorno social por meio de choros, sorrisos, gestos, etc.” (OLIVEIRA, 2010, p. 44), ou seja, a tentativa de comunicação é precoce. Quando relacionado aos primeiros anos de vida, a criança já fala, já se comunica, porém, sua fala não costuma ser valorizada. Esses questionamentos nos impelem a olhar um pouco para a história, debruçando-nos à compreensão de como surge esse sentimento referente à infância. As crianças brasileiras, negras, brancas, mestiças, estão em todo lugar. Basta olharmos as ruas, as escolas, os ambientes domésticos. Seus rostos estampam diversas campanhas publicitárias levando ao aumento do comércio e da indústria de artigos infantis. Entretanto, nem sempre houve esse olhar aguçado às 18 especificidades da infância. A história da criança, no Brasil e no restante do mundo, revela a existência de uma considerável distância entre a realidade infantil descrita por organizações internacionais e autoridades daquela cuja criança, de fato, encontra-se em seu cotidiano (DEL PRIORE, 2007). A autora pontua que o mundo que a “criança deveria ser” ou “ter” é diferente daquele onde ela vive, ou, no mais das vezes, sobrevive. O primeiro é feito de expressões como “a criança precisa”, “ela deve”, “seria oportuno que”, “vamos nos engajar em que”, até o irônico “vamos torcer para”. No segundo, as crianças são enfaticamente orientadas para o trabalho, para o ensino, para o adestramento físico e moral, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que normalmente a ela está associada: do riso e da brincadeira. (DEL PRIORE, 2007, p. 8, grifos da autora). Por um lado, há a imagem de crianças felizes com brinquedos eletrônicos e demais artefatos de uma sociedade consumista. Por outro, veem-se dados sobre o trabalho infantil, a exploração sexual de crianças e o tráfico de drogas entre menores carentes. Refletir sobre essas questões, e sua trajetória histórica, é de suma importância, tanto que a historiografia internacional vem reunindo informações consideráveis sobre a criança e seu passado (DEL PRIORE, 2007). As obras iconográficas – pinturas, desenhos, gravuras, esculturas – são fontes importantes de conhecimento, pois mostram as características, formas de se comportar e se vestir ou ainda a aparência física das pessoas de determinada época (SCARANO, 2007). Por meio de um profundo estudo iconográfico (tratando, aqui, de produções europeias), Ariès (1981) afirma que, na Idade Média – até o século 12, aproximadamente –, a criança não possuía um lugar de destaque na sociedade. Ao contrário, ela era vista como um adulto em miniatura. Seus estudos, icônicos, revelam uma representação sem a presença de características infantis. As crianças representadas nas obras de arte eram pessoas verdadeiramente adultas, o que a diferenciava de um adulto era o seu tamanho. Em exemplos utilizados pelo autor, numa miniatura francesa do fim do século XI, as três crianças que São Nicolau ressuscita estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos, sem nenhuma diferença de expressão ou de traços. [...] No Evangeliário da Saint-Chapelle do século XIII, no momento da multiplicação dos pães, Cristo e um apóstolo ladeiam um homenzinho que bate em sua cintura: sem dúvida, a criança que trazia os peixes. No mundo das fórmulas românicas, e até o fim do 19 século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido. (ARIÈS, 1981, p. 51, grifos do autor). Não apenas no mundo estético, mas também na vida real, a infância nesse período histórico era uma fase de transição, de passagem, sem importância alguma, que logo seria ultrapassada e esquecida (ARIÈS, 1981). E o pensamento não era diferente em terras brasileiras: “Meúdos”, “ingênuos”, “infantes” são expressões com as quais nos deparamos nos documentos referentes à vida social na América portuguesa. O certo é que na mentalidade coletiva, a infância era, então, um tempo sem maior personalidade, um momento de transição e por que não dizer, uma esperança. (DEL PRIORE, 2007, p. 84, grifos da autora). É no século 13, conforme indica Ariès (1981), que surgem algumas representações infantis mais próximas do sentimento moderno. A primeira delas é o “anjo”, aparentando a idade da adolescência e distante dos adultos em escala reduzida, no qual os artistas arredondam os traços e os deixam mais graciosos e efeminados, inclusive. A segunda forma de representação da criança é a figura sagrada do “menino Jesus” ou da “Nossa Senhora menina”, associando a infância à imagem de maternidade da Virgem e ao culto de Maria. O terceiro tipo de representação da criança surge na fase gótica, que é a “criança nua”. Essa imagem da criança nua se associava, também, à morte. Nos séculos 15 e 16, a criança se torna uma das personagens mais presentes nas obras artísticas, cujas cenas da vida cotidiana são salientadas: criança com a família, brincando com os amigos, acompanhando as práticas religiosas, entre outras. Todavia, essas cenas não descreviam exclusivamente a infância ainda que as crianças fossem, muitas vezes, as protagonistas. Para o autor, isso sugere duas ideias: Primeiro, a de que na vida quotidiana as crianças estavam misturadas com os adultos, e toda a reunião para o trabalho, o passeio ou o jogo reunia crianças e adultos; segundo, a ideia de que os pintores gostavam especialmente de representar a criança por sua graça ou por seu pitoresco [...], e se compraziam em sublinhar a presença da criança dentro do grupo ou da multidão. Dessas duas ideias, uma nos parece arcaica: temos hoje, assim como no fim do século XIX, uma tendência a separar o mundo das crianças do 20 mundo dos adultos. A outra ideia, ao contrário, anuncia o sentimento moderno da infância. (ARIÈS, 1981, p. 55-56). É a partir do século 15 que surgem dois novos tipos de representação infantil: o retrato e o putto – criancinha nua. Em um primeiro momento, não pensavam em conservar o retrato de uma criança sobrevivente que se tornara adulta ou tivesse morrido ainda pequena. Isso porque viam a infância como uma fase sem importância e indigna de lembrança. Era comum o sentimento de que “[...] se faziam várias crianças para conservar apenas algumas” (ARIÈS, 1981, p. 56), pois não podiam se apegar a algo que, durante muito tempo, foi considerado uma perda eventual. Com a chegada do século 16, surgiu um sentimento voltado, de fato, à infância. Entretanto, sinais desse sentimento já vinham desenvolvendo-se entre o fim do século 16 e durante o século 17, trazendo manifesto o gosto pelos hábitos e particularidades das crianças pequenas e o interesse em registrar as expressões e o vocabulário delas. Para o autor, “[...] são descobertas da primeira infância, do corpo, dos hábitos e da fala da criança pequena” (ARIÈS, 1981, p. 68). Durante o século 19, no Brasil, dá-se a “[...] descoberta humanista da especificidade da infância e da adolescência como idades da vida” (MAUAD, 2007, p. 140). Segundo a autora, no pensamento da época, a infância compreendia o período do nascimento aos 3 anos de vida e se caracterizava pela ausência da fala ou pela imperfeição da mesma (MAUAD, 2007). Essa especificidade da infância foi motivo de discussões que envolviam a oposição entre educação e instrução. À escola caberia o ensino formal, enciclopédico. Contudo, este só seria possível se a família cumprisse o seu papel, que era a garantia dos princípios morais, de modo que a base moral fosse plantada no lar sem confundir educação com instrução. E na educação instrutiva, aquela ministrada pela escola, meninos e meninas eram educados de forma diferente e para fins igualmente distintos. Essa distinção, além do tempo de duração da instrução, baseava-se em valorizar os atributos manuais para as meninas e o intelecto para os meninos (MAUAD, 2007). Dessa forma, estabeleciam-se os papéis sociais esperados para a constituição do mundo adulto e a criança era vista como uma potencialidade. Entretanto, com as precárias condições de saúde da época, essa expectativa de potencialidade era, muitas vezes, frustrada (MAUAD, 2007). 21 Já a realidade de crianças escravas era bem diferente. Cativas, todavia, não dependiam apenas da misericórdia divina: Forças mui humanas (ou desumanas, a bem da verdade) conduziam seus destinos. Antonil, escrevendo sobre o tormento da cana-de- açúcar batida, torcida, cortada em pedaços, arrastada, moída, espremida e fervida, descreveu o calvário de escravos pais e de escravos filhos. Estes também haviam de ser batidos, torcidos, arrastados, espremidos e fervidos. Era assim que se criava uma criança escrava. (GÓES; FLORENTINO, 2007, p. 184). O aprendizado dessas crianças baseava-se em seu preço. Até aos 4 anos, o mercado ainda apostava alguma quantia contra os altos índices de mortalidade infantil. Nas palavras de Góes e Florentino (2007, p. 185) “[...] o trabalho era o campo privilegiado da pedagogia senhorial”. Com a mudança de século, o fim da escravidão, a instauração da República, a chegada de grandes contingentes de imigrantes de várias nacionalidades e a explosão das indústrias, pequenas vilas se tornaram grandes centros industriais e comerciais. São Paulo, por exemplo, tornou-se um local com uma conformação social nunca vista e, assim, graves problemas sociais também se tornaram notórios: “[...] a miséria, a exclusão social, a violência e a pauperização de vastas camadas populacionais, excluídas do universo da produção e do consumo” (SANTOS, 2007, p. 228). De semente do futuro a alvo de graves preocupações. Diante de altos índices de criminalidade e delinquência, criminalistas buscavam a origem do problema na infância. Assim como o menor em São Paulo era iniciado precocemente nas atividades produtivas que o mercado proporcionava, tais como fábricas e oficinas, também o era nas atividades ilegais, numa clara tentativa de sobrevivência numa cidade que hostilizava as classes populares. Desta maneira o roubo, o furto, a prostituição e a mendicância tornaram-se instrumentos pelos quais estes menores proviam a própria sobrevivência e a de suas famílias. (SANTOS, 2007, p. 218). Esse binômio formado pelo crescimento econômico e a exclusão social ainda é fortemente notável e presente nas bases da nossa sociedade. As políticas de repressão e contenção dos problemas advindos de toda essa situação caótica não 22 excluíram os menores. “As brincadeiras, os jogos, as ‘lutas’, as diabruras e as formas marginais de sobrevivência daqueles garotos tornaram-se passíveis de punição oficial. Os meninos das ruas tornaram-se ‘meninos de rua’” (SANTOS, 2007, p. 229). Tal situação resultou no surgimento de novas prioridades no atendimento social que ultrapassaram “[...] o nível de filantropia privada e seus orfanatos, para elevá-las às dimensões de problema de Estado com políticas sociais e legislação específicas” (PASSETTI, 2007, p. 347). Dentre alguns pontos discutidos nessa época sobre a renovação educacional, encontrava-se a educação pré-escolar. Nesse período, a maior parte da mão de obra masculina se concentrava nas lavouras, fazendo com que as fábricas instaladas na época admitissem grande número de funcionárias. Esse fato culminou na necessidade de se encontrar uma saída para os cuidados das crianças, os filhos dessas operárias. Daí o surgimento das creches, dos parques infantis, escolas maternais e jardins de infância. Entretanto, a preocupação maior dessas instituições voltava-se para a alimentação, os cuidados com a higiene e com a segurança física. O trabalho direcionado à educação e ao desenvolvimento intelectual e afetivo da criança era muito pouco valorizado (OLIVEIRA, 2010). No século 20, as tarefas caridosas praticadas geralmente por entidades religiosas suscitaram ações governamentais, como políticas públicas. Abandonar crianças nas “rodas dos expostos” ou recolher meninas pobres em instituições só confirmava a impotência das famílias em garantir a sobrevivência de seus filhos. O Estado, ao optar pelo método da internação, fazia-o por uma educação pelo medo, pois [...] absolutiza a autoridade de seus funcionários, vigia comportamentos a partir de uma idealização das atitudes, cria a impessoalidade para a criança e o jovem vestindo-os uniformemente e estabelece rígidas rotinas de atividades, higiene, alimentação, vestuário, ofício, lazer e repouso. (PASSETI, 2007, p. 356). O período que compreendeu os anos de 1930 a 1937 foi um dos que caracterizaram maior radicalização política no Brasil. Várias correntes ideológicas favoreceram a elaboração de diversos projetos políticos que evidenciavam a necessidade de uma nova política educacional para o país. Dessa forma, quatro diferentes correntes de pensamentos sobre a educação brasileira são identificadas: 23 os liberais que desejavam “[...] um país em bases urbano-industriais democráticas e que, no plano educacional, endossavam as teses gerais da Pedagogia Nova” (GHIRALDELLI JUNIOR, 2001, p. 39); os católicos que defendiam a Pedagogia Tradicional; no centro dessa disputa situava-se o governo, que dizia querer aproveitar as ideias de ambos os grupos, mas acabou executando uma política educacional própria e longe dos princípios democráticos; e o quarto grupo, que se expressava pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), agrupando grande parcela das classes populares – proletariado e camadas médias – com o intuito de formar uma frente anti-imperialista e antifascista (GHIRALDELLI JUNIOR, 2001). Nesse período, o então diretor do recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), Francisco Campos, promoveu uma reforma para o ensino a nível federal. Esta reforma Criou o Conselho Nacional de Educação, traçou diretrizes para o ensino superior, reorganizou a Universidade do Rio de Janeiro, organizou o ensino secundário, regulamentou a profissão de contador e estruturou o ensino comercial, etc. (GHIRALDELLI JUNIOR, 2001, p. 42). Percebe-se que essa reforma, elitista, não se atentava aos problemas do ensino popular assim como não se preocupava em expandir ou melhorar a escola primária. A mediação entre as ideias político-educacionais de católicos e liberais se deu com a Assembleia Constituinte. É na Constituição de 1934 que a educação apareceu como um direito de todos. O artigo 149 dizia que: A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no país, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana. (PASSETI, 2007, p. 360). Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) trazem a seguinte reflexão sobre a criança: A concepção de criança é uma noção historicamente construída e consequentemente vem mudando ao longo dos tempos, não se apresentando de forma homogênea nem mesmo no interior de uma mesma sociedade e época. [...] Boa parte das crianças pequenas brasileiras enfrentam um cotidiano bastante adverso que as conduz 24 dede muito cedo a precárias condições de vida e ao trabalho infantil, ao abuso e à exploração por parte dos adultos. Outras crianças são protegidas de todas as maneiras, recebendo de suas famílias e da sociedade em geral todos os cuidados necessários ao seu desenvolvimento. Essa dualidade revela a contradição e conflito de uma sociedade que não resolveu ainda as grandes desigualdades sociais presentes no cotidiano (BRASIL, 1998, p. 21). Dessa feita, é perfeitamente possível que, em um mesmo local, “[...] existam diferentes maneiras de se considerar as crianças pequenas dependendo da classe social a qual pertencem, do grupo étnico do qual fazem parte” (BRASIL, 1998, p. 21). Ser criança é possuir uma natureza singular que sente e pensa o mundo à sua volta de uma forma peculiar. A compreensão, o conhecimento e o reconhecimento dessa característica particular da criança ser e estar no mundo é o desafio que norteia a educação infantil e seus profissionais. Ainda que os estudos e conhecimentos advindos de campos como a psicologia, sociologia, antropologia e áreas referentes à saúde sejam de suma importância para indicar algumas características comuns à infância, “[...] as crianças permanecem únicas em suas individualidades e diferenças” (BRASIL, 1998, p. 22). 1.2 HISTÓRICO E CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO INFANTIL Pode-se tratar de educação infantil de forma ampla envolvendo “[...] toda e qualquer forma de educação da criança na família, na comunidade, na sociedade e na cultura em que viva” (KUHLMANN JR., 2011, p. 469). Contudo, há outro significado para o termo, presente na Constituição Federal de 1988, e que se refere à modalidade específica das instituições educacionais para crianças de 0 a 6 anos, sendo essa idade alterada para 0 a 5 anos na redação dada pela Emenda Constitucional n.° 53, de 2006 (BRASIL, 2006). Por muitos séculos, a educação e o cuidado de crianças pequenas foram tidos como função e responsabilidade da família. Nessa perspectiva, aparecem as denominações das instituições de educação da primeira infância: O termo francês crèche equivale a manjedoura, presépio. O termo italiano asilo nido indica um ninho que abriga. “Escola materna” foi 25 outra designação usada para referir-se ao atendimento de guarda e educação fora da família a crianças pequenas. (OLIVEIRA, 2010, p. 58, grifos da autora). O surgimento dessas instituições se dá ao longo da primeira metade do século 19 em diversos países da Europa como resultado de iniciativas reguladoras da vida social, que englobam as crescentes urbanização e industrialização. Com o advento da expansão das relações internacionais, já na segunda metade do mesmo século, a difusão das instituições de educação infantil chegou ao Brasil por volta do ano de 1870 (KUHLMANN JR., 2011). De acordo com o autor, as creches, escolas maternais e jardins de infância existem em nosso país há pouco mais de um século, entretanto, desde o período pré-colonial brasileiro, as características sociais e culturais, os conhecimentos sobre educação de crianças pequenas, entre outras dimensões, estiveram presentes nessa história recente, manifestas nas propostas, políticas e práticas educacionais (KUHLMANN JR., 2011). A primeira instituição voltada à educação de crianças pequenas de que se tem relato no Brasil é o Jardim de Crianças do Colégio Menezes Vieira, no Rio de Janeiro, em 1875. Anos depois, criado por missionários norte-americanos, surgiu em São Paulo, o Jardim de Infância da Escola Americana e, em 1879, a Reforma Leôncio de Carvalho, por meio do Decreto 7247, chegou a prever a instalação de jardins de infância. Já em 1882, Rui Barbosa dedicou um capítulo aos estudos sobre o jardim de infância em seu parecer sobre a reforma do ensino primário, considerando-o como “[...] primeiro estágio do ensino primário, visando ao desenvolvimento harmônico da criança” (KUHLMANN JR., 2005, p. 68). Em 1879, a creche foi divulgada no Brasil por meio do jornal A Mãe de Família, cujo redator era Carlos Costa, um médico especializado em moléstias infantis. Nesse jornal, a matéria A Creche (asilo para a primeira infância) apareceu logo em seguida ao primeiro editorial, sendo publicada no decorrer dos seis primeiros números do jornal e o autor, Kossuth Vinelli, também médico, manifestou a intenção de chamar a atenção da sociedade brasileira, sobretudo das “[...] mães de família para a importante questão das creches, vulgarizar sua ideia entre nós, mostrar suas vantagens” (KUHLMANN JR., 2005, p. 69). Dessa forma, as mães pobres que precisassem trabalhar teriam onde confiar seus filhos pequenos, cuja idade ainda não lhes permitia frequentar a escola. 26 Esse artigo já anunciava a transformação das relações de trabalho no país e apresentava a creche, originalmente francesa, com a finalidade de cuidar das crianças menores de dois anos, representando um complemento da escola primária. O papel da creche, assim sendo, fica claramente definido dentro das instituições educacionais: “[...] à escola primária antecediam-se as salas de asilo da segunda infância, para crianças dos três aos seis anos, e a creche, para a criança até dois anos” (KUHLMANN JR., 2005, p. 69). As salas de asilo, posteriormente intituladas escolas maternais, surgiam na França. Entretanto, outros países também criaram instituições para crianças a partir de dois ou três anos, como a infant school inglesa, os asili infantili italianos, e o kindergarten alemão, que não traziam em si o caráter de obrigatoriedade presente na escola primária, pois a ideia de permanência das crianças menores junto à mãe e à família era amplamente defendida (KUHLMANN JR., 2011). O autor ressalta que, até então, somente crianças pequenas sem família eram atendidas em instituições (Casas de Expostos). Todavia, a ênfase agora se dá no suporte às famílias pobres para que estas não tenham mais apenas a opção de abandonar seus filhos nessas instituições que continuaram a existir por anos ainda do século 20 (KUHLMANN JR, 2011). Esse processo de constituição de instituições de educação popular leva a distintas estruturas de atendimento. A proteção à infância é o motor que impulsiona a criação de variadas instituições e associações que cuidam da criança sob diversos aspectos: [...] da sua saúde e sobrevivência – com os ambulatórios obstétricos e pediátricos; dos seus direitos sociais – com as propostas de legislação e de associações de assistência; da sua educação e instrução – com o reconhecimento de que estas possam ocorrer desde o nascimento, tanto no ambiente privado como no espaço público. (KUHLMANN JR., 2011, p. 473). A propagação das instituições infantis é lenta e somente na era republicana que se vê referência à criação de creches no país. A primeira é inaugurada em 1899, mesmo ano em que é fundado o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro (IPAI-RJ). Em São Paulo, Anália Franco criou a Associação Feminina Beneficente e Instructiva em 1901, com objetivos de também organizar escolas maternais e creches funcionando agregadas a asilos para órfãos, e é a partir 27 da mudança de regime que os jardins de infância, juntamente com as escolas maternais, foram disseminados em vários municípios do país, “[...] em instituições vinculadas aos organismos educacionais, ou então de assistência social ou de saúde, destinadas ao atendimento de crianças pobres” (KUHLMANN JR., 2011, p. 477). Segundo esse autor, a presença feminina era notável nesse processo ainda que, de modo geral, elas não tivessem qualificação ou formação apropriada. O Decreto Municipal 377, de 23 de março de 1897, no Rio de Janeiro, previa que, gradualmente, o ensino primário, aqui incluso as classes de jardim de infância, fosse exclusivamente feminino. A educação da mulher previa o preparo para a puericultura, pois o regulamento das escolas maternais tinha como finalidade os cuidados com os filhos dos operários. Moncorvo Filho, em seu discurso durante a inauguração da nova sede do IPAI-RJ, lamentou a falta de uma política nacional voltada à infância: Quando por toda a parte se operava então uma verdadeira revolução social visando à preservação da infância sob os mais brilhantes e generosos pontos de vista, concitando-se as populações a cuidarem da semente humana, agindo no sentido de reduzir ao mínimo a morbidade e a letalidade infantis, graças a uma multiplicidade de recursos postos em prática com veementes vantagens, maximé pela criação de não pequeno número de obras filantrópicas as mais variadas: Dispensários modelares, Creches, Gotas de Leite, Ligas e Mutualidades, Hospitais especializados e tantos outros – diga-se a verdade –, o nosso país, numa displicência e desinteresse desoladores, mostrava-se completamente indiferente a todo esse movimento progressista e humanitário. (KUHLMANN JR., 2011, p. 481). Na década de 1920, delimitou-se um pouco mais o campo educacional e a pedagogia começou a ser vista como ciência e arte. Na Europa, após a Primeira Guerra Mundial, programas para diminuir a mortalidade infantil passaram a conviver com programas de “[...] estimulação precoce nos lares e em creches orientados por especialistas da área da saúde” (OLIVEIRA, 2010, p. 73). A utilização de materiais e objetos especificamente elaborados para a sistematização de atividades para crianças foi feita por médicos que se interessavam pela educação, como Ovídio Decroly e Maria Montessori, além de educadores como Celestin Freinet. Ao trabalhar com crianças excepcionais, Decroly (1871-1932) defendia uma educação voltada ao intelecto e desenvolveu uma metodologia que apresentava 28 ações didáticas baseadas na ideia de “[...] totalidade do funcionamento psicológico e no interesse da criança, adequadas ao sincretismo que ele julgava ser próprio do pensamento infantil” (OLIVEIRA, 2010, p. 74). Possuía, ainda, a preocupação com o domínio de conteúdos pela criança e estruturou o trabalho sobre centros de interesse que, segundo ele, se distinguiam em três eixos: observação, associação e expressão. As ideias de Celestin Freinet (1896-1966) renovaram as práticas pedagógicas de seu tempo, pois entendia que a educação extrapolava os limites da sala de aula e se integrava às experiências de seu meio social. Sua pedagogia se organizava por meio de técnicas como: desenho livre, aulas-passeio, jornal escolar, livro da vida, oficinas de trabalhos manuais e intelectuais e cooperativas escolares (OLIVEIRA, 2010). A primeira regulamentação do trabalho feminino se deu em 1923, onde os estabelecimentos industriais e comerciais deveriam instalar creches ou salas de alimentação próximas ao local de trabalho e, em 1932, regulamentou-se o trabalho da mulher, tornando as creches obrigatórias em estabelecimentos com pelo menos 30 mulheres maiores de 16 anos, medida que integraria a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e, futuramente, constaria nos direitos sociais da Constituição de 1988 (KUHLMANN JR., 2011). Ainda em 1932, com o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, prevê-se o “[...] desenvolvimento das instituições de educação e assistência física e psíquica às crianças na idade pré-escolar [...] e de todas as instituições pré-escolares e pós- escolares” (KUHLMANN JR., 2011, p. 482). Aos poucos, a nomenclatura deixou de considerar a escola maternal como aquela dos pobres, oposta ao jardim de infância, e passou a considerá-la como a instituição que atende a faixa etária dos 2 aos 4 anos, enquanto o jardim atenderia as crianças de 5 e 6 anos. Adiante, essa divisão etária se incorporaria aos nomes das turmas em instituições infantis – berçário, maternal, jardim e pré. Ao falar sobre Heloísa Marinho, autora do livro Vida e educação no jardim de infância, Kuhlmann Jr. (2011, p. 485) relata que sua proposta pedagógica defende uma educação na qual “[...] a atividade criadora da criança supera em valor educativo os exercícios formais do jardim de infância tradicional”. 29 No começo do século, a jardineira ministrava educação sensorial com materiais destinados à comparação sistemática de formas, tamanhos, coloridos. A atividade da criança se restringia a obedecer às instruções da mestra. Hoje, a mestra incentiva a evolução natural e a criança é quem toma a iniciativa de organizar a sua própria atividade criadora. [...] A experiência produz conhecimento. Constitui a experiência vivida a única fonte do verdadeiro saber. (KUHLMANN JR., 2011, p. 485). Contudo, desde Froebel, inspirado em ideias pedagógicas anteriormente formuladas, a história da educação infantil anunciou propostas que favoreciam o desenvolvimento natural da criança. Um aspecto importante esquecido ao se isolar a criança como único elemento da relação pedagógica é o fato de que o adulto determina as condições dentro da instituição de educação infantil (KUHLMANN JR., 2011). Em Teresina, em 1933, foi criado o primeiro jardim com fins de proporcionar o desenvolvimento artístico da criança de 4 a 6 anos. Nos anos de 1940, em Porto Alegre, ocorreu a criação dos jardins de infância inspirados em Froebel, que atendiam crianças da mesma idade em período parcial e localizados em praças públicas. Já na cidade de São Paulo, começou a se estruturar um novo modelo de instituição, o Parque Infantil, ligado ao recém-criado Departamento de Cultura (DC), tendo Mário de Andrade em sua direção. Uma de suas características particulares era a proposta de receber “[...] no mesmo espaço crianças de 3 ou 4 a 6 anos, e de 7 a 12 fora do horário escolar” (KUHLMANN JR., 2011, p. 483). Mário de Andrade trouxe ideias inovadoras sobre a criança e o Parque Infantil valorizando elementos do folclore, da produção cultural e artística, dos jogos infantis e das brincadeiras. Entretanto, por ser um período entre guerras, os jardins de infância adotaram uma orientação esportiva, voltada à cultura física e enfatizavam o controle e a educação moral (KUHLMANN JR., 2009). Em 1952, o Departamento Nacional da Criança (DNCr) em sua publicação ressaltou que mais de 50% das creches pesquisadas (29) contavam com um jardim de infância. O texto defendia a existência de materiais apropriados para a educação de crianças nas creches. Materiais como caixa de areia, bolas, bonecas, blocos de madeira, livros, brinquedos, entre outros. Outro ponto crucial é a recreação [...] pela atividade lúdica, pelo exercício das atividades espontâneas, a criança entra em contato com o ambiente e se torna mais objetiva e 30 observadora; aprende a manipular os objetos, desenvolve o equilíbrio e a habilidade neuromuscular. (KUHLMANN JR., 2009, p. 188). Entre o fim da década de 1960 e início da década de 1970, os jardins de infância se caracterizavam por se associarem ao sistema de ensino e se constituírem conforme alguns critérios de qualidade. A partir daí, sua expansão “[...] abandona esse quadro de referência e implanta um modelo de custo e qualidade mínimas” (KUHLMANN JR., 2009, p. 189). Nos períodos de 1975-1979 e 1980-1985, durante governo militar, o Ministério da Educação passou a se ocupar da educação pré-escolar destacando desdobramentos dos Planos Nacionais de Desenvolvimento nos II e III Planos Setoriais de Educação e Cultura (PSEC). Caberia à educação infantil solucionar as altas taxas de reprovação no ensino de 1.° grau além de resolver os problemas da pobreza. No parecer do Conselho Federal de Educação datado em maio de 1981, Eurides Brito da Silva indicou diretrizes para um sistema público de educação pré- escolar incluindo, aqui, as crianças de 0 a 3 anos, ainda que atendidas na esfera dos Ministérios da Saúde e da Previdência (KUHLMANN JR., 2009). O aumento do trabalho feminino também levou a classe média à procura de instituições educacionais para seus filhos. O atendimento educacional em creches ganhou legitimidade social para além da exclusiva aos filhos dos pobres: O programa dos Centros de Convivência Infantil para o atendimento dos servidores públicos no estado de São Paulo, em várias secretarias; a conquista de creches em universidades públicas; a reivindicação em alguns sindicatos operários e do setor de serviços, como bancários, jornalistas, professores; eis alguns exemplos desse reconhecimento da instituição. (KUHLMANN JR., 2009, p. 190). No documento da Coordenadoria do Bem-Estar Social da Prefeitura de São Paulo, “Organização e Funcionamento de Creche”, do final da década de 1970 ou início da década de 1980, previa-se o atendimento global da criança de baixa renda, nos aspectos psicopedagógico, de saúde, nutrição, pois a falta desses procedimentos comprometeria o desenvolvimento intelectual da mesma (KUHLMANN JR., 2009). Na década de 1990 surgiram formulações que evidenciavam a indissociabilidade do cuidado e do ensino na educação infantil. Por um lado, esperava-se que determinados conteúdos escolares fossem objetos de preocupação 31 da educação infantil; por outro, ainda hoje se observam crianças sendo submetidas a uma disciplina escolar facultativa na qual a instituição não considera sua função prestar os cuidados necessários, controlando os alunos de maneira autoritária (KUHLMANN JR., 2009). Como se percebe, ao longo da história, o atendimento institucional às crianças pequenas apresentou diferentes concepções a respeito de sua finalidade social. Por muito tempo, o objetivo primeiro desses locais foi atender crianças de baixa renda e, com a justificativa de combater a pobreza e prover sobrevivência, durante anos, o atendimento oferecido nessas instituições foi precário, com um alto número de crianças para cada adulto responsável, má formação dos profissionais envolvidos, poucos recursos materiais além de orçamentos insuficientes. A concepção educacional era, então, assinada pelo assistencialismo (BRASIL, 1998a). Ainda nos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, transformar essa visão de educação assistencialista requer atenção às variadas questões que vão além de aspectos legais, ou seja, envolve: [...] assumir as especificidades da educação infantil e rever concepções sobre a infância, as relações entre classes sociais, as responsabilidades da sociedade e o papel do estado diante das crianças pequenas (BRASIL, 1998a, p. 17). A educação infantil no Brasil, em expansão devido à intensidade da urbanização, a participação da mulher no mercado profissional e as mudanças na organização das famílias vêm conquistando grandes avanços no decorrer das últimas décadas, por meio da Constituição Federal de 1988, que legitima que toda criança tem direito à Educação (BRASIL, 2009). Entretanto, é a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (Lei 9394/96) alterada pela Lei n.º 12.796/13 (BRASIL 1996), que a educação infantil, até então vista de forma assistencialista, é conceituada como a primeira etapa da Educação Básica, antecedendo os Ensinos Fundamental e Médio, assim dito em seu Artigo 29: A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (BRASIL, 2013). 32 É dever do Estado oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas de forma gratuita e de qualidade sem requisito de seleção (BRASIL, 2010). As creches e pré-escolas são caracterizadas como: Espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social. (BRASIL, 2010, p. 12). É importante ressaltar que as instituições de educação infantil possuem um papel socializador que deve proporcionar o desenvolvimento da identidade da criança, além de propiciar o acesso aos elementos culturais que enriquecem sua inserção social por meio de atividades variadas feitas por interações (BRASIL, 1998a). Devem, ainda, respeitar os princípios éticos, políticos e estéticos que fazem referência, entre outras coisas, à autonomia, ao respeito, à solidariedade e à responsabilidade com o bem comum, o direito à cidadania, ao exercício da criticidade, ao desenvolvimento da criatividade, ludicidade e liberdade de expressão nas variadas manifestações culturais e artísticas (BRASIL, 2010). Diante das dimensões apresentadas nos Indicadores da Qualidade na educação infantil, essas instituições devem se organizar de forma a possibilitar e valorizar a construção da autonomia da criança sendo necessário um olhar cuidadoso sobre os espaços e os materiais oferecidos. Ao planejar e desenvolver atividades diversas e estando os materiais distribuídos de maneira que a criança possa escolher o que, como e quando usar, os professores proporcionarão “[...] diferentes possibilidades de expressão, de brincadeiras, de aprendizagens, de explorações, de conhecimentos, de interações” (BRASIL, 2009, p. 40). 33 2 ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E MÚLTIPLAS LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Neste capítulo, serão abordadas as concepções dos termos Alfabetização e Letramento e as expressões, as aprendizagens e o desenvolvimento da cultura letrada – letramento social – na educação infantil por meio de múltiplas linguagens. 2.1 ALFABETIZAÇÃO X LETRAMENTO O trabalho com a linguagem escrita na educação infantil é relevante, pois assume “[...] papel importante na formação de leitores e de usuários competentes do sistema de escrita, respeitando a criança como produtora de cultura“ (BAPTISTA, 2010, p. 2). Essa autora propõe que, ao estabelecer interações com outras manifestações culturais, a criança produz sua própria cultura ao brincar, suas histórias, recria a ordem das coisas e dá sentido ao mundo. A linguagem escrita, “[...] objeto do conhecimento criado pela humanidade, exerce forte influência sobre a cultura infantil e é, ao mesmo tempo e em certa medida, por ela influenciada” (BAPTISTA, 2010, p. 2). Diferentemente dos povos primitivos que constituíam sociedades ágrafas, hoje as crianças já nascem em um mundo letrado e, desde pequenas, podem avançar nos processos de letramento. Decorrente dos novos conhecimentos sobre leitura e escrita resultantes de produções científicas do início da década de 1980, como os trabalhos de Emília Ferreiro, e da mudança do ambiente sociocultural que rodeia a criança, que inclui a televisão, o computador e a internet, está a percepção de que a criança se apropria desde muito cedo desses conhecimentos. Dessa forma, não cabe mais a discussão se a educação infantil deve ou não ensinar a ler e a escrever, mas como fará com que esse processo aconteça (OLIVEIRA, 2010). Alfabetização e letramento precisam ter presença garantida na educação infantil. Para tanto, faz-se necessário entender e conceituar ambos os termos, refletindo sobre suas relações e interfaces no cotidiano de crianças na primeira infância. A aprendizagem da língua materna, de certa forma, é um processo contínuo, ininterrupto, seja no campo oral ou no campo escrito. Contudo, de acordo com 34 Soares (2011, p. 15), é indispensável fazer a diferenciação entre “[...] um processo de aquisição da língua (oral e escrita) de um processo de desenvolvimento da língua (oral e escrita)”. Esta autora toma a alfabetização, em seu sentido específico, como o “[...] processo de aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e escrita” (SOARES, 2011, p. 15) e faz um debate sobre dois pontos de vistas presentes no duplo significado dos termos ler e escrever em nossa língua. Em primeiro lugar, saber ler e saber escrever remete ao significado de “[...] adquirir a habilidade de codificar a língua oral em língua escrita (escrever) e de decodificar a língua escrita em língua oral (ler)” (SOARES, 2011, p. 15-16), ou seja, a habilidade de representar fonemas em grafemas e grafemas em fonemas. Em segundo lugar, ler e escrever significa também apreender e compreender “[...] significados expressos em língua escrita (ler) ou expressão de significados por meio da língua escrita (escrever)” (SOARES, 2011, p. 16), isto é, possuir habilidades de “[...] ‘ler’ um objeto, um gesto, uma figura ou um desenho, uma palavra” (SOARES, 2011, p. 16). Todavia, ainda que combinados, esses dois conceitos são parcialmente verdadeiros, pois a língua escrita não é uma simples representação da língua oral, e vice-versa (considerando as particularidades morfológicas, sintáticas e semânticas), bem como os “[...] problemas de compreensão/expressão da língua escrita são diferentes dos problemas de compreensão/expressão da língua oral” (SOARES, 2011, p. 17), pois estes são organizados de formas diferentes. Assim, Soares (2011) traz um terceiro ponto de vista ao constatar a parcial veracidade dos conceitos anteriormente discutidos, ou seja, o seu aspecto social, no qual o conceito de alfabetização não é o mesmo para todas as sociedades. Questões como qual a melhor idade, o melhor método de alfabetização para determinados grupos e para que se deve alfabetizar são variáveis dentro das diversas sociedades e das funções imputadas por cada uma à língua escrita. Dessa forma, o conceito de alfabetização depende de características econômicas, tecnológicas e culturais. Sintetizando esse processo, Soares (2011, p. 18) afirma que Uma teoria coerente da alfabetização deverá basear-se em um conceito desse processo suficientemente abrangente para incluir a abordagem “mecânica” do ler/escrever, o enfoque da língua escrita como um meio de expressão/compreensão, com especificidade e 35 autonomia em relação à língua oral, e, ainda, os determinantes sociais das funções e fins da aprendizagem da língua escrita. Soares (2003) e Tfouni (2005) conceituam a alfabetização como um processo relacionado ao ato de adquirir habilidades para a leitura, a escrita e as práticas de linguagem tornando o indivíduo capacitado para ler e escrever. Alfabetização e letramento, para Kleiman (2005), não são o mesmo processo, mas estão associados. Alfabetização é “[...] uma das práticas do letramento que faz parte do conjunto de práticas sociais de uso da escrita da instituição escolar” (KLEIMAN, 2005, p. 12). Para a autora, alfabetização é uma prática que tem por objetivo o domínio do sistema alfabético e ortográfico, concretizada dentro da sala de aula e que expressa um conjunto de saberes sobre o código escrito da língua. O conceito refere-se, ainda, ao processo de aquisição das primeiras letras e, como tal, envolve sequências de operações cognitivas, estratégias, [...] envolve engajamento físico-motor, mental e emocional da criança num conjunto de atividades de todo tipo, que tem por objetivo a aprendizagem do sistema da língua escrita. (KLEIMAN, 2005, p. 13). Em qualquer sentido, a alfabetização possui características que lhes são próprias, diferentes das características do letramento, mas é indissociável dele, sendo necessária para que alguém possa ser considerado plenamente letrado. Contudo, ainda que, por si só, não seja suficiente, ela é essencial para que todos, independentemente da faixa etária, “[...] possam participar, de forma autônoma, das muitas práticas de letramento de diferentes instituições” (KLEIMAN, 2005, p. 16). Segundo Soares (2003), o termo letramento, como conhecido hoje, surgiu na década de 1980 com Mary Kato em seu livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística (1986), no qual é encontrada a seguinte menção: Acredito ainda que a chamada norma-padrão, ou língua falada culta, é consequência do letramento, motivo por que, indiretamente, é função da escola desenvolver no aluno o domínio da linguagem falada institucionalmente aceita (KATO apud SOARES, 2003, p. 32, grifo nosso). Entretanto, não é um termo novo, como se vê nas palavras de Soares (2003, p. 33, grifos da autora): 36 É interessante verificar que a palavra letramento aparece há um século [...], no dicionário Caldas Aulete, já ali indicada como palavra antiga ou antiquada, palavra fora de uso, e com um sentido que não é o que a palavra letramento tem hoje; segundo o Dicionário Caldas Aulete, letramento significava o mesmo que escrita, substantivo do verbo letrar, que significava o que hoje chamamos de soletrar. Estamos, pois, diante do caso de uma palavra que “morreu” e “ressuscitou” em 1986... É este um belíssimo exemplo de como a língua é algo realmente vivo, de como as palavras vão morrendo e nascendo conforme fenômenos sociais e culturais vão ocorrendo. Para a autora, o aparecimento de palavras novas na língua se dá “[...] quando novos fenômenos ocorrem, quando uma nova ideia, um novo fato, um novo objeto surgem” (SOARES, 2003, p. 34). Exemplo dado pela autora é a palavra globalização, que surgiu devido ao novo fenômeno na economia mundial que necessitava de uma nomenclatura própria (SOARES, 2003). Surge/ressurge, assim, a palavra letramento, advinda da necessidade de “[...] reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita” (SOARES, 2004, p. 6), necessidade essa sentida em diversas sociedades diferenciadas geográfica, social, cultural e economicamente. A utilização do termo letramento, no Brasil, é uma tradução de literacy, palavra inglesa que tem como significado “[...] a condição de ser letrado” (SOARES, 2003, p. 35). Ainda em inglês, a definição de literate é “[...] o adjetivo que caracteriza a pessoa que domina a leitura e a escrita” (SOARES, 2003, p. 36), isto é, aquela pessoa que não apenas possui as habilidades de ler e escrever, mas as utiliza de forma frequente e competente concordando com Tfouni (2005, p. 20) ao ressaltar que “[...] o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. Há, dessa maneira, uma diferença entre ser alfabetizado e ser letrado, pois a pessoa que sabe ler e escrever (é alfabetizada) e usa essas competências em práticas sociais de leitura e de escrita (é letrada) é diferente de uma pessoa que não sabe ler nem escrever ou, ainda que saiba ler e escrever, não faz uso dessas habilidades em sua vida social (SOARES, 2003). Ainda conceituando esse vocábulo, Soares postula que letramento é: [...] o estado ou condição de indivíduos ou de grupos sociais de sociedades letradas que exercem efetivamente as práticas sociais de leitura e de escrita participam competentemente de eventos de 37 letramento. [...] é o pressuposto de que indivíduos ou grupos sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e, portanto, têm as habilidades e atitudes necessárias para uma participação ativa e competente em situações em que práticas de leitura e/ou de escrita têm uma função essencial, mantêm com os outros e com o mundo que os cerca formas de interação, atitudes, competências discursivas e cognitivas que lhes conferem um determinado e diferenciado estado ou condição de inserção em uma sociedade letrada. (SOARES, 2002, p. 145-146, grifos da autora). A compreensão das palavras Estado e Condição é necessária para o entendimento das diferenças entre analfabeto, alfabetizado e letrado, pois a hipótese é que, social e culturalmente, “[...] a pessoa letrada já não é a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma outra condição social e cultural” (SOARES, 2003, p. 37) que a leva a uma transformação do seu modo de vida na sociedade, nas relações estabelecidas com as outras pessoas, com o contexto e os bens culturais. 2.2 MÚLTIPLAS LINGUAGENS E CULTURA LETRADA NA EDUCAÇÃO INFANTIL O letramento, como se viu, está ligado às práticas sociais que envolvem tanto a oralidade como a escrita, por meio de sistemas simbólicos com objetivos específicos e inseridos em determinados contextos. Nessa perspectiva, Kishimoto (2001, p. 9, grifo nosso) ressalta que, [...] antes da palavra escrita, ocorre a representação, que é simbólica, motora, expressiva. É preciso respeitar as características do desenvolvimento infantil. O letramento e a aquisição da linguagem requerem a construção de representações mentais, de significações para os códigos escritos. Não é pelo ensino mecânico de símbolos escritos que se chega à linguagem. É preciso que a atividade simbólica, responsável pelas representações construídas nas brincadeiras e atividades, seja experimentada para que a criança possa construir sua linguagem. As propostas pedagógicas para a educação infantil, ou grande parcela delas, elegem a linguagem verbal como seu eixo principal. Por meio da linguagem oral, a criança tem a possibilidade de fazer seus pedidos, levantar ideias, observações e 38 questões, além de ser “[...] grande auxiliar na construção de narrativas” (OLIVEIRA, 2010, p. 231). O interesse na compreensão e apropriação do sistema de escrita resulta da interação que a criança constrói com a cultura escrita. Nesse processo, a criança desenvolve seu conceito de língua escrita enquanto entende as variadas funções do ler e do escrever. Conforme Baptista (2010, p. 3), [...] para que isso ocorra, a prática pedagógica deve promover situações significativas em relação à cultura letrada e à cultura infantil. [...] O trabalho com a linguagem escrita na educação infantil deve realizar-se por meio de estratégias de aprendizagem capazes de respeitar as características da infância, considerando os significados que a linguagem escrita adquire para os sujeitos que vivenciam essa fase da vida. O desenvolvimento do trabalho com a linguagem verbal na educação infantil deve se pautar nas especificidades da infância e considerar a “[...] sua forma peculiar de se relacionar com o mundo por meio da imaginação e da brincadeira” (BAPTISTA, 2010, p. 4). A autora afirma que é necessário ampliar as experiências das crianças se quiser lhes proporcionar uma base estável para sua atividade criadora. Quanto mais experiências assimiladas, maior será sua atividade criadora (BAPTISTA, 2010). Soares (2009) ressalta que, raramente, ações comuns na educação infantil, tais como desenhos, rabiscos, jogos de papéis, são consideradas atividades alfabetizadoras. Na realidade, essas ações representam a fase inicial da linguagem escrita, aquilo que Vygotsky denomina pré-história da linguagem escrita, pois o autor afirma que [...] o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal. Nesse sentido, os esquemas que caracterizam os primeiros desenhos infantis lembram conceitos verbais que comunicam os aspectos essenciais dos objetos. Esses fatos nos fornecem os elementos para passarmos a interpretar o desenho das crianças como um estágio preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita. (VYGOTSKY, 1991, p. 149). Quando o professor apresenta desenhos, imagens fotográficas, objetos, canta músicas e imita sons ao contar histórias, oferece aos alunos a possibilidade de compreender que “[...] os objetos podem ser representados, introduzindo a criança 39 no universo simbólico. Sua ação é precursora para a compreensão futura dos complexos sistemas de representação” (BAPTISTA, 2010, p. 7). Utilizar diferentes linguagens na educação infantil propicia o desenvolvimento e a aprendizagem da leitura e da escrita sob uma nova perspectiva. Ao representar algo por meio do corpo, do desenho, da modelagem, entre outras formas de expressão, a criança tem a possibilidade de desenvolver novas competências e habilidades. Oliveira (2010, p. 234), propõe que: A fim de explorar o papel constitutivo da linguagem no desenvolvimento das crianças, necessita-se trabalhar com elas linguagens verbais, musicais, dramáticas e plásticas, entre outras, e dar-lhes oportunidade de imergir no mundo da cultura escrita pelo contato com os livros e o microcomputador. Podem com isso conhecer elementos escritos, pictóricos, dramáticos e outras formas de representar o mundo pela produção de sons, de gestos. A linguagem é viva e, assim, “[...] muitas e muitas palavras podem ser contadas e cantadas, criando espaços e momentos de interlocução, partilhando afeto e conhecimento” (OSTETTO, 2004, p. 84-85). A escrita permeia o mundo da educação infantil como diversos outros objetos culturais e isso ocorre porque ela mesma está no mundo e vivemos em uma sociedade letrada, não sendo objeto exclusivamente escolar. Entretanto, anterior à escrita, deve-se proporcionar o desenvolvimento de outras linguagens, pois, de acordo com a autora, Se um programa educativo contemplar o ensino sistemático da leitura e da escrita, certamente estará deixando de lado outras linguagens mais essenciais nesse período de vida das crianças. É uma questão até objetiva, de tempo e organização: onde ficam o movimento, a dança, o canto, os jogos, as brincadeiras, o desenho, a pintura [...]? Onde ficam a vivência e a experiência de ser criança? Não transformemos meninas e meninos, na educação infantil, em alunos do ensino fundamental por antecipação. (OSTETTO, 2004, p. 85, grifos da autora). Ao postular que as crianças constroem a si mesmas e suas culturas ao utilizar várias linguagens para se expressarem, Gobbi (2010) ressalta que cabe ao adulto um olhar atento para oferecer, no cotidiano de creches e pré-escolas, espaços e situações em que “[...] as manifestações infantis estejam presentes sendo compreendidas em sua inteireza, não se deixando conduzir apenas pela linguagem verbal ou escrita desconsiderando demais formas expressivas” (GOBBI, 2010, p. 2). 40 De acordo com Junqueira Filho (2011), ao elencar as linguagens em verbais e não verbais, oralidade e escrita compõem as linguagens verbais e, como exemplos, há a conversa, o ler e contar histórias, o ler e escrever o que as crianças quiserem. Já como linguagens não verbais, o autor nos remete a exemplos como a pintura, o desenho, a modelagem, o jogo simbólico, as brincadeiras e os jogos em geral, a música, a construção do conceito de número, os conhecimentos e cuidados com o próprio corpo bem como com a natureza, entre outras. É por essa razão que o ato de se envolver com os objetos lúdicos – aqui compreendidos como brinquedos, livros, canções, brincadeiras e demais objetos, materiais ou não, que proporcionam à criança passar da realidade ao mundo da imaginação e voltar à mesma realidade ao final da brincadeira, da canção ou da história (KOBAYASHI, 2013) – é imprescindível para que ocorra o resgate do “[...] direito da criança a uma educação que respeite seu processo de construção do pensamento, que lhe permita se desenvolver nas linguagens expressivas do jogo, do desenho e da música” (DIAS, 2003, p. 54-55). A seguir, discorrer-se-á sobre algumas dessas linguagens expressivas – Jogos, Brincadeiras, Artes e Música – e sua relevância para a aprendizagem, o desenvolvimento do letramento social e a expressão de crianças na primeira infância. 2.2.1 Jogos e brincadeiras Brinquedo e brincadeira têm uma relação direta com a infância, é sua linguagem por excelência na qual, com o auxílio de concepções pedagógicas e psicológicas, o papel dos brinquedos e brincadeiras é reconhecido no desenvolvimento da criança (KISHIMOTO, 2003). Relatando o jogo como componente cultural, Huizinga (1996, p. 6) afirma que “[...] encontramos o jogo na cultura como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos”. Segundo este autor, as mais antigas atividades humanas são marcadas pelo jogo. Ao utilizar a linguagem como exemplo, atividade, esta, humanamente criada pela necessidade de comunicação, é 41 possível perceber que “[...] detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras” (HUIZINGA, 1996, p. 7). Para Brougère (2002, p. 30), [...] existe realmente uma relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de significações, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele próprio requer para existir. É uma cultura rica, complexa e diversificada. Ainda refletindo sobre jogos, Huizinga (apud KISHIMOTO, 2003, p. 23) aponta como suas características próprias “[...] o prazer, o caráter ‘não sério’, a liberdade, a separação dos fenômenos do cotidiano, as regras, o caráter fictício ou representativo e sua limitação no tempo e no espaço”. Contudo, definir o ato lúdico como uma atividade constantemente prazerosa para a criança é uma afirmação incorreta por duas razões, de acordo com Vygotsky, uma vez que, Primeiro, muitas atividades dão à criança experiências de prazer muito mais intensas do que o brinquedo, como, por exemplo, chupar chupeta, mesmo que a criança não se sacie. E, segundo, existem jogos nos quais a própria atividade não é agradável, como [...], predominantemente no fim da idade pré-escolar, jogos que só dão prazer à criança se ela considera o resultado interessante. Os jogos esportivos (não somente os esportes atléticos, mas também outros jogos que podem ser ganhos ou perdidos) são, com muita frequência, acompanhados de desprazer, quando o resultado é desfavorável para a criança”. (VYGOTSKY, 1991, p. 105). O autor, entretanto, ressalta que “[...] é impossível ignorar que a criança satisfaz certas necessidades no brinquedo” (VYGOTSKY, 1991, p. 106) e que é necessário o entendimento do caráter especial dessas necessidades para a compreensão da particularidade do brinquedo como um meio de atividade. Teorizando a respeito da atividade principal – aquela que assume primazia no desenvolvimento do psiquismo infantil –, Leontiev (1978, p. 292-293) conceitua que “[...] a atividade dominante é, portanto, aquela cujo desenvolvimento condiciona as principais mudanças nos processos psíquicos da criança e as particularidades psicológicas da sua personalidade num dado estágio do seu desenvolvimento”. Assim, durante a educação infantil, o brincar se torna o mediador primeiro das transformações que proporcionam o desenvolvimento nas crianças. 42 Vygotsky considera que o brincar possibilita criar para a criança uma zona de desenvolvimento proximal. Esta “[...] define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário” (VYGOTSKY, 1991, p. 97) e nada mais é do que a distância entre o que a criança já realiza de forma independente, sem auxílio – zona de desenvolvimento real – e o que ainda necessita de orientação de um adulto ou de companheiros mais capacitados – zona de desenvolvimento potencial (VYGOTSKY, 1991). Por meio da imitação de variadas ações em uma atividade coletiva ou orientada por um adulto, “[...] a zona de desenvolvimento proximal capacita-nos a propor uma nova fórmula, a de que o ‘bom aprendizado’ é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento” (VYGOTSKY, 1991, p. 100-101). Em qualquer ação lúdica há uma situação ilusória e imaginária em que as crianças, por meio de necessidades que não podem ser realizadas de outras formas, desenvolvem funções embrionárias e controlam “[...] seu comportamento em um nível maior do que o habitual” (PIMENTEL, 2007, p. 228). A imaginação, que inicialmente surge da ação, “[...] é um processo psicológico novo para a criança; representa uma forma especificamente humana de atividade consciente” (VYGOTSKY, 1991, p. 106). Já para Piaget (1990, p.115), o jogo é “[...] essencialmente assimilação, ou assimilação predominando sobre a acomodação”. Quando a criança brinca, ocorre a assimilação do mundo por ela, por meio de interações, sem um compromisso com a realidade, pois “[...] o objeto não depende da natureza do objeto, mas da função que a criança lhe atribui” (BOMTEMPO, 2003, p. 59). Segundo essa autora, É o que Piaget chama de jogo simbólico, o qual se apresenta inicialmente solitário, evoluindo para o estágio de jogo sociodramático, isto é, para a representação de papéis [...]. O jogo simbólico implica a representação de um objeto por outro, a atribuição de novos significados a vários objetos, a sugestão de temas, como: “Vamos dizer que isso é um cavalinho?” (apontando para um pedaço de madeira) ou a adoção de papéis, como “sou o pai”, “sou o médico”, “sou a mãe”, etc. (BOMTEMPO, 2003, p. 59). Conforme os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998b), o brincar se caracteriza como uma das principais atividades para que ocorra, também, o desenvolvimento da identidade e da autonomia da criança. É 43 por meio de brincadeiras que as crianças desenvolvem capacidades como “[...] a atenção, a imitação, a memória, a imaginação [...] socialização, por meio da interação e da utilização e experimentação de regras e papéis sociais” (BRASIL, 1998b, p. 22). Ao brincar, as crianças imitam, imaginam, representam e se comunicam de tal maneira “[...] que uma coisa pode ser outra, que uma pessoa pode ser uma personagem, que uma criança pode ser um objeto ou um animal” (BRASIL, 1998b, p. 22-23). Quando repetem alguma situação que já vivenciaram ativando, assim, a memória, as crianças, por meio de novas situações imaginárias, elevam e transformam seus conhecimentos prévios (Brasil, 1998b). Dessa forma, Brincar constitui-se [...] em uma atividade interna das crianças, baseada no desenvolvimento da imaginação e na interpretação da realidade, sem ser ilusão ou mentira. Também se tornam autoras de seus papéis, escolhendo, elaborando e colocando em prática suas fantasias e conhecimentos, sem a intervenção direta do adulto, podendo pensar e solucionar problemas de forma livre das pressões situacionais da realidade imediata. (BRASIL, 1998b, p. 23). Assim sendo, por meio do oferecimento às crianças de oportunidades de brincar – um brincar de qualidade que, conforme Brasil (2012, p. 12), Alta qualidade é resultado da intencionalidade do adulto que, ao implementar o eixo das interações e brincadeiras, procura oferecer autonomia às crianças, para a exploração dos brinquedos e a recriação da cultura lúdica. É essa intenção que resulta na intervenção que se faz no ambiente, na organização do espaço físico, na disposição de mobiliário, na seleção e organização dos brinquedos e materiais e nas interações com as crianças. Para que isso ocorra, faz-se necessário a observação das crianças, a definição de intenções educativas, o planejamento do ambiente educativo, o envolvimento das crianças, das famílias e das suas comunidades e, especialmente, a ação interativa das professoras [...]. É o conjunto desses fatores – as concepções, o planejamento do espaço, do tempo e dos materiais, a liberdade de ação da criança e a intermediação do adulto – que faz a diferença no processo educativo, resultando em uma educação de qualidade para a primeira infância. Não se separa, portanto, a qualidade da brincadeira da qualidade da educação infantil. Dessa forma, é possível oferecer um brincar contextualizado, intencional, livre de espontaneísmos, que cumpra um trabalho circunscrito com a imaginação, com o exercício do jogo simbólico, no qual o professor possibilite o desenvolvimento 44 e a aquisição de conhecimentos, habilidades, atitudes e competências que estão latentes ou em estado de formação nas crianças. Nesse sentido, Oliveira (2010, p. 164) postula que, Ao brincar, afeto, motricidade, linguagem, percepção, representação, memória e outras funções cognitivas estão profundamente interligados. A brincadeira favorece o equilíbrio afetivo da criança e contribui para o processo de apropriação de signos sociais. Cria condições para uma transformação significativa da consciência infantil, por exigir das crianças formas mais complexas de relacionamento com o mundo. [...] Ao brincar, a criança passa a compreender as características dos objetos, seu funcionamento, os elementos da natureza e os acontecimentos sociais. Ao mesmo tempo, ao tomar o papel do outro na brincadeira, começa a perceber as diferentes perspectivas de uma situação, o que lhe facilita a elaboração do diálogo interior característico de seu pensamento verbal. No entanto, a real situação na grande maioria das escolas é que nossas crianças não recebem oportunidades reais de significações, mas regras prontas e acabadas que objetivam transformá-las em “bons adultos”. Para Dias (2003, p. 54), [...] existe um abismo entre o jogo metafórico e a aprendizagem mecanicista. A força da manipulação autoritária faz sombra à força da vida instintiva da criança e à possibilidade de construção do conhecimento significativo. Para estabelecer relações com o letramento, Kishimoto (2013) elenca alguns atributos do brincar: imaginação ou representação de segundo grau; ato regrado; agência/decisão do brincante; envolvimento, bem-estar e prazer; natureza social e cultural; ato de natureza categorial que pode levar à solução de problemas. Explanando sobre essas características, a autora pontua que agir com liberdade é condição essencial para a expressão lúdica. É da ação e tomada de decisão da criança que há a possibilidade de ingressar ou não no imaginário. Como atributo simbólico, a imaginação se dá na imitação. Autores como Piaget e Vygotsky dizem que a imaginação é a característica mais importante no brincar e requer “[...] a liberdade de ação e a decisão da criança para categorizar papéis imaginários, que são expressos durante a brincadeira” (KISHIMOTO, 2013, p. 25). 45 Em todo ato lúdico há a presença de regras. E, no letramento, enquanto prática social de obtenção de significações da linguagem verbal e não verbal, há também um “[...] sistema linguístico que contém regras, estruturas e significa