A ESCOLA ECOA CO-IMAGINAÇÕES DE OUTRAS POSSIBILIDADES DE EXISTIR E MOVER NA ESCOLA São Paulo 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO MESQUITA FILHO” Instituto de Artes - Campus São Paulo – SP NAÍLA RODRIGUES SOUZA TALITA SILVA NAÍLA RODRIGUES SOUZA TALITA SILVA A ESCOLA ECOA: co-imaginações de outras possibilidades de existir e mover na escola Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), como requisito parcial para obtenção dos títulos de licenciadas em Arte-Teatro. Orientadora: Profa. Dra. Carminda Mendes André Coorientador: Prof. Me. Fernando Bueno Catelan São Paulo, 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S729e Souza, Naíla Rodrigues, 1996- A escola ecoa : co-imaginações de outras possibilidades de existir e mover na escola / Naíla Rodrigues Souza, Talita Silva. - São Paulo, 2023. 66 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Carminda Mendes André Coorientador: Prof. M.e Fernando Bueno Catelan Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Arte-Teatro) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Dança - Aspectos antropológicos. 2. Dança para crianças. 3. Coreografia. 4. Escolas públicas. 5. Arte na educação. I. Silva, Talita, 2000-. II. André, Carminda Mendes. III. Catelan, Fernando Bueno. IV. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. V. Título. CDD 372.868 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 NAÍLA RODRIGUES SOUZA TALITA SILVA A ESCOLA ECOA: co-imaginações de outras possibilidades de existir e mover na escola Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), como requisito parcial para obtenção dos títulos de licenciadas. Trabalho de conclusão de curso aprovado em: 04/02/2023 Banca Examinadora Profa. Dra. Carminda Mendes André Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” IA/UNESP – Orientadora Prof. Me. Fernando Bueno Catelan Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” IA/UNESP – Co-orientador Profa. Dra. Denise Pereira Rachel Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” IA/UNESP RESUMO Esse trabalho é construído em forma de revista e se propõe a investigar as dinâmicas coreográficas de algumas instituições públicas escolares de São Paulo, transpondo conceitos propostos pelo teórico da dança André Lepecki- coreopolítica e coreopolícia-, para a escola. A escola é entendida como uma instituição disciplinar e de controle e buscamos imaginar coletivamente outras escolas que acreditamos se contrapor à essa lógica homogeneizadora de corpos, bancária e limitante de ocupação desse espaço. Além de refletir sobre a temática com textos nossos e de convidados, esse trabalho também contém músicas, poesias, desenhos que dialogam com a temática, e duas experiências práticas que realizamos na Escola Estadual Jardim das Rosas, em Francisco Morato. PALAVRAS-CHAVE: Coreopolítica. Escola. Educação. Escola pública. ABSTRACT This work is built in the form of a magazine and proposes to investigate the choreographic dynamics of some public school institutions in São Paulo, transposing concepts proposed by the dance theorist André Lepecki- coreopolitics and choreopolicia - to the school. The school is understood as a disciplinary and control institution and we seek to collectively imagine other schools that are opposite to this homogenizing logic of controlling bodies, banking and limiting the occupation of this space. In addition to reflecting on the theme with our own and guest texts, this work also contains music, poetry, drawings that dialogue with the theme, and two practical experiences that we carried out at Escola Estadual Jardim das Rosas, in Francisco Morato. Keywords: Coreopolitics. School. Education. Public School. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO AO LEITOR 5 2 QUEM SOMOS 8 2.1 O CHÃO QUE PISO ME SENTE? .......................................................................................................................................... 9 2.2 PROFESSORA E ARTISTA ................................................................................................................................................ 13 3 QUE ESCOLA E QUE CHÃO ESTAMOS PISANDO? 15 3.1 PRIMEIRO PORTÃO .......................................................................................................................................................... 16 3.2 SEGUNDO PORTÃO .......................................................................................................................................................... 16 3.3 TERCEIRO PORTÃO .......................................................................................................................................................... 16 3.4 PÁTIO ................................................................................................................................................................................ 17 3.5 QUARTO PORTÃO .............................................................................................................................................................. 17 3.6 QUINTO PORTÃO ............................................................................................................................................................... 17 3.7 SALA DE AULA ................................................................................................................................................................. 19 4 COREOPOLÍCIA DA ESCOLA 21 4.1 QUE DANÇA A ARQUITETURA NOS FAZ DANÇAR? ........................................................................................................22 5 A ESCOLA QUE DESEJAMOS 29 5.1 CRIANÇAS ABREM CAMINHOS ....................................................................................................................................... 30 5.2 A ESCOLA É ESCUTA ....................................................................................................................................................... 37 5.3 IMAGINANDO ESCOLAS MAIS VIVAS ............................................................................................................................. 43 5.4 O ONTEM REFLETIDO HOJE .............................................................................................................................................. 48 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE COMO REINVENTAR A ESCOLA QUE TEMOS 54 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................................. 61 5 1 INTRODUÇÃO AO LEITOR Esse é o trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Arte - Teatro, pelo Instituto de Artes da UNESP de Naíla Rodrigues e Talita Silva, professoras, atuantes na escola pública e pesquisadoras do corpo, e nasce como fruto de inquietações, dúvidas, angústias, descobertas e felicidades que compartilhamos durante longas conversas sobre a prática docente. Construir escola, para nós, é necessariamente uma tarefa coletiva e gostaríamos que esse aspecto estivesse presente no nosso trabalho. Escolhemos o formato da revista, portanto, com a intenção de coletivizar a escrita e a discussão sobre escola com convidados, possibilitando a presença de outros professores, outras narrativas, propostas e experiências nas escolas em que atuam. Os textos são dispostos de maneira individual, possibilitando a leitura dos escritos separadamente, mas os organizamos a partir de um fio condutor. O trabalho reúne, portanto, escritas conjuntas e individuais, escritas dos professores convidados, além de artes visuais, músicas e poesias. Felipe Michelini, um dos convidados, é professor-artista, da rede pública municipal de São Paulo, em São Mateus, periferia da Zona Leste. O conhecemos na UNESP, contando suas histórias e peripécias na escola com seus estudantes. Sua prática, sua atenção e seu olhar para a estrutura escolar se mostravam transgressoras, contrapondo de uma maneira muito viva e alegre a imagem e as histórias desanimadoras que escutamos do que é ser professor nas escolas públicas em São Paulo, e por isso o convidamos para compartilhar um pouco de como é tentar colocar em prática a escola em que acredita. Natália Tazinazzo, foi nossa professora na disciplina intitulada “Prática de ensino: projetos educativos” e é coordenadora de uma Escola Pública Municipal de Educação Infantil na periferia da Zona Sul de São Paulo. Sua experiência, também transgressora, de ocupar a cidade e o entorno da escola em que trabalha com bebês e crianças, rompeu os muros da escola, aproximou a comunidade externa, dialogou com a cultura local e construiu uma escola que difere da escola tradicional e do controle que desenvolvemos nos textos a seguir, e por isso, a convidamos para compor esse trabalho. O trabalho desses professores nos ajuda a visualizar, imaginar e realizar experiências escolares que questionem a função de produção de controle, disciplina e desigualdade que ela desempenha. Agradecemos muito por compartilharem suas vivências. Partimos da investigação de como se dão as dinâmicas de movimentação e de ocupação do espaço das instituições públicas de Ensino Básico em São Paulo, entendendo-as como instituições disciplinares - 6 tal como Deleuze (2006)1 as concebe-, produzindo e reproduzindo um controle e homogeneização dos corpos para co-imaginar (imaginar juntos) outras possibilidades de existir na escola. Tal investigação também se deu de forma prática com a realização de dois encontros com estudantes do 6º ano. A instituição escolhida para realizarmos a proposta foi a Escola Estadual Jardim das Rosas, localizada em Francisco Morato, onde Talita é professora. A escolha por essa escola se deu pela atuação e abertura que a Talita tinha enquanto professora e embora seja um recorte específico de uma escola, notamos semelhanças que se reproduzem também nas outras escolas públicas que conhecemos, e quiçá na maioria delas, tal como, a presença de muitas grades, o mobiliário exagerado que não permite movimentação, o sinal, a hierarquia entre as séries, a proibição da circulação em determinados lugares. O contraste da escola que desejamos e da escola que temos pode apontar caminhos, ainda que pequenos e individuais, de construir, através dos corpos, novas dinâmicas de movimentação, transgressões, outras possibilidades de ocupações do espaço, uma conscientização de suas estruturas e mudanças nela. 1 DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. 5a. reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 219-226 7 Sérgio Vaz2 2 VAZ, Sérgio. Flores de Alvenaria. Editora Global, São Paulo, 2021, p.73. Antes que seja tarde (...) Assisto a falência da educação e o massacre contra os professores, e sei que muitas vezes o resultado do ensino de qualidade mínima é o presídio de segurança máxima. Fico em silêncio quando a multidão desinformada pede redução da maioridade penal, porém, mal ela sabe que se não educarmos nossas crianças vão ter que prendê-las com 16 anos, depois 14, depois 12, até que não teremos mais crianças nas ruas. E elas, as ruas, serão tão seguras que a gente vai sentir falta das crianças. Época em que os brinquedos serão visitados nos museus. (...) 8 2 QUEM SOMOS 9 2.1 O CHÃO QUE PISO ME SENTE? - Talita Silva Emocionada adentrei na aventura que é ser professora, assim como meus pais (e agora meu irmão!), quem visita minha casa quase confunde com uma escola. Por aqui tem livros por todo canto e até lousa na parede. Podem dizer que foi incentivo ou tradição que agora passa de geração em geração... mas não pra mim! Eu não queria ser professora, o caminho da vida que foi me levando, talvez Ori me guiando. Só aceitei e cá estou. Tentei desviar e até que consigo por vezes voar com arte nas brechas da jornada semanal corrida, brincando de circo. Começar esse percurso não foi das tarefas mais fáceis, mesmo sendo professora da rede estadual, ainda sou estudante. Me joguei num cadastro online que chamam de “emergencial”, eu estava numa emergência, então logo pulei sem medo no link. Foram meses entrando diariamente no bendito, até que consegui conquistar as primeiras turmas. Mal sabia eu que essa na verdade era a parte mais fácil. A mais difícil é conviver com professores. E infelizmente isso não é uma piada... A primeira semana é desafiadora, fui bombardeada com conselhos e frases não muito receptivas: 10 Além de abordagens hostis e violentas aos estudantes durante minha presença. Pontos sensíveis que estão para além da sala de aula. Foram situações desconfortáveis que tocaram inseguranças pessoais. Não sei bem o que dava aval para esse tratamento, se minha estatura baixa, a recente contratação como docente, a cor preta da minha pele, a leitura que faziam de quem sou, mas independente da razão acendeu um medo desse espaço que antes não existia, e este, desapareceu como mágica assim que pude colocar os pés na sala de aula e conhecer de fato os estudantes. Desde a primeira aula planejada pensei em tentar fazer diferente, mesmo com as descrições dignas de filmes de terror que outros profissionais da educação fizeram questão de me contar. Não acredito em uma pedagogia que amedronta e doma os corpos, que “chega com dois pés no peito”, então trabalho tentando fazer diferente. Fui bem recepcionada pelos estudantes, levei propostas, ouvi e realizei vontades compartilhadas e seguimos assim, testando juntos, conversando sobre dizer “sim” para ideias que muitas vezes geram estranhamento, mas tentando. Nesse momento minha vida era sala de aula, só pensava em escola, nas necessidades dos estudantes, especificidades de cada turma e quando eu estava tranquila, até em momentos de lazer surgia uma luz na minha mente “isso seria uma ótima aula”. E eu estava gostando disso, mesmo sendo desafiador, é também prazeroso. Mesmo com os momentos de choro e que não sei lidar muito bem, me sinto feliz caminhando junto no chão da escola. Recebia cartinhas sem parar e uma marcante foi um desenho feito por um estudante do 6º ano, nele tinha um garoto que abria e fechava a boca bem grande e ligada a ela um balão de fala escrito: “Eu gosto da professora porque ao invés de gritar ela ensina”. E eu ali, diante dele, fiquei paralisada, pensando na consciência daquela criança e refletindo que outras formas de estar em sala de aula, de pisar nesse chão, de se colocar como professora, de se comunicar com os estudantes. Explorar e repensar aquele espaço era realmente necessário. Esse estudante depois parece ter mudado de opinião ao me pedir para gritar com a própria turma no ano seguinte. O que nos faz optar pelos recursos agressivos e de controle? Mas ainda gravado em mim estava o recado que ele me passou naquela carta e trouxe mesmo que sem intenção mais vontade de experimentar em sala de aula, de achar outros meios para conseguir a atenção à minha fala quando esta for necessária, para construir acordos e no meio disso tudo entender o processo deles como estudantes e participantes diretos e ativos da instituição de ensino. Sem renunciar aos afetos... Me sinto com sorte muitas vezes, desespero também. Perco, me encontro e saio aos sorrisos quando falo, leio e penso educação. Sei que tenho importância. Que minha vivência, meu corpo e experiências têm importância. Espero que minha presença possa diminuir e não causar dores. Se tem uma coisa que a escola faz é me afetar, e eu quero que ela me sinta também. 11 12 Atrás das borboletas azuis “[...] Na escola, a carteira vazia é o lugar de plantar utopia, da multidão de anônimos de onde Maria das Dores entrou pelo mapa saiu pela culatra deu tiro na sorte e virou professora: Dona Dasdor, Dasdorinha, Dasdora de pele negra e mão finas de pegar o giz e amaciar as dores de seu país. [...] Do giz de Dasdora saíam sílabas que geravam palavras no negro da lousa0 que escreviam o Brasil que tanto queriam ver, de borboleta azulada que no verde da mata pousa no colorido das coisas que pensava construir. no pedaço de chão que queria partir em muitas estrelas -constelação de alunos de raças e classes diferentes Que tudo era cruzeiro do sul e rosa dos ventos; O norte pra lá, o nordeste pra cá O centro-oeste no meio, o sul mais embaixo -buraco fundo da existência azul de anil (Quem sabe daqui um presidente do Brasil?) [...]” Amélia Alves3 3 ALVES, Amélia. Amor e outras revoluções, Grupo Negrícia: antologia poética. Rio de Janeiro: Malê,2019. Pág 23-24 Quimera Volpato, 2023 13 2.2 PROFESSORA E ARTISTA - Naíla Rodrigues Sou uma mulher cis branca e pobre, filha de Patrícia, professora de Educação Física da rede pública estadual e do Val, artesão autônomo. Cresci morando em casas e prédios de aluguel com a minha mãe em diversos bairros da zona leste de São Paulo, passando pela Cohab 2, em Itaquera, pelo Aricanduva, Carrão, Vila Formosa, e conforme mudava de casa e bairro, me mudava também de escola. Da EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) ao Ensino Médio, passei por sete escolas públicas, duas municipais e cinco estaduais. Na minha família ser professora foi uma das primeiras possibilidades que se tornou palpável, muitas das mulheres são e quando criança sempre dizia que poderia ser tudo menos professora. O tempo passou e meu contato com as escolas nunca de fato se interrompeu, fiz uma graduação em História e realizei o estágio dessa licenciatura em uma Escola Estadual do Tatuapé, bairro de São Paulo que é Zona Leste mas já quase centro. Era uma escola com fama de ser uma das melhores da zona leste. A Licenciatura em Arte - Teatro, onde participei dos programas de iniciação à docência, como o PIBID e Residência Pedagógica, passando por três escolas municipais, que despertaram em mim um prazer desconhecido pela docência e um olhar para a escola, diferente de quando estudante da Educação Básica. A partir desse ponto, que não tem um marco temporal exato, todas as minhas experiências formativas, como espectadora, participante de cursos, atriz, conversas de bar, entre outras, atravessavam a forma como eu pensava e via a escola e a educação. Tudo levava a pensar na escola. E uma grande inquietação me acompanhou quando comecei a perceber as diversas semelhanças que todas as escolas que passei compartilham em termos de sua estrutura de organização espacial e arquitetônica, paisagem sonora, dinâmicas de movimentação e circulação dos alunos entre trocas de aula, suas cadeiras enfileiradas, suas grades, a hierarquização das crianças em turmas conforme a idade, as progressões através de provas, o sinal. Todas essas escolas (ou melhor, as memórias que guardo delas) me transmitem uma sensação incômoda de estagnação institucional, de “congelamento”, de que, no decorrer de todos esses anos, muitas coisas nos espaços escolares mantêm- se, de certa forma, inalteradas. É perceptível a continuidade de uma lógica de controle e dominação dos corpos que a escola exerce e sua proximidade com as instituições disciplinares, escola, prisão e quartel, que se desenvolveram durante a Idade Média, que, como aponta Deleuze (2006) se aprimoraram e se deformaram no decorrer da transição das sociedades disciplinares para as de controle, sem alterar, no entanto, sua função básica de dominação e controle, suprimindo ou domesticando os corpos e os comportamentos divergentes. Me interesso em pensar o lugar do corpo na escola, e de que forma esse movimento também é ditado por essa lógica de controle, se expressando, por exemplo, por esses elementos em comum que percebi em todas as escolas em que passei, pelo modo 14 de organização dos corpos no espaço escolar, por meio de elementos arquitetônicos ou físicos do ambiente, pela hierarquia, entre outros. E a pesquisa tem sido um caminho de elaboração das práticas, de recuperar os sentidos do mundo, dar voz às angústias e ampliar as perguntas, de me conhecer, me re- conhecer, me desconhecer, enquanto professora e artista. 15 3 QUE ESCOLA E QUE CHÃO ESTAMOS PISANDO? 16 3.2 SEGUNDO PORTÃO Esse portão fica entre o primeiro portão e o terceiro, que dá acesso à parte interna do prédio. Depois dele há a entrada para a quadra e permite contato com a secretaria escolar. 3.1 PRIMEIRO PORTÃO O primeiro portão da escola tem basicamente o tamanho de uma porta comum e ao lado dele uma frase de boas vindas escrita dentro do desenho de um livro: “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo” de Nelson Mandela. 3.3 TERCEIRO PORTÃO O terceiro portão dá acesso à parte interna do prédio. Assim que é ultrapassado é avistado o pátio e a cozinha. A fotografia registra a entrada na escola para retirada das refeições sendo organizada em filas de meninas à esquerda e meninos à direita. F i g u r a S E Q F i g u r a \ * A R A B I C 1 - P r i m e i r o p o r t ã o 17 c 3.4 PÁTIO O pátio é amplo e preenchido por mesas e bancos. O registro fotográfico foi feito em um dia que os fios da unidade escolar foram furtados pela terceira vez em duas semanas e as aulas aconteceram normalmente. 3.6 QUINTO PORTÃO Grade no corredor das salas de aula que limita a saída e entrada dos estudantes principalmente em horários de intervalo. 3.5 QUARTO PORTÃO Portão que dá acesso às escadas que levam aos corredores de sala de aula. A lateral da escada é preenchida com grades que vão do chão ao teto. F i g u r a S E Q F i g u r a \ * A R A B I C 3 - E n t r a d a d o p 18 “COLÉGIO: Casa cheia de mesas e cadeiras chatas.” Simón Peláez, 11 anos4 4 NARANJO, Javier. Casa das estrelas. O universo pelo olhar das crianças. Planeta do Brasil, São Paulo, 2018, P.35. 19 c 3.7 SALA DE AULA Sala de aula com carteiras enfileiradas e estudantes sentados, todos direcionados para a frente. Registro feito durante uma atividade teórica. SALA DE AULA Sala de aula após toque do sinal que anuncia o intervalo de aulas. Estudantes se retiram sem pressa. SALA DE AULA Fila formada espontaneamente pelos estudantes minutos antes do sinal de retirada. 20 Cadê o ministro Gabi Nyarai5 5 NYARAI, Gabi. Cadê o Ministro [Clipe Oficial]. Youtube, 2017. Disponível em: https://youtu.be/YQRSjIoWKu0. Acesso em: 22 dez. 2022. “Grade em todos os cantos que se olhe Aluno que no canto Somente se encolhe Uma escola repleta de falta de motivação Onde o que menos tem É informação Ambiente torturante Um hospício que é constante Modelado feito prisão Pra prender nosso pensante Passando a borracha na nossa cultura Fazendo com que a gente cresça sem Desenvoltura” 21 4 COREOPOLÍCIA DA ESCOLA 22 4.1 QUE DANÇA A ARQUITETURA NOS FAZ DANÇAR? -Naíla Souza e Talita Silva O projeto da modernidade, a partir de Lepecki (2017), sustenta-se e consolida-se, de forma impositiva, através de um modo de existência centrado no fluxo de movimento ininterrupto. A cidade urbanizada, através de sua arquitetura, das ruas como lugar de ocupação do fluxo contínuo dos carros, de suas instituições disciplinares e de controle, como definidas por Deleuze (2006), condiciona a forma como nos movimentamos no mundo. Nestes termos, o movimento vertiginoso da modernidade se presta a modos difusos e eficazes de controle — “o controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado” (DELEUZE, 2006, p. 224) — em que os agentes coercitivos não são facilmente identificados por aqueles que são por eles dominados. Nesse âmbito, Foucault (1994) define a escola como uma instituição disciplinar e de controle, que se aprimorou no decorrer dos anos na sua função de vigiar e controlar os corpos, a fim de também discipliná-los. Hartmann e Silva (2019) citam Foucault (1987) para descrever de que forma isso se efetiva no espaço da escola afirmando que A disciplina organiza um espaço analítico, composto de salas de aula organizadas com carteiras em fileiras, crianças hierarquizadas em turmas conforme idade, provas para progressão, que fazem com que a escola e constitua, ainda hoje, como uma máquina de vigiar, hierarquizar, recompensar, discriminar. (FOUCAULT, 1987 apud HARTMANN; SILVA, 2019, p. 28) Também elementos como: a forma de distribuição dos indivíduos no espaço; o controle do tempo; a arquitetura de vigilância e controle; as cadeiras enfileiradas; a divisão etária e hierarquizada; seu mobiliário em excesso, que dificulta a realização de práticas que demandam maior movimentação corporal ao reduzir o espaço tal, como sua estrutura comumente composta por muitos portões, grades, corredores extensos, pátio coberto, fechaduras, sala de aula com fileiras de mesas e cadeiras posicionadas para a lousa à frente, cartazes com dizeres de ordem, impõem um desejo de ordem, de um espaço facilmente vigiado, de ocupação de corpos alinhados, de filas muitas vezes divididas entre meninos e meninas. Masschelein e Simons (2014) chamam esses materiais presentes no espaço da escola e utilizados como recurso de “tecnologia escolar”. Essa, para eles, constitui um elemento comum, que faz com que qualquer escola seja reconhecida como escola facilmente, apenas pela organização desses elementos. Quando vemos uma sala de aula em São Paulo, no Piauí ou do outro lado do mundo é simples a percepção de que se trata de uma sala de aula, precisamente porque esses materiais são lidos facilmente como parte essencial do ambiente escolar. Apesar das grades e portões que limitam os espaços não estarem listados como “a tecnologia escolar”, estes são tão comuns quanto cadernos e canetas. 23 A arquitetura e o arranjo espacial da escola e da sala de aula também são relevantes. Essas coisas não são ferramentas ou ambientes que podem ser usados livremente ou que são usados de acordo com a intenção de alguém. O aluno ou o professor não assume, automaticamente, o controle sobre elas. Mais exatamente, sempre há um elemento inverso no trabalho: esses instrumentos e espaços reafirmam o controle sobre o aluno e o professor. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 54-55) A espacialidade acaba determinando como os corpos devem se comportar nos espaços. As mesas e cadeiras em fileiras faz com que os estudantes entrem nas salas de forma ordenada e geralmente lenta para se sentar, já que os móveis limitam o movimento, o fato destes estarem virados para a lousa exige um olhar direcionado para a frente, sendo o que é visto como “frente” é algo que já foi definido anteriormente. O professor, portanto, se coloca nessa frente, em destaque, como o foco central, de costas para a lousa, direcionado para os estudantes, ocupando o espaço que sobrava na sala de aula, amplo, e nele consegue enxergar a todos, caminhar por entre os espaços que restaram após estarem devidamente acomodados. Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. (FOUCAULT, 1987, p.126) O professor mesmo que sem consciência consegue enxergar a todos e isso por si só, já é algo que limita os corpos que estão sendo vistos, sendo esses induzidos a acompanhar o ritmo de quem está à frente conduzindo. Quem chama atenção é quem sai da ordem, se destaca, é lembrado e se “necessário”, punido. Quem segue a ordenação é recompensado, mesmo que a partir de uma mera nota. Esses corpos acabam por seguir as dinâmicas que o espaço oferece, quase que automaticamente. Não é preciso solicitar que subam para as salas de aula, o sinal toca e a tarefa é reconhecida, não precisa pedir que se direcionem ao pátio para o intervalo, há uma adaptação com os horários. Dez minutos antes da saída alguém fecha a mochila e em seguida aparece a pergunta: e instantaneamente o som se multiplica seguido de uma fileira ansiosa em frente a porta, prontos para a "liberdade''. A noção expandida que Lepecki (2017) assume da coreografia torna múltiplas as possíveis formações do coreográfico e as expande para além do campo restrito da dança. Sendo assim, podemos, a partir dessa ótica, nos debruçar a observar as coreografias que essa instituição dentro desses moldes evoca nos corpos na escola, a partir de sua arquitetura e sons de controle, como o sinal. A obediência, os limites, as intencionalidades, a atenção em entender sinais que nem sempre 24 são proferidos por palavras, é um movimento naturalizado, e absorvido na convivência, quase como que seguindo os “passos da dança” que o espaço impõe. Existe, portanto, um “coreopoliciamento” dos corpos, e como “polícia” Lepecki, a define tal qual no excerto abaixo: A polícia é um tangível, uma construção, que podemos equiparar à arquitetura, pois ela é principalmente o agente que garante a reprodução e a permanência de modos predeterminados de circulação individual e coletiva. A polícia, em outras palavras, coreografa. Ou seja, é ela que garante que, desde que todos se movam e circulem tal como lhes é dito (aberta ou veladamente, verbal ou espacialmente, por hábito ou por porrada) e se movam de acordo com o plano consensual do movimento, todo o movimento na urbe, por mais agitado que seja, não produzirá nada mais do que mero espetáculo de um movimento que, antes de mais nada, deve ser um movimento cego ao que o leva a mover-se. Ou seja, o que importa é uma fusão particular de coreografia e policiamento – coreopoliciamento. (LEPECKI, 2012, p. 54) A “coreopolicia” pode ser interpretada como uma limitação dos movimentos, sendo estes anteriormente ditados, autorizados, mesmo que indiretamente ou inconscientemente, entretanto, para a polícia, as medidas não funcionam da mesma forma, pois para eles existem brechas. Vamos considerar aqui “polícia” um ator social na coreopolítica do urbano atual, uma figura sem a qual não é de todo possível pensar se a governamentalidade moderna. Uma figura também cheia de movimento, particularmente o ambíguo movimento pendular entre a sua função de fazer cumprir a lei e, a sua capacidade para a sua suspensão arbitrária; uma figura cujo espetáculo cinético é de chamar para si o monopólio sobre a determinação do que, no urbano, constitui um espaço de circulação, tarefa que executa não apenas quando orienta o trânsito, mas também quando executa com alarde a sua performance de transgressão de sentidos de circulação na cidade, com carros velozes cheios de luzes e sirenes alardeando assim a sua excepcional ultramobilidade, uma vez que para a polícia nunca existe a contramão. (LEPECKI, 2012, p.51) Transferindo esses termos para a escola, enxergo a dita "polícia" como os agentes responsáveis pela ordem, mas não que necessáriamente precisam cumpri-la à risca. São os que orientam o trânsito dos corpos, que com a voz alardeiam e expõem o grau de sua mobilidade, e determinam quais devem ser os espaços de circulação do outro, que pode passear na direção que julgar necessário e não existe contramão. Sendo esses na maioria os que não são estudantes. Quando uma autoridade na escola, exemplo o professor, sinaliza com o corpo e voz que os estudantes devem formar uma fila, copiar uma atividade ou voltar para seus lugares, “sua fala opera como um eficientíssimo comando coreográfico: o movimento correspondente é imediatamente executado, do melhor modo possível.” (LEPECKI, 2012, p. 52). Embora as forças dominadoras atuem direta e intensamente sobre a subjetividade e a coreografia dos corpos no espaço urbano (Lepecki chama a isto de “coreopolícia”), há transgressões, dinâmicas de resistência, ações políticas contrárias ao controle (denominadas por “coreopolítica”). 25 Os estudantes ainda assim expressam suas demandas, insatisfações e críticas. Um dia uma criança do 6º ano do ensino fundamental desabafou às sete da manhã, substituindo o “bom dia” por: enquanto permanecia o máximo de tempo possível conversando comigo, eu dentro da sala de aula, ela no corredor. Até a inspetora vir pessoalmente pedir para que ela ultrapassasse a porta. Porque estar parado em um lugar de passagem não é permitido dentro dessa lógica. Tal incômodo com o controle e a limitação da movimentação corporal na escola, fez com que tentássemos nos atentar para onde surgem o que Lepecki (2012) denomina por Coreopolítica, que consiste em ações que estabelecem outras “políticas de chão” — expressão cunhada por Paul Carter — , isto é, políticas atentas às particularidades de ocupação do espaço e movimentação, com a proposição de dinâmicas coreográficas que se contrapõem, transgridem e resistem à ordem hipercinética e de controle da modernidade. Sendo descrito também por Lepecki como uma: (...) comobilização da ação e dos sentidos, energizada pela ousadia do iniciar o improvável, no chão sempre movente da história, e que pode prescindir mesmo do espetáculo do cinético da circulação e do agito, pois o que importa é implementar um movimento que, ao se dar, de fato promova o movimento que importa. Que pode ser, por exemplo, simplesmente parar. (LEPECKI, 2012, p. 55) E os estudantes contrariam a coreopolícia em vários momentos, não seguindo imediatamente o sinal, comendo com calma (independente do apito alto), dizendo as verdades escancaradas e sem medo, demonstrando afetos positivos e negativos para com os professores, distribuindo abraços quando o “não toque” é estabelecido, pulando e correndo nos corredores, seguindo a vontade de seus corpos energéticos, evidenciando, como afirma Lepecki (2012), que “toda coreopolítica requer uma distribuição e reinvenção de corpo, de afetos, de sentidos. É que toda coreopolítica revela o entrelaçamento profundo entre movimento, corpo e lugar.” A coreopolitica que até quando 26 não é expansiva e complexa, movimenta a dinâmica esperada do espaço. Intrigadas pela possibilidade de mobilizar outras possibilidades de ocupação do espaço da escola enquanto professoras de artes, diversas perguntas nos tomam a mente, como uma própria de Lepecki: Como coreografar uma dança que rache o chão liso da coreopolícia e que rache a sujeição dos sujeitos arregimentados pela coreopolícia? Dançar para rachar o chão do movimento, dançar no movimento rachado do chão, rachar a sujeição. Criar a rachadura no estado das coisas, e nas coisas do Estado. (LEPECKI, 2012, p. 56) E outras dúvidas nossas como: 27 Sem respostas para algumas das perguntas, nos valemos de Didi-Huberman — citado por Nogueira (2020) —, que utiliza de uma metáfora sobre vagalumes para esclarecer o modo como podemos resistir a esses processos de controle: por meio de pequenas resistências, fracas e intermitentes, que não nos ofuscam, mas sim, nos ajudam a encontrar caminhos alternativos. Dentre estes, destacam-se a performance, o teatro, a dança, as práticas artísticas em campo expandido e os jogos teatrais, como linguagens capazes de criar rupturas nesse modo de vida condicionado. Nessa perspectiva também, instauram-se outras lógicas temporais, outras dinâmicas de atenção, de movimentação corporal e de ocupação do espaço, que se contrapõem ao fluxo ininterrupto de movimentação pautado pela modernidade sobre a escola, criando fissuras, ainda que momentâneas, e estabelecendo outras temporalidades e hábitos coletivos nas dinâmicas coreográficas do espaço escolar. Ecoando no corredor, o menino do 7º ano brinca e sozinho preenche o espaço. Propondo novos movimentos em lugar de andar. Explorando um espaço que é seu. Fez questão de pedir licença e declarar seu grande feito: “Quer ver como consigo pular dois quadrados de uma vez?”, e pulou. 28 Estudo errado Gabriel Pensador6 6 PENSADOR, O Gabriel. Estudo errado. Youtube, 2017. Disponível em: https://youtu.be/l540Ho2qSAk . Acesso em: 22 dez. 2022. “Eu tô aqui pra quê? Será que é pra aprender? Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer?” “[...] Manhê! Tirei um dez na prova. Me dei bem, tirei um cem e eu quero ver quem me reprova. Decorei toda lição, Não errei nenhuma questão, Não aprendi nada de bom, Mas tirei dez (boa filhão!)” “[...] Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci. Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi. Decoreba: Esse é o método de ensino. Eles me tratam como ameba e assim eu não raciocino. Não aprendo as causas e consequências só decoro os fatos." “[...] Não tenho outra saída Mas o ideal é que a escola me prepare pra vida. Discutindo e ensinando os problemas atuais. E não me dando as mesmas aulas que eles deram pros meus pais. Com matérias das quais eles não lembram mais nada.” “[...] Encarem as crianças com mais seriedade Pois na escola é onde formamos nossa personalidade Vocês tratam a educação como um negócio onde a ganância, a exploração, e a indiferença são sócios Quem devia lucrar só é prejudicado Assim vocês vão criar uma geração de revoltados.” 29 5 A ESCOLA QUE DESEJAMOS 30 5.1 CRIANÇAS ABREM CAMINHOS -Natália Tazinazzo Desejo uma escola que viva numa perspectiva transformadora e desobediente, decolonizada, de contribuição para a ruptura e para não perpetuação das desigualdades sociais. Acredito que o caminho para este desejo esteja na construção de um projeto democrático, antirracista, anticapacitista, de gênero, e no caso do contexto que atuo, de visibilidade de bebês e crianças pequenas como sujeitos do conhecimento e produtores de saberes do território. Dentro de tanta pretensão, estamos a pouco mais de um ano procurando caminhos de vinculação com o território e com a comunidade; bem como a desconstrução da educação dos corpos tradicionais, pois acreditamos que seja por aí a configuração da escola do desejo. Para tratar da visibilidade social de bebês e crianças, foi preciso primeiro cuidar do fazer com bebês e crianças, modificando a concepção da educação das infâncias na perspectiva do desemparedamento dos corpos. Qualificamos os espaços, materialidades e interações, para garantir as potencialidades destes corpos que querem sentir o mundo de todas as formas. Por isso, nosso espaço físico hoje tem trilha no barranco, grafite, redário, fogueira, horta, piscinas desmontáveis, brinquedos pelos corredores, circuitos na sala dentre outras possibilidades, dentre o que ainda virá quando as verbas permitirem… Para ampliar nossos espaços, vozes e travessias, rompemos os muros indo à rua. “Quem espanta miséria é festa” já dizia Beto Sem Braço. Na contrapartida dos males pandêmicos, buscamos trazer vida à praça ao lado da nossa escola. Começamos, em 2021, com as duas turmas de crianças mais velhas (03 anos) para brincar no balanço, no escorregador, passear pelas árvores frutíferas, brincar na terra, caminhar. O momento trouxe tamanho encantamento que mesmo algumas famílias da vizinhança, que optaram pelo não retorno presencial e eram nossas vizinhas, juntavam-se a nós para a vivência na praça. As visitas tornaram-se mais frequentes, outras turmas da escola também passaram a fazer rodas de histórias, rodas de música, brincadeiras na praça e as famílias nos trouxeram devolutivas muito bonitas destes momentos. Em paralelo, duas turmas estavam pesquisando maracatu, o que nos levou a uma parceria com o grupo BAQUEATITUDE, da nossa região. Como finalização deste trabalho e de nossas ações com a comunidade, promovemos um dia da família, no final de novembro, todo voltado para a ocupação do espaço público: recebemos as famílias com brincadeiras tradicionais na praça (bambolês e cordas), grafitamos o muro que divide a escola da praça com tintas produzidas a partir da terra do próprio território, sob curadoria do arte educador Alex Zudão, revitalizamos o canteiro da escola com ajuda das famílias e fechamos o evento com um cortejo de maracatu por todo o quarteirão. Crianças deixando suas marcas através da terra, pais pulando corda na praça, bebês cortejando a rua. O evento foi tão significativo e impactante, que a cultura popular e a ocupação do território através do corpo 31 Desenho de Praça. Impressão de isogravura em algodão cru. Feita por criança de 6 anos. 32 passou a ser o nosso tema de estudo em 2022. Consideramos este o nosso primeiro grande marco. Nesta perspectiva, as ações foram ampliadas. Realizamos um bloco de carnaval de rua, com marchinhas tradicionais, envolvendo todas as turmas e artistas populares, como abertura do projeto. O bloco foi aberto a nossos vizinhos e toda a comunidade. Voltamos a frequentar a praça e notamos a necessidade e oportunidade do exercício do cuidado. As crianças então foram a praça deixar vasos de flores e plantas, plaquinhas com desenhos e frases escolhidas por elas, com palavras de afeto e pedidos de cuidado. Numa destas visitas, a mãe de uma das crianças estava passando e juntou-se a nós na empreitada. Logo depois, tivemos um segundo marco muito importante, o SambaSarau na praça. A poesia e os princípios poéticos como experiência estética sempre fizeram parte de nossas linguagens, mais ainda ao começarmos a frequentar o Sarau Cooperifa. Dentro do projeto de cultura popular da Unidade, os bebês estavam trabalhando com o samba e as crianças com instrumentos de percussão, cantigas tradicionais e quadrinhas. Durante o processo de preparação, foram a rua, chamar a comunidade para nossa manhã de poesia. Pintaram tecidos onde espalhamos poesia, pesquisaram lambes e stickers. Mutirão para limpeza. Numa manhã de sábado, espalhamos cangas e juntamos a arte urbana, com poesias de Sérgio Vaz, frases de Carolina Maria de Jesus, leituras poéticas e antirracistas e brincamos muito, de poesia. No microfone (equipamento instalado graças à mercearia do sr Djalma, que cedeu a tomada), famílias lendo, recitando, vizinhos “se achegando” e o artista Jairo, da COOPERIFA, abrilhantando nossa manhã com poesia do território. Em seguida, tivemos a honra de receber alguns sambistas da região (dois fazem parte inclusive do tradicional Samba da Vela) para nossa roda de samba com o repertório trabalhado na escola (Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Adoniran, Cartola, Noel Rosa dentre outros). De lá, como ninguém é de ferro e a valorização do saber ancestral pedia, oferecemos dentro da escola para todos os presentes, uma deliciosa feijoada preparada pelas nossas queridas Bel, Nilde e Gil, que comandam a cozinha. Esta manhã só fortaleceu o trabalho. No dia seguinte, muitos vizinhos procuraram a Dalva, professora que mora em frente à escola para elogiar o trabalho: 33 Na semana seguinte, um grupo de idosos usava a praça para fazer exercícios… Por isso, em agosto, fizemos uma segunda edição, que contou com mais participantes da Cooperifa (Dona Edite, Cocão AVOZ e Jairo), com o Chapinha da Vela, Giulio Mezzacappa com brincadeiras populares e poetas da comunidade, famílias de outras escolas. No cotidiano, a rua seguiu viva. Gabriel, criança do MGII, nos pediu para andar de motoca na rua. Então, vamos lá! A rua estava com um pedaço interditado por uma obra e foi possível sair e explorar não apenas a calçada. Professoras e crianças de outros grupos viram a cena e quiseram ir também, agora já com a rua liberada. Conversamos com as crianças, definimos o espaço, nos mobilizamos e mais uma vez, vizinhos e mães juntaram-se a nós espontaneamente, carros e motos aprenderam a dividir o espaço com motocas. Escutando os pedidos e ideias dos bebês e crianças, fomos ao sacolão comprar milho para fogueira, à mercearia do sr Djalma comprar bicarbonato para fazer slime, ganhamos mudas do seu Francisco para nossa horta. Passemos de motoca por todo o quarteirão. Levamos os bebês do BI para brincar no parque de areia da EMEI ao lado. E já era tempo de prepararmos nossa festa popular de encerramento do primeiro semestre. A festa começou na praça, enfeitada por nós, aos olhos da comunidade que foi convidada com antecedência: bebês e crianças confeccionaram e entregaram convites nos comércios locais (que realizaram doações para festa, democratizando o acesso das famílias), na EMEI e no CEI parceiro ao lado (o que também rendeu visitas e encontros), nos brechós da rua. Uma turma passou a tarde com os adolescentes da E.E. Antonio Bernardes, pois ao entregarem os convites, o encontro foi tão forte, que começaram a brincar e ninguém queria ir embora: Corrida, pebolim, badminton, futebol, que alegria! Foi uma honra recebê-los depois, pois acolheram de fato nosso convite e vieram prestigiar a nossa festa, algo que nos emocionou muito. Terminamos o semestre com uma tarde na quadra comunitária, reunindo a escola por lá. Cada caminhada traz uma nova descoberta, rompe muros e medos, articula possibilidade e traz vínculo. Vale ressaltar que desde o início, pensando na homologia dos processos, existiu uma ação contínua e compromissada com o tema: a formação das educadoras. Nos momentos formativos, os grupos realizaram saídas fotográficas pelo entorno, conheceram o território, participaram de reunião no Parque Ecológico Guarapiranga, participaram do projeto da FEUSP-ECA, estiveram presentes nas ações do SESC CAMPO LIMPO em parceria com o coletivo do qual fazemos parte (TERRITORIALIDADES), receberam o coletivo CITA dentre outras. Acreditamos que, viver na formação, as potências do território contribuíram para que o corpo experenciasse a decolonialidade, o desemparedamento e assim, encorajasse as vivências com bebês e crianças. Adultos, bebês e crianças aprenderam, ou estão aprendendo a andar na rua em segurança, a observar e cuidar dos espaços, a escutar, ver e sentir as belezas miúdas, a pedalar, a contar o trabalho da escola para os vizinhos. Adultos, bebês e crianças conheceram histórias, músicas, danças, instrumentos, manifestações culturais afro- brasileiras. Encontram pessoas. Estabelecem vínculos. Conheceram formas decolonizadas de viver o corpo. Desemparedaram corpos. 34 Bolchevicky, 2022 35 Aprenderam a recitar quadrinhas, pular corda, plantar, escrever placas com mensagens, limpar, andar de motoca. Aprenderam a colaborar, a ser coletivo, a fazer festa. Geram pertencimento, produzem cultura. Criam: situações, materialidades, afetos, riscos e imprevistos. Criam diversidade. Diminuem medos. Constroem no vazio. Cuidam e conservam. Colocam a cidade em suspensão do modo produtivo urbano através da arte e da brincadeira. Promovem a “salvação do belo”, de que fala o filósofo coreano Byung-Chul Han através da vinculação. Fazem do quintal maior que o mundo, nas palavras de Manoel de Barros. Transformam maneiras de habitar. Em especial os adultos, têm aprendido que bebês e crianças pequenas são sujeitos inteiros e potentes, de saberes e direitos, que atravessam as normas postas através do encantamento. Rompem com o estabelecido pela cultura adultocêntrica através do extraordinário. Pessoas. Impressão de isogravura em algodão cru. Feita por criança de 6 anos. 36 “Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Rubem Alves7 7 ALVES, Rubem. Por uma Educação romântica. 8. ed. Campinas: Papirus, 2009. p. 29-32. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá- los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.” 37 5.2 A ESCOLA É ESCUTA -Felipe Michelini Sou professor da escola pública da prefeitura de São Paulo. Sou professor da escola pública da periferia de São Paulo. Sou artista e professor. Parto desses três princípios para refletir sobre a provocação que me foi feita e que carrego comigo a cada vez que piso no chão cimentado das escolas onde trabalho: qual é a escola pública que acredito? Como um primeiro movimento de reflexão, sugiro que pensemos justamente no caráter público da escola pública. Eu luto por sua existência pública. Escolas que todas e todos possam habitar, criadas em comunidade. Como nos ensina bell hooks criar uma “comunidade pedagógica” (HOOKS, 2017, p.173) para, coletivamente, oportunizar o encontro de corpos, saberes, vivências e pesquisas, numa escola inventada para experimentar a própria vida. A escola que desejo e acredito é uma escola com menos grades e mais plantas, com menos paredes e mais espaços comunitários. Uma escola onde podemos escutar nossas crianças e jovens e criar junto delas as aulas que queremos ter. Uma escola onde sejam contratadas muito mais professoras e professores, para que ninguém precise se sobrecarregar de tarefas a ponto de não ter energia para preparar uma aula. Uma escola em que as salas de aula tenham menos estudantes, para que possamos escutar e valorizar o universo que cada pessoa é, acompanhando assim o processo de aprendizado de cada ser, com seu tempo, desafios e potencialidades. A escola que sonho e acredito é uma escola onde professoras e professores são mais felizes. E são mais felizes porque têm condições adequadas de trabalho. Uma escola repleta de materiais para as criações artísticas; com salas adequadas para práticas corporais; com menos burocracia; com espaços adequados de formação docente; com momentos para que professoras e professores possam planejar aulas coletivamente; com melhor remuneração para que não precisemos acumular dois, três, quatro cargos; com mais horas remuneradas para o preparo de aulas; com menos turmas para cada docente; com psicólogas para atender a estudantes e trabalhadoras da educação. Uma escola habitada não apenas por estudantes, mas também por suas famílias. Uma escola 38 que valorize as criações artísticas de suas professoras, que estimule as pesquisas poéticas docentes, com menos punição e vigilância e mais parceria. Uma escola onde possamos inventar novos rumos para o mundo, mas também aprender as sabedorias dos povos que vieram antes de nós. A escola que sonho e luto é uma escola onde a avaliação do trabalho que desenvolvemos não se dá por uma prova sem sentido aplicada aos alunos no final do ano, mas sim é vivida enquanto processo e com real engajamento em busca das melhorias de qualidade de ensino. Uma escola onde nós, professoras e professores, priorizamos os instantes de escuta e afeto; nos recusamos ao autoritarismo; enfrentamos a burocratização e o sucateamento em busca da vida; nos indignamos e lutamos contra as estruturas opressoras e preconceituosas; rompemos e soterramos a colonialidade que ainda nos assombra. Sonho, desejo, acredito e luto por uma escola onde professoras e estudantes trocam e aprendem juntas, com mais alegria e menos violência, com mais vida e menos desencanto. Uma escola onde a multiplicidade de saberes é valorizada, e os ensinamentos indígenas e quilombolas misturam-se às sabedorias das crianças, inventando um mundo novo para a gente viver por entre as paredes das salas de aula. Uma escola repleta de corpos rebeldes e indisciplinados, onde o corpo docente se entende como um corpo brincante. Um espaço para compartilhar nossas trajetórias, nossas vulnerabilidades, nossas histórias pessoais. Um lugar onde o neoliberalismo, que se apossa tanto de nossos discursos, é destronado. Onde as aulas não são vistas como mercadoria. Onde a comunidade escolar rompe os muros da escola e troca com a comunidade do bairro, com a cidade. Uma escola em que o saber não está apenas nos livros didáticos, mas essencialmente em nossas experiências diárias. Uma escola mais artística, cheia de projetos multidisciplinares. 39 O Jardim das Lagartas -Felipe Michelini Um dia eu estava em uma escola estadual da zona norte de São Paulo, fazendo um trabalho em conjunto com a professora de artes de lá. Eu cheguei para dar aula junto com a professora, mas algo não ia bem. Quatro meninos não queriam fazer a aula e também não estavam colaborando para que ela acontecesse. Enquanto a professora tentava fazer uma atividade com a turma, os meninos só queriam saber de brincar, tentando meios de chamar a atenção. Esses meninos já haviam sido taxados pelas professoras da escola como os meninos terríveis, que não fazem nada, que só sabem bagunçar. Ao me deparar com aquela cena, fiquei pensando em como a escola e esse modelo de educação não contempla estudantes. Mesmo nas aulas tidas como as mais divertidas, como a aula de artes. Então, propus à professora que eu pudesse sair da sala de aula com os quatro, enquanto ela continuava com quem queria fazer a atividade. Fiquei pensando em como era terrível esse sistema educacional que obrigava todas as crianças a ficarem horas e mais horas sentadas copiando tarefas da lousa. Talvez os meninos só quisessem brincar. Saímos, eu e os quatro. Perguntei a eles o que queriam fazer, e eles responderam: - Vamos andar pela escola. Para surpresa deles, eu respondi: - Está bem! Começamos a andar, às vezes correndo, às vezes caminhando. Eles ficavam impressionados quando eu corria também. Acho que pensavam: “E professor pode correr?”. Até que chegamos em um jardim que havia na escola. 40 Ao chegarem no jardim, os garotos começaram a querer arrancar as plantas que estavam no chão. Acho que a revolta com aquele ambiente disciplinar era tanta que eles tinham vontade de destruir tudo. E quantas vezes nós também não queremos? Mas aquilo me incomodava. Seria justo que fizessem isso com as plantas do jardim? Aquela atitude de destruição de um dos poucos espaços de vida naquele lugar me afetou. Então, eu propus um desafio, uma brincadeira: - Eu duvido que vocês sejam capazes de encontrar os seres vivos que moram aqui. Os quatro pararam, me olhando. Ficaram surpresos com minha fala. E, prontamente, iniciaram suas descobertas. Começaram a olhar, a buscar. Mudaram um pouco sua relação com aquele lugar. Até que, inesperadamente, um dos meninos parou, completamente imóvel, olhando para o chão, e chamou a todos nós: - Gente, olha o que eu achei! Fomos todos rapidamente até onde o menino estava e, de repente, algo maravilhoso aconteceu. O tempo suspendeu. O mundo parou. Quando dei por mim, estávamos nós cinco agachados, imóveis, olhando para uma pequena lagarta colorida que se movia com delicadeza no meio das plantas. Foi um momento de conexão profunda que vivemos juntos. Um momento de comunhão. Silenciamos. O mundo silenciou. Ficamos ali imóveis por alguns minutos, maravilhados com o mover-se daquele bicho. Encantados com as cores, com a delicadeza. Por um momento Bolchevicky, 2022 41 respiramos a mesma respiração. Eu, e os meninos. Os meninos, e eu-menino. Encantados pelo prazer de descobrir o mundo. Pela possibilidade de nos conectarmos com os mistérios do mundo. Como podia um bicho daquele existir com tamanha boniteza? Imediatamente os meninos começaram a procurar por outros vestígios de vida ali. Iniciaram sua busca pelos espaços de vida na escola. E encontraram muitas outras lagartas caminhando pelo jardim. Agora sem mais a vontade de destruí-lo, mas de protegê-lo. Havíamos passado, juntos, pela transformação da lagarta. Ficamos encantados. A lagarta nos conectou, por um momento de comunhão. Uma metamorfose. Assim, o tempo passou e logo soou o sinal de fim de aula. Na outra semana, logo quando entrei na sala de aula, os meninos disseram: - Prô, vamos no jardim das lagartas? - Jardim das lagartas? – eu perguntei sem entender. - É! Agora a gente chama aquele lugar de jardim das lagartas! Vamos lá, por favor! Queremos mostrar para o resto da turma! Fomos, levamos a turma inteira. Todas e todos a observar lagartas. E essa foi a aula. Aprendemos mais que em qualquer matéria. 42 “É, e eu também quero aprender Escrever, ler e somar, Subtrair e dividir, fazer conta de somar, Não quero diminuir, o bom é só multiplicar, ia-iá” Jackson do Pandeiro8 8 PANDEIRO, do Jackson. Quero aprender. Álbum Nossas Raízes, 1974. Disponível em: https://youtu.be/KWTJz5C3t_o. Acesso em 22 dez. 2022. https://youtu.be/KWTJz5C3t_o 43 5.3 IMAGINANDO ESCOLAS MAIS VIVAS -Naíla Souza Segunda-feira, agosto de 2022, final de um dia agitado na escola. Escrevo como professora / artista / historiadora / observadora, - ora atenta, ora cansada, - de crianças de 6, 7 anos. É hora do recreio e estou observando minha turma de 22 crianças de 6 e 7 anos brincarem. Desvio o olhar por segundos para checar algo no celular e ouço meu nome, dita por uma voz de adulto, dizendo que tinha acontecido uma coisa séria que precisava da minha intervenção. Beatriz e Julia, meninas de 7 anos, pintaram uma das paredes da escola com lápis de cor. Escuto com atenção aquelas palavras adultas que demoram um pouco para tomar um sentido exato em minha cabeça a ponto de se organizarem em uma ideia de ação para resolver essa questão. No primeiro instante acho engraçado, e confesso que aprecio um pouco as pequenas subversões que as crianças por vezes fazem sem ao menos saber que estão transgredindo regras. Crianças são boas nisso, em questionar e às vezes me pego tentando explicar e dar sentido para algumas delas, e falho. Eu sabia que de acordo com as regras da escola, aquela atitude, independente do motivo, estava errada. Eu, como mediadora dessas regras, deveria resolver, fazendo-as limpar e entender que aquilo não podia ser feito. E por que não poderia? Vou até elas, dobro os joelhos, agachando-me até ficar na altura dos desenhos e das duas meninas que esperavam sentadas uma bronca. Pergunto que ideia elas tiveram quando decidiram desenhar nas paredes e Beatriz me olha e diz que elas apenas queriam Confesso que a nova parede cinza, recentemente pintada na última reforma da escola, também não tinha me agradado, e que concordava, em meu íntimo, que pintar era uma boa ideia. Registrar e pintar nas paredes é uma atividade humana ancestral exercida muito antes da transformação das paredes em propriedades privadas. Nós temos a capacidade de ler a realidade, de elaborá-la e de transformá-la, de interferir e a pensar esteticamente sobre ela. Penso que o ato de intervir e desenhar nas paredes da escola significava também apropriar-se dela. E as crianças, com a liberdade e a autonomia de quem existe e se expressa no mundo, olharam para a escola e pensaram que ficaria mais bonita se desenhassem nas novas paredes cinzas. Lembro de mim na escola, nas paredes sempre super fechadas, cheia de portões, e sempre, sempre pichadas. Nomes, conversas, desenhos, xingamentos. Pintar a parede era quase como uma forma de dizer sobre, de revelar, de gritar, de afirmar existências que eram negadas nesse espaço de diversas formas. 44 Bolchevicky, 2022 45 Voltemos para o relato e para sua resolução, que seguiu as regras existentes no ambiente escolar. Mantive uma postura séria e fiz o que era de mim esperado: conversei em tom de bronca, pedindo que respeitassem as imponentes paredes cinzas da escola, que eram coletivas, e não podiam ser tomadas por vontades individuais. Minha ação podia ser enquadrada numa noção de política, por dizer sobre o coletivo e suas regras, porém, reproduzia também uma ação policialesca, mantendo a ordem e proibindo. Juntas, as duas esfregaram a parede até que os desenhos sumiram e ficaram apenas leves marcas. Voltei para casa querendo ter coragem de lançar cores sobre as paredes cinzas da escola e incomodada com não ter encontrado outro caminho, outra resolução, ainda mais na velocidade e urgência que o tempo da escola dita, que fizesse mais sentido com o que eu acredito que a escola deve ser. Esse relato é apenas um dos infinitos pequenos acontecimentos diários que atravessam meu caminho na escola todos os dias, me revelando, cada um deles, momentos em que conseguimos, enquanto coletivo, praticar e imaginar outras possibilidades de escolas que questionam a estrutura hierárquica, mecânica, mercadológica e colonial enraizada nessa instituição, e momentos em que reproduzo e cedo à essa mesma lógica. Em uma autocrítica, tento me aproximar e entender que elementos constituem a escola que desejo, que acredito, que quero construir e, para isso, me volto primeiro às referências de escola que tive em minha formação na Educação Básica. Escolas essas congeladas, presas à sua arquitetura de grades, de muitos portões, de contenção, com um sinal e uma mobília em excesso que faz com que não consigamos nos mexer muito além das carteiras. Podemos perceber uma continuidade da lógica de controle e dominação dos corpos que a escola exerce e sua proximidade com as instituições disciplinares, escola, prisão e quartel, que se desenvolveram durante a Idade Média, que, como aponta Deleuze (2006) se aprimoraram e se deformaram no decorrer da transição das sociedades disciplinares para as de controle, sem alterar, no entanto, sua função básica de dominação e controle, suprimindo ou domesticando os corpos e os comportamentos divergentes. O lugar do corpo na escola é também ditado por essa lógica de controle, se expressando, por exemplo, pelo modo de organização dos corpos no espaço escolar, por meio de elementos arquitetônicos ou físicos do ambiente, sejam as cadeiras enfileiradas e lousas dispostas de tal modo que exigem que os olhares dos alunos estejam direcionados obrigatoriamente para o professor; o sinal sonoro que rege o ritmo das atividades pedagógicas; a paisagem sonora marcada pelos silêncios e falas autorizadas segundo uma ordem hierarquizada, elementos esses que determinam um modo de existir e se movimentar nesse espaço. Masschelein e Simons (2013) afirmam que a escola atual, do controle e da disciplina — também mercadológica, funcional, técnica, do rendimento, da homogeneização —, é uma escola desescolarizada, pois nega a gênese do seu significado inicial, que decorre da palavra 46 skholé (de tradução mais comum “tempo livre”). Para eles, a escola é um projeto radical que se propõe a democratizar o “tempo livre”, este sendo um tempo que não é voltado para a produção ou para a família. E ao separar a criança do tempo da produção e do tempo familiar, e apresentá-la ao mundo, conhecendo-o, pode se abrir a possibilidade de quando adulta, de renová-lo e transformá- lo. Nesse sentido, o primeiro papel da escola seria o de fornecer “[...] a todos, tempo e espaço de sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo.” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 10) Diante de um cenário de educação mercantilizada, e partindo do pressuposto da necessidade de defesa de uma escola tal como a descrita por Masschelein e Simons (2013), comprometida com a emancipação, livre de interesses mercadológicos e meramente funcionais, desejo uma escola que subverta e resista a essa lógica de controle e se dedique a criar uma relação mais integrada do corpo/vida, uma escola que assim como Paulo Freire (2004) afirma, seja necessariamente construída dialeticamente, onde o educador e o educando sejam sujeitos do processo do conhecimento; mobilizando processos de atuação política por meio da compreensão, da problematização, da intervenção e da transformação da realidade. Uma coordenadora de uma escola em que trabalhei me perguntou um dia “que carência” eu sentia para querer tanto que os estudantes gostassem de mim. E bell hooks (2017) me abraçou ao dizer sobre a possibilidade da construção da sala de aula como um lugar de entusiasmo, de desejo, gerado pelo esforço coletivo. Me ensinando, assim, um pouco mais sobre a escola que acredito. Podendo celebrar “um ensino que permita as transgressões- um movimento contra as fronteiras e para além delas.” (HOOKS, 2017, p. 24). Uma educação como prática da liberdade. Liberdade, essa que para Sílvio Gallo (1990), tem centralidade ao discorrer sobre a pedagogia libertária e as experiências das escolas anarquistas, que tem como objetivo: “educar a pessoa para que ela seja o que realmente é. Consciente de si mesmo, de suas singularidades, de suas diferenças e da importância de seu relacionamento com o grupo social para a construção coletiva da liberdade.” (1990, p. 115 e 116). Uma escola onde o mundo seja apresentado de uma forma próxima da vida. Que subverta a política de desencantamento e não gere conformidade, como afirma Luiz Rufino (2017), e que tenha como seu radical a descolonização. A escola que eu desejo ainda está se desenhando no meu imaginário e na minha prática, sempre de forma coletiva com muitos corpos inteiros pensando e testando esse fazer. E como na música “quero aprender”, do Jackson do Pandeiro, também acho que às vezes o bom é só “multiplicar, iá-iá.” 47 “PROFESSOR: é uma pessoa que não se cansa de copiar.” Maria José Garcia, 8 anos9 9 NARANJO, Javier. Casa das estrelas. O universo pelo olhar das crianças. Planeta do Brasil, São Paulo, 2018, P.35. 48 5.4 O ONTEM REFLETIDO HOJE -Talita Silva Estudei em uma escola cuja sigla era PPA, popularmente divulgada como “Prisão Para Aluno” ou “Prisão Para Adolescentes”. É enorme, com cerca de 20 salas de aula e atende em todos os períodos. Falávamos o tal “significado” aos risos, justificando que a razão era as muitas grades e portões que nos cercavam. Era a unidade de ensino público mais próxima da minha casa e eu estava na “pior turma” do 6º ano. Minha mãe que já tinha trabalhado lá anteriormente conhecia os profissionais que me davam aulas, recebeu assim a informação que a turma era terrível e como recomendação ela deveria trocar a filha de sala, pois esse 6º ano não queria nada. Crianças de 10, 11 anos não queriam nada. Por ser filha de professores, sempre tive a escola para além do estudo, ia visitar onde meus pais trabalhavam, conversava com outros professores e era incluída na tão reservada sala dos professores. A sala dos professores é o lugar seguro para compartilhar pensamentos que, fora dali, talvez não fossem bem interpretados, podendo ser questionados e levados para uma discussão mais profunda, mas nesse espaço isso não acontece. Um ambiente confortável onde tudo pode ser dito sobre os estudantes, inclusive violências que não deveriam ser ditas sobre ninguém. De tanto ser repetido que os estudantes nada querem, acabou talvez vazando a informação pelos corredores das escolas e agora que estou nesse espaço como professora, escuto dos próprios estudantes que um dos maiores problemas da escola são os alunos que não querem nada. O que é não querer nada? Qual a razão dos estudantes não quererem o que a escola oferece? Talvez o que esses estudantes tanto desejam seja uma escola diferente. Quando terminei meu período de estudos no ensino fundamental II naquele local, notei que além das limitações estruturais que nos organizavam dentro do espaço, também havia uma distância física e afetiva frequente entre os profissionais e os estudantes que ali conviviam. Percebi que não lembrava do rosto da diretora, pois só tive a oportunidade de vê-la durante a colação de grau na formatura. As salas de aula eram separadas por muitas camadas de fechaduras até chegar ao local onde os gestores escolares trabalhavam. Era tudo muito longe, era difícil alcançar as pessoas, era praticamente impossível sentir conforto e acolhimento em um ambiente áspero, frio, que por si só afastava. Se parece uma prisão, a vontade é fugir. 49 Fotos da parte de dentro de portas das cabines do banheiro feminino na Escola Estadual Jardim das Rosas, tirada por Talita Silva e Naíla Souza. 50 Acredito que houve uma quebra de expectativas ao vivenciar isso, pois era uma criança de 11 anos que estava trocando de escola, se esforçando para conhecer pessoas novas e conviver com tantos professores diferentes. Anteriormente havia tempo de ler, de tomar sol, de ver um tucano na janela da sala de aula, saladas de fruta, carimbo de cenoura e beterraba, construir cartazes e fazer uma manifestação gritando com toda a voz pela economia de água na rua. Tudo ficou para trás, a porta se fechou e muitas grades foram avistadas à frente. E assim “logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência, não o desejo ardente de aprender” (HOOKS, 2017, p. 12). Apesar do corpo ativo que chegou com vontade e curiosidade ao aprender, o ambiente o fazia frequentemente letárgico. Lembro-me de poucos momentos de aprendizado vividos nessa instituição e estes percebo hoje que foram na maioria os que me senti livre: poesias sentada no pátio, fechar os olhos e conseguir ouvir os carros na rua, a gincana que corri e meu grupo não ganhou e sorri, rodas de conversa que não me recordo bem da conversa, mas sim de como com o tempo ficou rápido fazer um círculo de cadeiras, principalmente quando todos concordam e colaboram para que este fosse feito...É bom ter memórias boas, mesmo que mínimas. Memórias que parecem um resgate, que se pudesse voltaria e viveria novamente. Elas infelizmente são minorias, entretanto, nesse ambiente, aprendi muito sobre o tipo de professora que eu não queria ser e me fez refletir sobre o que realmente espero da minha prática docente. (...) É interessante observar que a minha experiência discente é fundamental para a prática docente que terei amanhã ou que estou tendo agora simultaneamente com aquela. É vivendo criticamente a minha liberdade de aluno ou aluna que, em grande parte, me preparo para assumir ou refazer o exercício de minha autoridade de professor. Para isso, como aluno hoje que sonha com ensinar amanhã ou como aluno que já ensina hoje, devo ter como objeto de minha curiosidade as experiências que venho tendo com professores vários e as minhas próprias, se as tenho, com meus alunos. O que quero dizer é o seguinte: não devo pensar apenas sobre os conteúdos programáticos que vêm sendo expostos ou discutidos pelos professores das diferentes disciplinas, mas, ao mesmo tempo, a maneira mais aberta, dialógica, ou mais fechada, autoritária, com que este ou aquele professor ensina. (FREIRE, 2021, p. 87). Quando percebi que não conseguiria escapar do caminho da educação e pude colocar em prática o que tenho aprendido na universidade, refleti muito sobre essas lembranças e apagamentos para tentar compreender como gostaria de trabalhar, para que eu possa ser a professora que eu mesma me lembraria positivamente. Coincidente, essa semana, dia 30 de agosto de 2022, estava em uma turma do 1º ano do ensino médio como professora eventual e um estudante solicitou “Eai, fessora! Posso ir usar o ‘boi’?” eu, sem entender questionei o que significava, ele apenas repetiu, rindo disfarçadamente da minha ignorância, perguntei novamente reafirmando que não estava entendendo o pedido, ele então diz “Banheiro, professora”, curiosa como sou indaguei porque tinha utilizado outra palavra e um colega responde por ele: “É porque nois 51 tá na cadeia”. Pesquisando na internet, encontrei sites de dicionários informais e descobri que “boi” ou “boca do boi” é uma gíria utilizada em presídios brasileiros para se referir ao local onde os detentos fazem suas necessidades fisiológicas, é basicamente um buraco aberto sem vaso sanitário sobreposto. Me chocou essa percepção sobre a escola e comparação tão direta com uma prisão e no meio dessas investigações descobri por acaso um jogo chamado “Escola ou prisão” idealizado e desenvolvido por um estudante universitário brasileiro chamado Victor Maristane, onde este coloca imagens de escolas e presídios definindo como missão aos jogadores conseguir diferenciar educação de detenção. E apesar de ter consciência da semelhança desses espaços, ainda assim me surpreendi com as confusões que criei tentando acertar no jogo. Depois de inúmeras tentativas: venci. Nunca fiquei tão triste por ganhar um jogo. Certa vez, nessa mesma turma também como professora eventual entrei primeiro na 4ª aula, estava empolgada, eles participaram de forma ativa e ao sair avisei animada que voltaria na última aula para continuarmos. Ao retornar à sala de aula a porta parecia trancada, perguntei para a inspetora se os estudantes estavam em algum outro local da escola, esta afirmou que não, que eles estavam ali dentro. A porta tem um defeito na fechadura, portanto, não trancava automaticamente pela parte interna como as outras. Ao empurrá-la levemente percebemos carteiras e cadeiras empilhadas que impediam nossa entrada. Não ouvíamos nenhum ruído do interior da sala, era como se não tivesse ninguém ali. Avistamos um dos estudantes vigiando nas janelas de vidro que ficam na parte superior da parede virada para o corredor, assim confirmamos que havia vida naquele espaço. Precisamos lidar com aquela situação, então depois de comunicar a coordenação e direção sobre o que estava acontecendo, a decisão tomada foi esperar o tempo deles, em algum momento iriam conceder a minha entrada. Sentei no corredor e esperei pacientemente. 12:20h, exatamente 15 minutos antes de bater o sinal de saída, a porta se abre e sou recepcionada com sorrisos calorosos, entro também sorrindo. Achei interessante a atitude que tomaram, um ato grande de questionamento do espaço e liberdade, perguntei para eles então como foi a experiência, como se sentiam e porque aquilo foi feito. A primeira coisa que se preocuparam em me perguntar foi: “Professora, você tá brava?", eu respondi que não e ainda assim se desculparam e justificaram a manifestação com "preferíamos não ter aula do que ter uma aula eventual”. Eu poderia ter ficado irritada, chutado a porta e gritado muito, como professoras disseram que fariam depois que compartilhei o ocorrido na sala dos professores, mas entendi a revolta, tentei me colocar no lugar deles que estavam desde o início do ano letivo sem professor(a) de química e biologia, meses sem essas disciplinas, portanto minha aula de certa forma já nem era mais tão “eventual” assim, já que nos encontrávamos com frequência. Os vi com desejo de estar com outra pessoa, ou em outro lugar, de estarem sozinhos, entre eles, fazendo o que eles querem e isso com certeza não era “nada”. 52 “A escola transformadora não suprime a rebeldia e nem a condena de antemão. Ao contrário, busca desvelar suas causas, canalizando o rancor destrutivo para o questionamento das injustiças e propondo ações para sua transformação. A raiva e a rebelião são entendidas como parte do processo para a formação de indivíduos autônomos, capazes de crítica e reflexão.” (RATIER, 2019, p. 156). Foi como se ao estar com eles visse um reflexo meu naquela idade, onde mesmo sem consciência já questionava a escola, a sala de aula e suas estruturas de dominação. Estava naquele momento em um papel de autoridade que foi de certa forma violada, e poderia interpretar tudo aquilo como um simples ato de desrespeito punindo-os e reprimindo as vontades, mas, diferente disso, busquei inicialmente tentei entender o que levou aquilo a acontecer, para assim conseguir levar com eles um trabalho futuro diferente, com referências de estudantes que se manifestaram, discutir os anseios e aquilo que está reprimido, indicar direcionamentos para esse sentimento e formas de expressar isso. Eu não estava brava, estava orgulhosa. A estrutura acaba por indiretamente ditar comportamentos e como se deve estar nesses espaços. A rebeldia daquele momento foi a forma que encontraram de demonstrar seus afetos, naquele dia era raiva e revolta nutridas de vontade de se rebelar. Se o espaço escolar gera a sensação de aprisionamento, é compreensível não querer estar nele. De certa forma é também um grito por mudança. 53 Luan Luando10 10 LUANDO, Luan. ALICATE. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1119358-conheca-o-trabalho-de-novos- artistas-da-quebrada.shtml. Acesso em 22 dez. 2022 “Pra toda terra arada Existe uma enxada. Pra todo terreno desocupado Existe um cercado. E pra todo cercado um ALICATE” Quimera Volpato, 2023 https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1119358-conheca-o-trabalho-de-novos-artistas-da-quebrada.shtml https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1119358-conheca-o-trabalho-de-novos-artistas-da-quebrada.shtml 54 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE COMO REINVENTAR A ESCOLA QUE TEMOS - Naíla Souza e Talita Silva A corporeidade desempenha um papel fundamental na constituição humana, e “[...] nos impele à necessidade de considerar que as instituições educativas promovam uma vivência saudável do corpo, com contextos, materiais e práticas que proporcionem situações e experiências desafiadoras, mas ao mesmo tempo seguras.” (SANTOS; LIRA, 2021, p. 84). No entanto, as instituições escolares têm imposto um controle corporal às crianças submetendo-as a atividades pedagógicas que limitam seus movimentos, como ao ficar sentado durante horas observando aulas expositivas. Santos e Lira (2021, p. 105) enfatizam a importância dos estudos voltados à corporeidade, ao declararem: “Elemento primordial de nossa vivência, o corpo é atravessado por diversas experiências e práticas desde que nascemos, e problematizar como isso acontece nos contextos escolarizados é de suma importância.” Esses autores afirmam, ainda, que a dança se revela como forma de resistência às estratégias de controle dos corpos no espaço escolar: Frente ao cotidiano regulado e constritivo, a dança é reconhecida como a oportunidade de aprender por meio das experimentações, configurando-se com uma forma de falar com o corpo inteiro e atuando na promoção de uma educação que contribui para a formação de crianças e adultos críticos e conscientes de si e da sua cultura. [...] Configura-se, nesse sentido, a dança como uma pedagogia vital que se conecta com a vida das crianças, incluindo sua temporalidade e abarcando seus repertórios pessoais, acolhendo-as e valorizando-as como sujeitos de direito que são. (SANTOS; LIRA, p. 105-106) Portanto, pensar e refletir sobre as dinâmicas coreográficas e do movimento na escola, transpondo e estabelecendo um diálogo entre performance, educação e escola, pode possibilitar, a partir do recorte do corpo e do movimento, a compreensão de certas mazelas que atingem o Ensino Público Brasileiro, bem como vislumbrar caminhos que conduzam a mudanças positivas quanto à formação crítica das crianças. E estudar e experimentar outras possibilidades de ocupação, permanência e coreografia da escola é também refletir sobre a necessidade de transformá-la, de (re)apropriá-la de seu devir, e re-aproximá-la de suas origens; é imaginar e criar outras possibilidades de dança contra-hegemônicas; [...]é uma possibilidade de tentar entender e investigar – na cidade, no corpo, na escola – que valores de moralidade imperam em nosso tempo e de que modo podemos provocar pequenos golpes de deslocamentos – nos corpos, na atuação docente – capazes de provocar distanciamento crítico de modelos hegemônicos que não desejamos reproduzir. (ANDRÉ, 2017, p. 84) Buscando nos experimentar como docentes, propusemos guiar dois encontros conjuntos com quatro turmas do 6º Ano da Escola Estadual Jardim das Rosas, localizada 55 na cidade de Francisco Morato-SP, turmas estas onde Talita atua como professora titular da disciplina Projeto de Vida11 O primeiro encontro foi próximo ao recesso de outubro, portanto a escola estava muito mais vazia que o comum. Mesmo tendo sido avisados antecipadamente sobre o dia em que este aconteceria, boa parte dos estudantes preferiram antecipar os dias em casa, portanto a média de participantes presentes eram 10 adolescentes por turma. Escolhemos levar jogos que aprendemos em aula durante nossa graduação. Os seguintes jogos foram experimentados no primeiro dia: 11 Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/implementacao/praticas/caderno-de-praticas/aprofundamentos/200- projeto-de-vida-ser-ou-existir. Acesso em: 10 de jan. 2023. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/implementacao/praticas/caderno-de-praticas/aprofundamentos/200-projeto-de-vida-ser-ou-existir http://basenacionalcomum.mec.gov.br/implementacao/praticas/caderno-de-praticas/aprofundamentos/200-projeto-de-vida-ser-ou-existir 56 57 Nosso segundo encontro foi realizado após o recesso, portanto tivemos mais participantes. Resolvemos então explorar para além da sala de aula: Buscamos nessas vivências apresentar e propor dinâmicas de movimentação no espaço escolar e de ocupação deste, incentivando processos de experimentação. A experiência foi bem acolhida pelos estudantes e pudemos notar características únicas e variadas de mover, pesquisar e enxergar o espaço. Ao se transformarem em “ninjas” os estudantes se engajaram e se divertiram muito, eram muitas risadas e concentração. Quase que instantaneamente, ao sair do jogo focaram a atenção em quem ainda permanecia nele, torciam pelos colegas. No jogo “Mímica” foi possível interpretarmos como eles enxergam lugares, espaços e pessoas. Chamou nossa atenção a palavra praia ter sido sorteada em dois grupos e interpretada de maneiras diferentes. Em um dos grupos a ação era correr da chuva no cenário praia, nessa configuração as personagens que estavam em cena iniciaram com corpos relaxados, curtindo o momento, felizes e finalizou realizando a ação. O outro grupo sorteou a personagem professora também no cenário praia, e ela, nesse momento que poderia ser de lazer estava trabalhando, escrevendo sem parar com semblante triste, enquanto em sua volta crianças brincavam, pessoas tomavam sol e conversavam. Inicialmente surgiu o pensamento “Até parece que o professor fica 58 trabalhando na praia”, mas refletindo sobre a cena surgiu o questionamento: quantos momentos de lazer professores precisam abrir mão para planejamento ou correção de atividades sem remuneração? Paulo Freire ao ser questionado em uma entrevista sobre que escola o Brasil precisa, responde: De uma escola séria, de uma escola rigorosa, mas ao ser rigorosa e séria, uma escola que criasse e sugerisse aos alunos a felicidade, a alegria. Que dizer, uma escola alegre, saltitante. Mas como é que a gente pode ter escolas alegres com professoras tristes? (...) acho que é preciso reorientar a política de gastos públicos nesse país, não é possível que uma professora ganha ainda o que ganha, enquanto outros profissionais dentro da estrutura burocrática do Estado ganha 10 vezes mais, essas distâncias salariais me chocam e isso vem desde que inventaram o Brasil. (FREIRE, 1993. 25:57min) Ao receberem as instruções do jogo “De olhos fechados”, foi perceptível um receio sobre o fato de sair pela escola sem enxergar. Em apenas uma das turmas houve reclamações sobre a falta de confiança nos colegas. Foi muito bonito admirá-los caminhando com cuidado, tocando as janelas, sentindo as paredes, comentando sobre alturas e temperaturas, descobrindo cadeados abertos em grades fechadas. Corpos tímidos e retraídos, extrovertidos e enérgicos andando, pulando e correndo de olhos fechados como nunca tinham feito. Foi realizada uma roda de conversa no último dia de encontro, nesse momento compartilharam suas sensações. A maioria percebeu os corredores e escadas como se fossem maiores, “demora pra chegar no fim”. Notaram grades no caminho que não tinham reparado, pelo menos não se lembravam delas. Pensavam estar em um lugar e na verdade estavam em outro. Um deles compartilhou com certeza: “A escola é fria e ecoa”. Nessa conversa expressaram também a vontade de seguir conhecendo outros pontos da escola, sugeriram fazer o mesmo exercício na parte externa, na quadra, lugares onde frequentam com menos frequência no dia a dia, demonstraram desejo por continuar a aprender sobre o espaço e cabe à escola estar aberta para ouvir e deixar que a voz deles ecoe. No documentário “Lute como uma menina”, a estudante Inaê Lima demonstra um sentimento parecido sobre uma experiência prática vivida durante a ocupação realizada em sua escola: Teve um dia que teve uma oficina de intervenção urbana onde a gente começou a conhecer os espaços da escola e começar a se perguntar “o que que é ocupar?”, “o que que é ocupação?”, “O que que é o seu corpo ocupar algum lugar no espaço?”. E nisso tudo a gente passou na escola na textura nas paredes e afins só que no final a gente se reuniu no pátio, deu 59 todo mundo a mão e com a intervenção a gente veio falando as opressões que vem rolando dentro da escola de não poder usar saia, não poder falar certas coisas porque você é barrado, você não poder expor sua opção sexual porque com certeza você vai ser julgado…então naquele dar de mão a gente começou a falar: eu posso ser menina e beijar meninas, posso ser menino e beijar meninos, eu posso ser livre, eu gosto posso ocupar minha escola, eu posso ser quem eu quiser. (40:52)12 É possível realizar práticas pedagógicas que quebram o ritmo acelerado e repetitivo das atividades escolares. Que causam reflexão, aproximam as pessoas e as fazem questionar o funcionamento do espaço. As práticas artísticas desenvolvidas na escola puderam provocar coreopolíticas, criando fissuras, ainda que momentâneas, e estabelecendo outras temporalidades e hábitos coletivos nas dinâmicas coreográficas do espaço escolar. Reconhecemos que a estrutura sucateada do ensino público básico no Brasil contribui para a desarticulação dos professores e para a reprodução de um ensino bancário, que não faz pensar. Temos muitas aulas para dar, muito trabalho para ser levado para casa, pouco tempo de aula, pouca formação contínua, pouco ou nenhum apoio psicológico, pouco tempo para planejar, muitas burocracias para cumprir, pouca remuneração, estrutura precária. Pelo fato de nossas instituições educacionais investirem tanto no sistema de educação bancária, os professores são mais recompensados quando seu ensino não vai contra a corrente. A opção por nadar contra a corrente, por desafiar o status quo, muitas vezes tem consequências negativas. E é por isso entre outras coisas que essa opção não é politicamente neutra. (HOOKS, 2017, p. 267) 12 Documentário Lute como uma menina. 2016. Link: https://youtu.be/8OCUMGHm2oA. Acesso em: 10 de jan. 2023 Porém, enquanto professoras que acreditam na necessidade da defesa da escola, na educação como prática da liberdade e como uma ferramenta de transformação do mundo, precisamos estar mais atentas à nossa responsabilidade de fazer com que esse espaço, ainda que pelas brechas, se aproxime do que sonhamos e desejamos coletivamente. Nos inspirando e correndo junto com professores que vêm desempenhando esse trabalho de imaginar e fazer outras escolas, como Natália Tazinazzo e Felipe Michelini nos compartilharam em seus relatos, e como compartilharam Paulo Freire, Bell Hooks, Masschelein e Simons e outros teóricos da educação que vêm imaginando processos pedagógicos transformadores e nos dando suporte para caminhar nesse chão da escola encontrando brechas para construir coletivamente um espaço de segurança em descobrir e viver quem se é; Para se mover de outros modos; Perguntar quando a dúvida vier, Questionar o que não concordar e propor; Uma sala de aula com estudantes que pensam, que falam, que tem voz, que tem corpo e se movem no chão que é seu; Nesse espaço que é público, E nosso. https://youtu.be/8OCUMGHm2oA 60 EDUCO PORQUE ACREDITO Educo por que gosto Da troca de sala de aula Educo por que sou educado Todo mundo que escuta, fala Aprendo mais que ensino e assim construo aulas Educo por que acredito Na mudança construída de mãos dadas Não educo por que é bonito Romantizar o ensino ignora o peso das palavras Me posiciono e não doutrino Para calar a boca de quem diz que se deve ser imparcial na fala Na briga do muro não fico em cima Prefiro ter um lado, endereço e casa Venho moldando chaves para os chaves da favela, saca? Educação é para abrir portas Se você ainda não entendeu isso? Tudo bem, mas repense e volte duas casas. Jéssica Campos13 13 CAMPOS, Jéssica. Educo porque acredito. 2022. 61 REFERÊNCIAS ANDRÉ, Carminda Mendes. O que pode a performance na escola? Cadernos CEDES [online]. 2017, v. 37, n. 101, pp. 83-106. Disponível em: https://doi.org/10.1590/CC0101-32622017168671>. ISSN 1678 7110. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622017168671. Acesso em: 10 jan. 2023. CAON, Paulina Maria. Ações artísticas na educação – a cena expandida em cenário expandido. Revista Brasileira De Estudos Da Presença. 2022, v. 10 n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237- 266095565. CASSIO, Fernando. Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2019. COLOMBINI, Flávio; ALONSO, Beatriz. Documentário Lute como uma menina! YouTube. 9 novembro de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA. Acesso em: 23 set. 2022. 1:16:18min. 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