ANA LÚCIA IARA GABORIM MOREIRA INICIAÇÃO AO PIANO PARA CRIANÇAS: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA EM CONSERVATÓRIOS DA CIDADE DE SÃO PAULO Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - UNESP SÃO PAULO 2005 ANA LÚCIA IARA GABORIM MOREIRA INICIAÇÃO AO PIANO PARA CRIANÇAS: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA EM CONSERVATÓRIOS DA CIDADE DE SÃO PAULO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, Mestrado, do Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração “Musicologia / Etnomusicologia” Data de aprovação: 04/04/2005 ____________________________________________ Profª Drª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada _____________________________________________ Prof.ª Drª Ilza Zenker Leme Joly ______________________________________________ Profª Drª Dorotéa Machado Kerr ANA LÚCIA IARA GABORIM MOREIRA INICIAÇÃO AO PIANO PARA CRIANÇAS: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA EM CONSERVATÓRIOS DA CIDADE DE SÃO PAULO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, Mestrado, do Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração “Musicologia / Etnomusicologia”. Orientadora: Profª Drª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. SÃO PAULO 2005 Ficha Catalográfica MOREIRA, ANA LÚCIA IARA GABORIM. Iniciação ao piano para crianças: um olhar sobre a prática pedagógica em conservatórios da cidade de São Paulo. / Ana Lúcia Iara Gaborim Moreira. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de Artes – Universidade Estadual Paulista - UNESP, 2005. Orientador: Profª Drª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada Área de Conhecimento: 8030300 - 5 - Música Área de Concentração: Musicologia / Etnomusicologia 1. Piano – Instrução e ensino. 2. Educação musical. CDD 780.7 Ao meu esposo Marcelo Fernandes, principal incentivador deste trabalho. Ao meu filho Erik, que só tem me dado alegrias. Aos meus pais, que desde o início motivaram e possibilitaram meus estudos musicais. À minha avó Amabile Seleguim Gaborim (in memorian), por seu exemplo de vida e por suas palavras de encorajamento que sempre se fizeram presentes, principalmente nos momentos mais difíceis. Agradecimentos A Deus, acima de tudo; ao meu pequenino Erik; ao meu esposo Marcelo; aos meus pais, Abel e Marina; às minhas tias Ana e Irene Gaborim; aos meus sogros, Emílio Paulo e Mariza; à minha orientadora, Profa. Dra. Marisa Fonterrada; à Débora Nieri, amiga e companheira nesta jornada; à Profa. Dra. Ilza Zenker Joly, docente da UFSCAR; ao Prof. Dr. André LuísRangel, pela orientação inicial; à Profa. Dra. Dorotea Kerr, pela compreensão e auxílio; à Profa. Dra. Glória Maria Ferreira Machado, pelo apoio; à Profa. Dra. Maria Helena Maestre Gios, pelo incentivo; à Thaís e Rosângela, da seção de Pós-Graduação da Unesp; à diretoria do Conservatório Musical Beethoven (São Paulo); à Profa. Ms. Miriam Suzuki, da UFMS, pela valiosa contribuição; à Neide Espiridião e colegas do Conservatório Villa-Lobos(Osasco); ao Renilson, funcionário da Casa Vitale, pelas preciosas informações; às minhas professoras de piano: Dulcinéia Barscevicius, Ângela Silvania Bello, Ana Cristina Rodrigues de Paula, Myriam Mangini Pereira e Valdilice de Carvalho; a todos os meus alunos, em especial à Vera Lúcia Russo, pelo interesse e colaboração e àqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização do presente trabalho. Agradecimentos Especiais Aos conservatórios visitados e às professoras entrevistadas: Conservatório Musical Anchieta Conservatório Musical Brooklin Paulista Conservatório Musical do Imirim Conservatório Musical Maraíza Conservatório Musical Leopoldo Miguéz Conservatório Musical do Morumbi Fundação Magda Tagliaferro Conservatório Musical do Butantã Conservatório Musical Mozart Conservatório Musical Souza Lima Conservatório Musical Villa-Lobos Profa. Diva Garbini Morano Profa. Maria Teresa Gonzaga Profa. Rosana Helena Padial Profa. Kátia Barrios Profa. Lourdes Fonsi Martuscelli Profa. Maria Ignes Carnetti de Andrade Profa. Sylvia Della Colletta Chiapetta Profa. Mônica Ajej Bonani Profa. Olga Molina Profa. Maria Aparecida Simões da Silva Profa. Yara Sisti de Vincenzo RESUMO Esta pesquisa desenvolveu-se a partir da experiência pessoal da autora, que detectava alto índice de desistência entre alunos dos cursos de piano, e teve por objetivo investigar as possíveis causas dessa evasão, bem como compreender a atual situação do ensino desse instrumento. Para atender às questões propostas, realizou-se um estudo em conservatórios da cidade de São Paulo, por meio de entrevistas e questionários aplicados a professoras de piano e diretores, entre os anos de 2003 e 2004. Esse estudo englobou o material didático utilizado, a organização das aulas, a formação docente e a estrutura oferecida pelos conservatórios. Além disso, investigou-se a história do ensino do piano no Brasil, desde o século XIX, e os métodos e recursos utilizados pela pedagogia pianística a partir da década de 1930. A partir desse estudo, apresenta-se o resultado das reflexões da pesquisadora a respeito da pedagogia pianística, tal como praticada hoje em conservatórios paulistanos, acentuando-se as questões relacionadas ao peso da tradição presente nesse ensino e à necessidade de se responder aos desafios da época atual. Com isso, espera-se que esta pesquisa possa contribuir para a melhoria da qualidade do ensino do piano no Brasil. Palavras-chave: Piano, conservatórios; educação musical. Área de Conhecimento: 8030300 – 5 - Música. ABSTRACT This research has been developed from the personal experiences of the author when noticing the high level of abandonment during the piano course by the students. Since then, it has been the objective of this project to investigate the possible causes of this evasion as well as to comprehend the actual situation of teaching piano in Brazil. It has been realized a study in conservatories at the city of São Paulo to attend to these questions, based on interviews and questionnaires applied to piano teachers and directors in the period of 2003-2004. This study has embraced the didactical materials used, the organization of the classes, the faculty and the structure offered by the conservatories. Besides that, it has been investigated the history of piano teaching in Brazil since century XIX and also the methods and resources used in piano pedagogy since 1930. From this perspective, this study has introduced the result of reflections in piano pedagogy by the author as it has been practiced today in the conservatories in São Paulo. This study has deepened in questions related to the traditional education of piano, in the need to answer challenges of this education nowadays and in the training of the faculty looking forward to contribute to the advance in the quality of the piano courses in Brazil. SUMÁRIO Introdução 01 1. OS PRIMÓRDIOS DO ENSINO PIANÍSTICO NO BRASIL 10 1.1. Precedentes 11 1.2. A ascensão do piano na sociedade imperial 15 1.3. A criação dos conservatórios 20 1.4. A influência da música popular 24 1.5. A situação dos conservatórios no século XX 32 2. PEDAGOGIA PIANÍSTICA NO SÉCULO XX – OBRAS DIDÁTICAS 41 2.1. A escola moderna 42 2.2. A atuação do professor 46 2.3. Técnica do peso do braço ou “escola natural do peso” 51 2.4. Estudo individual (preparo técnico) 54 2.4.1. Análise da obra 55 2.4.2. Repetição e memorização 57 2.4.3. Ritmo 58 2.4.4. Sonoridade 60 2.4.5. Interpretação 61 2.5. Especificidades do ensino para crianças 65 2.6. Livros Didáticos – um breve histórico 68 3. UM PANORAMA ATUAL DOS CONSERVATÓRIOS PAULISTANOS 87 3.1. Características Gerais 88 3.2. Corpo docente 93 3.3. Métodos Ativos de Educação Musical 96 3.3.1.Método Dalcroze 100 3.3.2.Método Willems 102 3.3.3. Método Kodály 105 3.3.4. Abordagem Orff 107 3.3.5. A Musicalização e a iniciação ao piano 109 3.4. Projeto pedagógico 111 3.4.1. A relação entre os Programas de Ensino e os Referenciais Curriculares Nacionais para o Ensino Profissionalizante 113 3.4.2. Os novos desafios para a aula de piano 119 4. UM ESTUDO SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA 124 4.1. Organização das aulas 125 4.2. Critérios de escolha do material didático 144 Considerações Finais 164 Bibliografia 170 Anexos 182 Anexo A - Síntese dos questionários aplicados aos diretores dos conservatórios 183 Anexo B - Síntese das entrevistas realizadas com professoras de piano dos conservatórios (estrutura das aulas) 192 Anexo C - Transcrição das entrevistas com professoras de piano 194 LISTA DE FIGURAS Figura 1.1. Capa do “Compêndio de Música e Methodo de Pianoforte” de José Maurício Nunes Garcia (apud FAGERLANDE, 1996, p.99)..............14 Figura 1.2. Regras para formação dos tons e primeira lição do “Méthodo de Pianoforte”, de José Maurício (apud FAGERLANDE, 1996, p.124).........15 Figura 1.3. Anúncio no “Correio Paulistano” (apud REZENDE, 1954, p.264)................19 Figura 1.4. Capa do”Álbum pitoresco musical” (cópia gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Paulo Castagna)............................................................. 25 Figura 1.5. “Álbum pitoresco musical”- primeira página da polca “Glória”, composição de Eduardo M. Ribas (cópia gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Paulo Castagna).........................................................................26 Figura 2.1. Primeira lição do “Novo método para piano” (SCHMOLL,1996, p.12)........69 Figura 2.2. Primeira lição de “Aventuras no país do som” (STEWARD, 1935, p.16)......71 Figura 2.3. Primeira lição de “Piano course” (FLETCHER, 1995, p.10).........................73 Figura 2.4. Lição 15 do livro “Ludus Brasiliensis 1” (WIDMER, 1966, p.8)...................74 Figura 2.5. Primeira lição do “Método de iniciação ao piano” (ARICÓ JR., 1977, p.5)....................................................................................75 Figura 2.6. Primeira lição do “Piano Básico” (BASTIEN, 1997, p.8)..............................77 Figura 2.7. Primeira lição de "Alfred’s basic piano library – Lesson Book, level 1A (LETHCO, MANUS & PALMER, 1988, p.8)………..78 Figura 2.8. Lição do “Caderno Preparatório” (DRUMMOND, 1988, p.22)...................79 Figura 2.9. Primeira lição de “Palitos Chinos” (GAINZA, 1987, p.12)...........................80 Figura 2.10. Lição de “Tecla en tecla” (TUÑEZ & ZABALA, 2003, p.37).....................81 Figura 2.11. Atividade do livro “Piano Brincando” (FONSECA & SANTIAGO, 1993, p.17)...............................................................................83 Figura 2.12. Lição no 5 de “Europäische klavierschule” (EMONTS, 1992, p.32)............84 Figura 2.13. Lição no 7 de “Divertimentos” (LONGO, 2003, p.30)..................................85 LISTA DE TABELAS Quadros 1, 2 e 3 – Caracterização dos conservatórios consultados ....................................91 Quadro 4 - Livros adotados nos conservatórios pesquisados............................................146 1 INTRODUÇÃO 2 Após alguns anos de experiência como professora de piano, pude constatar um quadro desconcertante que, em um primeiro momento, levou-me a um certo desânimo e ceticismo quanto à profissão: a evasão dos alunos de piano, isto é, a grande quantidade de alunos, principalmente crianças, que desistem do estudo antes mesmo que o trabalho comece a despontar. Por mais paradoxal que possa parecer, o que me trouxe alento nesse período foi a constatação de que este não era um problema particular de minha didática, mas generalizado, pois ocorria com muitos colegas e em muitas escolas. Ao tomar consciência de que estava praticamente repetindo os procedimentos empregados por meus professores, e de que isso precisaria ser mudado, percebi a necessidade de desenvolver uma pesquisa que melhor aclarasse a natureza do problema, suas implicações e, naturalmente, que me ajudasse a buscar alternativas para solucioná-lo ou reduzi-lo. Para investigar essas questões de maneira sistemática e reflexiva, aproximei- me de escolas de ensino de música e, mais especificamente, dos professores de piano, no esforço de compreendê-los e, assim, à problemática que cerca o ensino desse instrumento na atualidade. O campo da pesquisa ateve-se a conservatórios da cidade de São Paulo e, dentro deles, foi delimitado ao período de iniciação ao instrumento. Sendo assim, esta pesquisa teve por objetivos: compreender a atual situação do ensino de piano para crianças em fase de iniciação nos conservatórios, considerados o objeto desta pesquisa, analisando-se os aspectos que se consolidaram e os que se transformaram nos últimos anos para adaptar-se ao contexto atual; sugerir maneiras de trabalho e utilização de materiais didáticos adequados a essa fase do aprendizado, a partir da compreensão e da análise de dados, com o intuito de contribuir para a valorização do ensino de música nos conservatórios e para o enriquecimento e a atualização do trabalho 3 docente. E ainda, em sentido mais amplo, ajudar a fomentar a arte pianística dentro da cultura brasileira atual. Como metodologia, foi utilizada a técnica descritiva, por meio da qual procurou-se traçar um panorama da educação pianística atual, a partir de informações fornecidas pelos próprios conservatórios visitados. Quanto aos procedimentos adotados, foi realizada uma coleta de dados a respeito do funcionamento dessas instituições, utilizando- se como estratégia a aplicação de questionários estruturados aos seus diretores. Além disso, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com professores de piano que lecionavam para crianças em fase de iniciação. Nessas entrevistas, deu-se ênfase à questão da evasão dos cursos de piano e da utilização de materiais didáticos de iniciação ao piano pelas professoras, além de outros aspectos relevantes ao ensino, como: a metodologia utilizada nas aulas, condições de trabalho, perfil dos alunos e expectativas do professor em relação ao ensino/aprendizagem do piano, sua filosofia de trabalho, formação acadêmica e interesses de atualização profissional. Ao abordar a questão dos livros didáticos utilizados, torna-se necessário um esclarecimento a respeito do termo em si: é uma tradição, no ensino de instrumento, o uso da palavra “método” para designar o livro didático adotado para a iniciação ao instrumento. Segundo o professor Cipriano Carlos Luckesi, o método - do grego meta (=para) + odos (=caminho), constitui "um caminho para se chegar a um determinado fim" (1991, p. 149). Dessa forma, completa a professora Sanny da Rosa, o caminho a ser percorrido está comprometido com o fim a atingir, depende dele e está definido. “É essa noção de finalidade, de objetivo, que se encarrega de tornar evidente a abrangência mais ampla do sentido original do termo” (ROSA, 2000, p.47). Sendo assim, se o livro didático é 4 considerado um “método”, ele é encarado como um caminho suficiente para a aula de instrumento. Isso se vê, muitas vezes, entre professores de piano, que se limitam ao uso de um único método, acreditando que ele possa dar conta do aprendizado de música naquele nível determinado. Nesse caso, o objetivo das aulas passaria a ser, então, chegar ao final do livro e isso, aliás, tem se mostrado uma prática usual em muitos conservatórios, durante o período de iniciação pianística. No entanto, não é isso que se pretende privilegiar nesta pesquisa. Ao contrário, tem-se por meta investigar outros caminhos condutores da aula de piano, situados além do “método”, e refletir a respeito dos critérios a serem adotados para sua escolha e utilização, de modo que a aula possa adequar-se à realidade do aluno e do meio em que vive. Para o desenvolvimento do presente trabalho, foi necessária a adoção de diferentes referenciais teóricos, para que se pudesse atender aos vários aspectos que cercam a discussão do tema da pesquisa. Para efetuar a revisão histórica, estudou-se obras de José Geraldo Vinci de Moraes (1994), Marcelo Fagerlande (1996) e José D’ Assunção Barros (2002). Com respeito às questões ligadas ao ensino do instrumento em cada momento histórico, pelo fato de não se ter encontrado, na bibliografia consultada, dados suficientes que explicitassem os modos de atuação do professor de música nas instituições estudadas, buscou-se conhecer a trajetória dos conservatórios, desde sua fundação, enfatizando os currículos adotados e sua importância para o ensino de piano na época, como recurso para cobrir essa informação. Para elucidar o tratamento dado à questão do ensino/aprendizagem da linguagem musical, buscou-se suporte na área pedagógica, em especial textos que 5 analisassem a questão da tecnologia e sua influência entre crianças e jovens da atualidade. Refere-se a textos de Maria Luísa Belloni (2002) e Miriam Grinspun (2001), que discutem as concepções de educação tecnológica e mídia-educação. A obra do educador e psicoterapeuta Içami Tiba (2002) também se faz presente como referencial, no que diz respeito ao estudo do comportamento da criança e do jovem no mundo de hoje. No âmbito da educação musical, apoiou-se, principalmente, nos textos de Jusamara Souza (2000) e Violeta Hemsy de Gainza (2002) - educadoras que têm em comum o fato de considerarem de grande relevância as relações entre o cotidiano e a aula de música. Além dos textos mencionados, citem-se, também, a obra da educadora musical francesa Dominique Vuillemin (1997), a respeito do ensino instrumental para crianças, dos pesquisadores brasileiros Marcelo Sampaio (1999) e Moema Craveiro Campos (2000) e dos americanos Clark, Goss e Grove (1973) – que constituem um material de referência para o ensino do piano. Mostrou-se necessário, neste trabalho, proceder-se a uma investigação de caráter histórico, que auxiliasse na reflexão a respeito da tradição do ensino de piano no Brasil e sua comparação com o que ocorre hoje nesse campo. Assim, foi realizada revisão bibliográfica referente aos aspectos da história da música brasileira, da história da educação musical e da própria pedagogia pianística. É importante enfatizar que, em muitas pesquisas recentes, os conservatórios são apontados como instituições voltadas ao culto de valores de épocas passadas, fechados, portanto, à contemporaneidade. Os dados obtidos na pesquisa foram importantes para desmistificar essa imagem de conservatório, revelando suas contradições, pois, abrigam, ao mesmo tempo, posturas conservadoras e inovadoras, que a análise dos textos das entrevistas e da bibliografia mostrarão. 6 A presente Dissertação foi organizada em 4 capítulos, precedidos por uma Introdução e seguidos por Considerações Finais. O primeiro capítulo traz a retrospectiva histórica do ensino de piano no Brasil a partir do século XIX, enfatizando o quanto questões políticas e sociais da época influíram na valorização do instrumento - piano - e seu ensino, bem como da própria música durante esse período. Convém ressaltar que, nesta pesquisa, constatou-se a escassez de publicações voltadas à história do piano no Brasil, o que reforça a importância da inserção deste capítulo no presente trabalho. O segundo capítulo trata especificamente da pedagogia pianística no século XX, ou seja, das questões concernentes à atuação do professor, tendo por base as descobertas da Pedagogia e da Psicologia recentes à época e sua aplicação ao ensino do piano, referindo-se, em especial, aos elementos relativos à técnica e à interpretação pianística. Na pesquisa, foram encontradas onze obras, que mostram de que modo se processou o ensino de piano entre as décadas de 1930 e 1980, a saber: • Almeida, Waldemar de. Normas pianísticas (1956, primeira edição em 1940); • Campos. Lina Pires de. Pedagogia e técnica pianística (1987); • Fontainha, Guilherme. O ensino do piano – seus problemas técnicos e estéticos (1956); • (__________________).A criança e o piano (1968); • Hazan, Eduardo. O piano – alguns problemas e possíveis soluções (1984); • Kaplan, José Alberto. Teoria da aprendizagem pianística (1987); • Lacerda, Armando Moura. O piano - de um professor para um aluno (1973); • Pelafsky, Israel. Introdução à pedagogia do piano (1954); 7 • Pimenta, Victoria Serva. Conselhos práticos aos que se dedicam ao estudo do piano (s/d); • Sá Pereira, Antonio Leal. O ensino moderno do piano (1964, primeira edição em 1933). • Silva. Raphael Batista da. A educação auditiva do pianista (1940). Nesse capítulo, destaca-se ainda o surgimento de materiais didáticos específicos para o ensino de piano infantil, no mesmo período, e mostra-se sua estrutura e organização didática. O terceiro capítulo faz a caracterização dos conservatórios visitados e de seu corpo docente, além de abordar a prática da musicalização infantil em aulas coletivas que, em alguns casos, complementam o ensino de piano nos conservatórios. Essas aulas têm por objetivo proporcionar o contato e o relacionamento do aluno com a música e suas estruturas por meio de vivências práticas, que correm independentemente do ensino do instrumento, aprimorando seu desenvolvimento artístico-musical e privilegiando aspectos expressivos e criativos. Em geral, elas são baseadas nos chamados métodos ativos em educação musical, que surgiram a partir do início do século XX, propostos por educadores musicais europeus e que, ainda hoje, exercem influência no ensino de música do país. Ao final do capítulo, apresentam-se os projetos pedagógicos dos conservatórios visitados, com os Programas de Ensino de seus cursos. Uma vez que esses Programas de Ensino precisam estar em conformidade com a legislação brasileira, para que o funcionamento do curso técnico seja autorizado, estudou-se os Referenciais Curriculares Nacionais (RCNs) para o ensino profissionalizante de Artes-Música, documentos oficiais elaborados em 2000 pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Acredita-se que, nas instituições que oferecem cursos técnicos profissionalizantes, os cursos livres sofrem a influência desse fato, e seus currículos e Programas de Ensino trazem indícios disso na 8 preparação de seus alunos para ingresso no curso técnico. Conhecer, então, a proposta dos cursos técnicos inscrita nos Referenciais Curriculares Nacionais para os cursos profissionalizantes (RCN) publicados pelo MEC pode auxiliar a compreender de que modo se dá a evolução do curso. No último capítulo, apresentam-se as diversas atividades realizadas pelas professoras entrevistadas nas aulas de piano, bem como os “métodos” utilizados por elas como material didático, lembrando-se em que acepção esse termo é utilizado, conforme explicação constante à página 3. Os dados colhidos nas entrevistas foram analisados e serviram ao processo de reflexão acerca das questões referentes ao interesse maior da pesquisa: conhecer as razões que poderiam levar os alunos a desistir do aprendizado de piano e lançar um olhar crítico aos livros didáticos de iniciação ao piano encontrados na prática existente nos conservatórios estudados. Considerando-se que uma aula de piano que se limite ao “método” poderia privilegiar a decodificação dos símbolos musicais em relação à compreensão no processo de leitura ao instrumento, e ainda enfatizar a repetição mecânica e o domínio da técnica sobre a expressão na construção do repertório, buscou-se, neste estudo, verificar se isso ocorria nas escolas visitadas, frisando a importância de se repensar a prática pedagógica. Por fim, apresentou-se um resumo dos principais pontos apontados pelas entrevistadas com relação aos “métodos” atuais, os critérios de escolha para sua utilização, suas falhas ou aspectos negativos e, finalmente, sua importância para o ensino do piano. Nas Considerações Finais, discutem-se as questões concernentes ao papel do piano na sociedade, à postura docente, à profissionalização do pianista e aos desafios encontrados no processo de ensino/aprendizagem, tanto no passado, quanto no presente. A 9 partir dos resultados da pesquisa, verificou-se a necessidade de repensar a prática pedagógica, de maneira que ela consiga criar equilíbrio entre a postura tradicional e a postura inovadora. Considerou-se, também, a importância de focalizar a prática pedagógica no aluno, considerando-o o centro do processo de ensino/aprendizagem, e concebendo-o como um ser único e dotado de características peculiares. A conseqüência de assim considerá-lo permite que a programação do ensino do instrumento se configure a partir dos interesses do aluno, de onde se poderá mover e redirecionar esse processo. É importante ressaltar que, durante a realização deste trabalho, encontraram- se professores dispostos e interessados, capazes de buscar alternativas metodológicas para as situações de ensino/aprendizagem que encontram, e que acompanham os acontecimentos musicais. É a esses professores, que merecem o devido reconhecimento, que se dedica este trabalho. 10 1. Os primórdios do ensino pianístico no Brasil 11 Para que se compreenda a situação em que se encontra o ensino de piano nos conservatórios de hoje, em relação às necessidades do mundo contemporâneo, julga-se importante acompanhar o percurso do ensino de piano no Brasil, desde seus primórdios. Esse olhar ao passado pode esclarecer o que mudou no decorrer do tempo, em relação ao valor do piano na sociedade. Assim, realizou-se uma pesquisa de caráter histórico que investiga, justamente, os três aspectos envolvidos nesse processo: a evolução do ensino (musical), o surgimento do piano no Brasil – bem como sua ascensão na sociedade - e a trajetória dos conservatórios. 1.1. Precedentes A história do ensino de piano no Brasil se inicia após a vinda de D. João VI, que em 1810 abriu os portos ao comércio com a Inglaterra –o que era propício à situação política do país -, e conseqüentemente, incentivou a importação de pianos para as terras brasileiras: “por força de tratados diplomáticos, os ingleses dominavam o mercado brasileiro e abarrotaram os portos nacionais com os seus produtos, inclusive pianos” (JACKSON, 2004). Logo as casas mais abastadas começaram a adquiri-los e as famílias contratavam professores particulares para ministrar aulas do instrumento. Até então, o caminho histórico-pedagógico que conduziu ao ensino do piano passara pelo cravo e pelo pianoforte. Com relação ao cravo, é certo que inicialmente tenha sido utilizado como instrumento de acompanhamento, e seu ensino, provavelmente, era baseado em técnicas de baixo-contínuo e improvisação, sobre repertório medieval e renascentista (predominantemente religioso). Os cravos já figuravam no Brasil desde o 12 início da colonização, conforme referências encontradas pelo pesquisador Marcelo Fagerlande: "(...) ao que tudo indica, os primeiros cravos chegaram ao Brasil em 1552, com a vinda de D. Pero Sardinha à Bahia, para organizar a primeira Sé" (FAGERLANDE, 1996, P.18). As primeiras obras específicas para o ensino do cravo começaram a surgir na Europa em fins do século XVII, conforme comenta a professora Yvelise Nobre Varella em seu trabalho “Dos cravistas às primeiras escolas pianísticas” (1966). Tais obras - algumas, designadas “métodos” - visam destacar as qualidades de clareza e brilho do cravo, transmitindo conselhos sobre o toque, dedilhado e execução do instrumento e valorizando ainda a análise musical. Constatou-se que algumas dessas obras – que tardiamente chegaram ao Brasil - deixaram de ser utilizadas com a decadência do cravo; outras vieram, posteriormente, a assumir importante papel no ensino do piano, instrumento que passou a predominar em muitas atividades musicais. No século XVIII, o aprendizado de um instrumento de teclado era possível em duas circunstâncias: na igreja ou em aulas particulares individuais. Em geral, o professor atuava também como compositor, escrevendo obras diretamente para seus alunos, de acordo com suas necessidades. Nessa época, o cravo estava associado tanto à igreja - como atuante nas celebrações - quanto à nobreza, satisfazendo suas necessidades culturais - ou seja, remetendo-a ao contexto social europeu. Fagerlande (1996, p.18) lembra que diversos viajantes europeus que passaram pelo Brasil e escritores da época (como Machado de Assis e Eça de Queiroz) escrevem sobre a execução de modinhas ao cravo, dedilhados com “graça e habilidade” por moças brasileiras. A aula de instrumentos de teclado subentendia a prática do solfejo e o estudo da teoria musical, indo além da resolução de problemas de execução. "Em outras palavras, 13 aprendia-se a tocar o cravo, o clavicórdio, o órgão, através de peças de músicas que continham as exigências técnicas desejadas, mas sem esquecer o sentido artístico, musical”. (FAGERLANDE, 1996, p.25). Outro enfoque do ensino instrumental compreendia a análise de obras e a composição, como aplicação do conteúdo aprendido. Com relação ao repertório, não mais predominava a música religiosa, mas eram também incorporadas a música militar e obras seculares européias. Deve-se destacar a atuação do padre-compositor José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) como um dos expoentes do ensino instrumental, vivendo justamente na época de transição do cravo para o piano. O padre José Maurício, além de formar diversos músicos, servir à corte e atuar como mestre-de-capela, ainda é o autor do Compêndio de Música e Methodo de Pianoforte, que pode ser considerado o primeiro método para o ensino instrumental publicado no Brasil. "A sombra do compositor (...) chega através do Compêndio, cuja finalidade foi a de tornar mais consciente e racional o ensino deste instrumento (...)" (ABREU e GUEDES, 1992, p.11). É importante ressaltar que não se trata de uma obra para iniciantes; segundo Fagerlande (1996, p.8), as lições do método são estímulos e pistas para o desenvolvimento de um músico. Escrito em 1821 e publicado em 1996, em edição fac-símile, o método foi assim organizado: • 1a. parte - noções de teoria musical, incluindo ornamentação; • 2a. parte - exercícios vocais preparatórios para o solfejo; • 3a. parte - solfejos (em clave de soprano, com acompanhamento de teclado) • 4a. parte - instrução instrumental - exposição do teclado, escalas, noções de dedilhado. Na 4a parte encontram-se as “Lições” e “Fantezias” (fantasias) do método, escritas em claves de sol e fá. Segundo Fagerlande (1996, p.21), o termo Lição designa uma 14 peça de movimento único com fins pedagógicos, e Fantasia é o termo encontrado na Renascença para uma composição instrumental cuja forma e invenção surge da fantasia e habilidade do autor. As Fantasias de José Maurício são escritas em forma binária, ternária ou rondó, e há ainda algumas em forma livre. Assim, segundo o autor (p.39), percebe-se a intenção didática do compositor em oferecer formas diferentes, para o conhecimento dos alunos iniciantes, ordenadas conforme seu grau de dificuldade. Figura 1.1.Capa do “Compêndio de Música e Methodo de Pianoforte” de José Maurício Nunes Garcia. Apud FAGERLANDE, 1996, p.99. 15 Figura 1.2. Regras para formação dos tons e primeira lição do “Méthodo de Pianoforte”, de José Maurício. Apud FAGERLANDE, 1996, p.124. 1.2. A ascensão do piano na sociedade imperial No início do século XIX, o cravo e o piano coexistiram, e, mesmo entrando em decadência, o cravo continuou a ser utilizado em grandes espaços como casas de ópera, pois, segundo Fagerlande (1996, p.19), oferecia a sustentação e a nitidez necessária para apoiar o conjunto orquestral e acompanhar os recitativos. O repertório escrito para teclado poderia ser executado em ambos os instrumentos, sendo que as partituras não traziam indicações específicas para um ou outro. Por volta de 1810, encontravam-se, nos jornais, 16 anúncios de venda tanto de cravos quanto de pianos; porém, já em 1812, o número de pianos oferecidos já predominava nos anúncios. Nessa época, o piano era encontrado em muitas residências da corte. Seu estudo representava um símbolo de ostentação e de uma boa educação, contribuindo para a “formação dos bons costumes” – principalmente para as moças. Barros (2002, p.122) informa que o estudo do piano “(...) passou a fazer parte da educação das jovens de classe média e superior, aliás, (...) deveria ser exibido para uma platéia familiar e pouco exigente nas pequenas comemorações cotidianas”. Paralelamente, começavam a surgir pequenos centros musicais ou escolas de música, de iniciativa privada, o que pode ser visto como um indício de desenvolvimento cultural, numa sociedade de características ainda coloniais. Porém, o estudo do piano, sendo considerado índice de posição social ou mero passatempo, deixava as funções educativa e artística relegadas a um plano secundário. Junqueira (1982, p.12) comenta que “a superficialidade do conhecimento musical parecia suficiente para as exigências dos serões familiares”, e ainda, “(...) ignoravam-se os grandes compositores e vivia-se de um falso virtuosismo”. O repertório da época, segundo Rezende (1954, p.36), era constituído basicamente por fantasias e caprichos sobre motivos de ópera conhecidos, principalmente da autoria de Bellini, Donizetti, Meyerbeer e Verdi. Por volta de 1830, surgiram os primeiros salões e teatros no Rio de Janeiro, e o piano era um instrumento constantemente utilizado para acompanhar as danças que estavam em moda na Europa. Assim, com a ascensão do piano nos lares e nos centros sociais, esse instrumento começou a ser produzido no país. Abreu e Guedes (1992, p.11) consideram a hipótese de ser 1834 o ano da fabricação do primeiro piano brasileiro, atendendo às necessidades da burguesia e da expansão do comércio. Em torno de 1850, 17 esse comércio encontrava-se bem desenvolvido, ao lado da entrada de exemplares importados de “autores”1 diversos: John Broadwood, Stodart, Debain, Erard, Graff, Pleyel, Henry Hertz, Ibach, Kalkbrenner, Clementi, Collard & Collard, Schiedmayer, Bechstein, Blüttnner, Steinweg, Chickering, Bosendorfer, Steinway, Alexandre Pere & Fils., entre outros. Segundo artigo de Jackson (2004), havia uma forte concorrência entre representantes franceses (Erard, Pleyel) e ingleses (Broadwood, Towns & Packer). A resistência de seus pianos ao calor tropical era a base da publicidade. Em 1857 foi anunciada a primeira loja especializada em pianos de São Paulo, de propriedade de J. J. Oswald2. Antes disso, segundo Rezende (p.23), “os instrumentos e peças de música eram vendidos por diversos comerciantes, em cujas lojas – autênticos ´bric-a-brac´ - havia um pouco de tudo.” Outro fator que contribuiu para a ascensão do piano, na segunda metade do século XIX, foi a influência de idéias advindas do romantismo europeu, que repercutiram na sociedade, de maneira geral. O repertório para o piano começou a se diversificar, com a comercialização de partituras de Chopin, Wagner, Liszt e Mendelssohn e de alguns métodos para piano europeus, como os de Czerny, Cramer e Clementi3. Ao lado do ensino musical religioso e da prática musical nas igrejas, portanto, surgiam outros espaços, bem como a valorização de outro tipo de repertório e o início dos concertos públicos patrocinados, como pode ser visto em Barros (2002, p.122): 1 autores – termo que se usava na época, para o que hoje denominamos “fabricante” 2 J.J.Oswald – pai do compositor Henrique Oswald (1852-1931). 3 Em 1864, tais partituras e métodos são anunciados no “Correio Paulistano”, jornal da época (in Rezende, 1954, p.264) 18 “Ocorria agora um maior afluxo de ouvintes às salas de concerto (...). Se nas épocas anteriores os músicos dependiam quase que exclusivamente do sistema de mecenato – fosse o patronato exercido pela Igreja, pela Nobreza ou pela Corte Imperial – agora os músicos começavam a depender de um público pagante”. Esse público pagante possibilitou, portanto, a vinda de virtuoses estrangeiros que despertaram o entusiasmo de muitos pelo instrumento, como o francês Thalberg, o português Arthur Napoleão e o americano Gottschalk, realizando concertos nas "sociedades musicais". Essas sociedades, fundadas com o objetivo de promover concertos e oferecer ensino de música aos seus associados – membros da elite -, consolidaram-se nas cidades do Rio de Janeiro e em São Paulo, em forma de clubes com nomes imponentes: Clube Mozart (1867), Clube Beethoven (1882), Clube Haydn, Sociedade Coral Clube Mendelssohn e Sociedade de Concertos Clássicos (1883), entre outros citados por Kiefer (1982, p.69 e 74). É inegável, portanto, a importância do piano para a difusão da música não- religiosa nesse período, tanto como recurso para a performance, quanto para a educação musical. Quase todos os compositores que se destacaram nesse período tiveram a oportunidade de estudá-lo no início de sua formação musical e utilizá-lo como fonte de inspiração para suas primeiras composições. Mário de Andrade comenta: "A expansão extraordinária que teve o piano dentro da burguesia do Império foi perfeitamente lógica e ao mesmo tempo necessária. Instrumento completo, ao mesmo tempo solista e acompanhador do canto humano, o piano funcionou na profanização da nossa música, exatamente como seus manos, os clavicímbalos, tinham funcionado na profanização da música européia".(1991, p.12) Portanto, deve-se considerar que, de maneira geral, o estudo do instrumento e a freqüência a concertos representavam padrões elitizantes da sociedade da época, 19 reservados à burguesia. Bauab (1960, p.219) comenta que nesse período "principiou a moda detestável de tocar piano" (grifo nosso), frase ilustrativa da crítica que faz ao ensino de piano àquela época, considerado pela autora como calcado em valores sociais de exibição de poder aquisitivo ou “modismo” cultural. Recorde-se a situação do ensino até então, em que havia alguns pequenos centros de iniciativa privada, onde se cultivava a música, alguns grupos musicais em igrejas e muitos professores particulares, que ajudaram a estimular o gosto pela música na sociedade. Tais professores, em grande parte estrangeiros, costumavam oferecer seus serviços nos jornais locais, como o “Correio Paulistano”. -- Figura 1.3. Anúncio no “Correio Paulistano”. Apud REZENDE, 1954, P.264 20 O francês Gabriel Giraudon, aluno de Thalberg, foi um dos professores particulares que mais se destacou na época. Chegando ao Brasil em 1859, estabeleceu-se em São Paulo, exercendo o magistério por mais de trinta anos. Segundo Rezende (1954, p.253), Giraudon foi um desbravador, compondo, estimulando vocações, tocando em concertos, regendo orquestras e formando várias gerações de músicos – entre eles, Henrique Oswald, Luis Levy e Alexandre Levy, enfim, enriquecendo a cultura pianística e elevando seus padrões à época. Giraudon, ainda, foi responsável pelo reconhecimento do talento feminino, que, até então, era reservado à família – uma mulher jamais tinha pisado num palco para se apresentar. Gerando grande polêmica, Giraudon conseguiu derrubar esse preconceito que impedia que mulheres fossem também consideradas artistas (REZENDE, 1954, p.256). 1.3. A criação dos conservatórios Os conservatórios começavam a surgir nos grandes centros culturais europeus em fins do século XVIII (embora só posteriormente tenham adquirido o formato do conservatório que se conhece hoje). Em Paris foi criada, em 1784, a Ècole royale de chant et de declamation, para formar cantores de ópera, que veio a se tornar o Conservatoire national de musique et de declamation. Posteriormente, foram inaugurados o Conservatório de Bruxelas (1813), de Viena (1817), de Genebra (1835), de Leipzig (1843), de Berlim (1850), e de Budapeste (1875). No Brasil, o primeiro conservatório foi criado em 1841, graças ao empenho do músico Francisco Manuel junto ao imperador D. Pedro II. Estava claro para o músico 21 que essa instituição formaria novos mestres e intérpretes, incentivaria ainda mais o estudo musical - que estava nas mãos dos professores e centros de música particulares - e educaria o gosto musical do público em geral, além de acompanhar os avanços do ensino musical na Europa. Assim, Manuel se destacou pela luta em prol da conservação e da organização da prática musical no Brasil. Tendo a consciência de que, "sem uma escola organizada em sólida base pedagógica, a música não teria um real desenvolvimento no país" (BAUAB, 1960, p.227), investiu seus esforços na democratização do ensino musical, com o apoio da burguesia que se manifestava através dos jornais da época (KIEFER, 1982, p.71): "Nenhum mestre existe pago pela Nação, nenhuma cadeira de ensino gratuito para as massas, em cujo vasto seio se alberga o gênio das artes, foi até agora instituído pelo Governo. A música tem sido entregue a seus destinos; hoje só é lícito gozar de seu ensino às pessoas abastadas que podem pagar mestres; ao povo nada se concede (...) A conveniência da instituição de um conservatório de música sob o ponto de vista econômico e político é incontestável (...)". A trajetória do Imperial Conservatório de Música, desde sua criação, foi uma prova de persistência. Os cursos só foram oficialmente regulamentados seis anos depois e, em 1848, foi conseguida uma sede própria junto ao edifício do Museu Nacional. As disciplinas oferecidas visavam à capacitação técnica que atendesse às exigências profissionais da época, tanto para as atividades musicais nos cultos religiosos, quanto para o teatro. Segundo a professora Vanda Freire (1994, p.150), no currículo original do Conservatório constavam as seguintes disciplinas: rudimentos preparatórios e solfejos; canto para o sexo masculino; rudimentos e canto para o sexo feminino; instrumentos de cordas; instrumentos de sopro, harmonia e composição. Com recursos escassos e em condições precárias, logo se percebeu a necessidade de reformulação. Ainda segundo Freire, em 1855 o Conservatório foi anexado 22 ao Ministério do Governo, tornando-se a 5ª seção da Escola de Belas Artes. O currículo também sofreu alterações com a inclusão das seguintes disciplinas: regras de harmonia e harmonia de acompanhamento prático ao órgão (FREIRE, 1994, p.150). Em 1863, procurando ampliar as instalações do Conservatório, foi lançada a pedra fundamental do futuro edifício que o abrigaria, ao lado da Escola de Belas Artes, embora só tenha sido inaugurado nove anos depois. Já em 1875, novas alterações ocorreram no currículo, que passou a dar maior importância ao sistema didático, e incluindo aulas de piano para ambos os sexos, as quais se iniciaram a partir de 1878. O movimento popular em prol da expansão do ensino de música no Brasil – que provocou a criação dos conservatórios - ainda levou à instituição oficial do ensino da música nas escolas públicas brasileiras, como forma de torná-lo acessível a grande parte da população (Decreto 331 A 17/11/1854). Contudo, não havia explicações a respeito do modo como esse ensino se processaria. Nos conservatórios, também não havia indicações específicas que esclarecessem de que modo a atuação pedagógica deveria ser desempenhada. Freire (1994, p.152) analisa a função dessa instituição de ensino durante o século XIX: o conservatório determinava o talento, a vocação e o dom inato como condições essenciais para o aprendizado e procurava cultivar um modelo ideal de música, prevalecendo a tradição européia – as manifestações brasileiras estavam fora de cogitação. Após a morte de Francisco Manuel, o Conservatório passou por uma fase de declínio e somente no governo republicano começou a se reerguer, sendo transformado no Instituto Nacional de Música (1890). Nessa fase, o Conservatório já direcionava seus cursos para o ensino profissionalizante, visando à formação de músicos executantes, compositores e maestros. Novas disciplinas foram incluídas no currículo: contraponto, 23 fuga, história e estética. Entretanto, segundo Freire (1994, p.153), supõe-se que “os programas destas disciplinas eram centrados na informação factual, na história da música européia”. Os conservatórios europeus continuavam sendo seu modelo, pois ofereciam um nível de ensino ainda não conseguido no Brasil - o que atraía para eles jovens compositores, como Carlos Gomes e Elias Álvares Lobo - contemplados com bolsas de estudos para aperfeiçoar-se na Europa. Em sua nova fase, o então Instituto Nacional de Música teve a direção de Leopoldo Miguéz (1850-1902), que, na intenção de aprimorar ainda mais o ensino ministrado pelo Instituto, viajou à Europa em 1895, com a incumbência de pesquisar a organização dos conservatórios da França, Bélgica, Alemanha e Itália. A atuação pedagógica de Miguéz é destacada por Almeida (1926, p.215): "Nomeado Leopoldo Miguéz diretor do novo estabelecimento [o Instituto Nacional de Música], escolhido o seu corpo docente, melhor cuidada a sua instalação, tornou-se um centro de cultura de mérito incontestável (...)" Ao lado de Leopoldo Miguéz, destaca-se a atuação de Alfredo Bevilacqua (1846-1927), primeiro catedrático de piano do Instituto Nacional e “fundador da moderna escola pianística brasileira”, (HORTA, 1985, p.44). Bevilacqua contribuiu para a reformulação dos programas empregados para o ensino de piano, abolindo dos repertórios as fantasias sobre temas de ópera e substituindo-as definitivamente por sonatas de Beethoven, Chopin e Liszt. Após a atuação de Miguéz na direção do Instituto, outro compositor o sucedeu: Henrique Oswald (1852-1931). Todavia, ciente de não ser a pessoa apropriada para tal função, demitiu-se do cargo, vindo a exercer posteriormente a função de professor 24 de piano, alcançando grande prestígio e formando intérpretes de reconhecimento internacional. 1.4. A influência da música popular O surgimento dos primeiros salões e teatros no século XIX, além de privilegiar o uso do piano, alimentou o comércio de música na sociedade – inclusive a edição de partituras. O piano tornou-se “obrigatório nos saraus dos solares das cidades, nas casas-grandes do campo, nas casas de venda de partituras e de instrumentos musicais, nas salas de espera dos cinemas, nas orquestras do teatro de revista, nas sedes dos ranchos (...)” (DINIZ, 2003, p.19) A influência exercida pela Europa na sociedade brasileira é evidente nesse período, conforme comenta Moraes (1994, p.21): "as idéias de progresso, civilização, moderno e bom-gosto eram representadas pela Europa (...). O desejo incontido de se parecer com a Europa, na forma e no conteúdo, se revelaria de maneira espantosa no Brasil (...)". Assim, as danças em moda nos salões da Europa vieram influenciar diretamente o repertório produzido e executado no Brasil. Em 1853, foi lançado no Rio de Janeiro o primeiro álbum de peças para piano, o “Álbum pitoresco musical”. Constam deste álbum diversas danças européias como valsas, polkas, schottisches e mazurkas4. 4 a cópia do álbum a que tivemos acesso foi gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Paulo Castagna, docente da Unesp. 25 Figura 1.4.Capa do”Álbum pitoresco musical” 26 Figura 1.5. “Álbum pitoresco musical”- primeira página da polca “Glória”, composição de Eduardo M. Ribas Em fins do século XIX e primeiros anos do século XX, o Brasil passou por momentos decisivos de sua história: sofreu grandes transformações sociais e políticas, que influenciaram profundamente o modo de vida da sociedade - conforme comenta Moraes: "Nos novos espaços urbanos, (...) emergirá um estilo de vida bastante diferente daquele experimentado pela nossa sociedade escravista e rural. De modo geral, esse novo estilo estava vinculado, entre tantos elementos do mundo urbano, à velocidade, à boemia, às luzes das ruas, casas noturnas, lojas e bondes; aos grandes centros de compra; ao cinema, ao rádio e ao disco, às novas formas de arte; às multidões (...)" (1994, p.5-6) No âmbito musical, uma das grandes “transformações” desse período é a utilização de elementos africanos em obras de diversos gêneros e, especialmente, em peças para piano. Essa mescla da tradição européia com a cultura africana começou a se tornar aceitável pela sociedade e veio constituir novas possibilidades para o que poderíamos 27 considerar música brasileira. Até então, as tradições e os costumes da cultura negra haviam sido desprezados e reprimidos pelos senhores de engenho, que ao mesmo tempo tinham medo de rebeliões que poderiam ser organizadas durante essas manifestações. A influência africana se verifica em vários aspectos. Segundo Barros, “um exemplo de contribuição afro-brasileira para a rítmica das músicas popular e erudita está naquela famosa ‘síncope’ (...). Já um exemplo referente ao âmbito melódico encontra-se na tendência para o movimento descendente presente na melódica brasileira. (...) Por fim, para já considerar o âmbito timbrístico, a dimensão ‘afro’ aparece nos instrumentos típicos da nossa música popular e que foram levados para a música erudita (...)”(2002, p.54). Presentes no Brasil desde a colonização, as danças africanas também vieram influenciar a composição musical brasileira, emprestando diversos títulos a peças para piano, nesse período. Entre elas, mencionem-se o lundu, o batuque e o jongo, danças em ritmo binário, que incorporam, também, o canto, o jogo e a competição, envolvendo cantores, instrumentistas e dançarinos. A fusão de elementos europeus e africanos começou, então, a ocorrer, de modo a enriquecer a música composta e praticada no Brasil. Até então, essa fusão não fora possível, pois a cultura africana era, de maneira generalizada, considerada insignificante - visão que constituía o fundo ideológico do sistema escravista no Brasil: “uma grande raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamente homogêneo e a simultânea visão dessa parte da humanidade como ‘inferior’, ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano como um lugar exterior à ‘civilização’ ” (BARROS, 2002, p.52). A valorização da cultura africana, sinônimo de reconhecimento do indivíduo negro (ou mestiço) na sociedade, ocorreu principalmente em função das causas 28 abolicionistas. E, por meio da música, “a projeção social dos músicos-mulatos de origem humilde nunca seria tão fácil. (...) O reconhecimento social dos músicos iria ser atraído pouco a pouco para cima no espectro social (...).” (BARROS, 2002, p.113) Essa mescla de elementos europeus e africanos resultou, ainda, na agregação de novas danças ao repertório pianístico, como o maxixe, o tango brasileiro e o samba - em ritmo binário -, tendo o ritmo do baixo bem marcado e em especial, a utilização da síncope como principal diferencial. O choro apareceu, inicialmente, como um estilo de interpretação de danças européias, pelos músicos populares do Rio de Janeiro. Era tocado "de ouvido", marcado pela improvisação e pela virtuosidade e, talvez, por esse motivo tenha atraído os músicos eruditos, que conviviam e trocavam informações com os “chorões” reunidos nas rodas de choro. Embora estivesse mais ligado à formação instrumental flauta, cavaquinho e violão, o choro também atraiu os pianistas e começou a despontar como gênero de composição e título de peças para piano impressas. Dentro dessa atmosfera surgiram compositores que fizeram o que poderíamos chamar de “ponte” entre a música erudita e a música popular. Entre eles, destacam-se os pianistas Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Ambos tiveram uma formação musical erudita, porém, tornaram-se músicos práticos nos espaços de entretenimento das massas: casas de dança, serenatas, festas populares, restaurantes, bares, cinemas, e outros. Dessa maneira, aliaram a estrutura da música européia (harmônica, formal e técnica, do ponto de vista instrumental) à riqueza rítmica de influência africana, promovendo a “fusão entre os gêneros originalmente europeus e a abundante musicalidade do Rio de Janeiro do início do século, em uma obra 29 essencialmente pianística”5 com suas polcas, valsas, mazurcas, maxixes, choros, tangos brasileiros, entre outros gêneros. Assim, a música popular começou a tomar espaço na educação musical, formando “músicos práticos”: “(...) essas rodas de choro e as animações de festas eram autênticas ‘escolas’ populares de música, que produziriam mais tarde músicos profissionais da mais alta qualidade (...)”, conforme Moraes (1994, p.84). Além disso, representou uma nova concepção da função de músico na sociedade: a de profissional. Até mesmo os brasileiros provenientes das classes sociais menos favorecidas começaram a ter reconhecido o seu devido valor artístico e a conquistar seu espaço na sociedade. Entretanto, a música popular enfrentava uma certa resistência dos professores de piano dos conservatórios, quanto a fazer parte do repertório dos estudantes. Segundo pesquisa de Neide Espiridião (2003, p.302), a configuração curricular dos conservatórios expressava o pensamento pedagógico de que “a música popular, por ser menos elaborada, necessita de um aprendizado musical mínimo; por sua vez, a música de tradição culta/erudita sendo mais elaborada, requer um maior conhecimento e técnica musicais”. Espiridião ainda afirma que essa dicotomia refletia “a existência de um confronto entre as práticas pedagógicas dessas duas manifestações musicais, com o predomínio do estudo da música erudita nos currículos dessas instituições” (idem, ibidem). Dentro dos conservatórios, portanto, zelava-se pelo ensino formal, calcado na utilização de materiais impressos, com predominância do repertório erudito europeu. Até hoje, os únicos compositores de música popular permitidos aos alunos dos conservatórios 5 a citação refere-se ao verbete “Ernesto Nazareth”, do Dicionário Zahar (1985), porém encaixa-se perfeitamente com relação a ambos os compositores. 30 ligados à música chamada “erudita” são Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, considerados “semi-eruditos” - expressão que se encontrou, também, na bibliografia consultada. Paralelamente à difusão da música popular, iniciou-se, na música erudita, um movimento de busca por uma expressão musical autenticamente nacional, com a utilização de elementos característicos da cultura brasileira, que teve reflexos intensos nas obras para piano escritas no período. Os compositores brasileiros começavam a desvincular-se do que Mario de Andrade (1991, p.21) classificaria "o primeiro estado-de-consciência da música brasileira: o internacionalismo", onde "importava-se, aceitava-se, apreciava-se as diferentes músicas européias". Num primeiro momento, era, ainda, na Europa que os compositores iam buscar inspiração para a elaboração de um repertório com características próprias, de raízes nacionais. Alberto Nepomuceno (1864-1920), que dirigiu o Instituto Nacional, investigou as tendências nacionalistas presentes na Noruega, pelo contato estabelecido com Grieg6, e, dessa maneira, abriu caminho para “facilitar e apressar o advento da música brasileira" (BAUAB, 1960, p. 270). Suas composições pianísticas, segundo Barros (2002, p.147), desenvolvem uma linguagem francamente nacionalista, remetendo-se aos ritmos e melodias afro-brasileiros (como o lundu e o maxixe). Nepomuceno ainda destacou-se por seus esforços em promover concertos de compositores nacionais, quando do seu regresso ao Rio de Janeiro (1895). Além deste, os compositores Brazílio Itiberê da Cunha (1846-1913) e Alexandre Levy (1864-1892) inauguraram a utilização de elementos do folclore brasileiro na produção musical, constituindo-se suas obras nas primeiras manifestações do elemento 6 Grieg (1843-1907) – compositor norueguês. 31 musical nacional no campo composicional. O primeiro, segundo Neves, "sentia o desejo de nacionalizar a expressão musical, e isto através da utilização, como base temática, de elementos da música popular" (1981, p.18). Sendo assim, utilizou o tema "Balaio, meu bem, balaio" para a composição de sua peça para piano "A sertaneja". Levy, em "Variações sobre um tema brasileiro" (inicialmente escritas para piano e depois orquestradas), baseou- se no tema "Vem cá, Bitu" (ou “Cai, cai, balão”), resultado de sua consciência a respeito da "necessidade de estudar seriamente a música folclórica brasileira para um emprego correto e eficaz" (NEVES, 1981, p.20). Destacam-se, ainda, além dos mencionados, o compositor Luciano Gallet (1893-1931), que se dedicou à pesquisa do folclore brasileiro, publicou álbuns de arranjos e transcrições de canções do folclore e utilizou esses elementos em sua obra para piano. Assim sendo, em fins do século XIX surgiam os primeiros sinais da síntese que viria a constituir a música brasileira. Segundo Neves (1981, p.13) “antes disso, o que se via era a justaposição de elementos contrastantes que, influenciando-se mutuamente, mantinham sua validade com relação aos usos e costumes das diferentes camadas que compunham o povo brasileiro”. Por fim, é importante destacar a importância do piano nesse processo de afirmação da música brasileira, como representante das idéias composicionais em transição. As peças desse período, muito numerosas, representam um caráter virtuosístico, porém não didático, embora muitos destes compositores tenham, também, se dedicado ao magistério. 32 1.5. A situação dos conservatórios no século XX Em 1931, o Ministério da Educação e Saúde Pública convocou uma comissão para a reforma do ensino da Música – da qual participaram Luciano Gallet, Mário de Andrade e Antonio Sá Pereira (1888 –1966) -, o que acarretou na integração do Instituto Nacional à Universidade do Rio de Janeiro7. Gallet, àquela época, diretor do Instituto Nacional, procurou dar uma organização mais eficiente à instituição, com destaque à função didática da música. Após a morte de Gallet, Guilherme Fontainha (1887-1970) assumiu a direção do então Conservatório de Música da Universidade do Rio de Janeiro. Durante os sete anos em que permaneceu no cargo, instalou uma biblioteca, reformulou sua orquestra, reinstalou o Museu Instrumental, criou o “Quarteto dos laureados” e o coro da escola, entre outras iniciativas que trouxeram melhorias para o Instituto. Em 1932, Sá Pereira inaugurou e regeu interinamente a cadeira de pedagogia musical do Instituto. Em 1937, após viajar para Genebra e conhecer o método Dalcroze, inaugurou o primeiro curso de iniciação musical brasileiro, organizado nos moldes do curso criado em Genebra pelo educador suíço. Um ano depois, foi nomeado diretor da Instituição. Após Sá Pereira, a direção do Conservatório ainda teve a direção de Agnelo França (1942 – 1946), que contribuiu para a criação do Centro de Pesquisas Folclóricas, e Joanídia Sodré (1946-1967), em cuja gestão, no ano de 1965, a escola passou a se chamar Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, transformando-se em “um grande centro de educação musical, considerado modelo para outras instituições” (ESPIRIDIÃO, 2003, p. 68) 7 A Universidade do Rio de Janeiro tornou-se mais tarde a Universidade do Brasil e em 1965 passou a ser a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nome que mantém até hoje. Já o conservatório, a partir desta data, passou a se chamar Escola de Música da UFRJ. 33 A exemplo do Instituto Nacional de Música, outros conservatórios surgiram no cenário nacional a partir do início do século XX, quase todos por obra da iniciativa privada. Na cidade de São Paulo, de acordo com a pesquisa de Neide Espiridião (2003, p.104-111), o grande número de pessoas que estudavam música - principalmente com professores particulares de piano - criou como conseqüência um ambiente favorável à organização do ensino de música e à profissionalização, por intermédio de escola de música especializada. Assim, em 1906, foi inaugurado o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, com 134 alunos contribuintes e 48 bolsistas. O currículo de música era composto pelas seguintes disciplinas: rudimentos de música, solfejo, harmonia, piano e canto coral no curso geral; piano, canto, harpa e instrumentos de sopro nos cursos especiais. O primeiro corpo docente da sessão musical foi constituído com a colaboração dos professores mais renomados daquela época, entre os quais: Luigi Chiaffarelli, João Gomes de Araujo, Paulo Florence, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva Júnior, Felix Otero e Giulio Bastiani. Muitos outros conservatórios surgiram no Estado de São Paulo nessa mesma época. Para padronizar e nortear o currículo dessas instituições, foi estabelecido o “Plano Padrão”, pelo Conselho de Orientação Artística do Estado de São Paulo (COA, órgão criado em 1931, posteriormente transformado em Serviço de Fiscalização Artística), elaborado pelo professor Samuel Archanjo dos Santos. Segundo Espiridião, de acordo com a orientação do Plano Padrão, a aprendizagem de um instrumento musical iniciava-se pelas noções teóricas, ministradas na disciplina Teoria Elementar, Solfejo e Ditado, durante os dois primeiros meses dos cursos. “O contato com a prática instrumental era introduzido somente após esses fundamentos, significando uma valorização dos rudimentos teóricos como sustentação do arcabouço do conhecimento musical” (2003, p.301). A aprendizagem 34 do instrumento prosseguia com a predominância do desenvolvimento técnico - objetivando a virtuosidade instrumental - em detrimento dos demais conhecimentos, de modo que não havia disciplinas e repertórios musicais voltados para a cultura nacional. Ainda segundo Espiridião, o Plano Padrão direcionava os cursos profissionalizantes, de habilitação para instrumentistas, que era formado pelas seguintes disciplinas: Teoria Elementar, Solfejo e Ditado; Prática Instrumental; Harmonia Elementar; Análise Harmônica e Construção Musical; Ciências Físicas e Biológicas Aplicadas; História da Música; Prática Instrumental em Conjunto; Pedagogia aplicada à Música; Prática de Ensino e Música em Conjunto, sendo que havia notáveis diferenças em sua duração; assim, os cursos de instrumentos de sopro, viola, contrabaixo e harpa tinham a duração de oito anos, enquanto os cursos de outros instrumentos de cordas e teclado duravam dez anos). Entre outros conservatórios e escolas de música oficiais surgidos nesse período, Almeida (1926, p.217-218) cita o Conservatório da Bahia, fundado por Sylvio Fróes (1865-1948) e o Conservatório de Pelotas, fundado por Sá Pereira. Abreu e Guedes (1992, p. 102, 137 e 213) citam, ainda, o Conservatório Pernambucano de Música, fundado por Ernani Braga (1888-1948), a Escola de Música do Maranhão, fundada por João Nunes (1877-1951) e o Instituto Musical de Natal, fundado por Waldemar de Almeida (1905- 1975). Coincidência ou não, todos esses fundadores foram pianistas e professores de piano. Espiridião (2003, p.104-111) também mostra que o surgimento destes e de outros Conservatórios, responsáveis pela formação profissional de músicos, maestros, compositores e professores de música foi resultado da necessidade de sistematização do ensino de música nesses centros urbanos. Assim, os conservatórios contribuíram para o 35 desenvolvimento de um ambiente musical intenso, resultando em uma grande quantidade de pessoas que estudavam música, e, conseqüentemente, que ensinavam. Politicamente, os conservatórios que surgiam pareciam ser uma prova do progresso em educação musical no Brasil. Contudo o ensino de piano, isolado dentro dos próprios conservatórios, começava a dar sinais de defasagem e alheamento, em relação aos avanços na área da pedagogia musical e do repertório contemporâneo. Era chamado de “pianolatria” por Mário de Andrade, pelo prestígio do instrumento na sociedade, que chegara a uma verdadeira adoração. Nessa época, o domínio técnico do instrumento suplantava o sentido artístico e o conhecimento musical. Em 1935, Andrade declara: "a maioria dos conservatórios se comercializa, então (...) se tornam produtores de pianistas e violinistas, confundindo a elevação cultural de sua finalidade com as acomodações despoliciadas do ensino particular. Não são conservatórios, são cooperativas de professores particulares" (1991, p.189). Assim, os professores dos conservatórios, que serviam primordialmente as elites, se acomodavam em seus cargos, reproduzindo o ensino formal nos moldes do século XIX, que se caracterizavam por oferecerem aulas centradas em exercícios técnicos progressivos, repetição, memorização e formação de repertório – este, predominantemente europeu, apesar da influência do nacionalismo no surgimento de repertório afinado com a música brasileira. Além disso, o ensino do instrumento não significava o desenvolvimento de uma educação musical integral – em seus aspectos estéticos, técnicos e históricos -, mas o domínio exclusivo da execução instrumental. Waldemar de Almeida, professor de piano da época, assim se manifestou, a respeito de seu descontentamento com a situação que divisava: 36 “(...) a sociedade, as mais das vezes, por um princípio de economia ou por não saber valorizar os esforços empregados pelos mestres de verdade, que têm a responsabilidade do nome a defender, é a primeira a dificultar a obra de aperfeiçoamento artístico-cultural dos setores em que aqueles empregam sua atividade, levantando ela uma barreira de alta incompreensão, adubadora rica e espontânea para a pululação da mediocridade” (1956, p.189). Todavia, a despeito da situação apontada, alguns conceitos e idéias no âmbito da pedagogia pianística começavam a ser difundidos no Brasil. Tais conceitos e idéias chegavam ao país graças ao trabalho de mestres estrangeiros, que se instalaram nos grandes centros urbanos, e de pianistas brasileiros que iam buscar aperfeiçoamento musical no exterior. Um dos principais representantes dos mestres estrangeiros que se fixaram no Brasil foi o italiano Luigi Chiafarelli (1856-1923). Chiafarelli lutou pela criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, tendo feito parte do primeiro corpo docente. Passados alguns meses, porém, retirou-se, por não concordar com certos aspectos do seu regulamento e por não se adequar ao ambiente do conservatório. Com sua “constante preocupação em modificar o conteúdo programático desenvolvido por seus alunos” (JUNQUEIRA, 1982, p.26), Chiafarelli rompeu com os modelos até então vigentes, opondo-se à tradição da antiga escola pianística que vigorava em São Paulo - um repertório tipicamente italiano, com fantasias e variações sobre motivos de óperas conhecidas e aulas focadas na execução instrumental, alheias à cultura musical em geral. Em pouco tempo, Chiafarelli formou intérpretes – muitos dos quais alcançaram êxito em carreiras de prestígio no exterior - e, com isso, alcançou reconhecimento da sociedade paulistana por seu trabalho pedagógico. 37 Chiafarelli mudou-se para o Brasil em 1883, mas não deixou de manter contato com artistas estrangeiros de alto nível. Atento à contemporaneidade musical, ia à Europa todos os anos e adquiria o que de mais novo e de valor se encontrasse à venda, para utilizar como material em suas aulas. “Essas relações sócio-culturais e musicais favoreciam a formação de seus jovens alunos, voltados para a cultura nacional e internacional como um todo, no qual as artes e, em especial, a música, desfrutavam de um lugar privilegiado” (JUNQUEIRA, 1982, p.22). Por volta de 1923, Chiafarelli iniciou cursos teórico-práticos para o magistério de piano, contribuindo para a renovação do corpo docente paulista, na área do ensino pianístico. Esses cursos tinham como objetivo “avaliar o aproveitamento dos alunos, concedendo, aos que se mostravam competentes, autorização para lecionar” (JUNQUEIRA, 1982, p.33) e era organizado de modo a alcançar uma educação musical completa, caracterizada por uma série de princípios: bases do ensino; divisão dos estudos em diferentes anos; preparação estética indispensável ao professorado; modos de aproveitamento das qualidades dos alunos, e análise de repertório (JUNQUEIRA, 1982, p.206). Quanto aos pianistas que iam buscar aperfeiçoamento no exterior, destaca- se, aqui, Magdalena Tagliaferro (1893-1986). Sua atividade didática concentrou-se, principalmente, no Conservatório de Paris e nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo - cidade onde, afinal, fixou sua escola8. Tagliaferro se empenhava em aperfeiçoar a didática dos professores brasileiros, e, assim como Chiafarelli, preocupava-se em oferecer uma educação pianística que fosse além do domínio do instrumento. A própria pianista, em depoimento, afirmou: 8Atualmente Fundação Magda Tagliaferro, que abordamos no primeiro capítulo. 38 “não que não tenhamos bons professores aqui, mas ser um grande artista não é saber mexer os dedos e fazer escalas, é preciso muito mais. (...) O que importa na verdade é a mensagem musical, e para tal é preciso somente que se tenha a técnica necessária para se expressar corretamente.” (LAGUNA, 1983, p.81) Até onde foi possível averiguar, a pianista não nos deixou nenhum material escrito a respeito dos vários aspectos de sua técnica e interpretação, temendo que fossem mal compreendidos e transmitidos de maneira incorreta9. Entre as obras dedicadas à Tagliaferro, no entanto, encontramos uma possível definição de sua escola: “deve-se tocar piano com o corpo totalmente relaxado, exceto os quadris que sustentam com firmeza a espinha dorsal esticada. A sonoridade é conseguida através do movimento natural, sem forçar nenhuma parte do corpo. (...) Além disso, como não se impõe estresse excessivo às mãos, dificilmente se terá problemas com elas”. (TAMURA, 1997, P. 30). Com o apoio do Ministério da Educação, Tagliaferro inaugurou no Brasil, em 1942, os Cursos de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical, o que constituiu um grande avanço para a pedagogia pianística. Segundo o próprio Ministro da Educação da época, Sr. Gustavo Capanema, “o curso foi uma revelação da grande capacidade interpretativa, do cintilante espírito analítico, da virtuosidade e competência pedagógica e didática de Magdalena Tagliaferro. Sob a influência de seus novos processos e métodos de técnica e interpretação, de suas aulas de estética e análise musical das obras dos grandes mestres através de admiráveis preleções com as quais ilustrou o seu ensino em tão curto período, sofremos profunda transformação e conquistamos grandes progressos (...). (CAPANEMA, 1942, in LAGUNA, 1983, p.97) 9 No entanto, a escola que leva o seu nome tem como meta continuar no trabalho iniciado pela mestra e tem se dedicado a formar professores de piano, com base nos mesmos princípios difundidos por Magdalena Tagliaferro 39 Esse aperfeiçoamento dos professores de piano, por conseguinte, reverteu em considerável melhora na didática do instrumento, e significou uma ruptura em relação ao ensino tradicional. Entretanto, essa renovação do ensino de piano não obteve êxito imediato e nem conseguiu alcançar a totalidade do corpo docente, em especial nos conservatórios, de maneira que durante todo o século XX –coexistiram didáticas em oposição. Com a Lei Federal de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692/71, os conservatórios sofreram profundas modificações em seu perfil e em sua organização curricular, sendo enquadrados como instituições de Ensino Supletivo – denominado Qualificação Profissional IV. A fiscalização destes cursos passou, desde então, a ser competência da Secretaria da Educação, sendo extinto o Serviço de Fiscalização Artística – órgão destinado a inspecionar especificamente os conservatórios, e que procurava dar homogeneidade ao ensino de música ministrado por essas instituições especializadas. Os conservatórios passaram, desde então, a ter autonomia sobre seus cursos – resolução que, por um lado, acarretou na maior procura por essas instituições de ensino, e por outro, deu- lhes a primazia no oferecimento de cursos técnicos de música. Essa autonomia, com o passar dos anos, acabou transformando os conservatórios em instituições isoladas, portadoras de algumas características bastante peculiares, conforme será exposto adiante. Concluindo esse capítulo, é importante ressaltar que, a partir da década de 1930, o movimento nacionalista, aliado aos novos conceitos de pedagogia musical que começavam a ser difundidos no país e à implantação da música nas escolas – trunfo associado aos esforços do compositor Heitor Villa-Lobos junto ao então presidente Getúlio Vargas – foi propulsor de novas concepções para o ensino de piano nos conservatórios. No entanto, essas concepções não atingiram a maior parte dessas instituições e acabaram se 40 perdendo, provavelmente com a implantação da lei 5692/72 – que determinou novas diretrizes para o ensino de música nos conservatórios. 41 2. Pedagogia pianística no século XX – obras didáticas 42 Pelo fato de este estudo contemplar os cursos de piano ministrados em alguns conservatórios de São Paulo, e com o objetivo de melhor compreender o que se passa nessas escolas de formação musical e instrumental, é necessário, agora, debruçar-se sobre as práticas pedagógicas no ensino de piano vigentes no Brasil a partir do século XX, que até hoje são referenciais para o trabalho docente. Esse conhecimento é importante para dar sentido ao estudo, e para compreender que tipo de ensino/aprendizagem de piano é praticado, hoje, na cidade de São Paulo, nos conservatórios visitados durante a pesquisa, considerando que essas práticas vão estar, também, presentes em outras escolas. 2.1. A escola moderna Os conceitos e idéias no âmbito da pedagogia pianística que começaram a ser difundidos no Brasil em fins do século XIX e início do século XX consolidaram o que se considerava ser uma nova visão para o ensino de piano - a chamada escola moderna1, também conhecida como escola natural ou escola fisiológica. Por conseguinte, a essa época, começaram a ser publicadas obras na área da pedagogia pianística, produzidas por pianistas-professores brasileiros. Tais obras têm como base a própria experiência didática dos autores, os modernos conceitos advindos da Pedagogia e da Psicologia tal como então praticada, e os tratados de técnica pianística franceses e alemães - como Marmontel (1816-1898), Alfred Cortot (1877-1962), Rudolf Maria Breithaupt (1873-1945), Karl Leimer (1858-1944) e Walter Gieseking (1895-1956). Além disso, abordam as recentes descobertas do campo da Medicina, no que diz respeito à fisiologia. 1 Ao nos referirmos à escola moderna, estaremos nos detendo aos aspectos pedagógicos e que devem ser considerados no período preparatório, que constitui o cerne deste trabalho. 43 Segundo a pesquisadora Inês de Almeida Rocha (1997, p.43), os estudos realizados na área da Pedagogia vieram trazer conhecimentos a respeito da natureza da criança e da estrutura e funcionalidade de seu organismo, fases de seu crescimento físico, níveis de maturidade, processo de adaptação do organismo ao meio e contingente hereditário. A partir desses estudos, novas formas de ação pedagógica começaram a ser estruturadas, em conformidade com as diversas fases do desenvolvimento humano e tendo o aluno como o centro do processo de ensino-aprendizagem. Na área da Psicologia, segundo a pesquisadora Marina Massimi (1989), os estudos realizados determinavam o estabelecimento de relação entre os “métodos” e conteúdos de ensino e fenômenos psíquicos específicos, tais como a percepção, a emoção, a cognição e a motricidade. Segundo a autora, tais “métodos” e conteúdos “remetem à necessidade de conhecimento sobre o educando e à formação do educador, o qual deve dominar este saber para realizar mais eficazmente sua ação pedagógica” (MASSIMI, 1989, apud ANTUNES, 2003, p. 25). Havia, também, grande preocupação com o desenvolvimento das faculdades psíquicas da criança, especialmente a inteligência, seguida das sensações e da vontade. Dessa forma, os autores das publicações consultadas preocuparam-se em redigir aos professores orientações didáticas no sentido de “obter o maior rendimento com o menor possível dispêndio de material, de esforço e de tempo” (SÁ PEREIRA, 1964, p.10). Outra preocupação dos autores destacados foi o modo pelo qual se conduzia o ensino de piano, no período correspondente ao início dos estudos, considerado por eles, determinante do futuro sucesso ou fracasso do aluno. Assim, as publicações de orientação pedagógica da chamada escola moderna procuram oferecer, de maneira simples e eficiente, 44 orientação facilitadora do trabalho do professor - para que este, por sua vez, possa proporcionar aos alunos conforto e segurança ao tocar. As obras consultadas foram publicadas em diversas regiões do Brasil (o que demonstra a propagação das idéias da escola moderna em todo o país) e ao longo de mais de 50 anos (o que comprova sua aceitação pelos professores de diferentes lugares e épocas). Os temas abordados pelas publicações são praticamente os mesmos, como: atuação do professor, condições do aluno, maneira de estudar, técnica, leitura, sonoridade, memorização, ritmo, interpretação, indicação de “métodos” e estudos. Em resumo, as obras que versam a respeito de pedagogia pianística vêm, portanto, criticar e refutar certos princípios do ensino tradicional – ou escola antiga do piano -, que aqui se sintetiza, a partir de leituras realizadas: • despreparo psicológico e pedagógico do professor, gerando desistências e conflitos no relacionamento professor-aluno; • imposição da autoridade do professor (sem questionamento ou manifestação dos alunos); • ênfase colocada na obrigação, por parte do aluno; • imposição de disciplina por prêmios e castigos; • ausência de um método a ser seguido: o ensino consistia em uma seqüência de peças e estudos progressivos, sem qualquer organização; • uso da repetição mecânica para fixação do conteúdo – valorização da quantidade (número de vezes tocadas, número de horas de estudo), em detrimento da qualidade; • ênfase na memorização como confirmação do aprendizado; • estudo do repertório (predominantemente europeu) como cerne das aulas - ausência de exercícios preparatórios; 45 • falta de objetividade: desprezo pela rapidez e eficiência do aprendizado; • desconhecimento da Fisiologia e da Anatomia, levando à execução de movimentos com articulação exagerada, posições uniformes e inflexíveis e energia produzida somente pelos dedos (ênfase no mecanismo); • favoritismo: seleção de alunos dotados de condições físicas consideradas ideais para um pianista (a chamada “mão pianística”) ou ainda, crença no “dom” ou “vocação” especial para a Música; • ensino generalizado, sem diferenciação por faixa etária e quanto ao repertório – sendo que os estudos musicais eram considerados possíveis se iniciados na infância; • ensino centrado na aprendizagem do instrumento, em detrimento da aprendizagem de Música em seus múltiplos aspectos históricos, técnicos e estéticos; • ensino centrado nas aulas (sendo várias durante a semana), não promovendo a autonomia dos alunos, incapazes de estudar individualmente - levando à dependência do professor por um longo período de tempo; • as audições públicas como finalidade do estudo (ênfase no aprendizado do repertório, que deveria ser bem preparado para ser apresentado). De acordo com as obras estudadas, todos esses fatores levariam a distúrbios de aprendizagem, que poderiam ser evitados desde o início dos estudos, ou ainda, que poderiam ser corrigidos em alunos adiantados, caso houvesse uma correta aplicação dos princípios da escola moderna por um professor responsável. Sá Pereira (1964, p. 10-11), cuja obra “O ensino moderno de piano” é pioneira no gênero, entre as obras estudadas, sintetiza esses distúrbios de aprendizagem ou “defeitos do ensino habitual de piano”: 46 deficiência de leitura; deficiência do senso de localização no teclado; impedimento físico; impedimento psicomotor e ausência de controle auditivo. Procurando sanar esses “defeitos”, os livros consultados apresentam uma série de fundamentos necessários para um estudo bem sucedido, que podem ser resumidos em três itens principais, a saber: aprender a ler, a governar os movimentos e a escutar atentamente; para que houvesse um bom desenvolvimento desses três primeiros fundamentos; o aluno, também, precisaria aprender a pensar por conta própria – ou seja, realizar um estudo racional. Verifica-se, aqui, que a escola moderna, apesar de trazer inovações quanto aos procedimentos para o desenvolvimento da técnica pianística, ainda é focada no ensino da leitura, sendo esse o primeiro passo para o desenvolvimento musical. Dessa maneira, acredita-se que, com isso, o pianista teria uma base sólida, que poderia levá-lo a seguir a carreira de concertista ou ser um competente professor de piano. 2.2. A atuação do professor A necessidade de ensinar um instrumento dentro dos ideais pedagógicos e psicológicos da escola moderna levou professores de piano a realizarem reflexões a respeito de sua própria didática. Assim, para exercer o magistério de maneira plena, as obras da escola moderna recomendavam que o professor de piano tivesse certos requisitos, entre eles: • conhecimento do repertório, inclusive saber tocar (bem) a obra que o aluno está estudando; • conhecimentos básicos de Psicologia, Fisiologia e funcionamento do piano; 47 • gosto pelo ensino, traduzido pelo interesse em aperfeiçoar cada vez mais sua própria didática; • empatia, para conquistar a confiança dos alunos; • organização: ter em mente um plano prévio e uma boa metodologia (baseada em dados fisiológicos e psicológicos) para apoiar seus ensinamentos; • paciência para esperar os resultados; • vigilância, para perceber os erros, investigar suas causas e corrigi-los a tempo; • atualização constante, traduzida no domínio dos modernos métodos de ensino; • exercício diário ao piano, para poder solucionar problemas técnicos juntamente com o aluno. Constatou-se que, entre as obras estudadas, a que mais apresenta informações de ordem didática é O ensino de piano, de Guilherme Fontainha. Entre essas informações, o autor ministra alguns conselhos práticos aos jovens professores, que se referem principalmente ao relacionamento professor-aluno: • ser pontual • estar sempre atento durante a lição2 • insinuar-se a fim de merecer a amizade e a confiança do aluno; • lecionar a todos com igual eficiência e interesse; • agir com muita calma e paciência; • não deixar transparecer preferência por algum aluno; 2 A palavra lição na escola moderna é freqüentemente usada para designar uma aula. 48 • evitar fazer alarde da “superioridade evidente” de algum aluno, deixando ao próprio aluno reconhecê-la; • permitir que o aluno se expanda com naturalidade, expondo suas idéias e pedindo sua opinião; • responder com clareza a todas as perguntas; • não deixar sem correção qualquer erro; • tratar as crianças com desvelo especial. (FONTAINHA, 1956, p.21) Afora todos esses pontos levantados, Fontainha, ainda destaca que o professor da escola moderna deveria se esforçar para que, em pouco tempo, o aluno conseguisse sozinho detectar suas falhas, superar suas dificuldades, e ir ainda mais além. A respeito desse ponto, o autor declara: “não exijo que os alunos sejam iguais a mim. Quero- os, depois dos estudos concluídos, muito superiores” (1956, p.36). Sá Pereira (1964, p. 9- 10), nesse mesmo sentido, afirma que é a falta de orientação racional do ensino que leva o aluno a depender do professor por um longo período de tempo. Esse princípio também contrapõe-se à escola antiga, em que a tendência era deixar o aluno dependente do professor pelo máximo de tempo possível. Nesse mesmo sentido, Fontainha (1956, p.9) assevera que é responsabilidade do professor orientar seus alunos a respeito dos benefícios resultantes da prática de cada exercício realizado e apresentar-lhes o objetivo visado, para que o aluno possa controlar seu estudo com segurança e atenção contínua. Dessa maneira, acreditava-se que o aluno consciente tende a conseguir progressos significativos, e a se sentir mais satisfeito com os resultados de seus estudos, do que os que não atingem essa condição. 49 Visando a um ensino de piano heterogêneo e, ao mesmo tempo, personalizado, Pelafsky aconselha que o professor observe seu aluno, investigando suas preferências, tomando conhecimento de suas ocupações exteriores à aula, avaliando suas capacidades, e que, a partir dessa observação, trace com ele um programa individual de estudos. Sendo assim, caberia ao professor ter versatilidade para adaptar sua didática a cada aluno, levando em conta suas características individuais: “daí o discernimento dos professores, em aquilatar as situações divergentes, em encaminhar cada um de acordo com a idade respectiva, com a formação anatômica das mãos, com o estado psíquico do aluno, e até com as influências externas sobre o aluno, provenientes do meio-ambiente em que ele vive” (PELAFSKY, 1954, p.41). Para Kaplan (1987, p. 43-44), a consideração destes mesmos aspectos - as informações relativas ao aluno -, aliada à escolha do material didático a ser empregado e a modalidade prática do trabalho é determinante da eficácia no ensino. Com relação ao material didático, o autor sugere que o professor selecione uma questão a ser trabalhada, procure peças de diversas épocas e estilos que contenham essa questão e analise quais obras se coadunam com as características e preferências do aluno. Depois de apresentar, ou seja, tocar na aula essas peças, é o aluno quem vai fazer a opção pela peça a ser estudada, desde que tenha as condições técnicas necessárias para sua execução. A escolha do material didático é uma atitude de grande responsabilidade do professor: “a falta de um critério alicerçado em premissas científicas na escolha do material de estudo, faz com que o iniciante enfrente desde o começo – especialmente quando se trata de crianças de 7-8 anos de idade – uma série de problemas de tal envergadura, que não é raro que perca a motivação e o gosto pelo estudo do instrumento escolhido” (KAPLAN, 1987, p. 99). 50 A modalidade prática do trabalho a ser escolhida pelo professor, segundo Kaplan, corresponde diretamente à verificação do progresso do aluno, isto é, ao desenvolvimento da execução instrumental e sua compreensão por parte do aluno. Ou seja, de acordo com as opções do professor no que diz respeito ao número de aulas realizadas por semana (bem como a sua duração) e à orientação a respeito da maneira adequada de se estudar. Quanto ao primeiro aspecto, Kaplan declara: “a prática usual nos conservatórios e escolas de música de dedicar somente uma ou duas horas de aula por semana ao ensino instrumental, inclusive nas suas etapas iniciais, resulta um tanto insólita, pois é evidente que, em se tratando de uma aprendizagem tão complexa, a assiduidade da orientação do professor é condição essencial para atingir os resultados desejados” (1987, p.102). O segundo aspecto é relacionado às seqüências de aprendizagem mais adequadas ao efetivo progresso do aluno, isto é, às decisões a respeito da seqüência dos estudos, duração do período de prática, freqüência desses períodos, orientação sobre a melhor maneira de resolver os problemas técnicos que a obra em estudo apresenta, e outros. A obra de Kaplan (1987, p. 62-63), sendo uma das mais recentes estudadas neste trabalho, apóia-se em princípios da psicologia da aprendizagem, trazendo, inclusive, conceitos que podem ser encontrados na obra de Piaget. Com isso, avança em relação a obras anteriores, escritas numa época em que esse conhecimento ainda não estava difundido entre professores de música. Dentre esses conceitos, destaquem-se a maturação e a motivação, consideradas, pelo autor em estudo, fatores básicos no processo de aprendizagem. Kaplan explica a maturação como o amadurecimento das funções do sistema nervoso central que permitem o aprimoramento das capacidades motoras. Em 51 outras palavras, maturação significa “crescimento acompanhado por câmbios na habilidade funcional” (KAPLAN, 1987, p. 50). Assim, de acordo com o nível de maturação do aluno é que se verificariam a velocidade de assimilação de um determinado conteúdo, e a complexidade de realização de uma tarefa. A motivação, segundo Kaplan, é um fator fundamental para que o aluno aprenda efetivamente: é preciso que ele encontre, na prática pianística, significado e valores que dêem sentido ao esforço – físico e mental - que realiza. Quando o aluno é forçado a estudar uma obra que nada significa para ele (ou é convencido a fazê-lo pelos argumentos fracos do professor), a falta de motivação previsivelmente o levará ao desinteresse e abandono dos estudos. Para evitar tal fato, Kaplan sugere que o professor analise a obra com o aluno, mostre-lhe sua estrutura e busque outros fatores que possam incentivar o estudo. Cabe aqui discernir motivação e incentivo: para ele, motivação significa satisfazer os motivos pessoais que influenciam o indivíduo a desenvolver as atividades necessárias para aprender, enquanto que incentivo é o processo que consiste em propiciar situações que despertem o interesse e a atenção do aluno, para que inicie e continue o aprendizado. 2.3. Técnica do peso do braço ou “escola natural do peso” Etimologicamente a palavra técnica significa “saber como fazer”. Hazan (1984, p.13) define o termo como “a habilidade de traduzir em sons da maneira mais fiel possível aquilo que se está idealizando interiormente”. Dentro dos princípios da escola moderna, uma técnica eficiente significa obter-se um bom resultado, com o menor dispêndio de energia possível. Sendo assim, a escola moderna ou escola do peso do braço substitui a força muscular pelo peso do braço e 52 de parte do peso do corpo: “enquanto que a escola antiga impunha a imobilidade total da mão, ao percutir as teclas, já a escola moderna exige a completa liberdade da mão, ante- braço, braço e tronco, escola essa que muitos chamam de ‘escola natural do peso’ ” (PELAFSKY, 1954, p.37). Assim, encontra-se, nessa visão, a busca pela completa liberdade muscular, em contraposição ao sistema “rígido e primitivo” da escola antiga. Segundo os autores consultados, a técnica de peso traz uma série de vantagens ao pianista; quanto mais o peso do braço se descarrega sobre a tecla, maior a velocidade que se imprime ao martelo e maior, também, o volume da sonoridade. Além disso, segundo Fontainha (1956), a substituição da força muscular pelo peso do braço exclui a fadiga; permite uma execução mais rápida e brilhante e proporciona igualdade mecânica e bela sonoridade, uniforme para todos os dedos (p.37). Para melhor explicar a técnica do peso de braço, os autores consultados partem do funcionamento do mecanismo - que significa a destreza, o controle, a velocidade e a coordenação dos movimentos. Para que o pianista tenha controle do mecanismo, é necessário usar apenas os músculos (ou grupo de músculos) efetivamente necessários para o movimento desejado - no menor grau de contração possível - e deixar relaxados os músculos que momentaneamente não são precisos e podem perturbar ou impedir a ação dos primeiros. Tal processo é chamado dissociação muscular (KAPLAN, 1987, p.36). Uma vez que o controle da execução dos movimentos do pianista está no sistema nervoso central, segundo o mesmo autor (1987, p.20), os músculos passam a ser “servos” do cérebro. Sendo assim, poder-se-ia afirmar, em consonância com esse pensamento, que o esforço muscular significaria a falta de consciência do executante – daí a necessidade de uma técnica racional, em detrimento de uma “educação física” dos dedos. 53 Sendo assim, uma técnica perfeita resultaria na completa coordenação dos movimentos requeridos na execução pianística, o que constitui um trabalho complexo. Para Sá Pereira (1964, p.28) essa coordenação depende de dois fatores: físico (flexibilidade das juntas) e neuro-muscular (coordenação dos impulsos nervosos, correspondente aos elementos de ordem psíquica). Essa concepção representaria um grande avanço em relação à escola antiga, segundo a qual tocar significava, unicamente, o que os dedos podiam produzir (conforme Lacerda, 1973, p.18). Os autores consultados constatam que, em geral, quando o aluno encontra grande dificuldade técnica, acaba tencionando os músculos ao invés de relaxá-los. Para que isso não ocorra, seria necessário que ele soubesse distinguir as sensações de contração (tensão) e relaxamento (repouso) na musculatura do corpo e empregar racionalmente as diversas partes do braço que se movimentam para produzir o som, mantendo-os sob controle, do ombro à ponta dos dedos. Isso significaria que “o pianista deve conhecer os limites de sua própria estrutura física e do seu instrumento” (HAZAN, 1984, p.15), realizando movimentos conscientemente. Assim como Hazan, Almeida (1956, p. 91) entende que o esforço muscular é resultado do desconhecimento e da incompreensão do próprio corpo. São “mil esforços inúteis que a ignorância dos recursos orgânicos do nosso aparelho tátil leva o aluno desavisado a fazer”. Assim, a insistência nesse procedimento de colocar em ação todos os músculos do corpo para mover apenas os dedos acabaria levando ao cansaço, ao desânimo e, conseqüentemente, à desistência. Sendo assim, o preparo de uma boa técnica significaria o aperfeiçoamento da coordenação dos diversos grupos musculares e o som deveria ser obtido sem que o 54 esforço muscular ultrapassasse o estritamente necessário. Fontainha comenta: “o esforço muscular exagerado é o pior inimigo do pianista” (1956, p. 39). Lacerda adverte que os movimentos não naturais, decorrentes do uso da força muscular (ou “movimentos forçados”), são contraproducentes e até mesmo perigosos: “são um entrave, uma barreira, onde se detém a emotividade, a interpretação, torna-se enfim obstáculo para a exteriorização das idéias musicais pelo executante” (1973, p.24- 25); além disso, de acordo com o mesmo autor, fazem que o aluno adquira vícios, tornando o estudo improdutivo - com baixo aproveitamento e rendimento – podendo, inclusive, provocar traumatismos ou, mesmo, distensões musculares, com sérias conseqüências. Fontainha (1956) comenta que, na escola antiga, era comum ocorrerem lesões nos nervos dos membros superiores, como a serose3 (considerada a “moléstia dos pianistas”), e outros graves acidentes que impossibilitariam a continuidade de estudos. Sinais de dor não eram investigados nem combatidos na escola antiga, mas significavam “ganho de resistência”. 2.4. Estudo individual (preparo técnico) Todos os autores são unânimes ao afirmar que uma das causas do insucesso ou fracasso de grande número de estudantes de piano é não saber estudar. Acompanhando todos os processos modernos de aprendizagem, a escola moderna prevê a necessidade de racionalização do estudo, que, nas palavras da pianista Lina Pires de Campos, significa “submeter à crítica da razão todos os processos de produção, a fim de evitar esforços e gastos inúteis de tempo e energia” (CAMPOS, 1987, p.7). 3 Serose, segundo Fontainha, é a hérnia da parte superior da articulação do pulso. 55 De acordo com esse princípio, Lacerda adverte que “todo e qualquer estudo é intelectual, e não simplesmente digital” (1973, p.48-49) e ainda assegura que o estudo não racional faz com que as condições psíquicas e fisiológicas do aluno sejam atrofiadas, pois não há aproveitamento integral de suas capacidades. O preparo de uma obra, segundo Kaplan (1987, p. 17) exige estruturas funcionais de caráter psicomotor, que têm relação direta com parâmetros como a percepção, a experiência prévia, o grau de conhecimento, e a capacidade física de execução de cada aluno. Caberia a ele, portanto, adaptar suas estruturas às exigências de cada obra – considerando que cada uma delas é única -, buscando desenvolver suas potencialidades em pouco tempo e com facilidade. Percebe-se, aqui, a preocupação dos autores em tornar o estudo sistemático e centrado na execução da peça (ou peças) em questão - aspectos trabalhados em aula e que deveriam ser reforçados em casa, pelo aluno. Em outras palavras, o que se defende, nesses