UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CLAUDIELE CARLA MARQUES DA SILVA RELAÇÕES ENTRE AMBIENTE SOCIOMORAL, DESEMPENHO ESCOLAR E PERSPECTIVA SOCIAL EM JULGAMENTO MORAL: ANÁLISES EM ESCOLAS PÚBLICAS PRESIDENTE PRUDENTE 2017 CLAUDIELE CARLA MARQUES DA SILVA RELAÇÕES ENTRE AMBIENTE SOCIOMORAL, DESEMPENHO ESCOLAR E PERSPECTIVA SOCIAL EM JULGAMENTO MORAL: ANÁLISES EM ESCOLAS PÚBLICAS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia – UNESP – Campus de Presidente Prudente, como requisito obrigatório para obtenção do título de Doutora em Educação. Orientadora: Maria Suzana De Stefano Menin. Linha de Pesquisa: Desenvolvimento Humano, Diferença e Valores PRESIDENTE PRUDENTE 2017 DEDICATÓRIA Às crianças e jovens de escolas públicas de todo o país, que muitas vezes têm seu direito à qualidade da educação negligenciada e são excluídas “na própria escola”. Aos que vivenciam sua escolaridade em ambientes marcados pela coerção e pelo medo. Aos alunos, professores e equipe gestora das escolas observadas. Aos meus pequenos e grandes alunos. É a vocês que dedico este trabalho! AGRADECIMENTOS Começo meus agradecimentos parafraseando Paulo Freire, que, em sua imensa sabedoria, disse: “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca”. Em meu processo de busca, a alegria só foi possível na construção deste trabalho, pois pude contar com diversas pessoas, cada uma de sua forma, em todos os momentos, escutando, orientando, apoiando e compreendendo minhas ausências. A vocês o meu muito obrigada, em especial: À minha família, base de minha vida. Ao meu esposo, Diego Giulliano Destro Christofaro, companheiro e amigo de todas as horas, por ouvir minhas angústias e sempre me apoiar a continuar no trabalho e na luta do dia a dia. Minhas filhas amadas Maria Clara e Teresa, que ainda em meu ventre vivenciaram as correções sugeridas pela Banca de Defesa, por vocês sempre vou mais longe do que posso. Ao meu pai, Josival Irineu da Silva, e a minha mãe, Idalina Marques da Silva (in memoriam), pelo exemplo de vida, por me possibilitar viver a liberdade de pensamentos e sentimentos e, acima de tudo, por me dar exemplos de valores nobres como a honra e o respeito. Aos meus irmãos, Josiele Ap. Marques Magron e Altieres Silvio Marques da Silva, е sobrinhos, Maria, Pedro, Júlia, Manuela e Laura, que adoçam minha vida e deixam meus dias mais alegres. À minha querida orientadora, Maria Suzana De Stefano Menin, por quem guardo enorme admiração e carinho, por ser um exemplo de pessoa íntegra, dedicada e competente. Agradeço todo o apoio, confiança e disponibilidade. O meu muito obrigada pelas orientações excepcionais e pela parceria desde a graduação. À professora Dra. Maria Cristina del Barrio Martinez e Dra Patrícia Unger Raphael Bataglia por aceitarem participar prontamente da banca de qualificação, pela leitura criteriosa do trabalho e pelas ricas contribuições e indicações de leituras que muito auxiliaram na elaboração da tese. Aos membros da banca de defesa, Dra. Gilza Maria Zauhy Garms, Dr. José Aloyseo Bzuneck, Dra Patrícia Unger Raphael Bataglia e Dra. Telma Pileggi Vinha por aceitarem participar da arguição desse trabalho. Aos suplentes, Dr. Divino José da Silva, Dra Lívia Maria Ferreira, Dr. Raul Aragão Martins e Dra Suely Edi Rufini. Aos meus colegas do Programa de Pós-Graduação, por compartilhar conhecimentos, inquietudes e incentivo mútuos durante o percurso deste trabalho. Aos professores do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em Pedagogia da Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP, que me fazem sentir verdadeira a afirmação de Antoine de Saint-Exupéry “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Obrigada por esses 10 anos de convivência! Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação, que prontamente e com toda simpatia me prestaram esclarecimentos e me auxiliaram nos momentos de dúvida. À Paula e à Beatriz, secretárias do Departamento de Educação, pelas dicas e por me socorrerem em diversos momentos. A Deus e à Nossa Senhora, de quem sou devota, fonte de vida e esperança em minha vida! Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que essa arte caia em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem. (BAUMAN, 2000, p. 14) RESUMO Esta tese foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP. A pesquisa investigou as relações entre ambiente sociomoral e clima escolar de duas classes em diferentes escolas públicas: uma escola com bom desempenho escolar (escola A) e outra com baixo desempenho (Escola B), segundo notas obtidas no Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP). Nessas escolas, avaliou-se o ambiente sociomoral, clima escolar e o nível de perspectiva social em julgamento moral dos alunos. A amostra foi composta por alunos e professores de duas classes do 5º ano do ensino fundamental. Para avaliar o ambiente sociomoral, aplicamos um questionário sobre clima escolar e realizamos observações do cotidiano da escola. O nível de perspectiva social em julgamentos morais dos alunos foi avaliado por meio de nove histórias, em forma de situações-problema, que envolvem o valor justiça. As questões que orientaram a pesquisa foram: Em que medida o ambiente sociomoral da escola possibilita um melhor desempenho escolar dos alunos? Quais fatores do ambiente sociomoral poderiam favorecer esse bom desempenho escolar dos alunos? Alunos que apresentam um bom desempenho escolar, no sentido de boas notas escolares, têm também perspectiva social mais descentrada em seus julgamentos morais? O ambiente sociomoral da classe na escola A foi caracterizado como propenso à cooperação e na classe da escola B como tendência coercitiva, de acordo com os critérios utilizados na pesquisa. Na literatura nacional e internacional, estudos mostram que há relação positiva entre ambiente sociomoral da escola, especialmente o clima educativo, e o desempenho acadêmico dos alunos. Nesta pesquisa essa relação também foi confirmada, pois escola A se mostrou mais favorável à aprendizagem dos alunos ao disponibilizar um ambiente mais harmônico, com poucos casos de violência e de relações hostis, em que os profissionais demonstraram estar comprometidos com a educação dos alunos e tinham uma alta expectativa em relação à aprendizagem; as regras eram conhecidas por todos, os discentes podiam questionar sobre dúvidas em relação ao conteúdo e eram cobrados em relação aos estudos; havia a pessoalidade de tratamento. Os alunos demonstraram estar mais satisfeitos com a escola, com os colegas e com os profissionais em comparação aos alunos da escola B. Em contrapartida, na escola B, as normas e regras que regiam as relações não eram debatidas ou mesmo de conhecimento da maioria dos alunos; violência, incivilidade e indisciplina faziam parte do cotidiano dos alunos e eram tratados como “naturais”. Os conflitos eram erroneamente tratados, ou por serem ignorados ou por serem aplicadas sanções expiatórias, sem que fossem envolvidos processos como diálogo ou a busca pela reparação. As percepções dos alunos sobre ações de justiça da escola e do professor foram mais positivas na escola A quando comparada à escola B. No julgamento moral sobre as histórias sobre justiça constatamos que as crianças que convivem em um ambiente mais democrático/cooperativo (Escola A) tendem a dar mais respostas pró-valores em seus julgamentos, baseando-se nas normas sociais convencionais, em contratos coletivos, na necessidade do uso do diálogo para resolver conflitos ou em valores considerados universalizáveis. Na escola B, as respostas basearam-se em contravalor e pró-valor numa perspectiva individualista ou egocentrada ou centrada nas relações grupais e em normas sociais mais convencionais. Portanto, constatamos que um ambiente sociomoral cooperativo/democrático na escola influencia o desempenho acadêmico dos alunos e, também, seu desenvolvimento nas perspectivas sociais em que fazem julgamentos de justiça. Tornam-se necessários o aprofundamento de pesquisas na área e o investimento na formação dos professores para que possam compreender a importância dessa temática tanto para formação ética e moral dos alunos como para propiciar seu desempenho acadêmico. Palavras-chave: Ambiente sociomoral. Perspectiva social em julgamentos morais. Desempenho escolar. ABSTRACT This thesis was developed in the Graduate Program in Education of FCT / UNESP. The research investigated the relationships between sociomoral environment of two classes in different public schools: one school with a good record of performance (school A) and one with a poor record of performance (School B), according to the scores obtained in the Education Development Index of the State of São Paulo (IDESP). In these schools, the sociomoral environment and the level of social perspective in moral judgment of the students were evaluated. The sample was composed of students and teachers two classes the fifth year of elementary school. To evaluate the sociomoral environment, we applied a questionnaire on school climate and made observations the daily life of the school. The level of social perspective in students about moral judgments was evaluated through nine stories, in the form of problem situations, involving justice value. The questions that guided the research were: To what extent does the sociomoral environment of the school provide a better scholastic performance of the students? What factors of the sociomoral environment could improve this good school performance of the students? Do students who maintain a good school performance, in the sense of good school grades, also have a more decentralized social perspective in their moral judgments? The sociomoral environment of the class in school A was characterized as prone to cooperation and in class B as a coercive tendency (according to the criteria used in the research). In the national and international literature, studies show that there is a positive relationship between the sociomoral environment of the school, especially the educational climate, and the academic performance of the students. In this research, this relationship was also confirmed. School A was more favorable to student learning by providing a more harmonic environment, with few cases of violence and hostile relationships. The professionals showed commitment to the education of the students and had A high expectation regarding learning; The rules were known by all, the students could question teacher’s about doubts about the content and were instructed in relation to the studies; school A used personal treatment. The students were more satisfied with the school A, with their colleagues, and with the professionals compared to students in school B. In contrast, school B, rules and governing relations rules were not debated or unknown to most Students; Violence, incivility and indiscipline were part of the students' daily life and were treated as "natural." Conflicts were mistakenly dealt with either because they were ignored or because expiatory sanctions were applied without involving processes such as dialogue or the search for reparation. Students' perceptions of school and teacher justice were more positive in school A compared to school B. In moral judgment about justice stories we found that children living in a more democratic / cooperative environment (School A) tend to give more pro-values answers in their judgments, they tended to base themselves on conventional social norms, collective contracts, the need to use dialogue to resolve conflicts, or on values considered universalizable. At school B, the answers were based on countervalue and pro-value in an individualistic or egocentric perspective or centered on group relationships and more conventional social norms. Therefore, we found that a cooperative / democratic sociomoral environment in the school, influences students' academic performance, and also their development in social perspectives, where they make judgments about justice. It is necessary to deepen research in the area and invest in the training of teachers, so that they can understand the importance of this subject, both for ethical and moral formation of students, and to promote their academic performance. Keywords: Sociomoral environment. Social perspective in moral judgments. School performance. LISTA DE QUADROS Quadro 1- Distribuição dos estados que contam com sistemas próprios de avaliação.............28 Quadro 2- Valores de referência para definição dos níveis de desempenho IDESP................32 Quadro 3- Distribuição das notas por níveis de desempenho IDESP.......................................97 Quadro 4- Indicadores da escola A e B no IDESP...................................................................98 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Percepções dos alunos sobre seu desempenho escolar.........................................121 Tabela 2 – Percepções dos alunos sobre os processos de aprendizagem e a escola...............122 Tabela 3 – Percepções dos alunos sobre as atividades escolares............................................124 Tabela 4 – Percepções dos alunos sobre desempenho dos professores..................................126 Tabela 5 – Percepções dos alunos sobre sua aprendizagem...................................................129 Tabela 6 – Percepções dos alunos sobre as relações entre pares............................................132 Tabela 7 – Percepções dos alunos sobre as relações entre crianças e adultos........................134 Tabela 8 – Percepções dos alunos sobre as ações do professor..............................................136 Tabela 9 – Autopercepção dos alunos sobre as suas relações com os professores.................138 Tabela 10 – Percepções dos alunos sobre as relações com as regras na escola......................140 Tabela 11 – Percepções sobre a justiça relacionada à ação do professor...............................144 Tabela 12 – Percepções sobre a justiça relacionada à ação da escola.....................................146 Tabela 13 – Autopercepções sobre pertencimento.................................................................148 Tabela 14 – A quem pediria ajuda se fosse agredido, insultado ou tivesse fotos ou vídeos ofensivos postados na internet?...............................................................................................151 Tabela 15 – Percepções dos alunos sobre clima de segurança...............................................154 Tabela 16 – Percepções sobre a atitude do professor diante de brigas ou agressões entre alunos......................................................................................................................................156 Tabela 17 – Percepções sobre as atitudes da escola diante de brigas ou agressões entre alunos......................................................................................................................................158 Tabela 18 - Percepções dos alunos sobre o uso dos recursos e espaços escolares.................161 Tabela 19 - História sobre justiça 1........................................................................................166 Tabela 20 - História sobre justiça 2 .......................................................................................168 Tabela 21 - História sobre justiça 3........................................................................................170 Tabela 22 - História sobre justiça 4........................................................................................171 Tabela 23 – História sobre justiça 5........................................................................................172 Tabela 24 – História sobre justiça 6........................................................................................173 Tabela 25– História sobre justiça 7.........................................................................................175 Tabela 26 – Categorias de respostas da história sobre justiça 8.............................................176 Tabela 27– Categorias de respostas da história sobre justiça 9..............................................178 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CETPP - Centro de Estudos de Testes e Pesquisas Psicológicas DOAJ - Directory of Open Access Journals ECIEL - Programa de Estudos Conjuntos de Integração Econômica Latino-Americana ENADE - Exame Nacional de Desempenho de Estudantes ENCCEJA - Exame Nacional de Competências para o Ensino de Jovens e Adultos ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FCC - Fundação Carlos Chagas IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDESP- Índice de desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo INEP - Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais LDBEN - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC - Ministério da Educação PISA - Programme for International Student Assessment PNE - Plano Nacional de Educação REDALYC - Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica SAEP - Sistema de Avaliação do Ensino Público de 1º grau SARESP - Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo SEDUC - Secretaria Municipal de Educação SCIELO - Scientific Eletronic Library Online UFC - Universidade Federal do Ceará SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15 1. MEDIDAS DE AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO ESCOLAR ............................... 22 1.1 As avaliações em larga escala no Brasil e em São Paulo: origens e tendências ....... 22 1.2 Avaliação em larga escala do Estado de São Paulo: SARESP e IDESP .................. 30 1.3 IDESP e desempenho escolar: relação com a qualidade da educação ..................... 32 2 CONSTRUÇÃO DE VALORES SOCIOMORAIS NA ESCOLA E PERSPECTIVA SOCIAL NO DESENVOLVIMENTO MORAL ................................................................. 37 2.1 A Escola e a Construção de Valores Sociomorais ...................................................... 43 2.2 Práticas possíveis de educação em valores no ambiente escolar............................... 48 2.3 Construção dos valores sociomorais na perspectiva construtivista de Piaget e cognitivo-evolutiva de Kohlberg ................................................................................ 56 2.4 Perspectiva social em julgamentos morais de justiça ............................................... 65 2.4.1 O valor de justiça e algumas pesquisas educacionais ......................................... 68 3 AMBIENTE SOCIOMORAL DA ESCOLA: AS RELAÇÕES COM O DESEMPENHO ESCOLAR E O DESENVOLVIMENTO MORAL dos alunos ............ 73 3.1 Ambiente Sociomoral na escola: definições ................................................................ 75 3.2 As relações entre Ambiente Sociomoral e Desempenho Escolar na Literatura da área ............................................................................................................................... 80 3.3 As relações entre Ambiente Sociomoral e o Desenvolvimento de valores morais 84 4 DELINEAMENTO METODOLÓGICO ...................................................................... 88 4.1 Problema e hipótese .................................................................................................... 88 4.2 Objetivos ...................................................................................................................... 89 4.3 Percurso da pesquisa .................................................................................................. 90 4.3.1 Escolha das escolas e salas ................................................................................. 90 4.3.2 Escolha e elaboração dos instrumentos .............................................................. 90 4.3.3 Instrumentos de observação................................................................................ 91 4.3.4 Instrumentos de medidas de clima escolar ......................................................... 92 4.3.5 Medida de Perspectiva Social no Julgamento de justiça .................................... 93 4.4 Formas de Análise dos dados ....................................................................................... 94 5 RESULTADOS ................................................................................................................ 97 5.1 Caracterização das escolas A e B .............................................................................. 97 5.2 Observações ............................................................................................................... 101 5.2.1 Observações sobre as relações com a aprendizagem........................................ 102 5.2.2 As relações sociais na escola, regras de convivência e conflitos ..................... 109 5.3 Questionários sobre ambiente sociomoral .............................................................. 118 5.3.1 Clima educacional ............................................................................................ 120 5.3.2 As relações sociais na escola ............................................................................ 132 5.3.3 As relações com as regras na escola.................................................................. 139 5.3.4 As relações sociais na escola e a percepção sobre justiça ................................. 143 5.3.5 Clima de pertencimento ..................................................................................... 147 5.3.6 As relações sociais na escola e o clima de segurança ........................................ 153 5.3.7 Recursos e espaços escolares ............................................................................. 160 5.4 Análise sobre perspectiva social em julgamentos de histórias sobre justiça ......... 164 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 180 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 193 ANEXOS ............................................................................................................................... 208 15 INTRODUÇÃO Não é de hoje que se percebe, e muitas vezes se vivencia, um chamado retrocesso na preservação de valores voltados à dignidade humana e um aumento da violência, da incivilidade e do desrespeito em vários espaços sociais, não só no Brasil, mas globalmente, notadamente no ambiente escolar. A violência, microviolências e as incivilidades são acontecimentos corriqueiros do cotidiano escolar se manifestam por conflitos contínuos entre professores e alunos e entre os próprios alunos. De acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), de modo geral o Brasil deveria superar três grandes dificuldades historicamente enraizadas, relativas ao acesso ao ensino, à permanência e à qualidade da educação. O acesso e a permanência dos alunos na escola básica são aspectos que têm melhorado nos últimos anos, apesar de ainda não terem sido totalmente superados, como resultado da democratização do ensino. Porém, o quesito qualidade da educação ainda está muito longe do ideal que queremos e de que precisamos para nossos alunos. O termo qualidade é polissêmico e carrega múltiplas significações. Entendemos que a qualidade da escola não pode ser representada apenas por boas notas escolares e fluxo escolar dos alunos, como é o caso do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e o Índice de Desenvolvimento do Estado de São Paulo (IDESP), pois, apesar de esses critérios serem de extrema importância, são simplificadores do ponto de vista da educação como função social da formação global do cidadão. Diante desse fato, defendemos que só poderá ser alcançada qualidade na educação quando ela englobar, além de aspectos cognitivos e do fluxo escolar, a formação de cidadãos comprometidos com o outro e com a sociedade na qual vivem ou, como bem coloca La Taille (2009), com a formação de personalidades éticas. Portanto, pensar em qualidade da escola é pensar em diversos aspectos que estão interligados e que não podem se esvair em uma única discussão simplificadora. Devemos refletir sobre o ambiente de convivência em que os alunos vivenciam suas relações, relacionam- se com pessoas diferentes, aprendem, divergem e se desenvolvem, já que as relações estabelecidas na escola e no ambiente social são fundamentais e podem inferir tanto sobre os processos pedagógicos da instituição quanto no desenvolvimento de cidadãos. Algumas pesquisas sobre educação no Brasil e em outros países têm demonstrado que um dos principais problemas na educação formal contemporânea ocorre em relação às questões comportamentais (AQUINO, 1998; DEBARBIEUX, 2006; LEME, 2006; SPOSITO, 1998, 2001), como indisciplina, violência, incivilidades e, também, ao fracasso escolar dos alunos, 16 evidenciado pelas avaliações em larga escala, tanto nacionais como internacionais (ANGELUCCI et al., 2004; CONBOY et al. 2013)1. As pesquisas desenvolvidas por nós no mestrado (SILVA, 2013) e na Iniciação Científica (SILVA; MENIN, 2013) corroboram com esses dados acima citados, no que se refere à queixa dos profissionais da educação sobre questões comportamentais. Ao analisar por que escolas públicas do Estado de São Paulo desenvolveram projetos de educação em valores, obtivemos duas grandes tendências de respostas dos agentes escolares: a primeira foi a de consolidar, ou desenvolver, valores como respeito e cidadania; e a segunda tendência de respostas apontava a necessidade de melhora na convivência entre os alunos, da diminuição da violência e/ou agressividade. Entre outros resultados, essas pesquisas (SILVA, 2013; SILVA; MENIN, 2013) demonstraram que os agentes escolares não estavam preparados para trabalhar com a educação em valores no ambiente escolar; quando o faziam, os projetos desenvolvidos pelas escolas se confundiram com processos disciplinares, usaram métodos inadequados ligados à imposição ou transmissão de valores ou implementaram iniciativas isoladas e temporárias desarticuladas com a realidade do aluno e a comunidade do entorno escolar. Nesse mesmo sentido, outras pesquisas ligadas à área da Psicologia da Moralidade (MENIN, 2002; RAMOS, 2013; TARDELLI, 2003; TOGNETTA; VINHA, 2007) também têm demonstrado que os professores não estão preparados teoricamente para lidar com questões de indisciplina, violência, desrespeito ou conflitos no ambiente escolar, de forma que tais problemas são trabalhados erroneamente, ignorados ou contidos, e agravados em longo prazo. Paralelamente, é corriqueira a falta de interesse dos alunos pelas metodologias e conteúdo das aulas. A falta de adequações no currículo escolar e nas metodologias docentes faz com que o aluno se sinta descomprometido e desestimulado em aprender, pois o que muitas vezes ocorre é a mera transmissão de conteúdo. Sabemos que apenas um bom desempenho escolar não é suficiente para o desenvolvimento de uma sociedade mais pacífica, justa, democrática ou solidária. Basta vermos a grande quantidade de crimes cometidos pelos “colarinhos brancos” com cursos de educação superior, ou as manipulações de jornalistas com formação sólida, ou tantas outras ações cometidas contra o outro ou a sociedade por pessoas com alta escolaridade. Assim, além de um bom desempenho acadêmico, buscamos a construção de uma escola que forme cidadãos comprometidos eticamente com as pessoas e a sociedade na qual vivem. Ou seja, defendemos nesta tese a incorporação de um trabalho de qualidade com o 1 Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e Programme for International Student Assessment (PISA) 17 conhecimento aliado às boas formas de se relacionar com o outro no ambiente escolar e na sociedade. A motivação que nos levou a desenvolver essa pesquisa deriva dos estudos desenvolvidos desde a graduação no grupo de pesquisa “Projetos bem-sucedidos de educação moral: em busca de experiências brasileiras”, em que sempre esteve presente a preocupação com a formação moral e ética dos alunos, e também da experiência enquanto professora da educação básica. Como professora da educação básica, a questão da convivência na escola sempre foi uma temática que nos preocupou, pois é notável um despreparo das escolas, de modo geral, em proporcionar um ambiente sociomoral cooperativo em que os alunos tenham a oportunidade de se desenvolver e se relacionar. Além disso, vimos diariamente os discursos dos profissionais da educação preocupados com as avaliações externas e as notas desses exames, sem se preocupar, no entanto, com as condições do ambiente escolar que é oferecido aos alunos. Não só os profissionais da educação, mas também as políticas públicas educacionais voltadas às avaliações externas, como veremos, se preocupam quase que exclusivamente com as notas dos escolares em testes padronizados, esquecendo-se de outros aspectos que permeiam a qualidade da escola. Diante desse contexto, a pesquisa tem como objetivo investigar as possíveis relações entre desempenho escolar, ambiente sociomoral da escola e níveis de perspectiva social em julgamentos morais de alunos do quinto ano de duas escolas públicas com realidades distintas. O critério para a seleção das escolas se constituiu nas notas que as escolas do interior paulista obtiveram no IDESP do ano de 2013, sendo uma escola com média alta de desempenho escolar (Escola A) e outra com média baixa no desempenho escolar (Escola B). Entendemos como ambiente sociomoral a rede de relações constituídas na escola por seus diversos membros; referimo-nos à qualidade das relações vivenciadas e percebidas que moldam as atitudes e servem de referência para interpretar as situações que ocorrem nesse ambiente, envolvendo valores e sentimentos partilhados pelos sujeitos, assim como relações sociais e com o conhecimento. Diversas pesquisas no Brasil (RAMOS, 2013; TOGNETTA; VINHA, 2007) e em outros países, como Portugal (COSTA, 2007), Espanha (DELVAL; ENESCO, 1994; DIAZ- AGUADO; MEDRANO, 1999), têm desenvolvido estudos correlacionando o ambiente sociomoral com o desenvolvimento de certos valores, modos de resoluções de conflitos e diferentes julgamentos por parte dos alunos e professores. Por outro lado, ainda são escassas as 18 pesquisas2 que correlacionam o tipo de ambiente sociomoral de escolas com diferentes desempenhos escolares e como esses fatores têm incidido sobre a perspectiva social dos alunos em seus julgamentos morais. A partir dessas discussões, pontuamos alguns questionamentos que direcionaram a investigação do problema proposto:  Em que medida o ambiente sociomoral da escola possibilita um melhor desempenho escolar dos alunos? Quais fatores do ambiente sociomoral poderiam favorecer esse bom desempenho escolar?  Quais as possíveis influências do ambiente sociomoral mais cooperativo ou mais coercitivo nas perspectivas sociais em julgamentos morais dos alunos?  Alunos que apresentam um bom desempenho escolar, no sentido de boas notas escolares, têm também perspectiva social mais descentrada em seus julgamentos morais? Para responder às questões acima citadas, o caminho metodológico desta pesquisa foi estruturado em torno de quatro etapas:  levantamento bibliográfico sobre a temática e elaboração dos capítulos;  observações do cotidiano escolar de ambas as turmas selecionadas e aplicação dos questionários sobre ambiente sociomoral nos alunos e professores;  aplicação de pequenas histórias sobre o valor justiça nos alunos;  análise e estabelecimento de relações entre os dados. Realizamos o levantamento bibliográfico com base nos escritos da atualidade sobre avaliações em larga escala, desenvolvimento moral e construção de valores éticos que se inspiram na Psicologia do Desenvolvimento Moral. Esse levantamento se constituiu de teses, dissertações, artigos científicos, revistas e livros que abordam a temática publicada nos últimos anos, com a finalidade de investigar como as relações entre desempenho escolar, ambiente sociomoral e perspectiva social em julgamentos morais aparecem na literatura. Com ele, objetivamos aprofundar a fundamentação teórica da pesquisa para análise dos dados coletados. 2 Analisaram-se pesquisas disponíveis no banco de dados da SCIELO, REDALYC e DOAJ publicadas de 2000 até a atualidade. 19 Para avaliar o ambiente sociomoral da escola adaptamos para esta pesquisa dois instrumentos que consideramos complementares entre si: Ficha de observação do Ambiente Escolar e as relações Autoritárias Cooperativas (TOGNETTA, 2003) (Anexo I) e o Questionário sobre Qualidade do Ambiente Sociomoral3 (VINHA, 2016) (Anexo II). Realizamos observações no ambiente escolar no primeiro e segundo semestre de 2015, em cerca de 40 horas de observações em cada escola. Observamos as relações entre alunos e entre alunos e professores em diferentes situações escolares, como horários de entrada e saída, recreio, atividades desenvolvidas dentro e fora da sala, aulas de Educação Física e outros. Ao final das observações, digitalizamo-las no computador e preenchemos a Ficha de observação do Ambiente Escolar e das relações Autoritárias/Cooperativas, adaptada de Tognetta (2003). Ao final das observações, aplicamos um questionário adaptado sobre ambiente sociomoral, elaborado pelo GEPEM sob coordenação de Vinha (2016), a alunos e professores de ambas as turmas. Para análise da Perspectiva Social no Julgamento de justiça dos alunos de ambas as turmas, desenvolvemos nove histórias baseadas em problemas do cotidiano escolar inspiradas na pesquisa desenvolvida pela Fundação Carlos Chagas “Avaliando valores em escolares e seus professores: proposta de construção de uma escala” (TAVARES; MENIN, 2015). Tivemos como hipótese que um ambiente sociomoral cooperativo e/ou democrático na escola influencia o desenvolvimento da perspectiva social em julgamentos morais dos alunos, pois, nesse ambiente, as relações são marcadas pelo respeito mútuo, confiança, diálogo e contribuem, assim, para que os indivíduos se desenvolvam moralmente e coordenem seus pontos de vista com os pontos de vista de outras pessoas. Como segunda hipótese, afirmamos que, num ambiente sociomoral mais cooperativo/democrático, as situações de aprendizagem são mais bem aproveitadas devido ao clima favorável para o diálogo e para trocas cognitivas, facilitando o desempenho escolar dos alunos. Destacamos que pesquisar sobre como o ambiente sociomoral tem afetado o desempenho escolar e a perspectiva social em julgamentos morais dos alunos é de suma importância para refletir e buscar escolas que tenham como finalidade a formação integral do sujeito, tanto em aspectos ligados à sua formação ética, de convivência, quanto em aspectos ligados à formação acadêmica. Além disso, os resultados da pesquisa poderão servir de subsídios teóricos e práticos para nortear cursos de formação de professores e futuras pesquisas na área. 3 Instrumento elaborado pelo Grupo de Estudos em Educação Moral (GEPEM) da UNICAMP, sob coordenação da Prof. Dra. Telma Vinha, financiada pela Fundação Leman, FAPESP E e pelo Itaú BBA. 20 Para conduzir a discussão aqui proposta, além deste capítulo introdutório, que objetiva apresentar os contornos da temática escolhida, a tese está estruturada em torno de outros seis capítulos, que, no conjunto, visam a apresentar os avanços teóricos e empíricos da pesquisa. Considerando os objetivos propostos, organizamos a pesquisa inicialmente com um quadro teórico, visando a aprofundar e possibilitar a análise dos dados coletados. No primeiro capítulo, intitulado “Medidas de avaliação do desempenho escolar”, apresentamos um panorama geral dos avanços da avaliação em larga escala no Brasil e no Estado de São Paulo, bem como descrevemos os procedimentos metodológicos, conteúdos e objetivos do IDESP e sua relação com a qualidade da educação. Por fim, problematizamos as avaliações em larga escala, apresentando estudos e pesquisas que apontam suas limitações no cenário educacional brasileiro. No segundo capítulo, denominado “Construção de valores sociomorais na escola e perspectiva social no desenvolvimento moral”, apresentamos os referenciais teóricos, com base, principalmente, em autores como Piaget (1932/1994; 1930/1998), Kohlberg (1976/1992) e na Psicologia da Moralidade, que serviram de fundamento para apresentar o entendimento sobre a construção dos valores sociomorais e o desenvolvimento da perspectiva social em julgamentos morais. Inicialmente, discutimos a construção dos valores sociomorais na escola, levando em conta as contradições e as especificidades da sociedade atual; num segundo momento, apresentamos práticas possíveis de educação em valores no ambiente escolar subsidiadas pela perspectiva construtivista de Piaget e cognitivo-evolutivo de Kohlberg e como tais práticas influenciam na perspectiva social e no desenvolvimento moral dos alunos. Em seguida, no terceiro capítulo, apresentamos e discutimos o conceito de ambiente sociomoral da escola adotado nesta pesquisa e também as pesquisas e estudos recentes que tratam sobre a temática, a fim de compreender as relações que são estabelecidas entre ambiente sociomoral, desempenho escolar e a perspectiva social em julgamento moral de justiça dos alunos em suas perspectivas sociais. No quarto capítulo, tratamos sobre o delineamento metodológico, em que apresentamos, mais detalhadamente, os passos da pesquisa: coleta dos dados, objetivos, hipóteses, escolha do referencial teórico e a forma de análise dos dados. Os resultados são apresentados no quinto capítulo, em que caracterizamos as escolas analisadas, a descrição do ambiente sociomoral em seus diversos aspectos (clima de aprendizagem, clima relacional, relações com as regras, percepção sobre justiça, clima de pertencimento, clima de segurança, e os recursos e os espaços escolares) e a perspectiva social em julgamentos morais dos alunos de ambas as turmas. 21 Por fim, no último capítulo, desenvolvemos as considerações finais do trabalho e as conclusões decorrentes deste estudo. 22 1. MEDIDAS DE AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO ESCOLAR Eu tô aqui Pra quê? Será que é pra aprender? Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer? [...] Manhê! Tirei um dez na prova Me dei bem, tirei um cem e eu quero ver quem me reprova Decorei toda lição Não errei nenhuma questão Não aprendi nada de bom Mas tirei dez (boa, filhão!) Nesse capítulo, formado por três tópicos, pretendemos apresentar as avaliações externas e em larga escala como medidas de avaliação do desempenho escolar no Brasil. No primeiro tópico, “As avaliações em larga escala no Brasil e em São Paulo: origens e tendências”, apresentamos, brevemente, o percurso das avaliações em larga escala com o intuito de elucidar como essa prática política e ideológica se configurou na realidade brasileira e suas organizações e implicações no cenário atual, posteriormente afunilando essa análise ao Estado de São Paulo. No segundo tópico, “Avaliação em larga escala do estado de São Paulo – SARESP e IDESP”, definimos o que é SARESP, IDESP e sua organização e critérios avaliativos. No terceiro tópico, “IDESP e desempenho escolar: relação com a qualidade da educação”, aprofundamos o debate sobre a relação entre desempenho escolar medido pelo IDESP e qualidade escolar, assim como apresentamos críticas realizadas por estudiosos sobre as avaliações em larga escala. 1.1 As avaliações em larga escala no Brasil e em São Paulo: origens e tendências4 Importante a elucidação inicial de que há, pelo menos, dois tipos de avaliação: aquela mais ampla, informal, entendida como toda ação humana de fazer julgamentos, e a avaliação sistematizada, formal que ocorre em ambientes institucionais. 4 Diversos autores têm se debruçado, com níveis de complexidade diferentes, buscando compor um detalhamento histórico da avaliação na área da educação em seus vários aspectos. O objetivo deste trabalho, menos ambicioso, é traçar brevemente a evolução desse tipo de avaliação no Brasil citando alguns marcos relevantes para o desenvolvimento da área que influenciaram sua atual constituição, com ênfase na avaliação em larga escala desenvolvida no estado de São Paulo – SARESP/IDESP –, que será utilizada nesta pesquisa como critério de seleção das escolas. 23 No dicionário Michaelis (2015), encontramos uma definição ampla para o conceito de avaliação: “Ato de avaliar. Apreciação, cômputo, estimação. Determinação do justo preço de qualquer coisa alienável. Valor de bens, determinado por avaliadores”. O ato de avaliar, julgar, estimar, apreciar, em seu sentido amplo, faz parte das relações humanas e se confunde com a própria história do homem, pois “o homem observa, o homem julga, isto é, avalia” (STAKE apud VIANNA, 2000, p. 22). Utilizando a mesma linha de raciocínio, Worthen, Sanders e Fitzpatrick (2004) afirmam que a avaliação é um conceito tão antigo que se confunde com a própria história do homem. Para ilustrar essa afirmação, os autores dão como exemplos a prática de avaliação ou julgamento do homem Neanderthal para selecionar os tipos os materiais que melhor se adequavam na confecção das lanças ou, ainda, os antigos proprietários rurais da Inglaterra, que avaliaram que arcos mais longos seriam mais eficientes que seus arcos curtos (bestas). Fica claro que a avaliação é uma prática antiga, que se confunde com a própria história do homem e está presente em diversas atividades humanas enquanto prática informal, baseada em percepções, e social, utilizada não só como mecanismo de julgamento, mas, também, de seleção. Portanto, avaliar envolve escolhas e decisões assumindo-se os mais diversos significados e utilidades sobre como definir qual percurso seguir para ir de uma cidade a outra ou qual o melhor tipo de roupa dependendo da estação do ano (BAUER, 2006). Já a avaliação sistemática e formal se faz presente, especialmente na educação, de forma preponderante na aferição do desempenho escolar, tanto em termos de escolas (avaliações internas) quanto em termos dos órgãos diretivos públicos aplicados em larga escala (avaliações externas), tal como explicitadas por Vianna (2003): Quando nos referimos às avaliações internas, temos em mente aquelas realizadas pelas escolas. É evidente que a avaliação na escola é parte do processo formativo, constituindo o trinômio ensino-aprendizagem-avaliação, sob a orientação do professor (p. 17). As avaliações externas, realizadas quase sempre mediante proposta dos órgãos diretivos do sistema (Ministério da Educação, Secretarias de Estado da Educação), são recomendáveis, na medida em que representam um trabalho não comprometido com a administração educacional e as políticas que a orientam. São avaliações que traduzem uma visão de fora e supostamente isentas em relação a possíveis idiossincrasias próprias dos sistemas educacionais (p. 18). As avaliações internas do desempenho escolar podem ser das mais variadas e englobar desde a observação do professor, avaliações bimestrais, portfólios, autoavaliação, entre outros5. 5 Diversos estudos se aprofundam sobre os métodos de avaliação interna como constituinte do processo formativo de estudantes. Consideramos essa forma de avaliar importante instrumento pedagógico, mas não caberá nesta pesquisa aprofundá-la. 24 Não aprofundaremos o debate sobre as diferentes formas e organização da avaliação interna realizada pelo professor, já que essa temática extrapola os objetivos e a discussão empreendida nessa tese. De acordo com Worthen, Sanders e Fitzpatrick (2004), as ações pioneiras de avaliação formal de programas e sistemas escolares estão ligadas à pesquisa social empírica qualitativa, desenvolvida no fim do século XVII, com forte influência das Ciências Naturais. Outra grande influência que inspira fortemente as avaliações educacionais atuais se relaciona com as transformações ocorridas no século XIX, tanto na forma sobre como avaliar os alunos (que se caracterizava como avaliação oral em público) quanto na intensificação da avaliação como um instrumento de validação das práticas escolares e seleção de alunos, baseado na meritocracia (SOBRINHO, 2002). Exemplos dessas experiências no século XIX são encontrados em países como Irlanda, Estados Unidos e Inglaterra, decorrentes de uma pressão por reforma educacional. Apesar de tais experiências influenciarem em como as formas de avaliação são propostas hoje, e que apresentaremos a seguir, elas se diferem das atuais em objetivos e funções. De acordo com Bauer (2006, p. 36), Nas primeiras iniciativas, a avaliação estava muito relacionada à mensuração do rendimento individual dos alunos, através de testes escritos, com fortes preocupações em avaliar suas capacidades psíquicas [...] nesse sentido pode-se dizer que a avaliação do século XIX e do início do século XX foi dominada por uma perspectiva psicológica, que buscava mensurar a inteligência e o desempenho dos alunos. A partir da década de 30 do século XX, observa-se a ampliação da avaliação para além das medidas individuais dos alunos, em contrapartida à das aquisições propiciadas pelos programas escolares. Tal fato foi influenciado fortemente pela recessão em países, como os Estados Unidos, que estavam passando por uma reorganização social e econômica, que se traduzia em três elementos desenvolvidos, inicialmente, para o gerenciamento industrial: sistematização, padronização e eficiência. Esses três elementos, típicos do gerenciamento industrial, passaram a afetar toda a sociedade, principalmente a educação (VIANNA, 1995). De acordo com Sobrinho (2002, p. 21-22), nesse período A avaliação deveria se dedicar ao êxito na escolarização. Comprometia-se, então, com a ideologia da eficiência social. Os objetivos educacionais eram estabelecidos em função do desenvolvimento industrial e com esforço de recuperação da economia norte-americana. Observa-se, então, uma certa ampliação do campo da avaliação. Continua sendo fundamentalmente um processo de medida, porém, agora, mais preocupada com a adequação dos currículos às exigências sociais e econômicas, com a formulação de objetivos e a medida de seu cumprimento. A avaliação, nessa fase, ganha um sentido mais operativo: ela passa a averiguar até que ponto os currículos e 25 as práticas pedagógicas estão atingindo os objetivos de levar a escola a ser eficaz e alcançar as metas de eficiência que a economia exigia. Portanto, torna-se mais evidente a sua racionalidade instrumental. Ainda que permanecesse muito centrado nas escolas e, sobretudo, no eixo ensino-aprendizagem, seu campo se ampliou, na medida em que passou a articular os rendimentos dos alunos às questões de currículos e programas. Sua importância também cresceu como mecanismo de controle e seleção, segundo a lógica utilitarista que então predominava, bem como a aceitação de sua fidelidade e cientificidade, graças ao aperfeiçoamento dos instrumentos de testes e medidas. Nessa ocasião, a comunidade educacional passa a se preocupar com metodologias de avaliação capazes de medir a eficiência de seus professores, determinar padrões que pudessem aferir a eficácia das escolas e dos diversos sistemas educacionais, de acordo uma lógica implementada pela indústria (VIANNA, 1995). É também nesse período, década de 60, que as preocupações com avaliações em larga escala surgiram no Brasil, ainda que incipientes, encadeadas por estudos e pesquisas internacionais, principalmente nos Estados Unidos, Inglaterra e França. Nesse período, as pesquisas em avaliações foram marcadas pela descontinuidade; “[...] as poucas iniciativas desse tipo, ou seja, de pesquisa avaliativa, desencadeada na década de 60 estiveram marcadas pela descontinuidade e não permitiram que se acumulassem experiências e conhecimentos mais sistemáticos na área” (BONAMINO, 2002, p. 37). No final da década de 70 do século XX, começam a se desenvolver, mais profundamente, estudos no âmbito da avaliação educacional. A partir dos anos de 1980, a literatura sobre avaliação educacional cresce enormemente e surgem, então, novos posicionamentos teóricos e propostas práticas, enriquecendo e tornando múltiplo o campo da avaliação. As preocupações sobre as avaliações em larga escala passam a permear pesquisas nacionais, reflexões e grupos de estudos de diferentes universidades, centros de estudos e pesquisas, como a Fundação Getulio Vargas/RJ, através do Centro de Estudos de Testes e Pesquisas Psicológicas (CETPP), Programa de Estudos Conjuntos de Integração Econômica Latino-Americana (ECIEL) e Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (INEP) (GATTI, 2013). Nesse período, década de 70 e 80 do século XX, a centralidade da avaliação se volta para os aspectos técnicos do processo avaliativo, relegando a segundo plano questões ideológicas e políticas que permeiam esse processo. Gatti (2013) aponta que, na década de 1980, houve um marco na história do desenvolvimento de estudos de políticas avaliativas, com o desenvolvimento da avaliação do projeto EDURURAL, que era um programa de educação desenvolvido em todos os Estados do 26 Nordeste brasileiro. Tal avaliação, financiada pelo Banco Mundial (BM), foi realizada por meio de uma parceria entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Fundação Carlos Chagas (FCC), nos anos de 1981, 1983 e 1985, nos Estados de Ceará, Piauí e Pernambuco. Foram aplicadas provas de Português e Matemática a crianças de 2ª e 4ª séries do ensino fundamental de 603 escolas rurais. Tal empreitada foi pensada com o intuito de acompanhar a implementação e o desenvolvimento do projeto em seus vários aspectos, como gerenciamento geral do projeto e local, professores, organizações municipais de ensino, alunos e famílias. Diversos aspectos conjuraram para o aparecimento e fortalecimento das avaliações em larga escala no Brasil. Entre esses aspectos, podemos citar o desenvolvimento e fortalecimento de pesquisas e experiências avaliativas (Edurural), pressão de organismos internacionais como o BM e, também, uma preocupação latente do MEC de averiguar a qualidade da educação pública oferecida aos alunos. Nesse contexto surgiu, em 1988, o primeiro projeto desenvolvido pelo órgão federativo de avaliação em larga escala, denominado de Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Público de 1º Grau (SAEP) desenvolvido em parceria MEC/INEP (GATTI, 2013; VIANNA, 1988). Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Público de 1º Grau – o primórdio da avaliação em larga escala no Brasil Essa avaliação de rendimento escolar inicialmente foi aplicada nos Estados do Paraná e Rio Grande do Norte, abrangendo as turmas de 1ª, 3ª, 5ª e 7ª séries; posteriormente, foi aplicada, também, no 3º ano do Ensino Médio. Tal avaliação abordava temas como Língua Portuguesa (com redação), Matemática e Ciências e ocorria a cada dois anos. Duas forças estavam atuantes, nessa época, para fortalecer os processos de avaliação externa no Brasil: o Banco Mundial, que exigia a avaliação de desempenho do programa Edurural, efetivado no convênio com o MEC; e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e o próprio MEC, que buscavam concretizar uma avaliação em larga escala da qualidade do ensino público. O SAEP foi desenvolvido em dois ciclos, em 1990 e 1993, de modo descentralizado pelos estados e municípios e com o envolvimento de professores, técnicos da secretaria de educação e pesquisadores, tanto no desenvolvimento quanto na análise dos dados. Essa organização se deu conforme princípios de descentralização operacional e organizativa com o intuito de adquirir certa legitimidade acadêmica e aceitação social. 27 Os baixos resultados decorrentes dessa avaliação, entre os anos de 1988 e 1991, impactaram negativamente em toda a sociedade, pois grande parte dos alunos de escola pública ficou abaixo da média esperada. Aliado ao fracasso dos alunos e reforçado pelos empréstimos com o Banco Mundial, no ano de 1995, o sistema de avaliação assume um novo contorno, passando a ser denominado de Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Segundo o MEC, O SAEB foi criado tendo por objetivo central promover uma avaliação externa e em larga escala da Educação no Brasil, visando a construir dois tipos de medidas. A primeira, de aprendizagem dos estudantes e, a segunda, dos fatores de contexto correlacionados com o desempenho escolar. A implementação da avaliação em larga escala se constituiu com a intenção de subsidiar os formuladores e os executores das ações governamentais na área educacional em todos os níveis de governo. Com a avaliação se pretende averiguar a eficiência dos sistemas no processo de ensino e aprendizagem e, também, a equidade da educação oferecida em todo o país (BRASIL, 2010, p. 1). Nesse período, ocorre uma reorganização na avaliação em larga escala no sentido de uma concentração das tomadas de decisões da União e um afastamento progressivo dos estados, professores e pesquisadores dos processos avaliativos. Segundo Werle (2011, p. 775), “as ações do MEC se restringem à definição dos objetivos gerais do Sistema de Avaliação, os professores das Universidades passam a ter ‘posição subalterna’, bem como as administrações locais veem reduzida sua ação ao simples apoio logístico na fase de aplicação das provas”. O SAEB tinha por base uma amostra nacional de alunos, englobando estudantes do ensino fundamental (4ª e 8ª série) e ensino médio (3º ano) das redes públicas e privadas, da zona urbana e rural. Inicialmente, foi desenvolvido com provas objetivas no modelo clássico, limitando-se a duas disciplinas curriculares (Português e Matemática), e aplicação de questionário informativo sobre alunos e escolas. Segundo Gatti (2013, p. 56), o SAEB apresentava dois grandes eixos em sua estrutura de organização: O primeiro voltado ao acesso do ensino básico no qual se verificava o atendimento à demanda (taxas de acesso e taxas de escolarização), e a eficiência (taxas de produtividade, taxas de transição e taxas de eficiência interna); o segundo eixo era relativo à qualidade, implicando num estudo de quatro dimensões relativas: 1) ao produto – desempenho do aluno quanto à aprendizagem de conteúdos e desenvolvimento de habilidades e competências; 2) ao contexto – nível socioeconômico dos alunos, hábitos de estudo, perfil e condições de trabalhos dos docentes e diretores, tipo de escola, grau de autonomia da escola, matriz organizacional da escola; 3) ao processo – planejamento do ensino e da escola, projeto pedagógico, utilização do tempo escolar, estratégias de ensino; 4) aos insumos – infraestrutura, espaço físico e instalações, equipamentos, recursos e materiais didáticos (p. 56). 28 Cabe destacar que, no ano de 1996, a Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996) é sancionada, ratificando o processo de avaliação externa como obrigatório, determinando sua universalização, de acordo com o que consta no artigo 87: Art. 87. É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei. [...] § 3º Cada Município e, supletivamente, o Estado e a União, deverá: [...] IV - integrar todos os estabelecimentos de ensino fundamental do seu território ao sistema nacional de avaliação do rendimento escolar (BRASIL, 1996). Foi nesse período que alguns Estados e Municípios, dado seu papel pouco significativo e participativo no SAEB, passaram a criar seus próprios sistemas de avaliação. Dentre as 27 unidades federativas, sendo 26 estados e um Distrito Federal, apenas seis estados não desenvolveram seus próprios sistemas de avaliação6. O Estado de Sergipe conta apenas com um sistema de avaliação dos professores. A seguir, apresentamos no Quadro 1 as avaliações em larga escala desenvolvidas pelos estados brasileiros. Quadro 1: Distribuição dos estados que contam com sistemas próprios de avaliação ESTADO NOMENCLATURA AVALIAÇÃO EDUCACIONAL ESTADO NOMENCLATURA AVALIAÇÃO EDUCACIONAL Acre Sistema Estadual de Avaliação da Aprendizagem Escolar (Seape) Pará Sistema Paraense de Avaliação Educacional (Sispae) Alagoas Sistema de Avaliação Educacional de Alagoas (SAVEAL) Paraíba Sistema de Avaliação da Educação do Estado da Paraíba (IDEPB) Amazonas Sistema de Avaliação do Desempenho Educacional do Amazonas (Sadeam). Paraná Sistema de Avaliação da Educação Básica do Paraná (SAEP) Bahia Sistema de Avaliação Baiano da Educação (SABE) Pernambuco Sistema de Avaliação Educacional de Pernambuco (SAEPE) Ceará Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (SPAECE) Piauí Sistema de Avaliação Educacional do Piauí (SAEPI) Distrito Federal Avaliação Distrital do Desempenho Escolar do Estudante Rio de Janeiro Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) Espírito Santo Programa de Avaliação da Educação Básica do Espírito Santo (PAEBES) Rio Grande do Sul Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul (SAERS) 6 Levantamento realizado em novembro de 2014. 29 Goiás Sistema de Avaliação Educacional do Estado de Goiás (SAEGO) Rondônia Sistema de Avaliação Educacional de Rondônia (SAERO). Maranhão7 Sistema Maranhense de Avaliação da Aprendizagem Escolar (Simae) São Paulo Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) Mato Grosso do Sul Sistema de Avaliação da Educação Básica de Mato Grosso do Sul (SAEMS) Tocantins Sistema de Avaliação do Estado do Tocantins (SALTO), Minas Gerais Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública (Simave) Fonte: Dados da autora. Desde então, diversas avaliações em larga escala nacional, estadual e municipal têm sido implementadas no campo educacional brasileiro nos mais diversos níveis de ensino, como Exame Nacional de Competências para o Ensino de Jovens e Adultos (Encceja), Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE), entre outros. Ainda nos anos de 1990, o Brasil passou a participar do Programa Internacional de Avaliação da Proficiência Educacional (PISA). O PISA é uma avaliação internacional elaborada por especialistas de diversos países e tem por objetivo fazer um estudo comparativo entre o desenvolvimento da educação em diferentes países. No Brasil, a avaliação foi aplicada em duas capitais, São Paulo e Pernambuco, em adolescentes de 13 anos, independentemente da série que cursavam. Os resultados do PISA também mostraram um baixo desempenho educacional de crianças brasileiras dessa faixa etária. Portanto, é nos anos de 1990 que as avaliações em larga escala se difundiram no Brasil e em diversos países. Até o início dessa década, o MEC abarcava profissionais dos sistemas de ensino e professores do ensino superior nos processos avaliativos, porém, depois de 1995, a avaliação foi reforçada, terceirizada e concretizada como ação do poder público federal, separando os diferentes níveis em que a avaliação da Educação Básica se processou, conforme aponta pesquisa de Werle (2011). Foi nesse cenário que os estados passaram a elaborar suas próprias avaliações, como é o caso do Estado de São Paulo. Em 2007, o INEP dá início ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) em que são articulados, para análise da nota que varia de 0 a 10, o desempenho acadêmico dos 7 Em vias de implementação, o Maranhão elaborou uma proposta de criação do Sistema Maranhense de Avaliação da Aprendizagem Escolar (Simae), que foi discutida em 24 de março de 2014 por gestores da Secretaria de Estado da Educação (Seduc) e da Universidade Estadual de Educação (Uema). Dados disponíveis em: (http://www.casacivil.ma.gov.br/2014/03/25/maranhao-criara-sistema-de-avaliacao-de-aprendizagem/). 30 alunos medido pelo indicador de desempenho e o fluxo escolar por meio da média de aprovação dos alunos em cada série escolar. Nesse mesmo ano, surge no estado de São Paulo o Índice de Desenvolvimento do Estado de São Paulo (IDESP), com mesma lógica de funcionamento, como veremos no decorrer do trabalho. 1.2 Avaliação em larga escala do Estado de São Paulo: SARESP e IDESP No Estado de São Paulo, foi criado, no ano de 1996, o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), influenciado pelas políticas avaliativas que estavam se intensificando no país desde 1990. O Saresp foi implementado nas gestões de Mário Covas e Geraldo Alckmin (1995- 2001), que delegaram à avaliação um espaço de destaque nas políticas educacionais estaduais. Ele foi criado com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino básico estadual de acordo com rendimento escolar dos alunos. Durante esses 20 anos (1996-2016), por questões prioritariamente políticas, o SARESP foi marcado por diversas mudanças, tanto em relação a sua estrutura e metodologia de avaliação quanto a sua abrangência. A avaliação do SARESP é aplicada de forma censitária, compreendendo a totalidade dos alunos do ensino regular das turmas do 2º, 3º, 5º, 7º e 9º anos do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio. No SARESP são avaliados os conhecimentos dos alunos por meio de provas com questões de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e redação. Além do texto, para medir os conhecimentos nessas determinadas disciplinas, os alunos respondem a um questionário com informações sobre características pessoais, como condições socioeconômicas e situação escolar. Os professores e a gestão escolar são responsáveis de fornecer dados sobre os métodos de ensino, o tipo de gestão escolar e a organização do projeto político pedagógico. As notas obtidas no SARESP são um dos critérios para o desempenho das escolas municipais e estaduais no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do Estado de São Paulo (IDESP), que é apresentado a seguir. 31 O Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP) Ideologicamente, a avaliação externa está relacionada com a mensuração da qualidade escolar. Tal qualidade é definida por critérios como desempenho acadêmico, mensurado pelo domínio das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, e pelo fluxo escolar, caracterizado como a não repetência. O Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP) foi criado em 2007 para avaliar a qualidade das escolas dos anos iniciais (1º a 5º anos) e finais (6º a 9º anos) do Ensino Fundamental e no Ensino Médio em cada escola do Estado de São Paulo. O IDESP é calculado por meio de dois fatores, o desempenho, que avalia o quanto os alunos aprenderam, e o indicador de fluxo, que avalia quanto tempo os alunos levam para aprender. O desempenho dos alunos é medido pelos resultados dos exames de Língua Portuguesa e Matemática do SARESP, excluindo temas como Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Redação. O fluxo escolar corresponde à série/ano dos alunos; assim, quanto maior o número de alunos repetentes, menor é a nota no IDESP; e quanto maior o número de aprovações, maior é a nota. De acordo com as notas obtidas pelos discentes, podemos agrupá-los em quatro níveis de desempenho, definidos a partir das expectativas de aprendizagem da Proposta Pedagógica do Estado de São Paulo, que são: abaixo do básico, básico, adequado e avançado. De acordo com a Nota Técnica do EDESP, no nível abaixo do básico, os alunos demonstram domínio insuficiente dos conteúdos, competências e habilidades requeridos para a série escolar em que se encontram. No nível básico, os alunos demonstram desenvolvimento parcial dos conteúdos, competências e habilidades, requeridos para a série escolar em que se encontram. No nível adequado, os alunos demonstram conhecimentos e domínio dos conteúdos, competências e habilidades requeridos para a série escolar em que se encontram. Por fim, no nível avançado, os alunos demonstram conhecimentos e domínio dos conteúdos, competências e habilidades além do requerido para a série escolar em que se encontram (Nota Técnica do IDESP, 2014). Os valores de referência para a definição dos níveis de desempenho se encontram no Quadro 2. 32 Quadro 2: Valores de referência para definição dos níveis de desempenho IDESP Língua Portuguesa Nível 5º ano Ensino Fundamental Matemática Nível 5º ano Ensino Fundamental Abaixo do básico < 150 Abaixo do básico < 175 Básico 150 a < 200 Básico 175 a < 225 Adequado 200 a < 250 Adequado 225 a < 275 Avançado ≥ 250 Avançado ≥ 275 Fonte: http://idesp.edunet.sp.gov.br/ Segundo a Nota técnica do IDESP, o indicador de desempenho se baseia na quantidade relativa de alunos em cada um desses níveis de proficiência, a partir do cálculo da defasagem. A distribuição dos alunos em níveis de desempenho indica a defasagem (def) da escola em relação às expectativas de aprendizagem de cada componente curricular. Assim, a defasagem da escola é crescente com o nível de atraso escolar dos alunos, em termos de proficiência, e varia entre zero (quando todos os alunos se encontram no nível Avançado) e três (se todos os alunos se encontram no nível Abaixo do Básico), por exemplo. O fluxo escolar é proporcional à média de aprovação em cada etapa da escolarização de acordo com dados Censo Escolar. O indicador de fluxo (IF) dos alunos é uma medida da promoção dos alunos e varia entre zero e um. A partir do cálculo do IDESP de 2013, pode-se ponderar a evolução da escola em relação a 2012 e avaliar o quanto a unidade escolar conseguiu atingir das metas estabelecidas. O cumprimento de, ao menos, metade da meta estipulada pelo IDESP no ano anterior acarreta o pagamento de um bônus aos profissionais da escola. Essa bonificação acarreta algumas críticas de educadores e pesquisadores, como veremos no próximo tópico, em que teceremos as problematizações e apontaremos as limitações das avaliações em larga escala. 1.3 IDESP e desempenho escolar: relação com a qualidade da educação Nesse subcapítulo, faremos algumas considerações críticas sobre as avaliações em larga escala no Brasil. É importante destacar que não pretendemos, nesta pesquisa, fazer uma investigação sobre a relevância ou as controvérsias dessas avaliações, mas sim utilizar esses dados como um critério para selecionar escolas com alto e baixo rendimento escolar e analisar suas particularidades quanto ao ambiente sociomoral, que, supostamente, pode influenciar 33 práticas pedagógicas distintas. Portanto, traçamos algumas considerações críticas e indicamos outros textos mais específicos8 aos leitores que querem se aprofundar no tema. Importante destacar que as avaliações em larga escala se constituem como um procedimento importante para visualizar de modo geral as características do ensino de cada região e de cada escola, possibilitando nortear políticas públicas e práticas pedagógicas. Porém, algumas críticas às avaliações em larga escala são tecidas por aqueles que se dedicam aos estudos dessa temática. O IDESP foi criado, como já citado, para avaliar a qualidade das escolas dos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio em cada escola do Estado de São Paulo. Segundo a nota técnica do IDESP, nessa avaliação se considera que uma boa escola é aquela em que a maior parte dos alunos apreende as competências e habilidades requeridas para a sua série/ano, num período de tempo ideal – o ano letivo. Isso porque não é desejável para o sistema educacional que, para que os alunos aprendam, eles precisem repetir várias vezes a mesma série/ano. Por outro lado, também não é desejável que os alunos sejam promovidos de uma série/ano para a outra com deficiências de aprendizado. O debate em torno da qualidade da educação no Brasil não é novo, embora tenha ganhado relevância nas últimas décadas devido à expansão de contingentes que antes não tinham acesso à escola e também devido às notas das avaliações em larga escala, que evidenciaram um fracasso, principalmente, das escolas públicas brasileiras. Apesar de o conceito de qualidade na esfera educacional possuir diversos significados e comportar diferentes dimensões, as avaliações em larga escala ligeiramente se unificaram à ideia de qualidade, limitando-a aos resultados obtidos pelos alunos. Portanto, não só no Brasil, mas também em outros países, a qualidade da educação tem se vinculado, ideológica e politicamente, ao desempenho dos alunos nas provas externas aplicadas em larga escala, e esses resultados são utilizados pelas agências e bancos de fomentos para financiamentos de escolas que apresentem um bom desempenho escolar. Nesse contexto, faz-se necessário refletir sobre o que se entende política e ideologicamente por qualidade da educação escolar, e é nesse viés que a principal crítica sobre os indicadores baseados no desempenho e na aprovação recaem. O debate acerca da qualidade da educação advém de ideias distintas relacionadas ao tema. Entendemos que pensar em qualidade da educação implica superar a visão produtivista que concebe a educação escolar restrita à preparação dos alunos para o ingresso, da melhor 8 Vianna (2003), Gatti (2013); Afonso (2000); Fernandes (2007); Bauer, Gatti, Tavares (2013); Bauer, Gatti (2013). 34 forma possível, na divisão social do trabalho. Essa visão, entende qualidade como desempenho em testes padronizados e busca mecanismos de recompensas e punições para que escolas e sistemas obtenham bons resultados. É necessário considerar a função social da escola como uma instituição de formação democrática, assumindo a educação escolar como processo de formação cidadã, tendo em vista o exercício de direitos e obrigações típicos da democracia. A qualidade da escola, na visão democrática, envolve três elementos indissociáveis: insumos, processos e resultados (DI GIORGI; LEITE, 2010). Segundo a LDB (BRASIL, 1996), a educação tem como um dos princípios “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Diante dessa finalidade posta na LDB, voltamos o olhar para as avaliações externas a fim de levantar as seguintes questões: é possível avaliar qualidade da educação, considerando seu sentido mais amplo, por meio de testes padronizados para aferir apenas duas disciplinas do currículo (Língua Portuguesa e Matemática)? É suficiente aferir a qualidade da escola apenas por conteúdos de currículo? Em outras palavras, não seria enriquecedor avaliar outras características da escola que influenciam diretamente a formação do educando para o exercício da cidadania, como as relações interpessoais, a forma de gestão escolar ou, ainda, o ambiente sociomoral, por exemplo? Assim, cabe pensar quais especificidades dessas escolas provocam ou influenciam diferentes desempenhos escolares em avaliações em larga escala e qual é a importância dada a conteúdos que extrapolam questões relativas, unicamente, à aprendizagem escolar. Importante refletir, também, quais políticas públicas têm sido criadas a partir dos resultados das escolas e como essas políticas têm sido eficazes para superar as desigualdades entre elas. O bom desempenho escolar dos alunos muitas vezes é traduzido, em alguns estados brasileiros, como um abono salarial aos professores e aos profissionais da educação que ministram aulas nessas escolas. Esses incentivos às escolas e aos profissionais que nela trabalham geram pelo menos dois resultados. O primeiro é uma lógica de exclusão, pois, ao invés de auxiliar escolas que teoricamente mais precisam, isto é, aquelas que tiveram notas inferiores nessas avaliações, se ajudam as escolas que tiveram um melhor desempenho. O segundo resultado é uma prática pedagógica que, muitas vezes, é mais voltada à performance dos alunos nesses exames (memorização do conteúdo e treino) do que à aprendizagem efetivamente crítica. Autores que se debruçam sobre as avaliações em larga escala fazem críticas nesse mesmo sentido. As críticas sobre as avaliações em larga escala apontadas por Afonso (2000), 35 Bauer, Gatti e Tavares (2013), Fernandes (2007), Gatti (2013), Vianna (2003), têm recaído sobre alguns aspectos: desconsideração das características regionais e econômicas de cada localidade; qualidade avaliada apenas pela proficiência dos alunos em algumas disciplinas, geralmente língua portuguesa e matemática; responsabilização unicamente das escolas pelos resultados; uso questionável dos resultados; cultura de gestão e práticas pedagógicas centradas nos resultados; produção das desigualdades das escolas de um mesmo sistema, política de culpabilização das escolas e dos profissionais da educação. A desconsideração das características regionais e econômicas de cada localidade ainda continua a se interpor para a construção de uma cultura avaliativa como elemento de trabalho, e não simplesmente de exposição. Gatti (2013, p. 64) afirma que ainda há “uma ênfase muito forte que acaba sendo dada aos melhores e piores desempenhos, ênfase nos índices numéricos e pouca qualificação de situações conjunturais e diferenças sociais”. O uso questionável dos resultados é traduzido pelo desconhecimento dos profissionais da educação sobre os resultados ou sobre o que fazer com os resultados, isto é, como traduzir esses números em práticas pedagógicas que não se restringem ao treino dos alunos. É isso que Vianna (2003) chama de validade consequencial; segundo o autor, é essencial que os resultados das avaliações cheguem às escolas e aos profissionais da educação, já que, em muitos casos, esses dados ficam limitados somente aos setores técnicos das secretarias de educação. O que acontece, em muitos casos, é o uso das avaliações em larga escala de forma simplificada, e nesse conceito está embutida a visão de responsabilização unicamente da escola e dos profissionais pelos resultados. Importante destacar que os resultados das notas das avaliações em larga escala são reflexos de múltiplos fatores, como: o papel do Poder Público pela qualidade dos serviços educacionais prestados, insumos gastos pelos alunos, nível socioeconômico, infraestrutura da escola, formação inicial e continuada dos professores, dedicação dos alunos exclusivamente aos estudos, perspectiva de futuro em relação aos estudos, entre outros aspectos. As críticas sobre as avaliações em larga escala têm incidido sobre a necessidade de superar a lógica de gestão e da prática pedagógica centradas nos resultados. O que se observa, na prática, é que muitas escolas tendem a ensinar os conteúdos que constituem os objetos de avaliação em que os alunos serão aferidos; esses incluem, normalmente, leitura e resolução de problemas, no formato de prova com itens de múltipla escolha. Essa organização claramente evidencia um reducionismo e um afunilamento curricular e didático em função das notas. Essa temática foi amplamente discutida no ciclo de debates “Vinte e cinco anos de avaliação de sistemas educacionais no Brasil”, realizado na Fundação Carlos Chagas (FCC), no 36 ano de 2013. As discussões levantadas nesse debate evidenciaram que ainda há muito o que avançar para tornar as avaliações em larga escala um processo mais amplo, baseado não só nos resultados, mas, sobretudo, nos procedimentos. Há críticas também no sentido de atribuir a qualidade da educação e das escolas apenas em relação à proficiência dos alunos em algumas disciplinas, geralmente língua portuguesa e matemática. Sobre esse aspecto, Oliveira (2013, p. 92) faz uma crítica sobre o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) visto como critério de qualidade das escolas; afirmar essa forma de avaliação pode demonstrar uma “visão fragmentada do currículo, em que se perde a perspectiva interdisciplinar. Portanto, considerá-lo como único indicador de qualidade é uma simplificação grosseira do que se espera da educação escolar”. Pensar nos processos educacionais como algo mais amplo é considerar que as formas de avaliação devem contemplar os demais componentes curriculares que se julgam importantes, assim como a construção dos valores éticos, regras de convivência, convivência com os diferentes, ou seja, a formação do sujeito integral. Outras críticas se centram em questões como a produção das desigualdades das escolas de um mesmo sistema, na medida em que aquelas com maiores notas recebem mais recursos e bonificações, como é o caso das duas selecionadas na pesquisa, com realidades tão distintas. A competitividade entre as escolas e os profissionais da educação é outra crítica empreendida pelos estudos. Estudos têm proposto, como saída possível para esse cenário, elementos de processos mais amplos às avaliações, que considerem as diretrizes nacionais comuns, mas que incluam, também, aspetos constitutivos de cada região, em um país tão amplo quanto o Brasil, e também as características da própria escola; em outras palavras, a avaliação externa deveria ser acompanhada por uma avaliação interna, realizada de maneira coletiva, sobre outros aspectos da escola: clima escolar, projeto político pedagógico, relações com a comunidade, formas de gestão escolar, formação e condições de trabalho dos profissionais da escola, ambiente físico, acesso, permanência e desempenho escolar dos alunos em avaliações internas e externas. Portanto, defendemos, nesta pesquisa, que as avaliações em larga escala devem considerar outras características mais sutis, menos explícitas, como é o caso do ambiente sociomoral da escola e a construção de valores, como apresentamos no decorrer da tese. 37 2 CONSTRUÇÃO DE VALORES SOCIOMORAIS NA ESCOLA E PERSPECTIVA SOCIAL NO DESENVOLVIMENTO MORAL Neste capítulo, discutiremos aspectos da construção dos valores sociomorais na escola levando em conta as contradições e as especificidades da sociedade atual. Para tanto, realizamos um levantamento sobre alguns aspectos atuais da sociedade considerando as contribuições de autores como Bauman (2000), Costa (2004), Goergen (2001), La Taille (2009), Lipovetsky (2005), entre outros. Após essa contextualização, apresentamos as possibilidades e os desafios da escola como uma das instituições responsáveis pela formação ética dos alunos em ambientes plurais e multissignificativos. Destacamos, também, a importância de ambientes escolares democráticos para o desenvolvimento de perspectivas sociais em julgamentos morais mais descentradas. Na atualidade, os discursos sobre formação moral e ética tornaram-se comuns no debate educacional, justamente pela percepção de uma suposta “crise de valores” que exprime a ausência ou o declínio dos valores tradicionais antes aceitos socialmente. Na escola, essa “crise de valores” muitas vezes é utilizada por agentes escolares para explicar situações de violência, indisciplina e incivilidades, que ocorrem rotineiramente. Dessa forma, é frequente na fala de professores afirmações do tipo “os alunos de hoje não possuem valores” (SILVA, 2013). La Taille e Menin (2009), ao refletiram sobre a sociedade atual, levantaram um questionamento sobre se vivemos uma crise de valores, no sentido de ausência de valores, ou se os valores estão em crise, isto é, uma mudança de paradigma dos valores tidos como tradicionais, alternando-se em sua interpretação devido ao contexto histórico e social em que se vive. De acordo com os autores, “estaríamos assistindo a um rearranjo moral, ao aparecimento de novas modalidades de relacionamento, à valorização de determinadas virtudes, a novas inquietações éticas” (p. 11). Para Goergen (2001), a verdade ética única e universal que era consensualmente aceita socialmente foi gradualmente superada pelo declínio dos valores tradicionais que fundamentavam as relações dos homens entre si. Para o autor, a crise de legitimidade dos valores tradicionais traz incertezas, mas também possibilidades para novas reflexões sobre a realidade da sociedade contemporânea: Diferentemente do que muitas vozes cheias de nostalgia lamentam, a perda das certezas tradicionais ou pelo menos das expectativas de certezas que orientavam o esforço ético não deve ser entendida apenas como um déficit, mas como um ganho. 38 Se, de um lado, há a irreparável perda de segurança e a desestabilização que isso significa, constata-se, de outro, uma aproximação à real condição humana que é sempre precária e antinômica (p. 150/151). Vivemos, segundo esse autor, no mundo das incertezas, contingências e ambientes plurais; nesse caso, é necessário superar a visão de uma educação voltada à internalização dos valores tidos como fixos “O sentido transcendente, ao qual todos tinham de se adaptar, chega- se ao sentido negociado no interior do processo educativo” (GOERGEN, 2001, p. 157). Se os valores não estão ausentes nas relações humanas, e sim em constante transformação, é necessário refletirmos, portanto, quais valores atualmente estão sendo investidos nas relações interpessoais e na constituição de identidade. Para Lipovetsky (2005), estamos vivendo em uma sociedade “pós-moralista” na qual a moral está em constante transformação, a “moral do dever” não teria mais legitimidade na atualidade, sendo suplantada por uma moral marcada pelo bem-estar individualista: “cessamos de reconhecer a obrigação de nos apegar a outra coisa que não seja nós mesmos” (p. 15). Um traço marcante na constituição moral apontado por diversos autores na atualidade, entre eles, Bauman (2000), Costa (2004), La Taille (2009), Lipovetsky (2005), é o individualismo e a perda da dimensão do outro. Para Bauman (2000), o lugar do outro na sociedade contemporânea é o de espectador; assim, o outro atrai não por conta da “chance de ação”, e sim para a “promessa de sensação”. Isto é, o outro é usado como um meio de realização de suas necessidades para atingir algo, seja status social ou busca de algum prazer, e só interessa ao sujeito quando há alguma utilidade. O autor utiliza a metáfora da sociedade líquida ao afirmar que, na atualidade, os valores não são duradouros, mas sim efêmeros, como se espalhassem com a mesma velocidade que água entre os dedos. La Taille (2009) utiliza autores como Lipovetsky (2005) e Bauman (2000) ao afirmar que vivemos tempos em que as culturas do tédio e da vaidade se sobrepõem às culturas do sentido e do respeito de si e em que vemos distante a possibilidade de viver “uma vida boa, para e com outrem, em instituições justas” (RICOEUR apud LA TAILLE, 2006a, p. 64). A cultura do tédio e da vaidade se traduz no sentimento de viver uma vida vazia, sem projetos, fragmentada em pequenos momentos e espaços, em que o importante é “ter” e “aparecer” em detrimento do “ser”. Para o autor, “o tédio é a grande doença da vida”, e quem diz que a vida é tediosa afirma que ela é morna, vazia, insignificante, triste e monótona; dessa forma, a cultura do tédio impede a felicidade, proíbe a ética, portanto dificulta a construção de significação e de direção para a vida. 39 A cultura do tédio e da vaidade impede, ou pelo menos problematiza, a busca de felicidade enquanto expansão de si. A expansão de si é o processo de busca de se identificar com representações de si com valor positivo que podem conter valores morais ou contravalores. São Morais quando se ligam a valores como justiça, generosidade, veracidade, honestidade, entre outros. Mas também podem ser que representações de si distintas da moral, ou seja, valores ligados a ser bonito, ter sucesso, dinheiro ou ser admirado (LA TAILLE, 2009). Ambos os valores podem coexistir no processo de estruturação de valor dos sujeitos. De fato, alguém poderá ter uma imagem positiva de si que não inclua a dimensão moral. Alguém poderá ter sua identidade associada a valores como ser bonito, rico, bem-sucedido, enquanto outros permaneceriam periféricos. Entre esses outros valores poderão estar, justamente, os valores morais, como a honestidade, a coragem, a lealdade, etc. Para outras pessoas, poderá ocorrer o contrário: os valores morais estão no centro de sua identidade, e outros (como ser bonito ou rico) na periferia. É bem provável que o lugar ocupado por esses valores seja forte determinante da conduta. Se alguém vê a si próprio como essencialmente honesto, tenderá agir de forma honesta para preservar a identidade e sentirá forte vergonha quando suas ações infringirem os imperativos desta virtude. Em compensação, outra pessoa que vê a si própria sobretudo como “bonita”, “melhor que os outros”, “gloriosa”, certamente agirá de forma a preservar tais atributos, mesmo que, para isso, infrações morais precisem ocorrer (LA TAILLE, 1998, p. 14-15). Uma questão que La Taille (2009) nos propõe a pensar é se na sociedade atual a construção de personalidades tem se dado a partir de valores morais ou não. Para o autor, a cultura da vaidade impõe certas características na construção da identidade, em que se sobressai a aparência e o espetáculo de si. Portanto, há na cultura da vaidade uma inversão de valores, pois, se antes o homem cuidava do cultivo da alma, agora o corpo é a grande estrela. Costa (2004) segue a mesma linha de pensamento ao afirmar que O cuidado de si, antes voltado para o desenvolvimento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, dirige-se agora para a longevidade, a saúde, a beleza e a boa forma. Inventou-se um novo modelo de identidade, a bioidentidade, nos quais a fitness é uma suprema virtude. Ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou- se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade (COSTA, 2004, p. 190). Segundo Costa (2004), em outros tempos, o corpo era usado como um meio, isto é, empregado para agir sobre o mundo, uma vez que se esperava “[...] ter saúde ou longevidade para cumprir tarefas familiares, sociais, religiosas, sentimentais ou outras. Nunca, entretanto, havíamos imaginado que a forma corporal pudesse ser garantia de admiração moral” (ibid., p. 192). 40 É nesse sentido que Santos (2007) afirma que os corpos passaram a ser a marca de inscrição do sujeito na sociedade, indicando acepções desejáveis que os afastam de um universo de tristeza, pobreza, carência e fracasso. Assim, na atualidade, define-se a identidade do sujeito pelos seus atributos físicos, mais do que pelas suas virtudes. [...] atualmente, se tornou verossímil acreditar que a) atos psicológicos têm origem nas causas físicas e que b) aspirações morais devem ter como modelo desempenhos corpóreos ideais. Em outros termos, estamos nos habituando a entender e a explicar a natureza da vida psíquica e das condutas éticas pelo conhecimento da materialidade corporal (COSTA, 2004, p. 203). Esse culto ao corpo revela-se no ideal da saúde e dos corpos perfeitos, vinculado aos interesses do capitalismo, o qual tornou o indivíduo indiferente ao outro e insensível aos valores morais, para se ater ao materialismo e ao consumismo. Vivemos, portanto, numa cultura ditada pela vaidade, que divide as pessoas em perdedores e vencedores. As pessoas que não se enquadram no padrão físico são vistas como perdedoras, pois a vaidade se relaciona com a superficialidade, a pequenez e a futilidade (LA TAILLE, 2009). Dessa forma, vê se o sujeito jovem, magro e saudável como uma pessoa bem- sucedida, enquanto que o contrário disso é visto como vicioso e derrotado. Nesse contexto, quem é considerado vencedor? Para La Taille (2009), não é simplesmente aquele que se deu bem na vida, mas é aquele que se destaca ou que é melhor que os outros. O “ser vencedor” acaba sendo a grande meta da atualidade. O importante é o ter – ter um corpo bonito, ter carro do ano, ter casa em condomínio, ter roupas de marca –, e as pessoas usam esses bens para parecerem vencedoras, ou seja, para tornar visível seu sucesso. Ao lado do culto ao corpo, o consumo tornou-se central na sociedade contemporânea, diferentemente de tempos atrás, quando se caracterizava pela produção; “O consumo deixou de ser prática banal do dia a dia, com raízes antigas, que atravessou séculos, para se transformar no eixo organizador das sociedades de hoje, fonte emanada de inspiração para a moldagem de uma enorme variedade de formas de vida e de padrões de relações entre as pessoas” (MOMO; COSTA, 2010, p. 970). O consumismo passou a ser organizador da economia e das relações humanas. Para Kehl (2004), o pano de fundo dessas transformações são os meios de comunicação: Junto com os carros, cervejas e cartões de crédito acessíveis a uma parcela da sociedade, a publicidade vende sonhos, ideais, atitudes e valores para a sociedade inteira. Mesmo quem não consome nenhum dos objetos alardeados pela publicidade 41 como se fossem a chave da felicidade, consome a imagem deles. Consome o desejo de possuí-los. Consome a identificação com o “bem”, com o ideal de vida que eles supostamente representam (KEHL, 2004, p. 61). Assim, mesmo que grande parte da população não tenha condições financeiras de aderir aos produtos ligados aos “vencedores”, eles idealizam esses objetos como sinônimos de felicidade e os consomem na medida em que os desejam. A infância, enquanto uma construção cultural, histórica e social também é fortemente marcada por essa cultura de massa, vinculada à vaidade e ao consumismo, que produzem diversos significados para a infância e para os modos de ser criança. Ambivalência, efemeridade, descartabilidade, individualismo, visibilidade, superficialidade, instabilidade, provisoriedade fazem parte da vida das crianças de hoje. São crianças que procuram de modo incansável se inscrever na cultura globalmente reconhecida e fazer parte de uma comunidade de consumidores de artefatos em voga na mídia no momento; que produzem seu corpo de forma a harmonizá-lo com o mundo das imagens e do espetáculo; que se caracterizam por constantes e ininterruptos movimentos e mutações. São crianças que buscam infatigavelmente a fruição e o prazer [...]. São crianças que vão se tornando o que são, vivendo sob a condição pós-moderna (MOMO; COSTA, 2010, p. 969). Em suma, vive-se em uma época em que prevalece, em todas as idades, o individualismo e, ao mesmo tempo, a perda do subjetivo, o consumismo, a competição exacerbada, o cultivo ao corpo ao invés da alma, a pressa e a dificuldade em fixar em valores “Vivemos também a exponencial ambiguidade da objetivação/subjetivação, da socialização/individualização do homem, da espiritualidade/corporeidade, da informação/conhecimento, da liberalização/normatização, que exige um alto grau de autonomia das pessoas” (GOERGEN, 2005, p. 69). Apesar dessas características apresentadas acima, diversos autores apontam as contradições e paradoxos de nossa época em que originaram novas chances de debate para a importância do reconhecimento dos direitos humanos pelos diversos setores sociais. Esse traço conjuntural resulta da conjugação de uma série de fatores, entre os quais cabe destacar: a) o incremento da sensibilidade e da consciência sobre os assuntos globais por parte de cidadãos(ãs) comuns; b) a institucionalização de um padrão mínimo de comportamento nacional e internacional dos Estados, com mecanismos de monitoramento, pressão e sanção; c) a adoção do princípio de empoderamento em benefício de categorias historicamente vulneráveis (mulheres, negros(as), povos indígenas, idosos(as), pessoas com deficiência, grupos raciais e étnicos, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, entre outros); d) a reorganização da sociedade civil transnacional, a partir da qual redes de ativistas lançam ações coletivas de defesa dos direitos humanos (campanhas, informações, alianças, pressões etc.), visando acionar Estados, organizações internacionais, corporações econômicas globais e diferentes grupos responsáveis pelas violações de direitos (BRASIL, 2006, p. 15). 42 Na escola, o que ainda impera é a lógica mercadológica, em que se busca a excelência dos resultados, a eficácia, a produtividade e o fomento da competitividade entre os alunos. O foco passou a ser o desenvolvimento das competências intelectuais, para que os estudantes possam atender às exigências e demandas do mercado e ser competitivos ou para ter boas notas nos exames nacionais e estaduais. Assim, as escolas passaram a ser orientadas pelas necessidades do mercado, e a educação tornou-se um bem de consumo em que os mais ricos escolhem as melhores escolas, os diretores tornam-se administradores, dão-se prêmios ou mais ajuda às melhores escolas, em vez de auxiliar aquelas com mais dificuldades. O discurso pedagógico e as formas de avaliação ficam impregnados de vocábulos e parâmetros técnicos, análogos aos empregados no mercado, aliado a uma obsessão pela eficácia e medidas objetivas (JARES, 2005). Nesse contexto, fomenta-se o individualismo e o conformismo, pois cada um vê no outro um rival, e o êxito ou fracasso são explicados de forma individual, ou seja, capacidade, esforço e escolhas pessoais, desconsiderando os contextos históricos e sociais, bem como deixando em segundo plano o desenvolvimento cultural e a formação ética dos alunos. Nesse panorama, a Educação em Valores se torna precária ou quase inexistente nas escolas, visto que o foco é o desenvolvimento das competências científicas e técnicas para o ingresso no mercado de trabalho. De acordo com Goergen (2001, p. 161), “A teoria pedagógica não é mais valorativa, sugestiva ou engajada na definição e defesa do bem. Domina a mentalidade instrumental que subsume a educação ao esquema meio-fim utilitarista, deixando à margem temas que dizem respeito ao sentido do humano, da vida, das relações sociais, da dignidade humana, da solidariedade”. Portanto, esse novo contexto social plural e contingente acarreta diversos desafios para a escola, “como conciliar esta pluralidade sem recorrer a princípios transcendentais, de um lado, mas sem admitir o relativismo de todos os valores e normas morais” (ibid., p. 156). Complementando a afirmação acima, Puig (2007) afirma que a função primordial da moral é responder à pergunta sobre a maneira de como viver partindo da ampliação da diversidade moral, ou seja, além de um código moral único e, até mesmo, do pluralismo moral. O autor aponta que O convívio entre pessoas com diferentes crenças morais apresenta sempre pelo menos duas interrogações: a primeira, é necessário que elas compartilhem alguns critérios morais que lhes facilitem a vida em comum, ou será que a convivência pode ser assegurada de outros formas?; e a segunda, caso pareça conveniente compartilhar algo, é de fato possível estabelecer algum critério reconhecido por todos ou isso se 43 torna impossível quando se parte de pontos de vista morais e processos de socialização diferentes? (PUIG, 2007, p. 77). Considerando o que foi exposto, podemos pensar nas seguintes indagações: como a escola pode desenvolver virtudes ou valores morais se a ênfase recai apenas em aspectos de competências intelectuais para a concorrência ao poder? Como educar o “ser” se o que vale é o “ter”? Como se fixar ou elencar valores se a sociedade de hoje adota valores solúveis? Quais as implicações e impactos dessa sociedade para o desenvolvimento dos valores sociomorais na escola? Mesmo que todas essas questões não possam ser respondidas neste trabalho, elas se fazem pertinentes para pensar qual educação queremos para as crianças e jovens que estão vivendo e se educando dia a dia nessa cultura. Assim, nos próximos tópicos, discutiremos a função e os limites da escola para o desenvolvimento de valores sociomorais nos alunos. 2.1 A Escola e a Construção de Valores Sociomorais Diante do contexto atual e considerando o alcance que a instituição escolar ocupa na vida das pessoas, ela se apresenta como uma das mais importantes instituições de socialização de crianças e jovens e como uma possibilidade para a formação de personalidades éticas. A partir do processo de democratização, a escola passou a ser reconhecida como um importante espaço para a formação do cidadão, já que é um espaço público permeado por diferentes pessoas com valores diversos. Para Menin (2009), a escola é um dos principais espaços para o desenvolvimento de valores morais, pois é nela que as regras sociais são aplicadas às crianças e jovens, momento em que a justiça se faz conhecer como uma forma coletiva de vivência de regras a um grupo de alunos, teoricamente considerado como compost