ANDRÉ MASAO PERES TOKUDA PSICOLOGIA E SISTEMA PENITENCIÁRIO: cartografando as atuações da(o)s psicóloga(o)s em uma “instituição total” ASSIS 2016 ANDRÉ MASAO PERES TOKUDA PSICOLOGIA E SISTEMA PENITENCIÁRIO: cartografando as atuações da(o)s psicóloga(o)s em uma “instituição total” Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área do conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Dr. Wiliam Siqueira Peres ASSIS 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp T646p Tokuda, André Masao Peres Psicologia e sistema penitenciário: cartografando as atua- ções da(o)s psicóloga(o)s em uma instituição total / André Ma- sao Peres Tokuda.- Assis, 2016. 376 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr Wiliam Siqueira Peres 1. Psicologia social. 2. Prisões - Aspectos psicológicos. 3. Teoria queer. 4. Direito - Aspectos psicológicos. 5. Psicologia aplicada. I. Título. CDD 365.3 Dedico a meu pai, minha mãe, minha irmã e meu cunhado que sempre me apoiaram e foram à base forte, em todos os momentos, para que pudesse alcançar meus objetivos. AGRADECIMENTOS Primeiramente gostaria de agradecer a todos os deuses e todas as deusas que me acompanharam, dançando, cantando e de todas as formas em meus pensamentos e orações. A CAPES pelo financiamento desta pesquisa pelo período de um ano. Aos funcionários e as funcionárias, colegas e professore(a)s da Pós-Graduação em Psicologia da UNESP/Assis; por sempre terem sido muito solícito(a)s quando precisei e contribuírem com discussões de temas que fizeram parte dessa pesquisa. A todos e todas participantes dessa pesquisa, sem dúvida pessoas que estão/estavam no dia a dia enfrentando muitas das situações que buscamos ao longo desse trabalho discutir, para que possamos ter uma profissão mais problematizadora e potencializadora. A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), pela autorização para que a pesquisa fosse possível. Ao professor Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, que contribuiu muito para que essa dissertação pudesse ser feita de forma atual e problematizadora. A todos e todas que fizeram e fazem parte do Grupo de Estudo e Pesquisa de Sexualidades (GEPS), pelas diversas discussões e potencializações, em especial a Danielle Barreto, Fernando Teixeira-Filho, Rogério, Adriana, Anna Paula, Aline, Fábio, Danielly, Camila, Dirceu, Deborah e Bárbara Beber (agregadas), que problematizam a vida, seja na academia, no bar, na rua e em seus modos de viver. Ao professor e amigo Leonardo Lemos, pelas boas discussões, conversas e aprendizados ao longo desses anos, os quais me fizeram ter um posicionamento político que possa produzir alegrias e emponderamentos, e por todas as considerações que só enriqueceram essa dissertação. Ao meu orientador, supervisor e sempre amigo, Wiliam Siqueira Peres, a quem devo não só meu mestrado, iniciação científica e formação acadêmica, mas todas as mudanças de perspectivas e olhares sobre a Psicologia e as vidas, obrigado por me ajudar a ser profissional e pessoa mais política e problematizadora. Ao meu grande parceiro acadêmico, na graduação, pós-graduação, em discussões, delírios e escritas, mas, sobretudo, um amigo a quem devo muitas das mudanças de olhares, alegrias no coração e sorrisos no rosto, irei sempre te agradecer menino Andrêo (Caio Andrêo). A cada desânimo, tristeza, raiva e todos os sentimentos e sensações possíveis você esteve comigo Zé (José Paulo Diniz), quase quatro anos morando juntos não terminariam com o fim da graduação, obrigado por ser o apoio e a pessoa por de trás do telefone em meus diversos momentos. Ao meu irmão caçula de coração, Guilherme Teles Marques Florêncio Alves (Gui), por sempre estar disponível e disposto (mesmo com suas chatices) a estar do meu lado, seja em festas, em minhas apresentações, que tinham as mesmas piadas, e nas horas de conversar sobre a vida. Ao meu irmão de graduação, José Eduardo (Du), que sempre comemora minhas conquistas mais do que eu às vezes e por ter o coração cheio de alegrias e carinhos. A República Touché (Alan, Pingado, Gui e Rodrigo), por me receber com alegria e disposição para boas conversas, não importando o assunto. A minha amiga e parceira desde a segunda série, Evelyn Yamashita Biasi, quem sempre acreditou e incentivou nas minhas lutas, obrigado por estar comigo a cada passo, seja em sorrisos tristes e alegres, ou em choros e mensagens de cansaço, pode ter certeza que o tempo passa, mas você vem junto. A meus amigos e minhas amigas de Adamantina, que sempre estiveram e estarão torcendo por mim e comemorando a cada conquista, Ricardo, Fernando, Desca, Roni, Tati e Ana. A Bárbara Milhomem Crivelini, por ter me acompanhado em algumas viagens ao longo dessa pesquisa, ter revisado muitos dos meus textos, trabalhos e artigos, pelas chatices e cobranças para que pudesse ser eu e principalmente por ter sido a calma e alegria em meus momentos de angustias e ansiedades, obrigado por ser a Bonitinha. A República Tcheca (Ba, Belinha, Thais e Lara) por em alguns meses me abrigar e sorrisos a cada (re)encontro. Não poderia deixar de agradecer a quem me abrigou, cuidou e deu todo carinho do mundo na minha volta para Assis, Luiz, Ian e Alison, pelos conselhos, jogos, churrascos, conversas sobre esportes, a incrível amizade que compartilhamos e por me aceitarem com as minhas chatices e modo de ser. A República Arca de Noé (Pedrão, Camila, Caio, Deborah, Luiz, Ian, Bixo, Milla e Nic) por em qualquer momento estar com as portas e coração aberto a me receber. A todos meus familiares, que sempre estão torcendo por mim, em especial a minha tinha Marilza, com quem tenho a liberdade e o carinho para tomar uma cerveja e conversar sobre todos os atravessamentos que nos passam, minha tia Vilma, a quem me inspiro para ter determinação e forças para sempre continuar e minhas avós (in memorian) pela força que sempre tiveram e passaram para todo(a)s nós. A minha irmã e amiga, Josiane Peres Tokuda Kuboki, por todo apoio, carinho, preocupação e bons pensamentos, quem sempre esteve e estará ao meu lado e pela qual tenho todo amor e desejos de alegrias. Ao meu cunhado Sérgio Ituo, por sempre estar presente e pela preocupação comigo e toda minha família. A minha mãe e ao meu pai não caberiam todas as palavras de agradecimentos que tenho, sei o quanto lutaram e lutam, as dores, tristezas, cansaços e saudades que tiveram, e muitas vezes esconderam, para que eu pudesse conseguir tudo o que desejava e almejava, espero que a cada dia possa de alguma forma retribuir cada sorriso e alegrias que tive, pois foram graças a vocês, obrigado e eu amo vocês. Meu muito obrigado a todos e todas que de alguma forma contribuíram para que essa dissertação pudesse ser construída. TOKUDA, André Masao Peres. Psicologia e sistema penitenciário: cartografando as atuações da(o)s psicóloga(o)s em uma “instituição total”. 2016. 376 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2016. RESUMO Através de revisão bibliográfica pode-se colocar que após 50 anos da regulamentação da Psicologia, como profissão, ainda é difícil encontrar bibliografias que tenham como tema a Psicologia Jurídica; essa invisibilidade se justifica, também, devido à quase inexistência no Brasil de disciplinas nos cursos de graduação que tenham como foco tal área, ou seja, existem poucas problematizações sobre este campo na área acadêmica e entre o(a)s profissionais. Neste trabalho cartografamos as atuações e histórias de treze psicólogo(a)s que trabalham (trabalhavam) nas penitenciárias do estado de São Paulo. Orientamo-nos para realização desta pesquisa pelo método cartográfico que correspondeu à exigência, dialogando com saberes que de modo complementar favoreciam variações; vale ressaltar que a cartografia é um método idealizado por geógrafo(a)s e utilizado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. Com isso, pôde- se traçar diversas linhas e formas de atuações que atravessam (atravessavam) essas pessoas no dia a dia de trabalho nas unidades penitenciárias, traçando que cada psicólogo(a) foi construindo sua maneira de atuar ao longo de suas vivências, alguns(algumas) tornando-se mais problematizadore(a)s de suas realidades e outro(a)s se mantendo como realizadore(a)s de exames criminológicos, os quais pudemos mapear como principal função instituída a Psicologia e acabam por minar outras possíveis atuações, como trabalhos com grupos e atendimento psicológicos. Discute-se assim, neste trabalho, que há a naturalização do(a) psicólogo(a) como avaliador(a), no entanto existem linhas de fugas possíveis, como apontadas por alguns(algumas) participantes, através da realização de grupos que discutem com as pessoas que estão presas a realidade em que vivem e as diversas possibilidades de modos de viver. Através dessas cartografias acreditamos que ainda é necessário mais discussões sobre essa área da Psicologia, devido, principalmente, ainda estar ligada a realização de exames criminológicos, que acabam por definir vidas, cabendo aos(as) psicólogo(a)s problematizar como atuar de forma potencializadora e contra as biopolíticas que regulam e excluem pessoas selecionadas, uma atuação que prime pela defesa dos direitos humanos e valorização das vidas. Palavras-chave: Psicologia Jurídica. Psicologia penitenciária. Cartografia. Estudos queer. Estudos de gêneros. TOKUDA, André Masao Peres Tokuda. Psychology and prison system: mapping psychologist functions/duties in a “total institution”. 2016. 376 f. Dissertation (Masters Degree in Psychology). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2016. ABSTRACT Through literature review we can put that after 50 years of regulation of Psychology as a profession, it is still difficult to find bibliographies which have as their theme the area of Legal Psychology; this invisibility is justified due to the almost absence in Brazil of disciplines in undergraduate courses that has how center this theme, in other words, there are scarce discussions found on this research field in the academic area and among professionals. In this paper we started mapping the actions and stories of thirteen psychologists who work (worked) in the penitentiaries of the state of São Paulo. We were guided to this research by mapping method which corresponded to the requirement, dialoguing with knowledge that a complementary mode favoring variations; it is noteworthy that cartography is a method devised by geographers and used by philosophers Gilles Deleuze and Felix Guattari. Thus, it was possible to draw different lines and shapes of actions that cross (crossing) these people on a daily basis in the penitentiaries units, tracing every psychologist it was building his way of acting throughout their experiences, some becoming more discussants of their situations and others remaining as makers of the criminological examination, which is the main function established the psychology and end up undermining other possible actions, such as working with groups and psychological care. We discussed as well in this paper that there is a naturalization of the psychologist as value, however there are escape lines possible, as pointed out by some participants, through realization of groups that discussing with the people who are trapped reality in which they live and the various possibilities for ways of living. Through these mappings we believe it is still necessary many discussions on this area of the Psychology, principally due still is connected to carrying out of the criminological examination, should the profession discuss how to act of mode potentiating and against the biopolitics that regulate and exclude selected people, an acting that prime the defense of human rights and appreciation of life. Keywords: Legal Psychology. Penitentiary psychology. Mapping. Queer studies. Studies of gender. SUMÁRIO 1. NOSSA ENTRADA NO MUNDO NO QUAL AS VIGILÂNCIAS SÃO REAIS E PERCEPTÍVEIS ....................................................................................... 12 1.1 COMO ENTRAR NESSE MUNDO PARA MAPEÁ-LO.................................. 20 2. TRAÇANDO UMA CARTOGRAFIA SOBRE A METODOLOGIA E NOSSA TEORIA ...................................................................................................... 23 2.1 MAPEANDO OS ESTUDOS/POLÍTICAS/DISCURSOS QUEER COMO AUXILIAR PARA PROBLEMATIZAÇÕES EM UMA PERSPECTIVA DAS CARTOGRAFIAS .................................................................................................. 30 2.2 DIÁRIO DE BORDO ........................................................................................ 39 3. OBJETIVOS ...................................................................................................... 46 4. SOBRE O SURGIMENTO DAS GIGANTES INSTITUIÇÕES DE CONCRETO ............................................................................................................. 47 4.1 DOS SUPLÍCIOS ÀS PRISÕES ....................................................................... 47 4.2 PENITENCIÁRIAS NO ESTADO DE SÃO PAULO ....................................... 58 4.3 O ENCARCERAMENTO DO(A)S ESCOLHIDO(A)S ..................................... 66 5. E A PSICOLOGIA? .............................................................................................. 71 5.1 A PSICOLOGIA ............................................................................................... 71 5.1.1 Psicologia Jurídica ...................................................................................... 74 5.1.1.1 Psicologias Penitenciária ........................................................................ 79 5.2 PSICOLOGIAS UTILIZADAS COMO BUSCA PELA VERDADE ................. 89 6. CONHECENDO O(A)S MÚLTIPLO(A)S PSICÓLOGO(A)S QUE ATUAM EM PENITENCIÁRIAS DE REGIME FECHADO MASCULINAS .................... 98 6.1 FREVO ............................................................................................................. 99 6.2 MARACATU .................................................................................................. 105 6.3 FORRÓ ........................................................................................................... 106 6.4 BAIÃO............................................................................................................ 109 6.5 ROCK AND ROLL ......................................................................................... 111 6.6 SAMBA .......................................................................................................... 115 6.7 SERTANEJA .................................................................................................. 118 6.8 RAP ................................................................................................................ 123 6.9 POP ................................................................................................................. 126 6.10 FUNK ........................................................................................................... 130 6.11 SOUL ............................................................................................................ 133 6.12 REGGAE ...................................................................................................... 135 6.13 PAGODE ...................................................................................................... 138 7. LINHAS POSSÍVEIS DE PROBLEMATIZAÇÕES ........................................ 141 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 195 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 204 APÊNDICE ............................................................................................................. 216 ANEXOS ................................................................................................................. 220 Anexo I: PARECER COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS – UNESP/CAMPUS DE ASSIS .......................................... 220 Anexo II: PARECER COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA SECRETARIA DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO ................ 223 Anexo III: Frevo ....................................................................................................... 226 Anexo IV: Maracatu ................................................................................................. 248 Anexo V: Forró ......................................................................................................... 252 Anexo VI: Baião ....................................................................................................... 264 Anexo VII: Rock and Roll......................................................................................... 269 Anexo VIII: Samba ................................................................................................... 281 Anexo IX: Sertaneja .................................................................................................. 294 Anexo X: Rap ........................................................................................................... 323 Anexo XI: Pop .......................................................................................................... 330 Anexo XII: Funk ....................................................................................................... 342 Anexo XIII: Soul ...................................................................................................... 353 Anexo XIV: Reggae .................................................................................................. 364 Anexo XV: Pagode ................................................................................................... 371 12 1. NOSSA ENTRADA NO MUNDO NO QUAL AS VIGILÂNCIAS SÃO REAIS E PERCEPTÍVEIS O interesse por este tema surgiu após nosso primeiro contato com uma penitenciária, que foi através de oportunidade disponibilizada pela Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP/SP), que ofertou estágio extracurricular a graduando(a)s de Psicologia e Serviço Social dentro de seu território. Após seleção do(a)s candidato(a)s, fomos designado(a)s para a Penitenciária de Regime Fechado e Anexo de Detenção Provisória (ADP) da cidade Assis/SP, de fevereiro de 2010 a dezembro de 2011, que abrigava cerca de mil e cem pessoas do sexo masculino 1 . A penitenciária de Assis, assim como grande parte das construções penitenciárias do estado de São Paulo, se localiza em uma área rural e é acessada por uma estrada vicinal, na qual há pouco tráfego de automóveis, aproximadamente a quatro quilômetros do perímetro urbano. Durante dois anos estivemos participando e cartografando o dia a dia de funcionário(a)s, pessoas que estavam presas e da instituição. O que se tornou algo difícil de realizar atualmente, pois as penitenciárias paulistas estão, cada vez mais, se fechando atrás de seus imensos muros e Comitê de Ética em Pesquisa da SAP, problemática que iremos abordar mais a frente. Todo processo para entrar na penitenciária, as grandes muralhas com o(a)s agentes armado(a)s e sempre alguma pessoa por perto em todo território da instituição, fez com que logo percebêssemos um espaço em que todas as pessoas se encontram em vigilância permanente (pessoas que estão presas, funcionário(a)s e visitantes), evidenciando que a segurança vem em primeiro lugar. Essas percepções e sensações de vigilâncias vividas no interior da penitenciária permaneceram em nossos corpos quando já estávamos do lado de fora das muralhas, com a ideia de estarmos sempre sendo observados. 1Consideramos que nem todas as pessoas que se encontram encarceradas em unidades penitenciarias masculinas são homens, uma vez que nossa legislação e o poder judiciário não reconhecem, ainda, os gêneros das pessoas quando estas ingressam no sistema prisional. Mesmo existindo em alguns lugares pavilhões e/ou celas específicas para a população LGBT (chamadas no estado de Rio de Janeiro de “seguro”, em São Paulo não existe um nome exato), o mesmo ocorre não pela problematização de gêneros, mas devido um fator de segurança, já que muitas pessoas que estão presas não aceitam conviver com pessoas com as práticas e desejos homossexuais, assim havendo violências contra as últimas. Mesmo ocorrendo essas separações pode-se dizer que pessoas homoafetivas e travestis não tem seu gênero respeitado, pois mesmo que essas sejam do gênero feminino, por terem nascido com o sexo de macho, são encarceradas em unidades masculinas. 13 Na penitenciária de Assis se tem o primeiro contato com os prédios administrativos e refeitório do(a)s funcionário(a)s, esta área é separada dos pavilhões nos quais ficam as pessoas que estão presas, mas aquelas que têm “bom comportamento” são autorizadas a trabalharem nesse primeiro território da unidade. Para chegar aos pavilhões, é preciso passar pela “revisora” (espaço instalado com os únicos portões que dão acesso ao interior da penitenciária, tanto para pessoas como para automóveis). Todo(a)s que irão adentrar para os pavilhões devem passar por um detector de metais – vale ressaltar que na entrada da penitenciária, nos portões que dão acesso à parte administrativa, é obrigatório passagem por detector de metais e ser revistado(a) por um(a) agente penitenciário(a) - que é fiscalizado por outro(a) agente. No caso dos familiares das pessoas que estão encarceradas que vão para as visitas aos sábados (ADP) e domingos (penitenciária), este(a)s são revistado(a)s somente na primeira entrada (que dá acesso aos prédios administrativos). Após esse processo inicial é necessário passar por outros portões, sendo que um só é aberto depois que o outro estiver completamente fechado. O que se torna marcante para muitas pessoas que visitam e trabalham em penitenciárias são os sons das chaves ao abrirem e fecharem portas, celas e portões, e a batida destes. Na literatura consultada encontramos relatos da pesquisadora Camila Dias (2008), que aponta esse mesmo circuito vigilante quando a mesma esteve na penitenciária I de São Vicente, em sua dissertação Jefferson Cruz Reishoffer (2015, p. 2) descreve muito bem todo esse processo, principalmente o som que marca as penitenciárias brasileiras, “Com todos porta adentro, ouço pela primeira vez o incômodo barulho de grades batendo às minhas costas 2 ”. Drauzio Varella (2003), também, relatada em seu livro Estação Carandiru quando coloca em análise a “Casa de detenção de São Paulo”, que deu origem ao filme “Carandiru” dirigido por Hector Babenco, lançado em 2003 (CARANDIRU, 2003) e também o que foi percebido por Alfredo Naffah Neto (1988, p. 33) sobre sua visita a uma instituição penal: Chegamos num pequeno grupo, e logo na entrada do presídio fomos submetidos a um estranho ritual: as pessoas formavam uma imensa fila que passava por uma janelinha, onde assinavam seus nomes e deixavam seus pertences: bolsa, dinheiro etc. [...] O fato é que o ritual comportava várias 2 “Ainda não entendo o motivo para que, pelo menos nas carceragens e prisões em que já estive, portas, grades e cadeados serem batidos com desmedida força produzindo um barulho alto e muito incômodo, até mesmo àquele que está procedendo ao fechamento, sempre com o ouvido mais próximo. A necessidade de tal força e barulho, na certa, ultrapassa qualquer necessidade ou técnica de se fechar bem uma determinada porta.” (REISHOFFER, 2015, p. 2). 14 fases e longas esperas, pois só se passava para o passo seguinte quando todas as pessoas já haviam passado pela anterior. No início do estágio conhecemos as atividades escolares dentro da unidade. Para podermos “descer o morro” (gíria usada por funcionário(a)s, que significa a ida até os pavilhões), foi preciso à autorização do(a) diretor(a) da unidade e do(a) diretor(a) de segurança, além de nos primeiros dias estarmos acompanhados por algum(a) funcionário(a). Isto ocorreu devido o(a)s agentes penitenciário(a)s não nos conhecer, com o passar do tempo fomos adquirindo familiaridade com este(a)s e assim tínhamos “livre acesso” para chegar até os pavilhões e escola. A escola da penitenciária ficava em um pavilhão separado. Havia quatro salas de aula, uma biblioteca e uma secretaria. Todo(a)s o(a)s professore(a)s\monitore(a)s eram as próprias pessoas que estavam/estão presas, com exceção do ensino médio que tinha um(a) professor(a) da rede pública (cedido pela Secretaria Estadual de Educação), dando continuidade ao modelo de educação que era usado em penitenciárias do Estado de São Paulo, iniciado em 2004 pela Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) – que coordenava a educação das pessoas que estavam/estão presas, no Estado de São Paulo, desde a década de 80 (PORTUGUES, 2001). Segundo o relato de alguns(algumas) funcionário(a)s atualmente não é assim que funciona o sistema de educação dentro da penitenciária de Assis, este atualmente é coordenado pela Secretaria de Educação do Município, sendo todo(a)s professore(a)s da rede pública de ensino. O primeiro contato direto com as pessoas que estavam presas na unidade nos disparou medos, ansiedades e tensões, devido a sermos, na época, delimitados pelos atravessamentos de estigmas, construídos fora da instituição e orientados pela ideia de que quase todas as pessoas que estão ou já foram presas podem ser perigosas, associação feita pela maioria das pessoas que são leigas no assunto e se encontram em outros planos existenciais. Cabe colocar que quando usamos “quase todas as pessoas” é devido entendermos que existe uma construção pela “mass media” de um estereótipo da pessoa perigosa, que seriam pessoas de classe econômica baixa, afrodescendentes, que escutam música do estilo de rap e funk, e do gênero masculino. De modo clarificador, a ideia de estigma aqui utilizada dialoga com Richard Parker e Peter Aggleton (2001) que amplia o conceito, propondo que ao invés de estigma seria mais interessante falarmos de processos de estigmatização, pois: [...] o estigma representa um papel central nas relações de poder e de controle em todos os sistemas sociais. Faz com que alguns grupos sejam 15 desvalorizados e que outros se sintam de alguma forma superiores. Em última análise, portanto, estamos falando de desigualdade social. Para confrontar e entender corretamente as questões de estigmatização e da descriminalização [...] é necessário, portanto, que pensemos de maneira mais ampla sobre como alguns indivíduos e grupos vieram a se tornar socialmente excluídos, e sobre as forças que criam e reforçam a exclusão em diferentes ambientes. (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 11 – 12). Estes medos que sentimos disparados com o contato com as pessoas que estavam/estão presas, como citamos, é um atravessamento causado pela “mass media”, ou seja, esta tende a mostrar diversos crimes que acontecem pelo país e pelo mundo, sempre focando no lado da vítima, assim transformando o(a) agressor(a) em monstro(a)/não humano (GARLAND, 2008; RANGEL, 2014). A cada dia o que se passa a “mass media” mostra noticias de crimes violentos, pessoas cometendo delitos com toda frieza possível, o que gera pânico e insegurança em grande parte das “pessoas de bens” 3 . Como apontam Jefferson Cruz Reishoffer e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (2009) desde o século XVII pensadore(a)s apontam que se necessitaria existir formas de controle da população, devendo ser exercido pelo Estado, através de leis e se preciso com violência. Todo(a)s que se opuserem a tais formas de administração serão formas de contra-poder e devem ser punido(a)s e neutralizado(a)s, e tais formas devem ser aceitas e apoiadas, como forma de defesa social. Com a sociedade se transformando cada vez mais consumista, questões políticas somem da pauta de discussões, o que interessa é a segurança das pessoas que podem consumir e a repressão daquelas que podem atrapalhar, assim criando o medo e a insegurança em toda população. Tais sentimentos só levam ao isolamento das pessoas, casas, condomínios e bairros, separando os que são possíveis criminosos, do que são pessoas de bens. Como apontaram Reishoffer e Bicalho (2009, p. 438-439): A produção da insegurança nas subjetividades contemporâneas é eficaz ao substituir os possíveis atravessamentos sociopolíticos por indivíduos/segmentos da própria sociedade que serão alvo de perseguição e repressão por parte do controle social repressivo. [...]No Brasil contemporâneo, a individualização das questões e a despolitização do social apresentam-se, ainda, como a principal característica subjetiva. Perante a institucionalização de subjetividades individualizadas, qualquer ato que contrarie a ordem vigente é interpretado como revolta individual contra um direito particular, (patrimônio, vida, liberdade) trazendo como consequência o afastamento dos espaços públicos e a delegação da resolução dos problemas sociais e políticos para o poder estatal. Por outro lado, caberá ao próprio indivíduo adotar medidas de segurança privadas, que estarão à disposição do consumidor – tais como segurança privada, câmeras, cercas 3 Vale fazer uma nota neste momento, utilizamos “pessoas de bens” e não de bem, devido grande parte dessas sempre serem colocadas como vítimas pela mídia, enquanto a maioria das pessoas que moram em favelas, e/ou negras são tidas como “criminosas”. 16 elétricas – até a escolha por determinados espaços e comportamentos não entendidos como perigosos. Esses processos de estigmatização, das pessoas encarceradas, aparecem na Europa com a sociedade burguesa, a partir da segunda metade do século XVIII; a mesma substituiu a sociedade monarca, no qual o rei possuía todos os direitos e bens de seus(suas) súdito(a)s; a burguesia nesse período tolerava, segundo Foucault (2006), pequenos crimes praticados, pois o alvo era o monarca e a mesma necessitava do ilegalismo popular, para conseguir tomar o poder. Com o nascimento da sociedade burguesa (inicio do capitalismo) a burguesia coloca a maior parte de suas riquezas nas indústrias, que eram geridas pela camada popular; preocupada com seus bens, a burguesia, começa a classificar o(a)s “delinquentes” como “sujeito(a)s perigoso(a)s”, como pessoas que romperam com o pacto social e se transformaram em inimigas internas, desta forma se iniciam os processos de estigmatização contra todas aquelas que praticavam atos ilícitos, ou seja, a população não deveria aceitar nenhum ato infracional contra o patrimônio privado ou o bem público (BATISTA, 2003; FOUCAULT, 2002, 2004, 2006). Partindo dessa ideia, Foucault (2002) aponta que por volta do século XVIII e XIX com a reformulação do sistema judiciário e penal na Europa, o crime não era mais entendido como uma falta moral ou religiosa, mas uma ruptura com o pacto social, o(a)s legisladore(a)s e teórico(a)s da época (Beccaria, Bentham, Brissot, entre outro(a)s) colocaram três alternativas para punir a pessoa que cometeu a infração, primeiro poderia ser a deportação, expulsar da sociedade, outra forma seria através do vexame, humilhação desprezo da sociedade para com o(a) infrator(a) em praça pública e uma terceira alternativa seria o trabalho forçado para reparar o dano social, atualmente pode- se dizer que temos um sistema penal que conseguiu juntar essas três formas de punições, pois se retira a pessoa da sociedade “civilizada”, o mesmo é fichado e isso se torna motivo de vexame e por fim sofre com um sistema carcerário que não está preparado para receber nenhum tipo de pessoa que cometeu ou não ato infracional (FOUCAULT, 2002; REISHOFFER, BICALHO, 2015). Este processo de estigmatização no Brasil é muito forte, pois as elites econômicas do país pedem, cada vez mais, policiamento e vigilância sobre os bairros pobres da cidade, não como uma preocupação social, mas como uma forma de controle desta população, que é vista como perigosa e ameaçadora. Como colocou Baptista (1999, p. 38-39 apud REISHOFFER E BICALHO, 2009, p. 441): 17 Nos condomínios da classe média, a segurança e a privacidade caminham juntas com o apartheid. Privacidades paranóicas que temem perder as referências de classe, que temem negros, trabalhadores braçais e a diferença. A vida condominizada solicita limites e barreiras a todo o momento que não só segregam, mas solidificam e afirmam a construção de identidades [...] Ao apresentarmos esta maquinaria de subjetividade, sugerimos a atenção para a eficácia desse dispositivo político de intimização de vida, em que o déspota não é tão visível; sugerimos a descentralização do olhar fixo em uma categoria de humano sem práticas, desmaterializado e onipotente; sugeríamos a atenção para a inventividade capitalista na fabricação de maquinarias que podem ser usadas, desmontadas ou destruídas [...]. Este pensamento foi colocado por Charles Murray, no século XX, patrocinado pelo Manhattan Institute, nos Estados Unidos da América, no qual apontava que se deveria reprimir os “distúrbios” provocados pela parcela da população que era ajudada pelo governo (BATISTA, 2003; WACQUANT, 2001). No livro, intitulado Losing Ground, Murray acreditava que a assistência dada pelo Estado fazia com que existissem pessoas que não se interessavam pelo trabalho e pela moral, desta forma seriam a causa de toda violência. Com isso, o Estado passa a interferir menos na assistência social, e neste sentido: “as políticas previdenciárias destinadas aos pobres foram sendo paulatinamente consideradas luxos onerosos, que os contribuintes trabalhadores não podiam mais sustentar.” (GARLAND, 2008, p. 182; WACQUANT, 2001; SALLA; GAUTO; ALVAREZ, 2006). Desta forma, criam-se estereótipos das “pessoas perigosas”, caracterizando as como aponta Vera Batista (2003, p. 36): O estereotipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circula. Segundo David Garland (2008) o estigma no século XX foi considerado desnecessário, pois não ajudava na reinserção da pessoa que estava presa na sociedade. No entanto com o passar do tempo, o estigma foi novamente utilizado como forma da população ajudar a encontrar foragido(a)s e também para punir as pessoas que estão ou estavam presas. Voltando para nossa vivência, aos poucos fomos adquirindo mais familiaridade com o novo espaço de circulação e o contato com as pessoas que estavam/estão presas favoreceu para a diminuição e erradicação dos medos, preconceitos e inseguranças que tínhamos até então, pautados pela ideia pré-concebida a respeito da periculosidade destas pessoas. Ao longo de nossa vivência na escola da unidade, pudemos conversar e 18 nos aproximar mais desse(a)s sujeito(a)s, assim tivemos diálogos mais abertos e verdadeiros com este(a)s. Pudemos perceber, com nossa vivência e leituras de Foucault (1987) e Goffman (2001), que a penitenciária é espelhada em diversas instituições sociais (escolas, igrejas, orfanatos, entre outras) que servem para unidirecionar e reduzir a ação humana a padrões socialmente aceitos, ou seja, as pessoas passam a vida oscilando de uma instituição fechada para outra e cada uma com suas leis, rituais e contratos, a lógica disciplinar continua se espalhando, mesmo com a multiplicidade de tecnologias muitas instituições totais continuam funcionando como as masmorras na época dos suplícios (BENELLI, 2015; DELEUZE, 1992; NETO, 1988). “As técnicas corretivas imediatamente fazem parte da armadura institucional da detenção prisional” (FOUCAULT, 1987, p. 197), e isto, também, pudemos ver na penitenciária de Assis, pois a imposição de autoridade é o princípio fundamental que rege a relação agente-pessoa que está presa e é a ferramenta utilizada para conter/reeducar/corrigir/salvar as pessoas que estão presas. Há uma distância/hierarquia entre o(a)s funcionário(a)s e o(a)s sujeito(a)s que estão preso(a)s, no qual o(a) agente penitenciário(a) tem o poder e a pessoa que está presa deve se submeter as suas vontades, essa distância é em partes quebrada quando as pessoas que estão encarceradas começam a trabalhar e são supervisionadas por um(a) agente. Nesse contato existe aproximação entre ambo(a)s, fazendo com que o(a) funcionário(a) comece a ter uma imagem mais favorável das pessoas que estão presas, o que não significa que ocorra com todas. Vale colocar, o trabalho nas prisões, como forma de diminuição das penas, iniciou-se no século XX, surgiu para substituir o trabalho assalariado nas prisões, pois fazia com que muito(a)s trabalhadore(a)s (que estavam fora das prisões) ficassem desempregado(a)s, devido os baixos salários que eram pagos as pessoas que estavam presas (BATISTA, 2003; GARLAND, 2008; GOFFMAN, 2001). O estágio nos possibilitou a participação em atividades/funções/atuações da Psicologia e conversas com o(a)s psicólogo(a)s e assistentes sociais da penitenciária de Assis. Desta forma, tínhamos como atuação a realização de entrevistas de inclusão 4 (entrevistas realizadas por psicólogo(a)s e assistentes sociais, que tinha como objetivo o conhecimento, mesmo que mínimo, da história de vida da pessoa que chegava à unidade, apesar de não servirem para laudos e ficarem arquivadas nas pastas), 4 Vale ressaltar que as entrevistas de inclusões que realizávamos, como estagiários de Psicologia, não eram consideradas como forma de proporcionar a individualização da pena, proposta pela LEP. 19 atendimentos psicossociais e participação em atendimentos em grupo – nestes participavam pessoas que estavam presas que haviam conseguido progressão de regime – e de uma roda de conversa (“Grupo Perspectiva”) que acontecia uma vez por semana e tinha como objetivo propor que as pessoas que participavam refletissem sobre diversos assuntos e atos do dia a dia, além dos atos infracionais praticados. Além desse estágio possibilitado pela SAP-SP, tivemos contato com o sistema penitenciário através de um projeto de iniciação científica, que teve apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A pesquisa teve como objetivo cartografar os motivos que levaram as pessoas colaboradoras a atuarem no tráfico de drogas ilícitas e, para tanto, foram realizadas entrevistas com oito pessoas que haviam sido condenadas por infringirem o artigo 33 da lei 11.343 de 2006 5 . As vivências que tivemos, através do estágio e da iniciação científica no sistema penitenciário, nos ajudou a mapear nossas áreas de interesses e traçar os objetivos que pretendemos problematizar nessa dissertação. 5 Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. § 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI nº 4.274) Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. § 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28. § 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012) Retirado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm em 22 de julho de 2015. 20 1.1 COMO ENTRAR NESSE MUNDO PARA MAPEÁ-LO Para podermos entrar nas unidades penitenciárias de regime fechado masculinas do estado de São Paulo foi necessário que encaminhássemos o projeto de pesquisa para o Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria da Administração Penitenciária. A preocupação com pesquisas envolvendo seres humanos tomou maiores proporções após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o Tribunal Internacional de Nuremberg investigou e definiu os crimes contra a humanidade cometidos por grande parte do(a)s nazistas. Então se estabeleceu o Código de Nuremberg para que fossem garantidos os direitos das pessoas que participassem de experimentos científicos, assim criando o que conhecemos hoje como “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (PASQUALI, 2001). Alguns anos após o estabelecimento desse código, outras manifestações foram aparecendo dentro das pesquisas científicas, como o Manifesto de Russell-Einstein de 1955, lançado com a preocupação de discutir entre os cientistas o uso que estava se fazendo das invenções científicas, principalmente as armas nucleares, época em que o mundo estava ameaçado pela “Guerra Fria”. Em 1964 surge a Declaração de Helsinque, que se preocupava com o estabelecimento de normas para pesquisas biomédicas, mas sua principal inovação era a proposta de criação dos Comitês de Ética para o estabelecimento e defesa de normas de experimentos científicos (PASQUALI, 2001). No Brasil, em 1985 o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 1215/85 que determina a criação de Comissões de Ética Médica (CEMs) em todas as instituições que houvessem prática da medicina. Três anos depois o Conselho Nacional de Saúde (CNS) criou a resolução 01/88 6 que aprovava as normas de pesquisa em saúde, principalmente as que envolviam seres humanos, orientando nos aspectos éticos e cuidados biológicos. Em 1995 foi criado o Grupo Executivo de Trabalho (GET), que consultou a comunidade científica para elaboração de um documento, que em 1996 tornou-se a Resolução 196/96 7 do CNS, sua principal importância foi pela 6 Retirado de https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAAahUKE wjjlp3yt- _GAhVCgZAKHRKtAh0&url=http%3A%2F%2Fconselho.saude.gov.br%2Fresolucoes%2F1988%2Fres o01.doc&ei=IeqvVaOCBcKCwgSS2oroAQ&usg=AFQjCNE1_EV3sUoKhd9VGfUBdznWWdB_FQ&b vm=bv.98197061,d.Y2I&cad=rja em 22 de julho de 2015. 7 Retirado de http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/resolucoes/23_out_versao_final_196_ENCE P2012.pdf em 22 de julho de 2015. 21 criação dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), que é um sistema que deve articular a avaliação de projetos de pesquisa em âmbito nacional, os CEPs são regidos pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). A Resolução 196/96 foi considerada umas das mais avançadas, na América Latina, em relação à preocupação com os direitos e autonomia de pessoas que participavam em pesquisas, tendo respeito e preocupação com as mesmas (BARBOSA, et al., 2011; HARDY et al., 2004; MACRAE; VIDAL, 2006). No entanto a Resolução 196/96 recebeu diversas críticas devido seu caráter biomédico, ou seja, todo(a)s pesquisadore(a)s que fossem realizar alguma forma de pesquisa deveria ser aprovado(a) pelo CEP, no entanto as normas que foram criadas foram pensadas em pesquisas biomédicas, com isso suas regulações muitas vezes não encaixam, favorecem projetos nas áreas de ciências humanas e sociais, dificultando que muitos sejam aceitos pelos CEPs e assim possam ter andamento. Em 2012 o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Resolução n. 466, esta tem como proposta a regulação das pesquisas que envolvem seres humanos, ainda com o olhar biomédico, de outras resoluções nessa área. As pesquisas com seres humanos são controladas por onze resoluções, a Resolução 196/96 é a mais antiga e tem como uma das mais atuais a Resolução 466/2012. Essas resoluções partem do principio positivista e biomédico de pesquisa, o que muitas vezes inviabiliza as pesquisas de pesquisadore(a)s das ciências sociais e humanas, pois não acabam se enquadrando nesses viés (GUERRIERO; BOSI, 2015; GUERRIERO; MINAYO, 2013). Como apontou Guerriero e Minayo (2013, p. 768 – 769): O problema central da extrapolação dos procedimentos éticos das pesquisas clínicas e biomédicas para os estudos sociais empíricos, mantido na Resolução 466/12, é considerar que a relação do pesquisador com os participantes da pesquisa se estabelece e se mantém da mesma maneira nas diferentes comunidades científicas. No caso das ciências sociais e humanas, em geral, os participantes não são vistos apenas como objeto de estudo, mas interatuam com os investigadores e sua colaboração tem um caráter de interpretação de primeira ordem [...]. Ou seja, os pesquisadores e seus interlocutores são atores ativos do processo da pesquisa, pois em geral o conhecimento das ciências sociais e humanas é gerado em intersubjetividade. Além disso, o pesquisador costuma entrar no contexto usual dos participantes e os etnógrafos, por exemplo, chegam a morar nas comunidades que estudam. Essa convivência intensa entre equipe de pesquisa e participantes gera um tipo de conhecimento que não ocorre a priori, não podendo, portanto, ser previsto num protocolo de pesquisa. 22 Alguns(algumas) autore(a)s vem discutindo essa relação entre as ciências humanas e sociais com os Comitês de Ética e Pesquisa e a CONEP, no entanto são poucos os avanços, deixando pesquisadore(a)s da área a mercê de um biocentrismo, o que dificulta a realização de pesquisas (GUERRIERO; BOSI, 2015; GUERRIERO; MINAYO, 2013). O Conselho Federal de Psicologia estabeleceu em 2000 a resolução 16/2000 8 que dispunha sobre pesquisa em Psicologia com seres humanos, assim todas as pesquisas envolvendo a profissão deveriam ser submetidas aos Comitê de Éticas em Pesquisa reconhecidos pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da SAP foi constituído em 22 de abril de 2010, a partir da Resolução SAP n. 83/2010, tem como finalidade: A iniciativa visa garantir que as pesquisas científicas realizadas junto às pessoas que cumprem penas ou àquelas que trabalhem nesses locais sejam desenvolvidas sob a ótica do indivíduo e da coletividade e incorporem os quatro referenciais básicos da bioética, quais sejam: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça.9 Assim, todas as pesquisas envolvendo seres humanos dentro do território da Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo deve passar por este comitê, que é ligado a CONEP. Em 2011 foi lançada pela CONEP a Plataforma Brasil, assim a partir de dezembro deste ano todos os projetos de pesquisas envolvendo seres humanos deveriam/devem ser enviados pela “Plataforma Brasil”, com forma de sistematizar o recebimento de experimentos científicos pelos Comitês de Ética de todo Brasil 10 . Nosso projeto passou primeiramente pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Assis, sendo aprovado. No entanto, mesmo o projeto tendo sido lançado na Plataforma Brasil e aprovado por um CEP, foi necessário que enviássemos nosso projeto de pesquisa para o CEP-SAP, – aqui vale colocarmos que apesar de ambos serem regulados pelo CONEP e estarem “ligados” a Plataforma Brasil, pode-se perceber que não existe uma rede ou sistema de Conselhos, mas instituições cada qual com seu CEP - que pediu alterações no número de participantes e no território no qual a pesquisa se realizaria. Não sabemos se seria de competência dos CEP fazer tais apontamentos, pois estes pontos não teriam 8 Retirado de http://www.assis.unesp.br/Home/ComitedeEtica/ComitedeEticaHumanus1346/resolucao_CFP_16-2000_- _dispoe_sobre_pesquisa_com_seres_humanos.pdf. Em 15 de abril de 2015. 9 Retirado de http://www.sap.sp.gov.br/. Em 15 de abril de 2015. 10 Retirado de http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/Carta_327_Esclarecimentos_PlataformaBrasi l.pdf. Em 15 de abril de 2015. 23 relevância aos direitos e preocupações com o(a)s participantes, no entanto a proposta de ampliar o território foi aceita e acreditamos que foi de bastante valia para nossa pesquisa. Já tínhamos familiaridade com o CEP-SAP por termos passado pelos mesmos procedimentos quando na graduação fizemos pesquisa de iniciação científica com pessoas que estavam presas e condenadas por tráfico de drogas em uma unidade penitenciária do estado de São Paulo. Acreditamos que com essa vivência, além de termos sido estagiários pela SAP, nos ajudaram para que tivéssemos o projeto de pesquisa aceito pelo comitê. Ressaltamos isto, pois em alguns encontros e congressos sobre o sistema penitenciário ouvimos de outro(a)s pesquisadore(a)s do tema que o acesso às unidades penitenciárias do estado de São Paulo estava quase impossível, tendo muitas dificuldades para conseguirem ter os projetos de pesquisas aceitos e aprovados pelo CEP-SAP. Assim além das gigantescas muralhas no estado de São Paulo se tem o CEP- SAP, o que dificulta e às vezes pode impedir que pesquisas sejam realizadas dentro das diversas unidades penitenciárias. Entendemos que deve existir preocupação com o bem- estar do(a)s participantes das pesquisas, mas que também se possam haver pesquisas sobre um tema delicado e muitas vezes esquecido pela sociedade e a academia. O pesquisador Rafael de Albuquerque Figueiró (2015) teve as mesmas dificuldades em sua pesquisa de doutorado para entrar nas unidades prisionais do Rio Grande do Norte, colocando que levou quase um ano para que pudesse conseguir autorização formal para entrar no seu campo de pesquisa. O mesmo coloca um questionamento que também tivemos ao longo de nosso processo para conseguir chegar até o(a)s psicólogo(a)s, o de que algumas instituições públicas (nesse caso as unidades penitenciárias) se tornam “privadas” e dificultando o acesso, as quais deveriam ter seu acesso facilitado não só para pesquisadore(a)s, mas a sociedade e assim deixarmos de esconder essas instituições e pessoas. 2. TRAÇANDO UMA CARTOGRAFIA SOBRE A METODOLOGIA E NOSSA TEORIA 24 Com este trabalho pretendemos contribuir com a construção de conhecimentos em Psicologia na área Penitenciária, de modo a ajudar que este campo de atuação tenha maior visibilidade, principalmente no meio acadêmico. Para alcançar nossos objetivos, cartografamos as atuações e histórias de vida no sistema prisional de treze psicólogo(a)s que trabalham(trabalhavam) diariamente dentro das penitenciárias do estado de São Paulo, em penitenciárias de regime fechado masculinas, e, com isso, pudemos mapear como, o que está sendo feito e o que já foi feito por este(a)s profissionais nas penitenciárias paulistas. Estes mapeamentos nos ajudaram a clarificar a respeito de como a Psicologia está e foi sendo utilizada em uma instituição que preza mais pela segurança do que pela reinserção social e bem como mapeamos os desejos destes profissionais e problematizações de suas funções nas penitenciárias. Acreditamos que os estudos sobre as atuações e histórias de psicólogo(a)s em uma instituição total exigiu a presença de uma abordagem teórico-metodológica que respeitasse e problematizasse as variações, atentando para não sermos reducionista, e que pudéssemos perceber as diversas linhas de saber-poder que criam e recriam as subjetividades, estas que são entendidas como “[...] essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 33). Assim podemos dizer que o(a)s sujeito(a)s estão sempre em construção subjetiva, social e teórica. Ou seja, sempre estamos em processos de subjetivação, porque nos construímos a partir de nossas relações com o mundo. Desta forma, o método cartográfico respondeu a essas exigências, porque o cartógrafo mapeia, por meio da escrita/linguagem, as relações/linhas que existem nas falas, nos ambientes e nas não-falas. Em nenhum momento buscamos verdades absolutas e universais ou queríamos estabelecer modelos prontos, ou seja, aceitamos a provisoriedade destas cartografias. Quando colocamos que não buscamos verdades universais, é devido o conhecimento científico ser colocado na economia da verdade com posição política muito forte (graça aos(as) positivistas), pois seus saberes advêm de pesquisas com resultados que foram produzidos a partir de metodologias universais, assim são comprovados através de experimentos, não sendo senso-comum. Para Foucault (2007, p. 12): A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias 25 que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. Desta forma, acreditamos que não exista uma realidade verdadeira e imutável. Nessa perspectiva, Passos e Eirado afirmam que: Há aqui um efeito de verdade muito interessante: essa verdade que surge da performatividade da experiência não é inelutável e pode ser transformada, ou melhor, na maior parte das vezes se transforma na seqüência dos acontecimentos. A impermanência desta verdade afeta inclusive a ciência cuja história é entremeada de mudanças de paradigma. O caráter de mudança dos efeitos de performatividade indica sua variabilidade de tal maneira que quanto maior o efeito de performatividade – isto é, quanto maior a certeza acerca dessa verdade nascida da experiência – menor é o grau de abertura da experiência para a mudança, o que equivale dizer, menor o seu coeficiente ou quantum de transversalidade. Assim também, essa variabilidade afeta a atitude implicacional do pesquisador: tanto maior a certeza do pesquisador acerca da verdade que surge em sua experiência com o campo de intervenção, menor a sua dissolvência no plano implicacional e, consequentemente, maior a sua sobre implicação no trabalho de pesquisa. (EIRADO; PASSOS, 2009, p. 13). Com isso a cartografia – que é um procedimento metodológico da Geografia de representação dos contornos de um dado território, através de mapas ou cartas, por meio do que viu e sentiu o(a) cartógrafo(a) – é um método utilizado por Félix Guattari e Gilles Deleuze (1995), possibilita a leitura das relações estabelecidas pelos processos desejantes no campo social e o mapeamento de linhas subjetivas influenciadas pelos saberes, poderes e prazeres presentes nos discursos e figurações, que nos atravessam ao longo de nossas vidas. Assim como colocou Rolnik (1989, p. 15) é: [...] tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. A cartografia tem como objetivo acompanhar os processos, e não representar um objeto, ou seja, procura-se investigar processos de produção dos conhecimentos e das subjetividades. Vale ressaltar, que o(a) cartógrafo(a) não quer “entender”, “explicar” ou dar uma “solução”; o importante é dar passagem ao que ainda não foi dito e visto, mas não como se houvesse algo oculto. Como colocou Mairesse (2003, p. 270): É no suporte com a vida que se percebe quais intensidades pedem passagem, qual o índice de abertura, de devir, de acolhimento a novos encontros e novas experiências que permitem a desterritorialização de campos inférteis, onde o único esboço de vida é o do mesmo, daquele que ainda persiste, mesmo na imanência de cair na escuridão. E, no compromisso com a vida, é também 26 tarefa do cartógrafo social fazer deste esboço um desenho, desvendar outras linhas, potencializar novas formas. Desta forma, através deste método acredita-se que toda pesquisa é intervenção e que a orientação do trabalho não se faz de modo prescrito, ou seja, um caminhar que traça no percurso suas metas, é um saber que surge do fazer, mas não se trata de uma ação sem direção (EIRADO; PASSOS, 2009). O(a) cartógrafo(a) problematiza suas escolhas a respeito dos elementos que participam da cartografia, pois de algum modo o(a) mesmo(a) foi atravessado(a) por linhas que o levaram até a formação da pesquisa, e neste sentido nos diz ROLNIK (1989, p. 67), [...] descobrir que matérias de expressão, misturadas as quais outras, que composições de linguagens favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretendem entender. Aliás, ‘entender’, para o cartógrafo não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Com isso, o(a) pesquisador(a) deve ter cuidado na organização dos relatos, pois irá relatar não apenas o que observou, coletou e viveu, “mas também do que ouviu no campo, do que lhe contaram, dos relatos dos outros sobre a sua experiência”, desta forma o trabalho do(a) cartógrafo(a) é também relatar a sua vivência em campo, assim não tendo como foco somente as entrevistas (CAIAFA, 2007, p. 138). Como bem colocou Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 71), “a condição epistemológica da ciência repercute-se na condição existencial dos cientistas”. Assim a neutralidade, buscada pelo(a)s positivistas, não tem como ser alcançada, pois as condições históricas vigentes intervêm diretamente em como o(a) pesquisador(a) apreende o mundo, consequentemente, em sua produção científica. Nesse sentido, o(a) cartógrafo(a) tem que estar sempre atento, para que nas observações e escutas junto aos(as) colaboradore(a)s, possa mapear as práticas estudadas de modo que seus valores particulares possam interferir o menos possível no processo de pesquisa, para que com isso possa cartografar todas as linhas que atravessaram e atravessam o(a)s sujeito(a)s colaborador(a)s e todo o ambiente ao redor, não deixando de fora linhas que poderiam ser barradas por seus valores pessoais (KASTRUP, 2007; PERES, 2005). Como colocou Marli Lima (2009, p. 82) “o pesquisador deve se implicar na produção de conhecimento, na criação de possíveis, colocando a si mesmo em análise da implicação”. No entanto o(a) pesquisador(a) não deve se distanciar da investigação, pois o(a) mesmo(a) é integrante desta. Como colocou Gilles Deleuze (1997, p. 169): 27 [...] cada vez que um corpo convém com o nosso e aumenta nossa potência, uma noção comum aos dois corpos pode ser formada, de onde decorrerão uma ordem e um encadeamento ativos das afecções Cartógrafo e objeto nascem juntos e percorrem a vida de um modo inseparável na criação de problemas. Entre tudo, o(a) cartógrafo(a) também deve mapear os regimes reguladores dos discursos, que visibilizam ou não certas práticas, ou seja, normatizações/regulações que moldam as falas do(a)s sujeito(a)s adequando o que se pode ou não ser dito. Assim, através dos discursos, que integram um campo de intervenção, poderemos acessar os processos de institucionalização. De acordo com Foucault (1988, p. 30): Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que podem e não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos. O(a) pesquisador(a) deve experimentar, pensar, problematizar e conhecer a partir da abertura que se dá para o inusitado. Com isso criará possibilidades para pesquisa intervenção, na qual ao intervir em certa realidade pode alterar os padrões comunicacionais, assim aumentando o grau de abertura, ou seja, fazer uma leitura que provoque uma ruptura e crie mundos (EIRADO; PASSOS, 2009; LIMA, 2009). Como bem colocou Deleuze em uma conversa com Foucault (2007, p. 69): Às vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma consequência; às vezes, ao contrário, como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação a uma forma futura de teoria. De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de totalização, em um sentido ou em um outro. Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. As relações teoria−prática são muito mais parciais e fragmentárias. Por um lado, uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um outro domínio, mais ou menos afastado. A relação de aplicação nunca é de semelhança. Seguindo está lógica, a implicação, a transversalidade e dissolução do ponto de vista do(a) pesquisador(a) são, segundo André Eirado e Eduardo Passos (2009), três ideias que compõem a metodologia cartográfica, quebrando com a tradição de pesquisa com o pressuposto objetivista e cientificista. Ou seja, quebrando a ideia de pesquisa neutra, pois irá romper com a dualidade/distância entre aquele(a) que conhece e aquele(a) que deve ser conhecido(a). Os conceitos de transversalidade e implicação foram utilizados por Félix Guattari (1987; 2004) com o desígnio de distender os conceitos freudianos de transferência e contratransferência. Desta forma o conceito de transversalidade rompe 28 com o padrão comunicacional das instituições – horizontal e vertical, quebrando com a hierarquização e homogeneização - assim expressando: Transversalidade em oposição a: - uma verticalidade que encontramos por exemplo nas descrições feitas pelo organograma de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes, etc.); - uma horizontalidade como a que pode se realizar no pátio do hospital, no pavilhão dos agitados [...], uma certa situação de fato em que as coisas e as pessoas ajeitam-se como podem na situação em que se encontram. [...] A transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos diferentes sentidos. (GUATTARI, 1987, p. 95-96). Nesse sentido, cartografar as vivências/histórias do(a)s psicólogo(a)s que atuam em penitenciárias será maquinar com os agenciamentos (possibilidades infinitas de encontros) que foram e vão sendo traçados em suas vidas, antes e durante da realização da pesquisa, pois são múltiplos os encontros e fluxos, formando o que Deleuze e Guattari (1995) chamaram de rizoma 11 . Assim a transversalidade nos ajuda a não ter apego a pontos de vistas, permitindo variações (EIRADO; PASSOS, 2009). A dissolução do ponto de vista do(a) observador(a), um terceiro eixo da cartografia, significa dizer que o(a) cartógrafo(a) “acompanha um processo que, se ele guia, faz tal como o guia de cegos que não determina para onde vai, mas segue também às cegas, tateante, acompanhando um processo que ele também não conhece de antemão” (EIRADO; PASSOS, 2009, p. 123). Dessa forma fugindo de pesquisas que queiram apenas solucionar problemas e testar hipóteses. Com isso, pode se afirmar que: O cartógrafo não toma o eu como objeto, mas sim os processos de emergência do si como desestabilização dos pontos de vistas que colapsam a experiência no (“interior”) eu. [...] A posição paradoxal do cartógrafo corresponde à possibilidade de habitar a experiência sem estar amarrado a nenhum ponto de vista e, por isso, sua tarefa principal é dissolver o ponto de vista do observador sem, no entanto, anular a observação. (EIRADO; PASSOS, 2009, p. 123). 11 O termo rizoma é “emprestado” por Deleuze e Guattari (1995) da botânica, contrapondo-se à ideia de raiz (algo fixo), sendo definido pelos feixes de linhas que compõe verdadeiras redes sem um eixo principal; de modo clarificador estes autores, ao falar de rizoma, nos informam que o mesmo: [...] não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto [...]. Oposto a uma estrutura, [...], o rizoma é feito somente de linhas. [...] O rizoma é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. [...], o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. [...] unicamente definido por uma circulação de estados [...] todo tipo de “devires”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32) 29 Assim, segundo André Eirado e Eduardo Passos (2009, p. 125), a “realidade se submete a um ponto de vista”, ou seja, mudar o ponto de vista possibilita a mudança da realidade (grau de abertura). Para os mesmos, existe uma “experiência de base”: “aquela que dá ensejo ao surgimento da realidade de si e do mundo”. Essa lembrança se dissipa, dando lugar a uma vivência como se fosse “propriedade do sujeito” e como “condicionada pelo objeto”. Há assim, o que os autores chamaram de “uma inversão de base”: Nossa aposta é que a inversão de base, que é responsável pelo surgimento de um ponto de vista proprietário, deve-se a uma perda de liberdade frente a experiência e nos faz responder de forma estereotipada diante das situações cotidianas. Perder a base da experiência é tornar-se uma coisa que experimenta, não reconhecendo assim a performatividade da experiência e se constrangendo diante de um sentido dado (grau mínimo de liberdade). [...] Da perspectiva da noção de enação, proposta por Varela, o que interessa é pensar toda a experiência como emergindo de uma experimentação, pois a experiência não concerne ao que já está aí como dado inelutável, mas antes a emergência de alguma mudança. [...] Assim, se há dado, este se constitui na experiência e não pode ser concebido antes do ato de experimentar. [...] Ou seja, a realidade só aparece como dada em função de um ponto de vista que force a inversão da base. (EIRADO; PASSOS, 2009, p. 126). Desta forma, com a experiência de inversão da base pode-se pensar na dissolução do ponto de vista do(a) observador(a), pois o(a) cartógrafo(a) deve ser aquele(a) que vai experimentar o encontro de forma inusitada, ir a campo, estando aberto(a) para se deixar ser afetado e também afetar, se permitir a abertura para a experimentação e a ruptura. Pensar a Psicologia como política, ou seja, não separar a militância da academia, buscar entrelaçar ambos para novas problematizações e ideias surgirem. Assim, cartografamos as linhas que constituíam e constituem este(a)s sujeito(a)s, como o(a)s atravessaram e atravessam e de que forma estavam e estão “arranjadas”. O importante foi ter o foco não apenas no íntimo do(a)s sujeito(a)s, mas perceber como suas problemáticas se relacionavam e relacionam com aquilo que está aparentemente fora, como questões políticas, religiosas, morais e sociais, que se interseccionam em interfaces com outras categorias de análises, tais como classes sociais, raças/cores, gêneros, orientações sexuais, gerações e estilos de vida. Assim como colocou Benevides (2003) 12 : A cartografia nos convoca, portanto, a uma aventura pelos inusitados processos de constituição de si e do mundo. Ela é procedimento das 12 Texto extraído da 2a orelha do livro “Cartografias e devires: a construção do presente”. 30 emergências, do acompanhamento de pontos de insurgência dos devires no estrato histórico. É método para aqueles que não se contentam com as verdades postas, que esperam descrições, explicações, ou com os fenômenos sociais que aguardam depurações cientificistas. A cartografia é método de construção do presente, experimentação das misturas que a vida é. Que não se confunda, entretanto, este procedimento de risco com falta de rigor ou relativismo daquele que conhece como muitos querem fazer crer. Arriscar-se em caminhos desconhecidos como são aqueles dos processos de invenção exige alianças coletivamente construídas, exige o rigor ético-político de afirmar as diferenças, exige a escolha de critérios que permitam a construção de um presente para todos. 2.1 MAPEANDO OS ESTUDOS/POLÍTICAS/DISCURSOS QUEER COMO AUXILIAR PARA PROBLEMATIZAÇÕES EM UMA PERSPECTIVA DAS CARTOGRAFIAS Para iniciar nosso quadro, ou melhor, nossa pintura – Queer não deve ser enquadrado e se refletirmos nem pintado ou mapeado, pois o Queer é algo que não se pode aprisionar, não se é. Vale ressaltar, utilizamos ao longo deste trabalho o termo Queer, que é originário da língua inglesa (Queer é derivado do alemão “que” e significa desviado, torcido) por não existir na língua portuguesa uma palavra que possa ser utilizada para traduzi-la ou substituí-la – vale destacar que no Brasil os termos viado, boiola, bixa, sapatão, traveco, entre outros que são utilizados para menosprezar todo(a)s que fogem das normas, seriam equivalentes ao termo Queer empregado pelo(a)s americano(a)s em meados dos anos 20 do século passado e utilizado por homossexuais para se auto afirmarem até meados dos anos 30, quando se generaliza o termo “gay”; no entanto acreditamos que estes termos não teriam a mesma eficácia e não carregariam consigo toda carga que o termo Queer traz (CÓRDOBA, 2005; PENEDO, 2008; SALIH, 2012). No Brasil o pesquisador dos estudos Queer e de gêneros Wiliam Siqueira Peres propõem que se comece a pensar em substituir Estudos Queer para Estudos Dzi; essa proposta faz menção ao grupo Dzi Croquettes, que foi criado em 1972 inspirados em um grupo de artistas – bailarinos, atores do Rio de Janeiro, no qual homens se vestiam de mulheres e faziam críticas sociais aos modelos de sexualidades e de gêneros disponíveis naquele contexto sócio-histórico dos anos 70. Desta forma os integrantes do grupo - Lennie Dale, Wagner Ribeiro, Cláudio Gaya, Paulo Bacellar, Rogério de Poly, Reginaldo de Poly, Carlos Machado, Bayard Tonelli, Benedictus Lacerda, Cláudio Tovar, Roberto Rodrigues, Eloy Simões e Ciro Barcelos – se apresentavam vestidos como mulheres, mostrando suas pernas e peitos cabeludos, o que causava e ainda causa estranheza em seus espectadore(a)s, pois era algo ininteligível, isso é, em cima do palco 31 não eram homens, mulheres ou gays, eram gente de carne que embaralhavam os códigos de coerências e inteligibilidades sobre o que era ser homem ou mulher. Esse embaralhamento, também, aconteceu na telenovela “Império” produzida e exibida pela Rede Globo, entre os anos de 2014 e 2015, escrita por Aguinaldo Silva; o(a) personagem “Xana Summer”, interpretado(a) pelo ator Ailton Graça, causou diversas discussões entre o(a)s telespectadore(a)s, pois o(a) mesmo(a) se vestia/montava/utilizava roupas “consideradas” de mulheres, assim como seus comportamentos eram similares aos “estereotipados” as mulheres, no entanto sua “paixão/amor/afeto” era voltado para a personagem “Naná”, interpretada pela atriz Viviane Araújo 13 . As pessoas não conseguiam, assim como acontecia com o público do grupo Dzi, enquadrar, identificar e nomear o personagem, algo que deixa muitas pessoas intrigadas, pois necessitavam/necessitam enquadrar o(a)s sujeito(a)s. Assim o grupo Dzi Croquettes perpetrava o Queer antes do mesmo surgir como estudos ou política. Então se pensar em substituir Estudos Queer por Estudos Dzi seria uma forma de homenagem a este grupo. Na Espanha diversos autore(a)s questionam sobre o uso do termo Queer devido ter emergido em outros contextos sociais e culturais (Estados Unidos) propondo ao invés de políticas Queer, teoria torcida ou teoria rarita. Outro(a)s téorico(a)s no Brasil, também, tem algumas tentativas de fazer essas aproximações, quando Berenice Bento fala em Teoria Transviada, mas ainda sem muita ressonância no universo acadêmico brasileiro. Seguindo essas tentativas de problematizar um Queer tupiniquim é que surgem as especulações a serem investigadas em torno das expressões já polemizadas pelo Dzi Croquetes nos anos 70. No entanto não problematizaremos essas nomenclaturas sobre o Queer neste texto, por acreditarmos que a nomenclatura Estudos Queer já vem se estabelecendo há alguns anos no Brasil e em diversos outros países, com isso construindo redes de grande importância e trazendo consigo conteúdos políticos e teóricos. Essas especulações iniciais podem produzir outras questões que se aproximariam do universo de nossa pesquisa, ao colocar em tela se seria possível pensarmos em uma Psicologia Queer – logo, não binária e universal, que permita a seus operadores e operadoras a possibilidade de inventar novas Psicologias, e de fomentar outras práticas psi que possam dar passagens para que conceitos e metodologias possam ampliar nossas posições enquanto pesquisadores e pesquisadoras que ousam dar um tom político e emancipatório para as sujeitas e sujeitos 13 Retirado de http://gshow.globo.com/novelas/imperio/personagens/por-ator-ou-atriz/ em 24 de abril de 2015. 32 que nos brindam com suas vivências até então tratada(o)s como marginais, abjeta(o)s e excludentes visando reverter às negatividades associadas a vidas de dissidências, e, compor novos olhares e posições de teorizações que reconheçam as pessoas e suas práticas como positivas e ampliadas de vidas que não mais seriam vistas como errantes, mas, vidas potentes e colaboradoras da emergência de estilísticas de existências. Desta forma, para que o(a)s profissionais da Psicologia que trabalham em instituições carcerárias também deveriam ousar ultrapassar os modelos dados de suas práticas e inventar novos possíveis (CÓRDOBA, 2005; PENEDO, 2008; SALIH, 2012). Para iniciar nossas problematizações, necessitamos apresentar algumas questões teóricas, políticas e sociais que antecederam os estudos Queer. Desta forma é importante colocar que a sexualidade foi e ainda tem sido vinculada com a natureza, sendo o último vestígio do pré-social que há no humano, entendido como energia e impulso. De tal modo que é utilizada como base legitimadora da ordem social, da produção das diferenças e desigualdades, sendo o apoio dos discursos proferidos pelo(a)s dominantes (classe média e alta, heterossexuais, branco(a)s, homens), pois estabelecem normas – como exemplo o relacionamento homossexual não ser natural/normal e por isso não deve ser aceito – para dominarem (CÓRDOBA, 2005). Como aponta Donna Haraway (1997, p. 102, apud CÓRDOBA, 2005, p. 25) “Também tem servido como modelo para a ação humana, como poderosa base do discurso moral. Não ser natural, ou atuar de maneira não natural, é não ser considerado como saudável, moral, legal ou, em geral, como uma boa ideia.” [Tradução nossa]. Assim, a sexualidade tomada como natural e no singular – modelo único e absoluto de verdade - pode ser pensada como algo mais animal e primitivo dos seres humanos, sendo um dos inimigos da ordem social imposta, então a mesma deve ser controlada e disciplinada pelas instituições disciplinares da sociedade e seus regimes de regulações (biopoder e biopolíticas) advindos do Estado. A ideia de biopoder surgiu com Foucault (1988) em sua obra “História da Sexualidade I: a vontade de saber”; o termo é usado para nomear o poder que se exerce sobre o corpo e a vida. Ou seja, são métodos que permitem o controle dos corpos e desta forma formam-se sujeito(a)s dóceis e úteis (BATISTA, 2003), pois o biopoder: [...] centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que 33 caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. (FOUCAULT, 1988, p.131) No entanto, podemos dizer que o poder até então normatizador e disciplinar que agia sobre os corpos individualizados (biopoder), passa a se concentrar na figura do Estado, de modo a administrar a vida, os corpos e os prazeres da população. Seguindo essa lógica, a biopolítica se soma às práticas disciplinares centradas sobre as pessoas, para atuar sobre a população através de processos de normatização regulatória como prática comum. A biopolítica: [...] centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população. (FOUCAULT, 1988, p.131). Desta forma os prazeres e os desejos devem ser controlados, com a promessa que os mesmos vão ser alcançados a posteriori, ou seja, a sexualidade tem como único objetivo a reprodução e perpetuação da família, as práticas sexuais devem ser limitadas à procriação e continuidade da espécie, deste modo se colocavam os evolucionistas. Por outro lado temos grupos que pregavam/pregam a liberação sexual, colocando que esta repressão atrapalha o pleno desenvolvimento dos seres humanos a sua realização natural (essência), neste grupo podemos situar os freudmarxistas (CÓRDOBA, 2005; SAÉZ, 2005). Vale ressaltar que a Psicanálise foi uma das primeiras a romper com a visão naturalizante das sexualidades, com base no principio de que a sexualidade é constituída a partir do atravessamento da barreira do simbólico pelas pulsões sexuais, assim se inscrevendo e sublimando nas instituições; desta forma se reconhece que não existe sexualidade natural antes deste processo de repressão. As teorias de Freud muitas vezes rompiam com as ideias de sexualidades dominantes, no entanto o mesmo muitas vezes se retratava e ia contra suas próprias teses. Após Freud o(a)s psicanalistas em sua maioria se voltaram para abordagens mais naturalistas e biologizantes, de tal modo que a Psicanálise voltou para os discursos de normatizações (TEIXEIRA-FILHO, 2013; CÓRDOBA, 2005). Dentro da Psicanálise podemos ver que a normalidade sexual vai se formar através do que foge do natural, assim sendo perverso e devendo ser analisado através dos processos psíquicos. No entanto alguns(algumas) autore(a)s como Laplanche e 34 Pontalis (1968, apud CÓRDOBA, 2005, p. 27) apontam que para Freud a sexualidade é perversa, pois as pulsões se tornam sexuais quando as mesmas se separam das funções biológicas, ou mesmo do caráter reprodutivo. Na contra mão da Teoria Psicanalítica, teórico(a)s como Foucault concebem a sexualidade como algo não natural, mas construída socialmente. Foucault (1988) em seu livro “História da sexualidade I: a vontade de saber” começa a enunciar o que ele chamou de dispositivo de sexualidade, que seria uma série de tecnologias e estratégias utilizadas para conter e disciplinar os corpos, e, aqui vale transcrever como o autor definiu dispositivo de sexualidade: [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discurso, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (FOUCAULT, 2007, p. 244). Desta forma para Foucault (1987) a burguesia construiu ao longo dos anos dispositivos para dominar e disciplinar os corpos principalmente da classe trabalhadora; logo a naturalização da sexualidade serviu e ainda serve como forma para que o(a)s trabalhadore(a)s monopolizem suas energias para o trabalho (CÓRDOBA, 2005; PENEDO, 2008). Partindo desse pressuposto, Gayle Rubin (1989) afirma que o sexo foi ao longo dos tempos sendo reprimido e construído como uma prática pecaminosa, quando existem variações (quando vai além do sexo reprodutivo), principalmente pelas instituições religiosas cristãs e mais tarde pela medicina, psiquiatria e psicologia, que patologizaram essas práticas sexuais que fogem do sexo para procriação em sua vertente “tradicional”. Dentro da Psicologia podemos apontar as teorias psicanalíticas, quando na famosa obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” Freud (1973) emprega como perversa qualquer variação em relação às práticas sexuais. Sendo assim, é fundamental para a perspectiva Queer a desnaturalização das sexualidades e dos gêneros, o que se aproxima da teoria da performatividade de Butler (2003), mas que teve como ponto de partida a famosa frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se uma”, o que por extensão, também podemos afirmar que não se nasce homem, tão pouco homossexual, heterossexual, bissexual ou qualquer outro atributo que reduza o ser humano a uma identidade fixa e totalizada. A desnaturalização da sexualidade se inicia com a crítica que Gayle Rubin (1975) fez ao sistema sexo/gênero. 35 Rubin (1975) argumenta sua crítica na dicotomia entre natureza (sexo) e cultura (gênero), no entanto a primeira só se complementa com a segunda. Assim os gêneros são as roupas que se colocam no cabide (sexo), ou seja, gênero é aplicação de significados que cada sociedade impõe ao sexo biológico. Com isto o sistema sexo/gênero é como se formam as mulheres (estereótipos do que é ser mulher - ser delicada, educada, cuidadora do lar, entre outros) e os homens (macho, que não tem medo de nada, sustenta a família, entre outros) (CÓRDOBA, 2005; PENEDO, 2008). Assim como colocou Foucault (2006) sobre o dispositivo de sexualidade, Rubin (1975) anuncia que o sistema sexo/gênero serve como um dispositivo para controlar e disciplinar as pessoas, cristalizando e normatizando. Desta forma, o mesmo funciona como uma tecnologia que auxilia a subordinação das mulheres aos homens, construindo uma sociedade machista, na qual o patriarcado é sua base de sustentação (CÓRDOBA, 2005; PENEDO, 2008; PERES; 2013; SALIH, 2012). Judith Butler (2003), algum tempo depois, acrescentou ao sistema sexo/gênero os desejos e práticas sexuais; com isso, segundo as políticas heteronormativas as pessoas deveriam se enquadrar neste sistema, ou seja, uma pessoa que nasce com o sexo de macho, deverá ter o gênero masculino, desejo heterossexual e ser ativo na prática sexual, e quem nasce com o sexo fêmea, deverá ter gênero feminino, desejo heterossexual e prática sexual passiva; criando se assim um código de inteligibilidade e padronização (PERES, 2013). Vale ressaltar como coloca Susana Penedo (2008) tanto heterossexuais como homossexuais e tantas outras pessoas que fogem das normas sofrem com a política da heteronormatividade. Ou seja, todas estão reprimidas, disciplinadas e controladas por esse dispositivo/tecnologia que reduzem e naturalizam as expressões humanas. Assim homens do sexo masculino, com práticas e desejos heterossexuais necessitam todos os dias se auto afirmarem neste papel, como muito bem colocou Butler quando a mesma trouxe a teoria da performatividade. Para a autora a identidade é construída no interior da linguagem, dos discursos e das instituições; desta forma desde que nascemos somos “generificado(a)s”, colocam uma (vale considerar que estamos usando “uma”, pois não existem variações neste caso) máscara/fantasia e deste modo nos fazemos – através da repetição destes atos - homens ou mulheres heterossexuais, ao contrário do que se prega, que “somos” (SALIH, 2012). Com isso vão se criando políticas identitárias, que aprisionam e controlam as pessoas e os corpos em meros reducionismos. Os Discursos Queer surgiram problematizando e fazendo críticas as políticas identitárias, pois negam o caráter natural da identidade (antiessencialista) com seu 36 caráter fixo e estabelecido, ou seja, colocando que as identidades são construídas socialmente e múltiplas; desta forma não se perde outras linhas/vivências (PENEDO, 2008; SALIH, 2012). Deste modo, colocam as pessoas como construções sociais que estão sempre abertas e em constantes transformações, do mesmo modo como era colocado por Deleuze e Guattari (1995), para os quais a vida é um processo sempre aberto e em constante mutação, desta forma somos atravessados por diversas linhas – linhas duras que remetem à normatividade; linhas de fuga que são rupturas nas dobras/nós, que fazem fugir do que é imposto como normal - que formam o rizoma, tendo entradas e saídas múltiplas, no entanto algumas linhas se fecham, formam uma dobra, cristalizações e com isso formando as identidades normatizadoras e excludentes (PERES, 2013). As identidades são produzidas socialmente, historicamente e geograficamente, no entanto juntamente com a diferença a identidade tende a ser naturalizada, dadas como algo que sempre existiu e que deve continuar. A identidade parece ser positivada como “aquilo que sou” (brasileiro, homem, branco, heterossexual, entre outras linhas), no entanto traz uma lista extensa de negações, “aquilo que não sou” (não sou japonês, mulher, negro, homossexual, etc.). Nessas negações temos a tendência de acreditarmos que nossa identidade é a natural, normal e o outro se torna diferente, estranho. Partindo dessas ideias, esses dois conceitos são criação da linguagem, são produzidos na linguagem, nos discursos, criações sociais e culturais (BORIS, 2011; SILVA, 2000). Assim, a noção de identidade pressupõe uma relação de semelhança com determinado modelo que é imposto, seja pela família ou sociedade, assim esquece-se que possa existir as mais variadas diferenciações e se nega os diversos tipos de masculinidades e feminilidades (BORIS, 2011; PORTELLA, 2005). Desta forma concordamos com o pensamento de Forró Kehl (1996, p. 11 e 12): [...] nada poderia parecer mais consoante com a idéia de diferença do que a perspectiva de que cada sujeito possa se dizer um, num contexto em que tudo se massifica, se industrializa, se globaliza. No entanto, quando se fala em diferença, a referência não são as singulares e sim a produção de identidades. (...) As identidades são as próteses subjetivas produzidas nas sociedades de massa – e quem vive no século XX, sabe que a afirmação das diferenças, constituídas como grupos identitários, tem tido antes o efeito de produzir a intolerância do que o diálogo e a convivência na diversidade. É notável que agrupamentos sociais se diferenciem e se representem segundo traços identitários sexuais, raciais, nacionais, étnicos, religiosos e, por que não (...), de classes. Mas esperar que a marca identitária dê conta da subjetividade, que a permanência a um grupo defina por exemplo para os indivíduos os caminhos a ser percorridos pelo desejo e o objeto de sua satisfação, é a meu ver um dos modos contemporâneos de alienação. 37 Entendemos que a noção de identidade pressupõe uma semelhança essencial com algo que é imposto como igual, natural e determinado como “o certo”, opondo-se à ideia de diferença, desta forma criando pessoas não pensantes, alienadas até e principalmente em seus desejos, ou seja, uma imposição de como se deve “ser” e “desejar” em sua existência, como consequência dos efeitos da biopolítica e do biopoder apontados por Foucault (1988). A política identitária é fortemente criticada dentro dos Estudos Queer por seu caráter regulador, excludente e opressivo em relação às minorias, como mulheres, lésbicas, gays, trans, travestis, pobres, negro(a)s, asiático(a)s, entres muitas outro(a)s. Vale ressaltar que a Perspectiva Queer rompe com o binarismo homo/hetero, quando coloca que o importante não é com quem se pratica, mas quais práticas sexuais, uma atitude Queer que importa (PENEDO, 2008). Para os Estudos Queer, assim como apontava Foucault (1988; 1987), o poder se distribui por todo o tecido social, desta forma não é localizável. Com isso os contra poderes/resistências não se estabelecem em um determinado local, mas é desterritoralizado, ou seja, está em todos os lugares; algo que foi aprendido com a crise da AIDS, pois o vírus não respeita classes sociais, cor, raça, sexos, gêneros, desejos e práticas sexuais, com isso apontando – nos anos 80 – a existência de diversos dispositivos e tecnologias que constroem os corpos sociais, racismos, preconceitos, estigmatizações e as dominações que muitas pessoas sofrem e que essas formas de controle formam uma rede (CÓRDOBA, 2005; SÁEZ, 2005). Deste modo, além de problematizar, desconstruir as políticas identitárias, tenta mostrar as redes de poderes, saberes e prazeres transformados em tecnologias pelos quais somos dominado(a)s, em diversas esferas, áreas e territórios, que cristalizam e formam dobras que somente nos despotencializam, ocorrendo uma homogeneização da produção da subjetividade (HICKEY-MOODY; RASMUSSEN, 2009). Partindo dos mesmos princípios, os teóricos Deleuze e Guattari são considerados “filósofos da diferença” por criarem conceitos baseados na não-filosofia (literatura, arte, pintura, entre outras), pensando a filosofia fora da História da Filosofia (CARNEIRO, 2013). Para estes dois pensadores, como já comentado acima, somos construídos por linhas, entre elas a molar, molecular e de fuga, que são concomitantes. As molares são entendidas como duras, predeterminadas socialmente, que normatizam a vida, territorializam, são modelos dominantes, macropolíticas que hierarquizam, cristalizam e determinam a vida. Já a molecular é a desterritorialização, flexibilidade, não 38 estratificação, ela atravessa as estruturas normatizadoras, são linhas de abertura a multiplicidade, micropolíticas, nas quais os desejos podem se efetivar. As linhas de fuga são a própria desterritorialização, as rupturas, fuga do normatizado, criação de novos possíveis, de devires. Juntamente com as linhas de fuga, a molar e molecular formam o rizoma, já apontado anteriormente (DELEUZE, 2010; DELEUZE; GUATTARI, 1995). Assim as teorias de Deleuze e Guattari são a busca pela ética da imanência, da vida, do devir, que vai contra o maior, ou seja, enfrenta, desestabiliza o dominante e majoritário. Para criarem o conceito de maior e menor os filósofos da diferença buscaram apoio nas peças de teatro de Carmelo Bene e na literatura de Kafka. Bene que era ator, produtor, autor e diretor de teatro, recriou diversas peças famosas nos anos 70, como Pinóquio, Romeu e Julieta e Ricardo III. Nessas retirava, subtraia os elementos de poder, de dominação da peça original, então Deleuze denominou suas (re)criações de “peça de menos”, por retirarem as linhas molares, duras e tradicionais das histórias; produzindo novas possibilidades, trazendo o menor, os elementos que não tinham poder (de voz, atos, entre outros elementos) para serem apresentados e não reproduzidos, devir-minoritário. Criação de linhas de fugas dentro do teatro, de peças tradicionais e elementos normatizados (CARNEIRO, 2013). Assim, o maior para Deleuze e Guattari são os dominantes, as normatizações, os que têm o poder, já o menor é aquele sufocado, que retiram sua voz, fica na margem e pode vir a ser, pode devir, produção de novos processos. O menor está sempre em luta, o que cria novas possibilidades, busca sair das cristalizações e encarceramentos. É o verdadeiro conceito de devir, devir-menor. Devir, é tornar-se, transformação contínua, sempre em processo, não imitação ou reprodução, é também política de existência, na qual se vê a vida como processo, criação constante, estar no meio, experimentar o que está no meio, é abandonar os essencialismos em vez de somente “ser”, utilizar a conjunção “e”. Os autores viram nas obras de Kafka personagens que estão sempre em devir, busca de transformação, ir além do que é dado, proposto, criação de linhas de fugas (CARNEIRO, 2013; DELEUZE, 1992; 2010; DELEUZE; GUATTARI, 1995; 2003). O maior, macropolítico e molar, são as determinações de gêneros, sexos, desejos e práticas sexuais, são os reducionismos, universalismos, determinismos e normatizações de grande parte das ciências. Não existe um devir-homem, pois este é dominante, o sistema patriarcal fez dos homens a referência, o que detêm o poder e 39 dessa forma é normatizado e territorializado. O devir-mulher, devir-minoritário, menor são moleculares, desterritorializantes, são fluxos que criam linhas de fugas, que buscam novas alternativas, não se deixam cristalizar, rompem com as normatizações e estratificações. O devir é o eterno processo em tornar-se, é a não utilização da preposição excludente “ou” (ou homem ou mulher, ou heterossexual ou homossexual, etc.), mas processo de adição, homem e mulher e criança e homossexual e heterossexual. Assim, devir-menor é um processo de desterritorializar, quebrar normatizações, um processo inacabado, que não tem fim (CARNEIRO, 2013; DELEUZE, 1992; 2010; DELEUZE; GUATTARI, 1995). A Perspectiva Queer e os filósofos da diferença vêm para somar com a Psicologia, para que o(a)s profissionais possam ser problematizadore(a)s da realidade na qual atuam, enfocando em nossa pesquisa, o(a)s psicólogo(a)s penitenciários, pois acreditamos que a Psicologia deva ser uma linha de fuga dentro de uma instituição normatizadora, que tende a enquadrar todo(a)s que estão ligado(a)s a ela, de forma a reduzir a atuação do(a)s todo(a)s funcionário(a)s, limitando-o(a)s a práticas mecânicas (abrir e fechar portas, vigiar, realizar exames criminológicos, entre outras) e não problematizadoras. 2.2 DIÁRIO DE BORDO Durante quatro meses visitamos doze unidades penitenciárias de regime fechado masculinas, que pertencem a SAP/SP. Foram mais quatro mil quilômetros rodados para que pudéssemos conhecer essas doze penitenciárias, que estão no território de quatro coordenadorias (Região Oeste, Noroeste, Capital e Grande São Paulo, e Central). Para que pudéssemos entrar nas penitenciárias e com isso realizássemos as visitas foram necessárias diversas ligações para cada unidade; sempre entravamos em contato com o(a) diretor(a) do setor de reintegração social (em alguns lugares chamados de CRAS – Centro de Reintegração e Assistência Social), nos apresentávamos como pesquisadores de Psicologia da UNESP/Campus de Assis, devido ser uma instituição conhecida por grande parte da população paulista e deste modo tendo mais facilidade para os contatos. Já havíamos tido o parecer favorável à pesquisa do Comitê de Ética em Pesquisa da SAP/SP (CEP/SAP), que foi enviado para as unidades que havíamos escolhido 14 , no entanto no primeiro contato muito(a)s diretore(a)s colocavam não ter recebido nenhum 14 Não iremos nomear as unidades ou cidades nas quais realizamos as entrevistas como forma de sigilo, também acreditamos que não estaremos falando somente dessas, mas sim de todas as unidades penitenciárias masculinas de regime fechado do estado de São Paulo. 40 documento, com isso entramos em contato com o CEP/SAP que reenviou para todas as unidades o parecer, em algumas unidades conseguimos o agendamento e a realização das entrevistas, mas algumas ainda indicavam o não recebimento, com isso pedimos o reenvio e nos passassem as datas para que pudéssemos passar para o(a)s responsáveis das unidades e assim fosse verificado, após algum tempo todas as unidades tiveram acesso ao parecer e liberaram u