LUCAS MATEUS VIEIRA DE GODOY STRINGUETTI UMA MODERNIZAÇÃO “PELO ALTO” — A TRAJETÓRIA POLÍTICA DO BRIGADEIRO EDUARDO GOMES (1896-1981): do movimento tenentista ao regime militar ASSIS 2023 LUCAS MATEUS VIEIRA DE GODOY STRINGUETTI UMA MODERNIZAÇÃO “PELO ALTO” — A TRAJETÓRIA POLÍTICA DO BRIGADEIRO EDUARDO GOMES (1896 – 1981): do movimento tenentista ao regime militar Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Prof. Dr. Paulo Cesar Gonçalves Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. ASSIS 2023 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 S918m Stringuetti, Lucas Mateus Vieira de Godoy Uma modernização "pelo alto" : a trajetória política do brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981) : do movimento tenentista ao regime militar / Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti. — Assis, 2023 351 f. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Paulo Cesar Gonçalves 1. Gomes, Eduardo, 1896-1981. 2. Modernização "pelo alto". 3. Liberalismo conservador. 4. Brasil - História - Tenentismo, 1922-1934. 5. Brasil - Política e governo - 1964-1985. I. Título. CDD 320.51 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis ATA DA DEFESA PÚBLICA DA TESE DE DOUTORADO DE LUCAS MATEUS VIEIRA DE GODOY STRINGUETTI, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, DA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS - CÂMPUS DE ASSIS. Aos 12 dias do mês de dezembro do ano de 2022, às 14:00 horas, por meio de Videoconferência, realizou-se a defesa de TESE DE DOUTORADO de LUCAS MATEUS VIEIRA DE GODOY STRINGUETTI, intitulada UMA MODERNIZAÇÃO "PELO ALTO" - A TRAJETÓRIA POLÍTICA DO BRIGADEIRO EDUARDO GOMES (1896 - 1981): do movimento tenentista ao regime militar. A Comissão Examinadora foi constituída pelos seguintes membros: Prof. Dr. PAULO CESAR GONÇALVES (Orientador(a) - Participação Virtual) do(a) Departamento de História / UNESP/FCL- Assis, Prof. Dr. WILTON CARLOS LIMA DA SILVA (Participação Virtual) do(a) Departamento de História / UNESP/FCL- Assis, Prof. Dr. JOSÉ LUIS BENDICHO BEIRED (Participação Virtual) do(a) Departamento de História / UNESP/FCL-Assis, Profa. Dra. KARLA GUILHERME CARLONI (Participação Virtual) do(a) Instituto de História / UFF/Niterói, Prof. Dr. AMÉRICO OSCAR GUICHARD FREIRE (Participação Virtual) do(a) Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil / FGV/Rio de Janeiro. Após a exposição pelo doutorando e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma presencial e/ou virtual, o discente recebeu o conceito final APROVADO. Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo(a) Presidente(a) da Comissão Examinadora. Prof. Dr. PAULO CESAR GONÇALVES Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900 http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ: 48.031.918/0006-39. http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ À minha família, que nunca deixou de me apoiar, mesmo nos momentos mais difíceis. Ao meu amigo Cláudio, que sempre esteve ao meu lado, me orientando e incentivando para que eu nunca desistisse dos meus sonhos. Ele foi testemunha de meu esforço. À minha companheira, Tamires, parceira de todas as horas e que nunca me abandonou. AGRADECIMENTOS À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (Capes) — Código de Financiamento 001, que apoiou a realização desta tese. Ao professor Paulo Cesar Gonçalves, que me orientou nesta pesquisa, confiou em meu trabalho e contribuiu para o meu crescimento como pesquisador. Ao professor Claudinei Magno Magre Mendes, que muito me ensinou, orientando-me no mestrado e em parte do doutorado. Devo muito do que aprendi a seus ensinamentos, sempre proporcionados com muita paciência e atenção. À professora Karla Guilherme Carloni, pelo modo gentil com que sempre me respondeu, sanando dúvidas e dando conselhos para que eu pudesse desenvolver esta pesquisa. Agradeço também sua participação na banca de qualificação, a qual foi decisiva para o amadurecimento desta tese. Ao professor Wilton Carlos Lima da Silva, por contribuir para a realização de minha pesquisa, por meio de sugestões e de questionamentos pertinentes para que eu pudesse evoluir no desenvolvimento desta investigação e em meu trabalho como historiador. Ao professor Eduardo José Afonso, por ter me incentivado a estudar a figura de Eduardo Gomes no final de minha graduação em História e pelos apontamentos feitos ao longo dos meus estudos, necessários para que eu pudesse prosseguir com minha investigação. Ao professor Américo Oscar Guichard Freire, sempre muito simpático e disponível. Também contribuiu de maneira significativa para o desenvolvimento deste estudo. Ao professor José Luis Bendicho Beired, pela educação e disposição para sempre tirar dúvidas. Agradeço também a sua presença valiosa na banca de defesa desta tese. “Persisto em crer que só a liberdade cria valores estáveis no mundo moral e nas realizações materiais de que dependem o bem-estar e o desenvolvimento de um povo. Cada vez mais me capacito de que só a educação redime, orienta e comanda [...]”. — Eduardo Gomes (BRASIL, 1972, p. 0900) RESUMO Esta pesquisa de doutorado tem como objetivo analisar a trajetória política do brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981). Consideramos que sua vida política se inicia em 1922, quando participou da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ) e, termina em 1981, ano de sua morte. Esse recorte cronológico justifica-se pelo fato de o Brigadeiro ter-se dedicado fortemente a ações políticas até o final de sua vida. Defendemos a tese de que Eduardo Gomes foi partidário de uma modernização “pelo alto”, sob um viés autoritário — projeto que se concretizou com seu apoio e sua participação no Regime Militar instaurado em 1964, sobretudo no governo de Castelo Branco. Verificamos que Eduardo Gomes foi adepto de um liberalismo-conservador, por intermédio do qual lutou para manter a ordem social sob a tutela dos militares, além de ter sido defensor de uma maior aproximação do Brasil com os norte-americanos, em busca de investimentos do capital estrangeiro no país. Dessa maneira, atuou contra a intervenção estatal na economia e opôs-se a líderes políticos populistas, que se aproximaram das classes trabalhadoras, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Recuperar a biografia política do Brigadeiro também ajuda a entender que existe um imaginário produzido, mediante textos biográficos, sobretudo em 1945 — ocasião em que foi candidato à Presidência da República pela UDN —, por parte de instituições e grupos políticos aos quais o militar pertenceu, que o caracterizam de forma laudatória: como herói, revolucionário, patriota e herdeiro dos valores democráticos. Aliás, após a morte de Eduardo Gomes, ainda permanece ativa a tentativa de construção de uma memória positiva sobre ele, ligada a grupos dominantes. Ao mesmo tempo, este trabalho nos ajuda a compreender a constante participação e interferência dos militares na política brasileira ao longo do século XX, expondo, assim, as fragilidades que ainda assolam nossa democracia. Palavras-chave: Brigadeiro Eduardo Gomes. Modernização “pelo alto”. Liberalismo- conservador. UDN. Autoritarismo. ABSTRACT This doctoral research aims to analyze the political trajectory of Brigadier Eduardo Gomes (1896-1981). We consider that his political life began in 1922, when he participated in the “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, in Rio de Janeiro (RJ), and ends in 1981, the year of his death. This chronological cut is justified by the fact that the Brigadier dedicated exclusively to political actions until the end of his life. This research defends the thesis that Eduardo Gomes was a supporter of a modernization “from above”, under an authoritarian bias—a project that materialized with his support and participation in the Military Regime established in 1964, especially in the government of Castelo Branco. We verified that Eduardo Gomes was an adherent of a conservative-liberalism, through which he fought to maintain the social order under the tutelage of the military, in addition to having been a defender of a greater approximation between Brazil and the North Americans, in search of investments from the foreign capital in the country. In this way, he acted against state intervention in the economy and opposed populist political leaders, who approached the working classes, such as Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek and João Goulart. Recovering the Brigadeiro's political biography also helps to understand that there is an imaginary produced, through biographical texts, especially in 1945 — when he was a candidate for the Presidency of the Republic by the UDN — institutions and political groups to which the military belonged, that characterize him in a laudatory way: as a hero, revolutionary, patriot and heir to democratic values. In fact, after the death of Eduardo Gomes, the attempt to build a positive memory of him, linked to dominant groups, is still active. At the same time, this work helps us understand the constant participation and interference of the military in Brazilian politics throughout the 20th century, as well as exposing the weaknesses that still plague our democracy. Keywords: Brigadier Eduardo Gomes. Modernization “from above”. Liberalism- conservative. UDN. Authoritarianism. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 Sepultamento de Eduardo Gomes na Cripta dos Aviadores, em 1981, no 16 Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo (RJ) FIGURA 2 Escrínio que contém o coração de Eduardo Gomes, situado no Museu 16 Aeroespacial, na sala “Primórdios da Aviação”, no Campo dos Afonsos, Rio de Janeiro FIGURA 3 Foto histórica tirada por Zenóbio Couto, a qual retrata a marcha dos 107 revolucionários nos momentos finais da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1922 FIGURA 4 Santinho de Eduardo Gomes, pelo partido da UDN, usado na campanha 230 presidencial de 1945 FIGURA 5 Visita de Eduardo Gomes ao capitão Sérgio no Hospital Samaritano, no 300 Rio de Janeiro, em 1977 FIGURA 6 Encontro de Eduardo Gomes com o Papa João Paulo II, no dia 01 de julho 305 de 1980, na Base Aérea do Galeão (RJ) FIGURA 7 Velório de Eduardo Gomes no 3º Comando Aéreo Regional (Comar) 309 FIGURA 8 Corpo de Eduardo Gomes sendo levado pelo M-59 até o Cemitério São 315 João Batista (RJ) FIGURA 9 Sepultamento de Eduardo Gomes no Cemitério São João Batista (RJ) 315 FIGURA 10 Entrada do corpo de Eduardo Gomes na Cripta dos Aviadores, no Cemitério 316 São João Batista (RJ) FIGURA 11 Selo em homenagem ao brigadeiro Eduardo Gomes, de 1982 319 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 1 ESCRITOS BIOGRÁFICOS: O IMAGINÁRIO EM TORNO DE EDUARDO GOMES ............................................................................................................................ 37 1.1 “BRIGADEIRO EDUARDO GOMES” ........................................................................ 38 1.2 “O BRIGADEIRO DA LIBERTAÇÃO (EDUARDO GOMES – ENSAIO BIOGRÁFICO)” ............................................................................................................. 51 1.3 “O BRIGADEIRO. EDUARDO GOMES, TRAJETÓRIA DE UM HERÓI” .......... 61 1.4 “EDUARDO GOMES (PERFIL BIOGRÁFICO)” ...................................................... 72 1.5 “MARECHAL-DO-AR EDUARDO GOMES: O HOMEM E O MITO” ................. 78 1.6 AS BIOGRAFIAS EM QUESTÃO: ARTICULANDO AS IDEIAS .......................... 80 2 DA INFÂNCIA AO EXÉRCITO: OS MOVIMENTOS TENENTISTAS DA DÉCADA DE 1920 ....................................................................................................... 83 2.1 2.1 CONTEXTO FAMILIAR .............................................................................................. 83 2.2 A PRIMEIRA REPÚBLICA E O EXÉRCITO ........................................................... 91 2.3 A DÉCADA DE 1920 E OS ACONTECIMENTOS POLÍTICOS ............................. 97 2.4 A REVOLTA DOS 18 DO FORTE DE COPACABANA ......................................... 102 2.5 A REVOLTA PAULISTA DE 1924 ............................................................................ 115 2.6 DA PRISÃO À LIBERDADE ...................................................................................... 137 3 NO GOVERNO VARGAS: A AVIAÇÃO E OS MOVIMENTOS POLÍTICOS DA DÉCADA DE 1930 ........................................................................................................ 143 3.1 A REVOLUÇÃO DE 1930 E O TENENTISMO ....................................................... 144 3.2 NA REVOLUÇÃO DE 1930 ........................................................................................ 152 3.3 O CORREIO AÉREO MILITAR ............................................................................... 155 3.4 A AVIAÇÃO NA REVOLUÇÃO CONSTITUCIONALISTA DE 1932 ................. 164 3.5 A REVOLTA COMUNISTA DE 1935: O COMBATE NA ESCOLA DE AVIAÇÃO MILITAR E NO 1º REGIMENTO DE AVIAÇÃO .................................................. 173 3.6 A REVOLTA INTEGRALISTA E A OPOSIÇÃO AO ESTADO NOVO ............. 181 4 DA AERONÁUTICA À UDN: O CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA ................................................................................................................ 193 4.1 A AERONAÚTICA BRASILEIRA NO CONTEXTO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A RELAÇÃO COM OS NORTE-AMERICANOS ......................... 193 4. 4.2 A PRIMEIRA CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA ................ 205 4.3 A CAMPANHA ELEITORAL ................................................................................... 223 4.4 A SEGUNDA CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA ................. 247 5 O ACIRRAMENTO DA DISPUTA ENTRE DOIS PROJETOS POLÍTICOS DISTINTOS: O NACIONAL-ESTATISMO E O LIBERALISMO-CONSERVADOR ........................................................................................................................................... 261 5.1 AS CRISES POLÍTICAS DE 1954 E 1955 ................................................................ 261 5.2 O MOVIMENTO DE 11 DE NOVEMBRO .............................................................. 271 5.3 A CRISE DE 1961 E O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 .................................. 276 6 DA DITADURA MILITAR AO FIM DE UMA VIDA ............................................. 284 6.1 MINISTRO DA AERONÁUTICA NO GOVERNO DE CASTELO BRANCO ... 284 6.2 O CASO PARA-SAR ................................................................................................... 294 6.3 O ENCONTRO COM O PAPA E A MORTE DO BRIGADEIRO ........................ 302 6.4 MEMÓRIAS PÓS-MORTE: ALGUNS APONTAMENTOS ................................. 308 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 324 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 328 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 341 12 INTRODUÇÃO Esta tese encerra uma importante etapa de estudos que se iniciou no final da graduação em História, em 2013, pela Faculdade de Ciências e Letras, de Assis (SP), da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Continuamos esses estudos, que enfocam a figura de Eduardo Gomes, durante o mestrado em História, e os finalizamos com o exame de sua trajetória política, agora no doutorado. Ambos os cursos de pós-graduação strictu sensu foram realizadas na Unesp (campus de Assis – SP). Ainda que pouco ressaltada, Eduardo Gomes (1896-1981) apresenta uma vida política importante para o entendimento da História do Brasil Republicano. Figura de significativo destaque no cenário político do país ao longo do século XX, participou dos movimentos tenentistas de 1922 e 1924, foi preso quando iria juntar-se à Coluna Miguel Costa-Prestes ou Coluna Prestes e solto apenas em 1926. Envolveu-se nas ações que derrubaram Washington Luís após o fracasso eleitoral da Aliança Liberal (AL). Com Vargas na presidência, trabalhou na criação do Correio Aéreo Militar (CAM), em 1931. Lutou ao lado do governo contra a Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1935, comandou o 1° Regimento de Aviação contra a Revolta Comunista, que ficou pejorativamente conhecida como Intentona Comunista. Em 1937, exonerou-se do comando desse regimento por ser contrário à instauração do Estado Novo. Em 1938, teve seu nome vinculado à Revolta Integralista ocorrida em 11 de maio. No ano de 1941, foi promovido a brigadeiro com a criação do Ministério da Aeronáutica. Encerrado o Estado Novo, candidatou-se às eleições presidenciais pela União Democrática Nacional (UDN), que ocorreram em 1945, mas foi derrotado por Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático (PSD), ex-ministro da Guerra de Vargas. Em 1950, concorreu novamente à Presidência da República pela UDN, porém a vitória coube a Getúlio Vargas, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi ministro da Aeronáutica por duas vezes: a primeira, entre 1954 e 1955, no governo de Café Filho e Carlos Luz; a segunda, no governo de Castelo Branco, entre janeiro de 1965 e março de 1967. Apoiou o golpe que depôs o presidente João Goulart em 1964. No entanto, em 1972, durante conversa com Jânio Quadros, teria criticado o Regime Militar, ao comentar que faltava ao movimento dedicação ao ideal “democrático” defendido em seu início. No entender de Eduardo Gomes havia passado o momento de o país ser devolvido ao comando de um civil.1 Em 1968, atuou em defesa do 1 Com relação a conversa entre Eduardo Gomes e Jânio Quadros, na qual houve a mencionada crítica ao Regime Militar, vale reportarmo-nos ao trabalho de Drumond (2011). Cabe destacar que a obra desse autor é uma biografia apologética de Eduardo Gomes, pois caracteriza o biografado como herói e democrata. Além disso, 13 capitão de intendência Sérgio Miranda de Carvalho (1930-1994), que se opôs ao plano conhecido como Caso Para-Sar2. Por sua atitude, o capitão Sérgio foi cassado pelo AI-5, afastado da carreira e perseguido por determinados grupos de militares. Em maio de 1974, Eduardo Gomes enviou uma carta ao presidente da República, Geisel, para interferir a favor de Sérgio, pois acreditava que o militar havia agido de maneira correta. Em 1977, novamente, por meio de outra carta, Eduardo Gomes defendeu o capitão, mas ela não chegou a ser entregue ao presidente. Na missa de comemoração dos seus 82 anos, no dia 21 de setembro de 1978, Eduardo Gomes apoiou a candidatura do senador José de Magalhães Pinto à Presidência da República, incentivando-o a não desistir dela. Na ocasião, a candidatura Magalhães Pinto era uma alternativa à do candidato oficial, o general João Batista Figueiredo (DIAS, c2009). Eduardo Gomes morreu em 1981 e, no ano de 1982, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei originário do Senado que lhe concedeu o título de Patrono do Correio Aéreo Nacional (CAN), por tudo que havia feito pela aviação. Contudo, esse título foi passado, posteriormente, ao tenente-brigadeiro do Ar Nelson Freire Lavenère-Wanderley, por meio da Lei nº 7.490, de 12 de junho de 1986. Em troca, Eduardo Gomes recebeu o título de Patrono da Força Aérea Brasileira (FAB), em 1984, pela Lei nº 7.243. Além disso, seu nome está presente em escolas, aeroporto, avenidas, praças, parques, conjunto habitacional, unidade de saúde, unidade do Exército, viaduto, casa de gerontologia e muitos outros logradouros pelo país. Em Recife (PE), há a escola “Brigadeiro Eduardo Gomes” e, o principal colégio público de Arraial D’Ajuda3, localizado em Porto Seguro, na Bahia, também leva seu nome. Em São Paulo, também existe um estabelecimento de ensino estadual com seu nome. Ainda há duas outras escolas municipais que o homenageiam: uma localizada no Rio de Janeiro e outra, em Florianópolis, no bairro do Campeche, chamada “Escola Básica Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes”4. O terreno onde hoje funciona a escola, fundada em 1945, foi doado pela Base Aérea, razão pela qual essa instituição de devemos levar em consideração que o biógrafo pertenceu à mesma instituição que o personagem, isto é, a Aeronáutica, o que contribui ainda mais para o caráter laudatório do livro. Contudo, a obra contém informações factuais importantes, que foram utilizadas ao longo deste trabalho, com a intenção de compreender a trajetória política de Eduardo Gomes. 2 Foi um plano terrorista elaborado em 1968, pelo brigadeiro João Paulo Burnier. Teria duas fases. A primeira consistia em empregar o Para-Sar, unidade da Aeronáutica especializada em busca e salvamento, para detonar explosivos em locais específicos do Rio de Janeiro, o que causaria um morticínio que serviria de pretexto para o massacre dos opositores da ditadura. Na segunda fase, o clima da tragédia seria usado para encobrir o sequestro e o assassinato de figuras importantes da política brasileira, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek. 3 Conferir em: Silva (2019, p. 105-133). 4 Conferir em: Escola... ([2010?]). 14 ensino foi batizada com o nome do Brigadeiro. Existe também uma escola5, localizada na cidade de São Sebastião da Grama, em São Paulo, que presta homenagem à mãe de Eduardo Gomes. O Aeroporto Internacional de Manaus6, fundado em março de 1976, também carrega seu nome. Algumas avenidas que também levam o nome de Eduardo Gomes localizam-se em Belo Horizonte (MG), Praia Grande (SP), Marília (SP) e em Boa Vista (RR). Quanto às praças, encontramos duas que carregam o seu nome: uma localizada também no pequeno povoado de Arraial D’Ajuda, em Porto Seguro, muito embora a praça seja conhecida atualmente como Praça da Igreja7, e outra que dá frente à entrada do portão principal do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), em São José dos Campos (SP). Há ainda os parques “Eduardo Gomes”, localizado em Canoas, município do Rio Grande do Sul, e o “Parque Brigadeiro Eduardo Gomes”, situado no aterro do Parque do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro. O mencionado conjunto habitacional que leva o nome do Brigadeiro, localiza-se na cidade de São Cristóvão, em Sergipe. Outros indicativos de sua memória encontram-se em Porto Nacional, município do estado de Tocantins, onde funciona uma unidade de saúde com seu nome, além da unidade do Exército Brasileiro de artilharia antiaérea, o 11º Grupo de Artilharia Antiaérea, chamado grupo “Brigadeiro Eduardo Gomes”, localizado em Brasília (DF). Além disso, há o Viaduto “Brigadeiro Eduardo Gomes”, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, além da Casa Gerontológica de Aeronáutica “Brigadeiro Eduardo Gomes”8, localizada no bairro do Galeão, também na capital fluminense. Criada em 07 de novembro de 1984 e inaugurada em 21 de janeiro de 1985, a missão da Casa Gerontológica é a de prestar assistência biopsicossocial aos idosos reformados ou da reserva remunerada da Aeronáutica e a seus dependentes. Por fim, muitas outras vias públicas do país também o homenageiam, como as ruas Brigadeiro Eduardo Gomes, em Feira de Santana e Ilhéus, na Bahia, e a Rua Brigadeiro Eduardo Gomes, em Cuiabá, município de Mato Grosso. Importa ressaltar aqui um episódio interessante, que diz respeito a uma disputa de memória para a mudança do nome de Parnamirim, município de Rio Grande do Norte. De 1973 a 1987, Parnamirim, terceira maior cidade do Rio Grande do Norte atualmente, importante por abrigar a base militar americana na época da Segunda Guerra Mundial, chamou-se Eduardo Gomes. O incidente em questão ocorreu em 1973, quando os poucos mais de 15 mil habitantes da cidade foram surpreendidos com a notícia de que o deputado 5 Esta escola chama-se E. E. Dona Geny Gomes e foi inaugurada em 1959 (HERZOG, 1959). 6 Conferir em: Histórico... ([2015?]). 7 Conferir em: Silva (2019, p. 105-133). 8 Acesso em: Histórico... ([21--]). 15 Moacir Duarte (do partido Arena) apresentara na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte um projeto de lei com o objetivo de alterar o nome da cidade e, assim, homenagear Eduardo Gomes, que havia sido comandante da 2ª Zona Aérea, à qual estava subordinada a base militar americana durante a Segunda Guerra Mundial. A pressão dos militares no período mais duro da ditadura conseguiu impor trégua ao caso. No entanto, José Siqueira de Paiva, falecido em 2015, aos 90 anos, e morador de Parnamirim desde 1944, liderou, na década de 1980, um abaixo-assinado que obteve 4.665 assinaturas a favor da volta do nome histórico da cidade. Dessa forma, em 1987, a Assembleia Legislativa aprovou o projeto do deputado Rui Barbosa, devolvendo à cidade seu antigo nome (O COMERCIANTE..., 2015).9 Em nossa ida ao Rio de Janeiro, para pesquisar fontes a respeito de Eduardo Gomes, no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea no Brasil (CPDOC), constatamos o quanto ele foi importante para a cidade e como sua memória permanece viva, pois além dos locais citados, há, no “Parque Brigadeiro Eduardo Gomes”, próximo ao Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, um busto em sua homenagem. Na entrada do Forte de Copacabana, existe um pequeno monumento10 em que o tributo a Eduardo Gomes se faz por meio de uma placa, fixada em uma pedra, que contém a seguinte inscrição: “Patrono da Turma de 82 da Escola Superior de Guerra — 24 de outubro de 1986”. Ao visitarmos o Cemitério São João Batista, em Botafogo, onde Eduardo Gomes está sepultado, percebemos ainda mais a sua importância para a Força Aérea Brasileira, pois seu corpo encontra-se no Mausoléu dos Aviadores11, próximo justamente ao túmulo de Alberto Santos Dumont, considerado o Pai da Aviação e Patrono da Aeronáutica Brasileira. Na figura 1, a seguir, podemos ver o sepultamento de Eduardo Gomes, ocorrido em 1981, na Cripta dos Aviadores e, ao fundo, o túmulo de Santos Dumont, constituído por uma grande pedra. Para adentrar a cripta que guarda o corpo de Eduardo Gomes, é necessária uma autorização da Aeronáutica, o que demonstra o prestígio do falecido militar. 9 É importante frisar que a volta ao nome original da cidade foi um assunto tão delicado, que o governador do estado na época, Geraldo Melo, teve de fazer uma articulação política para não provocar a ira da Aeronáutica. Assim, antes de sancionar a nova lei, revogando a anterior, editou um ato que dava o nome do marechal-do-ar Eduardo Gomes ao trecho entre Natal e Parnamirim. A lei em questão (Lei 5.601) foi publicada no Diário Oficial do Estado, em 06 de agosto de 1987 (O COMERCIANTE..., 2015). 10 Na placa afixada à pedra, também se encontra a seguinte frase: “Um povo só é grande quando tem grandes exemplos e grandes reminiscências”. 11 De acordo com um funcionário do Cemitério São João Batista, Eduardo Gomes está sepultado no jazigo 1392 - E cate 11 da quadra 6. 16 Figura 1 — Sepultamento de Eduardo Gomes na Cripta dos Aviadores, em 1981, no Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo (RJ). Fonte: Arquivo Nacional — Fundo Agência Nacional, 1981. Além disso, o Museu Aeroespacial (MUSAL), localizado no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, contém, na sala “Primórdios da Aviação”, uma escultura de bronze que representa a figura mitológica de Ícaro12, sobre uma base retangular de granito, a qual sustenta uma esfera em metal dourado no interior da qual está o coração de Eduardo Gomes, conservado em líquido químico apropriado. A escultura fica dentro de uma vitrine de cristal transparente, sobre uma coluna de jacarandá.13 Figura 2 — Escrínio que contém o coração de Eduardo Gomes, situado no Museu Aeroespacial, na sala “Primórdios da Aviação”, no Campo dos Afonsos, Rio de Janeiro. Fonte: (+BÔNUS..., 2016). 12 Na mitologia grega, Ícaro era filho de Dédalo, homem muito criativo e conhecido por suas invenções. Um dos maiores feitos de Dédalo teria sido a construção do Labirinto, a pedido do rei Minos, de Creta, para aprisionar o Minotauro. No entanto, por ter ajudado a filha de Minos a fugir com um amante, Dédalo e seu filho, Ícaro, foram atirados ao labirinto, a mando do rei de Creta. O mitológico inventor, então, projetou asas, juntando penas de aves de diversos tamanhos, amarrando-as com fios e fixando-as com cera. Quando tudo estava pronto, Dédalo alertou Ícaro sobre o perigo de se aproximar do sol, pois o calor poderia derreter a cera que unia as penas. Todavia, no dia da fuga, Ícaro não seguiu o conselho do pai e voou bem alto. A cera, consequentemente, derreteu e ele caiu no mar (ICARO..., [21--]). 13 O coração de Eduardo Gomes foi retirado durante autópsia, em 1981, a pedido do então ministro da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Délio Jardim de Mattos, com autorização da família (+BÔNUS..., 2020). 17 É importante ressaltar, também, que na Base Aérea dos Afonsos (BAAF), no Rio de Janeiro, sempre na data do aniversário de Eduardo Gomes, ele é homenageado por meio da exposição do busto que o representa. Em 2020, participamos de um documentário14 sobre Eduardo Gomes, a convite do jornalista Élcio Braga, do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, ao qual concedemos entrevista. Comentamos fatos da vida do militar, como seus momentos no âmbito político, mas especificamente falamos sobre o episódio relacionado ao doce conhecido no Brasil como brigadeiro, cuja fama iniciou-se em 1945, na eleição presidencial de que Eduardo Gomes participou como candidato. A guloseima foi feita em homenagem a ele, que era na época brigadeiro da Aeronáutica. Seja qual for a origem do doce, da qual existem várias versões, foi com o nome de brigadeiro que ele ganhou fama. O interesse do jornalista em fazer o documentário também contribui para manter viva a memória de Eduardo Gomes, além de ser mais uma fonte histórica, tanto para curiosos quanto para pesquisadores, que queiram saber mais sobre sua vida ou estejam dispostos a estudá-la. Esta pesquisa apresenta, como objetivo geral, estudar a trajetória política de Eduardo Gomes. Pretendemos, então, entender as suas ações e o seu pensamento político, estudado no âmbito de seus contextos históricos, políticos e sociais. No entanto, é importante ressaltarmos que estudar o percurso político de qualquer indivíduo exige que o historiador se afaste da visão do mito, da apologia, bem como da posição detratora. Ao mesmo tempo, é necessário não esquecer que mito e História não são excludentes, antagônicos, pois o mito faz parte da História, da criação de uma imagem com um determinado objetivo. O historiador deve, acima de tudo, procurar entender os fatos históricos e a construção de um mito, que muitas vezes é difícil desassociar esses fenômenos. Neste caso, não estamos interessados em atacar ou defender Eduardo Gomes, mas compreender suas ações. 14 O documentário, em questão, denominado Brigadeiro que inspirou doce morreu solteiro aos 84 anos, foi produzido pelo jornalista Élcio Braga, em que abordou a vida, momentos da trajetória política e curiosidades de Eduardo Gomes. Aliás, o eixo central da reportagem foi a história do doce conhecido como brigadeiro. O documentário contou com nossa participação e a dos historiadores Adler Homero, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e Milton Teixeira, da BandNews. Também participaram o geógrafo João Baptista Ferreira de Mello; a empreendedora Paula Moresche e a atriz Desirée Oliveira. A ideia de fazer o documentário sobre Eduardo Gomes tem relação com um episódio da família do jornalista Élcio Braga, que ilustra a rivalidade na disputa eleitoral para à Presidência da República, de 1945, entre Eduardo Gomes, candidato pela UDN, e o militar Eurico Gaspar Dutra, candidato pelo Partido Social Democrático (PSD), que acabou ganhando o pleito. Às vésperas da eleição, durante um encontro familiar, em um sítio em Queimados, município do Rio de Janeiro, a prima do pai de Braga, uma criança de 6 anos na época, pediu um brigadeiro; no entanto, o tio da menina se levantou e deu-lhe um tapa no rosto, cena que constrangeu a todos. Curiosamente, o tio da garota era eleitor de Dutra (BRAGA, 2020). 18 Entendemos que a trajetória política de Eduardo Gomes teve início em 1922, com sua participação no episódio dos 18 do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro e, terminou em 1981, ano de sua morte. Acreditamos, que mesmo ao afastar-se da vida pública em 1967 — último ano em que foi ministro da Aeronáutica —, Eduardo Gomes, até o final de sua existência teve comportamentos baseados em ações políticas. Pretendemos também, com este trabalho, tentar responder a algumas questões levantadas durante e após à dissertação de mestrado, defendida em 201815. Acreditamos que, procedendo dessa maneira, conseguiremos obter um quadro mais completo da trajetória política de Eduardo Gomes. Em outras palavras, indagamos como foram a vida, o pensamento político e os bastidores das conjunturas políticas de que Eduardo Gomes fez parte, sobretudo no período pós-1950. Ao mesmo tempo, identificamos a existência de novos trabalhos que foram escritos sobre o Brigadeiro, além dos já existentes e examinados durante o mestrado. Tais trabalhos consistem em textos biográficos de caráter laudatório, em sua maioria produzidos na década de 1940. O intuito desses escritos é o de exaltar a figura de Eduardo Gomes com a intenção de mostrá-lo como um indivíduo exemplar, herói e, muitas vezes, com o objetivo de mitificá-lo, em contextos diferentes, além de caracterizá-lo como patriota, sobretudo, um defensor da democracia e de uma nação mais justa. Em oposição a esse imaginário apologético, principalmente em relação ao vínculo de Eduardo Gomes aos valores democráticos, partimos da tese de que ele visava uma modernização “pelo alto”, ou uma modernização conservadora — termo utilizado por Moore Júnior (1983) —, por meio de um viés autoritário. Essa modernização “pelo alto”, que chamaremos aqui, se concretizou quando Eduardo Gomes defendeu o Golpe Civil-Militar de 1964 e apoiou o governo ditatorial brasileiro em sua grande parte. É importante destacarmos que, o conceito de modernização “pelo alto”, o qual utilizamos aqui, se baseia em uma das três vias possíveis, na visão de Moore Júnior (1983), para se chegar à modernidade, desde o mundo pré-industrial. A primeira via, por meio de grandes revoluções e guerras civis, contribuiu para o desenvolvimento de sociedades capitalistas e democráticas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos. A segunda via foi uma forma capitalista e reacionária, o que equivale segundo o autor, a uma revolução vinda de cima, que inclusive, culminou em fascismo durante o século XX. Exemplo disso foram a Alemanha e o Japão. A terceira via é o comunismo, como ocorreu com a Rússia e a China. 15 Conferir em: Stringuetti (2018). Em 2020 publicamos a dissertação em forma de livro. Verificar em: Stringuetti (2020). 19 Assim, utilizamos o termo modernização “pelo alto”, baseando-se no caso do Japão e da Alemanha, para comparar com o desenvolvimento econômico ocorrido no Brasil, sobretudo no pós-1964, pelo fato de os proprietários rurais permanecerem no poder, não alterando as estruturas tradicionais oriundas da antiga sociedade pré-industrial. Aliás, a proposta inicial do tenentismo da década de 1920 — de que Eduardo Gomes tomou parte — iria concretizar-se em 1964. No entanto, em muitos momentos de sua vida, Eduardo Gomes também compactuou com o ideal do liberalismo político, sobretudo econômico, como quando se filiou ao partido da UDN. Assim, para conseguir realizar uma modernização “pelo alto”, seria fundamental manter os princípios básicos desse liberalismo. Carvalho (2006), ao relacionar as ideias de Juarez Távora — outro ex-tenentista —, a modernização “pelo alto” ou modernização conservadora, explica o que seria esse conceito. Para o historiador, a modernização, refere-se ao fato de que o Brasil, após o Regime Militar, saiu como um país capitalista, industrializado e urbano, dotado de boa infraestrutura em energia, transporte e comunicação. Com relação ao lado conservador ou atuação “pelo alto”, ele faz as seguintes considerações: O lado conservador, a ação pelo alto, tem a ver com a maneira pela qual a mudança foi promovida. Além de ter sido dirigida pelo Estado, ela buscou restringir a participação política quando esta parecia ameaçar os rumos traçados. A modernização conservadora exigia a quebra do poder da oligarquia rural, exigia o planejamento econômico, a industrialização, a urbanização. Mas exigia também a manutenção das premissas básicas da ordem liberal capitalista. Se era justificável subverter o sistema representativo que sustentava o regime oligárquico o que foi feito em 1930, era igualmente justificável subverter o sistema representativo que dava guarita à ação de movimentos julgados ameaçadores da ordem liberal capitalista, o que foi feito em 1964. Em um caso, alijava-se a hegemonia oligárquica, em outro, evitava-se o predomínio do “populacho”. Era o programa de Juarez Távora desde 1927. (CARVALHO, 2006, p. 130). Ao defendermos a tese de que Eduardo Gomes tinha o propósito de realizar no Brasil uma modernização “pelo alto”, sob um viés autoritário e mantendo as premissas básicas do liberalismo econômico, o que só foi feito a partir de 1964, não podemos esquecer que o próprio movimento tenentista da década de 1920 — do qual, vale novamente ressaltar, o militar participou —, ao mesmo tempo em que propunha mudanças no sistema político vigente naquele momento, também se utilizou de certo autoritarismo, ideologia que esteve presente em várias ações políticas de Eduardo Gomes. No que diz respeito aos termos aqui utilizados — autoritarismo, liberalismo e democracia —, para compreendermos seus significados, a fim de melhor entendermos como essas concepções políticas podem estar ou não relacionadas à ideologia política voltada para a modernização “pelo alto”, que 20 acreditamos que Eduardo Gomes defendia, partiremos das ideias de Stoppino (1998) e Bobbio (2017). Com relação ao autoritarismo, Stoppino (1998) afirma que essa tipologia é usada para caracterizar sistemas políticos que tenham como foco a autoridade governamental, a qual concentra o poder nas mãos de uma única pessoa, ou de somente uma organização, e relega a lugar secundário as instituições representativas. No que diz respeito ao liberalismo e à democracia, apesar de esses conceitos políticos estarem relacionados, isto é, no modo de que somente a democracia pode realizar os ideais liberais em sua plenitude, e o sistema político liberal contribuir para a concretização de uma democracia de fato, é possível dizer que o liberalismo pode ser entendido como um modelo de Estado que possui poderes e funções limitadas, e que a concepção de democracia está vinculada ao fato de o poder estar concentrado nas mãos de todos, e não de um único indivíduo ou grupo reduzido de pessoas (BOBBIO, 2017). Ainda com relação ao liberalismo, Bobbio (2017) afirma que essa doutrina apresenta mecanismos constitucionais que dificultam o abuso do poder ou seu exercício ilegal. Podemos definir esse liberalismo como político. Um exemplo disso é a existência dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Ao voltarmos a atenção para o liberalismo econômico, que seria uma das etapas naturais para a modernização “pelo alto”, essa ideologia contribui para o crescimento da personalidade individual. Esse crescimento, porém, favorece o indivíduo mais rico e com mais poder, em prejuízo da pessoa mais pobre e, consequentemente, com menos poder. Além disso, o liberalismo econômico valoriza a não intervenção estatal na economia. Por outro lado, a democracia valoriza o desenvolvimento de um conjunto de indivíduos de uma maneira geral, ainda que, para isso, seja preciso diminuir a liberdade de seus singulares. Em vista do que foi exposto até aqui, defendemos a tese de que Eduardo Gomes foi herdeiro de uma ideologia política modernizadora “pelo alto”, e não de causas democráticas, no sentido pleno de seu termo, embora tenha participado de eleições democráticas representativas, nomeadamente aquelas em que foi candidato à Presidência da República, pela UDN, em 1945 e 1950. As hipóteses iniciais que sustentavam a nossa tese são que no conjunto de sua história política, Eduardo Gomes esteve ligado mais a correntes políticas liberais, conservadoras, autoritárias e progressistas. Outras hipóteses que reforçavam ainda mais a nossa ideia central, é que Eduardo Gomes esteve vinculado ao longo de sua vida, aos seguintes valores religiosos e políticos: os do catolicismo — do qual foi defensor, sobretudo, 21 das ideias relacionadas às encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, nas eleições políticas de 1945 e 1950 —, e os do anticomunismo e filiação à UDN, partido de direita, que aliás, tinha entre tantas características o antigetulismo e um certo combate, ao longo tempo, das políticas trabalhistas. A fim de compreendermos o comportamento político de Eduardo Gomes, com o intuito de mostrar que ele propunha uma modernização “pelo alto”, que só iria concretizar-se a partir de 1964, trabalhamos com o conceito de cultura política, conforme a perspectiva destes estudiosos no assunto: Berstein (1998, 2009), Sirinelli (1998) e Motta (2014). Berstein (1998) afirma que a cultura política está associada aos fenômenos políticos. E segundo o autor: [...] ao mesmo tempo, revela um dos interesses mais importantes da história cultural, o de compreender as motivações dos actos dos homens num momento da sua história, por referência ao sistema de valores, de normas, de crenças que partilham, em função de sua leitura do passado, das suas aspirações, para o futuro, das suas representações da sociedade, do lugar que nele têm e da imagem que têm da felicidade. (BERSTEIN, 1998, p. 363). Para Sirinelli (1998, p. 414), o conceito de cultura política pode ser entendido como: uma espécie de código e um conjunto de referentes (especialmente crenças, valores, memória específica, vocabulário próprio, sociabilidade particular, ritualizada ou não...), formalizados no seio de um partido, ou mais largamente difundidos, no seio de uma família ou de uma tradição política, e que lhes conferem uma identidade própria. O que significa, concretamente, que uma cultura política é um conjunto de representações que une um grupo humano no plano político, isto é, uma visão do mundo partilhada, uma leitura comum do passado, uma projeção no futuro vivida em conjunto. Ao abordamos o significado de representações a que se reporta Sirinelli (1998), devemos fazer referência a Motta (2014, p. 21), para quem elas “[...] configuram um conjunto que inclui ideologia, linguagem, memória, imaginário e iconografia, e mobilizam, portanto, mitos, símbolos, discursos, vocabulários e uma rica cultura visual (cartazes, emblemas, caricaturas, cinema, fotografia, bandeiras, etc.)”. Motta (2014) afirma que existem vetores sociais que reproduzem as culturas políticas, como partidos, família, instituições educacionais, a Igreja, as corporações militares, entre outras organizações. Com base nessa ideia é que compreendemos a cultura política, ou as culturas políticas, a que Eduardo Gomes aderiu; afinal, ele esteve ligado a vetores sociais que reproduziam determinados valores e ideologias com os quais concordava. No entanto, temos que entender que, com relação à família e à Igreja, por exemplo, estamos diante daquilo que 22 Motta define como grupos sociais mais abrangentes, que acabam contribuindo para uma formação além da esfera política. Não podemos esquecer, também, que as culturas políticas são produções que extrapolam os partidos políticos, ainda que deem origem a partidos nelas inspirados. No entanto, existem indivíduos que se identificam com determinada cultura política, mas não com os partidos aos quais ela está relacionada (MOTTA, 2014). Queremos compreender, então, com quais culturas políticas Eduardo Gomes compactuava, como por exemplo, o autoritarismo e o liberalismo e, ao mesmo tempo, aquelas às quais ele foi associado, ou seja, aquelas que, por meio de um grupo de pessoas ou de meios de comunicação, tentaram relacionar o Brigadeiro a uma determinada cultura política, como a democracia. Dessa maneira, o conceito de cultura política nos ajudou a entender o comportamento de Eduardo Gomes ao longo de sua trajetória política. Concomitantemente, partindo da noção de Berstein (2009), segundo a qual os representantes de uma determinada cultura política apresentam ações políticas voltadas para ela, tentamos compreender as do militar estudado. Refletimos também sobre a seguinte questão: por que foram feitos trabalhos, em sua maioria apologéticos, sobre Eduardo Gomes? Fundamenta nossa indagação o fato de serem trabalhos biográficos escritos, quase todos, em uma conjuntura específica, como já destacamos; num contexto em que os biógrafos almejavam à exaltação do militar. Ao mesmo tempo, é precisa também interrogar: quais as lacunas que esses estudos apresentam? Nesse sentido, pensamos em questionar a produção social de sua memória por intermédio desses trabalhos, apontando ênfases e omissões. Assim, ao estudarmos sua trajetória política, examinamos quais aspectos de sua vida foram ocultados por essas obras, uma vez que buscavam exaltar sua memória. Com efeito, muitas vezes, os autores desses textos laudatórios parecem ter a intenção de colocar o biografado acima de quaisquer indivíduos, instituições e conjunturas. Notamos que a figura de Eduardo Gomes foi tratada de diferentes maneiras, ao longo do tempo, pelos seus contemporâneos. Como herói num certo momento, devido as suas participações revolucionárias de destaque, principalmente as relacionadas ao movimento tenentista da década de 1920; e como mito, posteriormente, sobretudo após a defesa de suas propostas políticas, vinculadas à UDN e caracterizadas, particularmente em 1945, como ideias democráticas, as quais suscitam a caracterização de Eduardo Gomes como um símbolo da democracia brasileira nesse contexto. Por outro lado, em contraposição a essa memória 23 construída sobre o militar, pelos trabalhos mencionados até aqui, e não só pensando em seu envolvimento no movimento tenentista (1922-1924) — já examinado, parcialmente, durante nossa pesquisa de mestrado —; analisamos também: como se deu a sua participação política na Revolução de 1930; sua atuação como um dos precursores, em 1931, do Correio Aéreo Militar, que posteriormente se tornou Correio Aéreo Nacional; seu papel na luta, ao lado do Governo Provisório de Vargas, contra a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo; seu contributo em 1935, como comandante do 1° Regimento de Aviação, quando protegeu essa unidade contra a Revolta Comunista; seu esforço, em 1937, contra a implantação do Estado Novo; suas atividades em maio de 1938, para averiguar se ele conspirou com o levante integralista. Sua participação nos anos de 1945 e 1950 como candidato à Presidência da República. Simultaneamente, buscamos saber qual foi sua posição política após 1950. Teria mudado ou permaneceu a mesma? Conforme já estudado em nosso trabalho de mestrado, as análises dos seus discursos de 1945 e 1950 como candidato à Presidência da República pela UDN (considerando-se os temas referentes aos trabalhadores e à educação), mostraram-no partidário de mudanças nos rumos da política do país. Por meio dos seus discursos, Eduardo Gomes defendeu um modelo de transformação social semelhante ao que havia reivindicado nos movimentos tenentistas da década de 1920. Ao analisarmos, durante o mestrado, seu pronunciamento como candidato à Presidência da República em 1945 e 1950, acerca da questão dos trabalhadores, notamos que propugnou uma reformulação do sistema capitalista conforme o viés católico das encíclicas papais Rerum Novarum e Quadragesimo Anno. O então candidato era contrário à luta de classes e defendia uma terceira via para a resolução dos problemas econômicos e sociais do Brasil. Essa terceira via seria a realização de um reformismo dentro do sistema capitalista, de forma a corrigir seus desvios e excessos. Os discursos de Eduardo Gomes sobre a educação no país, por exemplo, mostraram-no partidário do liberalismo, pois pleiteavam transformações nesse setor que estavam ligadas à ideologia liberal. Diante disso, examinamos também, qual foi o envolvimento de Eduardo Gomes no incidente conhecido como Atentado da Rua Tonelero, ocorrido no dia 05 de agosto de 1954, em que Carlos Lacerda e o major-aviador Rubens Florentino Vaz foram alvejados na porta da casa do jornalista, na mencionada rua da cidade do Rio de Janeiro. Lacerda teve o pé ferido, e o oficial não sobreviveu ao ataque. Na ocasião, a Aeronáutica e Eduardo Gomes se posicionaram contra Getúlio Vargas e seu governo, exigindo explicações. Compreendemos também, por que Eduardo Gomes se aproximou do governo Vargas em 1930 e depois dele se 24 afastou, a ponto de tornar-se seu opositor. Refletimos sobre o movimento de 11 de novembro de 1955 e sobre sua participação nesse episódio. Quanto ao período em que Eduardo Gomes foi ministro da Aeronáutica por duas vezes (a primeira entre 1954 e 1955, no governo de Café Filho e Carlos Luz, e a segunda, durante o governo de Castelo Branco, de 1965 a 1967), buscamos responder a estas indagações: Eduardo Gomes modificou sua posição política? Qual foi sua importância para o Ministério da Aeronáutica e o motivo da sua escolha como o Patrono da FAB? Como se desenvolveu o processo histórico em curso na época? Tentamos responder também outros questionamentos, como: por que Eduardo Gomes apoiou o Golpe Civil-Militar de 1964? Qual era sua intenção com esse apoio? Qual foi sua influência no famoso Caso Para–Sar, em 1968, arquitetado pelo brigadeiro João Paulo Burnier, uma vez que Eduardo Gomes agiu em defesa do capitão de intendência Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (1930-1994), que se opôs ao plano? Qual foi sua opinião sobre o incidente e sua crítica a Burnier, em carta escrita pelo Brigadeiro e enviada ao presidente na ocasião? Acreditamos que nosso trabalho se justifica, pelo fato de a historiografia brasileira ter pouco se debruçado sobre a atuação de Eduardo Gomes. Portanto, trata-se de um estudo original, na medida em que tenta compreender, sem um ponto de vista rígido, o comportamento político do Brigadeiro. Um trabalho desenvolvido por Ferro (2020) constitui um dos poucos estudos na historiografia sobre Eduardo Gomes. Esse estudo contribui para a análise da trajetória política do Brigadeiro. O título da tese de Ferro — Um liberal autoritário: trajetória política de Eduardo Gomes (1922-1981) — é bastante expressivo, pois caracteriza o Brigadeiro como um liberal autoritário. No entanto, acreditamos que a trajetória política de Eduardo Gomes é muito complexa, pois abrange muitos momentos importantes da História, com diferentes tomadas de decisões por parte dele, em que se confundem diversos traços de suas posições — ou seja, como representante de várias culturas políticas: patriotismo, democracia, reformismo, liberalismo, conservadorismo, centro-direita16, golpismo, autoritarismo etc. Por esses motivos, presumimos que nosso trabalho é uma forma de colaborar, não só para o estudo do percurso político de Eduardo Gomes, mas para tentar elucidar os motivos de os militares interferirem tanto na política nacional. 16 Apesar de ser um jornalista, Doria (2016), em trabalho intitulado Tenentes: a guerra civil brasileira, afirma que Eduardo Gomes não foi um demagogo, e sim um homem de centro-direita. Inclusive, compara-o com Prestes, ao dizer que ambos não eram democratas, pois conspiraram contra diversos governos até o fim de suas trajetórias políticas. 25 Vale a pena comentar as reflexões de Carvalho (2006) sobre o processo de intromissão dos militares na política brasileira. Para o historiador, a noção de soldado-cidadão, ou intervenção reformista, surgida no final da monarquia, estendeu-se ao período republicano e influenciou as Forças Armadas em suas interferências na política nacional, por meio de um poder desestabilizador. Segundo o autor, havia dois tipos de tenentismo: o primeiro de 1889 até 1904, e o segundo entre 1922 e 1930. Aliás, os tenentes pregavam uma intervenção reformista. No período de 1930 a 1937, Vargas contribuiu para que as Forças Armadas se tornassem um ator político. O presidente utilizou-se delas para sustentar seu governo e contou com o apoio de seus chefes militares nos momentos mais turbulentos, como a Revolução Constitucionalista de 1932, a eleição de 1934, as revoltas de 1935 e o golpe de 1937. Segundo Carvalho (2006), com o Estado Novo e por trás do autoritarismo do regime, havia um projeto de desenvolvimento nacional sob a liderança do Estado e com o auxílio das Forças Armadas. Os militares se consolidaram como atores políticos e derrotaram seus inimigos, acabando com sua tentativa de reação pelo fechamento dos sistemas de participação. O período de 1945 a 1964 foi de oposição das Forças Armadas contra o populismo. Tudo começou, quando o governo Vargas, a partir de 1942, se aproximou politicamente dos sindicatos. O presidente, diretamente e via seu ministro do Trabalho, começou a dirigir os sindicatos e à classe trabalhadora. Seu objetivo era encerrar a ditadura e contar com à classe operária como um novo ator político e influência eleitoral. A política de Vargas em benefício aos mais pobres tinha semelhança com o peronismo, que ocorria na Argentina desde 1943. Isso foi o que causou a separação entre Vargas e as Forças Armadas. Estas eram contra os comunistas e tinham a ambição de guiar o Estado, por isso, não aceitaram a inclusão do novo ator político, que era idelogicamente e politicamente oposto aos seus ideais. Consideramos que a historiografia brasileira dedicou pouca atenção à análise da vida política de Eduardo Gomes, porque sua trajetória se confunde com a da UDN, principalmente em razão de esse partido ter apoiado o Golpe Civil-Militar de 1964, e porque o próprio Brigadeiro apoiou a tomada de poder por parte dos militares. No entanto, constatamos que, em muitos momentos, Eduardo Gomes lutou por transformações no sistema político da época, seja por meio das armas (como ocorreu com sua participação no tenentismo, na década de 1920), seja por meio do voto, quando foi candidato à Presidência da República pela UDN, em 1945 e 1950. Além disso, estudar sua trajetória política torna-se relevante na medida em que colabora para a compreensão de diversas instituições e vários movimentos políticos, como a 26 Aeronáutica e o período da ditadura militar no Brasil, dos quais o Brigadeiro participou ao longo de sua vida, e que são essenciais para a História do Brasil Republicano. Esta tese pretende suscitar ou mesmo esclarecer, por exemplo: as nuanças da relação entre militares e política, as quais precisam ser mais bem compreendidas, fundamentalmente no período que se estende de 1946 ao golpe de 1964. A realidade histórica, a análise das fontes e da memória, bem como do imaginário que envolve Eduardo Gomes, por meio dos escritos biográficos, nos ajudam a pensar como as identidades e as alianças entre os indivíduos eram mais complexas, deixando de lado, assim, as simplificações maniqueístas e simplistas que dividem os militares em dois grupos: nacionalistas e entreguistas. Este trabalho também contribui para compreendermos a fragilidade de nossa democracia. Em comparação com nossa proposta de trabalho, podemos destacar, por exemplo, a tese de doutorado em História de Carloni (2010), denominada Marechal Henrique Teixeira Lott: a opção das esquerdas. Por meio desse trabalho, conseguimos refletir sobre as disputas político-ideológicas entre os militares, além de compreendermos a trajetória política de um oficial — no caso, o marechal Lott17. Esse estudo também é importante na medida em que resgata a biografia política de um militar, a qual contribui para o entendimento da construção da identidade do Exército brasileiro durante o século XX. Com base no trabalho de Carloni identificamos também a existência de um grupo de militares com identidade distinta da tradicional imagem construída a respeito do militar brasileiro, especialmente depois do Golpe Civil-Militar de 1964. Percebemos que houve militares, como Lott, que lutaram pela defesa da legalidade democrática. Para desenvolver esta tese, que está vinculada ao campo da História Política, consideramos importante discutir sobre o gênero biográfico — ao qual esta pesquisa está relacionada. Segundo Vilas Boas (2002, p. 33-34): Até meados do século XVIII, praticamente não existiam biografias que se ocupassem de um único indivíduo. Antes de 1750 elas referiam-se amplamente a grupos de vidas postas juntas, sendo os agrupamentos determinados pela hierarquia e função sociais ou pela profissão. A finalidade da biografia antigamente era clara: edificar a imagem de alguém pela glória de Deus e com o aval dos santos. 17 Henrique Batista Duffles Teixeira Lott (1894-1984), nasceu em Sítio, hoje município de Antônio Carlos, no estado de Minas Gerais, e morreu no Rio de Janeiro. Foi um importante militar e político brasileiro. Legalista, chegou ao posto de marechal, exerceu o cargo de ministro da Guerra e concorreu à Presidência da República nas eleições de 1960. 27 De acordo com Priore (2009), o termo biografia, dicionarizado em 1721, significava um gênero cujo objeto é a vida dos indivíduos. Antes, as biografias surgiam na forma de memória, ou seja, a partir das relações ocorridas no passado entre as pessoas: um indivíduo narrava fatos dos quais participara ou fora testemunho. No século XIX, a biografia apareceu com muita importância na ideia de construção de nação, enaltecendo e imortalizando heróis e monarcas, além de ajudar a consolidar um patrimônio de símbolos feitos de ancestrais fundadores, monumentos, tradições populares, lugares de memória, entre outros (PRIORE, 2009). Conforme Schwarcz (2013), no século XIX as histórias de reis, príncipes, senadores e governantes eram as mais requisitadas. No Brasil, esse gênero foi muito praticado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que nasceu voltado ao enaltecimento do Império, época em que só se faziam estudos de indivíduos de destaque. Ao lado das trajetórias dos reis, rainhas e governadores, eram realizados, no dia a dia da instituição, relatos biográficos sobre os sócios locais. A biografia estava praticamente abandonada até a metade do século XX, mas começou a ganhar força, no meio histórico, na segunda metade desse século. Segundo Levillain (2003), o florescimento da biografia na França ocorreu no final de 1970, e o gênero foi reabilitado na Universidade na década de 1960. Em 1966, entre as 756 teses de História Contemporânea que haviam sido levantadas, 46 eram biografias. Em um artigo escrito sobre a biografia e o ofício do historiador, Almeida (2014) procura discutir a importância do gênero biográfico nos estudos históricos contemporâneos. O autor afirma que a biografia, no campo histórico, tem percorrido um trajeto acidentado, pois, enaltecida no passado, passou a ser desprestigiada em grande parte do século XX, em virtude dos ataques que sofreu por parte da Escola dos Annales. Contudo, no final do século XX, o gênero passou a estabelecer-se com maior intensidade, despertando cada vez mais o interesse do leitor comum e sendo utilizado para a realização de novas pesquisas e descobertas. Schmidt (1998) relata que, recentemente, os estudos biográficos ganharam proeminência e passaram para o primeiro plano da historiografia internacional, bem como da brasileira. Exemplo disso, segundo o autor, “[...] é que dois dos mais importantes periódicos especializados do país — a Revista Brasileira de História da ANPUH e a Estudos Históricos da Fundação Getúlio Vargas — dedicaram seus números de 1997 ao tema” (SCHMIDT, 1998, p. 2). 28 Comparando as biografias tradicionais com as novas, Schmidt (1998) afirma que uma das principais diferenças entre elas se refere aos objetivos a que se propõem: As primeiras normalmente, buscavam ou louvar ou denegrir os personagens enfocados, apresentando suas vidas como modelos de condutas positivos ou negativas para os leitores. [...] Já os trabalhos recentes procuram fugir desse viés apologético, encarando seus personagens como vias de acesso para a compreensão de questões e/ou contextos mais amplos. (SCHMIDT, 1998, p. 5-6). A grande demanda por biografias no Brasil e no mundo mostra cada vez mais que o indivíduo tem importância, e é, até mesmo, essencial para compreendermos o contexto histórico-social do período no qual o biografado viveu. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que o escrito biográfico carrega as impressões pessoais de seu autor, sua formação, sua história de vida e suas relações com a sociedade que o moldou (VILAS BOAS, 2002). Vale a pena considerarmos também o pensamento de alguns estudiosos das ciências humanas sobre o gênero biográfico, como Dosse (2015), Levi (2000) e Bourdieu (2000), pois nos ajudam a refletir sobre esse tipo de texto. Assim como Dosse (2015)18, acreditamos que a biografia deve seguir uma ordem cronológica dos fatos para prender a atenção do leitor e, sobretudo, situá-lo na vida do personagem retratado, entretanto, isso não constitui uma regra, pois o pesquisador também pode mesclar fatos passados e futuros do biografado, a depender de seu estilo. Levi (2000)19 procura discutir algumas orientações sobre as abordagens biográficas, as quais representam os mais novos caminhos em que os estudiosos procuram utilizar a biografia 18 Para Dosse (2015), existem três fases no percurso da biografia no processo histórico. A primeira delas, chamada de idade heroica, é aquela em que os autores das obras biográficas eram incumbidos de transmitir valores, modelos de conduta e procedimentos para as gerações posteriores. Na segunda fase, que Dosse denominou de biografia modal, o biógrafo apenas teria valor para apontar o coletivo, o plural, ou seja, a sociedade do biografado, seu meio social nos diferentes e distintos tempos e espaços. Já a terceira fase, que perdura até a atualidade, chamada de idade hermenêutica, constitui o momento em que a biografia se transforma no campo de experimentação do historiador, influenciado por diversas tendências disciplinares. Dosse (2015) também afirma que a escrita biográfica é um verdadeiro romance, pois, segundo o historiador, em primeiro lugar a biografia deve seguir uma ordem cronológica dos fatos para manter a atenção do leitor na expectativa de um futuro que ocorrerá sobre o biografado, o qual será desvendado na íntegra da história. Portanto, para Dosse, o que dá o caráter romanesco é a expectativa do futuro. Ao mesmo tempo, o biógrafo nunca pode descentralizar demais o herói da biografia, fazendo-o desaparecer do pano de fundo da narrativa. 19 De acordo com Levi (2000), em seu texto intitulado Usos da biografia, os historiadores, fascinados pelas trajetórias individuais e suas riquezas, passaram a abordar a questão biográfica há poucos anos, de diferentes maneiras. Entre essas abordagens históricas, estão: a prosopografia e biografia modal; a biografia e contexto; a biografia e os casos extremos, e a biografia e hermenêutica. A prosopografia e biografia modal só despertam interesse ao ilustrarem comportamentos ou aparências ligadas às condições sociais mais frequentes. Assim, não se trata de biografias verídicas, mas sim da utilização de dados biográficos com objetivos prosopográficos. Para Levi (2000), os historiadores das mentalidades usufruem da prosopografia, mostrando pouco interesse pela biografia individual. 29 como instrumento de conhecimento histórico, substituindo a escrita biográfica tradicional, que é linear e factual, sobre a qual Bourdieu (2000) tanto discorre. Com relação a nossa pesquisa, as ideias de Levi (2000) sobre biografia e contexto são interessantes para pensarmos a trajetória política de Eduardo Gomes e seu meio social, por intermédio da documentação relacionada ao Brigadeiro, e para estabelecer um equilíbrio ao analisarmos sua vida política. O conceito de ilusão biográfica apresentado por Bourdieu (2000)20 é importante para pensarmos as biografias apologéticas escritas sobre Eduardo Gomes e estabelecermos o uso da crítica, apontando as lacunas e omissões de sua memória heroica e mítica, construída a partir de uma escrita biográfica linear e coerente quanto aos fatos, o que, de uma certa forma, acaba por reduzir a vida do personagem descrito a uma mera ilusão retórica. Além dos textos teóricos mencionados, trouxemos como complemento para lermos e criticarmos os escritos biográficos apologéticos sobre Eduardo Gomes, os conceitos desenvolvidos por Vilas Boas (2008), que foram baseados na discussão já realizada por diversos historiadores especialistas no gênero biográfico, inclusive por muitos discutidos aqui. Esses conceitos são: descendência, segundo a qual, assim como o autor, relativizamos a ideia de uma herança familiar explicativa do biografado; fatalismo, para pensarmos sobre um personagem real visto como predestinado e vencedor; extraordinariedade; com o propósito de criticarmos os preconceitos envoltos na crença em uma genialidade inata; verdade, a fim de desmistificar a biografia como a verdade sobre uma pessoa; transparência, para considerar se A abordagem da biografia e contexto faz com que a narrativa biográfica mantenha sua especificidade e conserve a época, o meio e os fatores sociais que caracterizam todo o entorno atmosférico das trajetórias, permitindo compreender o que de primeiro momento pode parecer inexplicável. Por outro lado, o contexto é muito importante para preencher as lacunas documentais por meio de comparações com outros personagens que tenham alguma relação com o biografado. Esse método é muito eficaz para compreendermos a vida de um indivíduo, pois mostra um equilíbrio entre sua trajetória individual e seu ambiente social como um todo (LEVI, 2000). Com relação à questão da biografia e os casos extremos, Levi (2000) nos diz que esse método é muito eficaz, uma vez que os relatos biográficos são empregados apenas para compreender o contexto a ser trabalhado, durante o qual muitas vezes ele nem é percebido em sua integridade, mas por meio de suas margens. Por fim, Levi (2000) cita o uso da abordagem da biografia e hermenêutica, em que o material biográfico se torna discursivo e pode ser interpretado de diferentes formas: assumindo uma variedade de significados, fazendo os historiadores refletirem cada vez mais sobre os tipos de narrativas de modo disciplinado, buscando meios de comunicação mais sensíveis ao caráter dinâmico das escolhas e ações. 20 Bourdieu (2000), em seu trabalho sobre o gênero biográfico, utiliza o conceito de ilusão biográfica, ao criticar os historiadores de biografias por tratarem a vida de determinado indivíduo como um relato coerente de fatos. Segundo o autor, esses historiadores, agindo dessa maneira, estariam reduzindo a vida do personagem a uma ilusão retórica. Esse autor nos mostra que devemos esquecer a ideia da existência de homem cronológico, linear, com um destino já predestinado por algo ocorrido em seu nascimento, que o acompanhará por toda a sua vida. Em seu entender, a vida de qualquer pessoa é descontínua e fragmentada, sendo fundamental a reconstrução do contexto social, do espaço e do tempo em que o indivíduo agia. 30 os biógrafos também se revelam ao longo de seus textos; tempo, conceito por meio do qual Vilas Boas expressa a ideia de que uma narração biográfica linear-cronológica é uma limitação filosófica e narrativa. Cabe agora discorrermos sucintamente a respeito dos trabalhos biográficos e apologéticos sobre Eduardo Gomes e do que tratam, pois são produções acerca de sua memória, o que os tornam fundamentais para o trabalho de análise inicial de sua vida política. A primeira biografia sobre o personagem histórico enfocada em nosso trabalho se intitula Brigadeiro Eduardo Gomes (1945). Foi escrita por Gastão Pereira da Silva, falecido em 1987. Silva foi médico e psicanalista, provável razão pela qual traça o retrato psicológico de seu personagem. Para tanto, aborda a infância de Eduardo Gomes e questões históricas relacionadas à Primeira Guerra Mundial, à Revolução Russa e à década de 1920 no Brasil, dando maior atenção aos movimentos tenentistas (1922-1924) de que o biografado tomou parte, bem como a sua atuação no movimento revolucionário de 1930, no levante da Escola de Aviação de 1935 e, por fim, ao período no qual seu personagem foi candidato à Presidência da República pela UDN, em 1945. A segunda, intitulada O Brigadeiro da Libertação (Eduardo Gomes – Ensaio biográfico) (1945), cuja segunda edição, a de 1946, analisamos, foi escrita por Paulo Pinheiro Chagas, que morreu em 1983. Seu autor foi político, médico, advogado e um dos fundadores da UDN, o mesmo partido pelo qual Eduardo Gomes concorreu à Presidência da República em 1945 e 1950. É, portanto, um livro cuja intenção foi apoiar o Brigadeiro na eleição. Chagas (1946) realiza um relato biográfico mais completo que o de Silva (1945), pois procura de maneira mais minuciosa, retratar a vida do biografado, partindo das relações familiares de seu personagem até sua candidatura à Presidência da República. A terceira biografia sobre Eduardo Gomes foi realizada por Cosme Degenar Drumond (2011) e seu título é: O Brigadeiro. Eduardo Gomes, trajetória de um herói. O autor foi redator-revisor concursado do Ministério da Aeronáutica e morreu em 2018. Comparando sua biografia com as outras mencionadas, consideramo-la mais abrangente, pois o autor teve acesso a mais fontes que os demais biógrafos devido à passagem do tempo. Drumond narra a vida de Eduardo Gomes desde seu nascimento até sua morte, ocorrida em 1981. Contudo, o autor chega à mesma conclusão dos outros biógrafos, isto é, que Eduardo Gomes foi um herói, um mito; em suma, não critica nem desconstrói a imagem do biografado. Importa salientar que analisamos também textos biográficos de divulgação escritos em épocas distintas. São dois. O primeiro se intitula Eduardo Gomes (Perfil biográfico) e é de 31 autoria de Raul Pinto de Mendonça, que, segundo consta na própria obra, pertenceu ao Instituto Brasileiro de Cultura (IBC) e ao Instituto Brasileiro de História da Arte (IBHA). Esse texto foi escrito no início de 1945 e se encontra no arquivo Juarez Távora, no CPDOC. Aborda, de modo resumido, a carreira militar de Eduardo Gomes e suas promoções, bem como seus cursos, condecorações e medalhas, horas de voo, elogios de militares que o conheciam e trabalhavam com ele. O segundo texto é um opúsculo biográfico, denominado Marechal-do-Ar Eduardo Gomes: o homem e o mito. Seu autor é o coronel aviador Manuel Cambeses Júnior, que morreu em 2019. Ele foi Conselheiro do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, ocupante da Cadeira nº 9, cujo Patrono é o marechal-do-ar Eduardo Gomes, Patrono da Força Aérea Brasileira. Não há indicação de data no opúsculo; mas, como o autor trata em seu trabalho dos grandes acontecimentos do qual o Brigadeiro fez parte até sua morte e o momento em que foi declarado Patrono da Força Aérea Brasileira, em 1984, então se pode dizer que a publicação do texto foi posterior a esse ano. O principal objetivo do biógrafo foi destacar a importância de Eduardo Gomes para a Aeronáutica e para o país. Não podemos nos esquecer, também, de dois textos políticos sobre Eduardo Gomes, pois são muito importantes para compreendermos a conjuntura histórica de 1945 e o processo eleitoral desse ano, bem como a participação de Eduardo Gomes como candidato à Presidência da República pela UDN na disputa eleitoral daquela época. O primeiro desses textos foi escrito por J. Nunes de Carvalho 21 e se intitula A Democracia e o Brigadeiro. Foi publicado no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, no final de 1945, e se encontra atualmente no acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O autor critica o regime político daquele momento. Contrário ao Estado Novo de Vargas e apoiador da candidatura do Brigadeiro, ele caracteriza Eduardo Gomes como o Roosevelt brasileiro, comparando-o ao ex-presidente dos Estados Unidos. O segundo escrito, denominado Eduardo Gomes e a Evolução Brasileira, foi elaborado por Euclides Matta, que era um jornalista paulista. Sua publicação data do início de 1945. Atualmente esse texto encontra-se no acervo da Biblioteca Nacional. Consiste em um estudo sobre a História Republicana do Brasil, especialmente a partir do movimento revolucionário de 5 de julho de 1922. O autor analisa os motivos que levaram os participantes dos 18 do Forte de Copacabana a lutarem contra o governo de Epitácio Pessoa e descreve o dia a dia de Eduardo Gomes, bem como sua relação com o catolicismo. O jornalista procura 21 Joaquim Nunes de Carvalho foi um tenente que participou dos movimentos tenentistas da década de 1920. 32 demonstrar, como questão central, que o presidencialismo é responsável pelos golpes armados e pelos abusos do poder que os originaram, defendendo, ao mesmo tempo, o parlamentarismo e a vitória de Eduardo Gomes nas eleições de 1945. Há ainda dois trabalhos fundamentais sobre Eduardo Gomes. O primeiro, denominado Campanha de Libertação, de autoria de Eduardo Gomes, foi publicado em 1945 e contém seus discursos como candidato à Presidência da República pela UDN, nas eleições desse ano, com a predominância dos seguintes temas: o trabalhador, a educação, o café, a siderurgia, o exército, as secas, o transporte e a rodovia, a economia, a liberdade de imprensa, a anistia, as eleições livres e o sufrágio universal. Nessa obra, constam, principalmente, as entrevistas concedidas pelo Brigadeiro e suas críticas à ditadura iniciada em 1937. A segunda obra constitui um resgate da memória de Eduardo Gomes. O livro, publicado em 1984, chama-se Caminhada com Eduardo Gomes e foi escrito por Deoclécio Lima de Siqueira, que foi um aviador. Idealizador do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER), Siqueira (1984) trata, em seu escrito, do acelerado desenvolvimento da Aviação Brasileira durante a década de 1930, ao mesmo tempo em que dá importância à vida de Eduardo Gomes até a morte deste, em 1981, caracterizando-o como um símbolo de bravura na defesa dos princípios democráticos do país e mostrando seu valor também na aviação brasileira. Para o autor, a partir de 1922, com os 18 do Forte de Copacabana, Eduardo Gomes já começava a se transformar num dos maiores mitos de nossa História. Observamos, portanto, que Siqueira também heroiciza o Brigadeiro, assim como as demais biografias. Relembremos que, em nossa pesquisa refletimos sobre a construção da imagem criada acerca de Eduardo Gomes por meio dos trabalhos biográficos sobre ele, nos quais houve uma tentativa de transformá-lo em um herói e um mito, que representava os anseios do povo brasileiro e simbolizava a democracia em 1945. Assim, pensar a sociedade e o contexto histórico em que os textos biográficos sobre Eduardo Gomes estavam inseridos é de extrema importância para analisarmos como se desenvolveu o esforço de construção de uma imagem laudatória sobre o Brigadeiro enfocado em nossa investigação. Segundo Silva (2016, p. 30), a biografia como objeto de análise pode oferecer aos historiadores muitas questões a serem elucidadas, como: “[...] os limites da ideia de verdade e de representação, o papel social do mito, as relações entre público e privado, as ligações entre a narrativa e sua época, entre diversas outras”. Ao mesmo tempo, Carloni (2010, p. 13) faz as seguintes considerações: 33 [...] os discursos compromissados com a construção ou a desconstrução de um mito não devem ser interpretados como irracionalidade e tentativa de manipulação, mas sim, como produto histórico-social. Devem ser entendidos em seu sentido amplo se se deseja compreender os grupos sociais que os produziram e os seus respectivos valores. Segundo Musiedlak (2006, p. 106): [...] o historiador deve tentar identificar o que diz respeito propriamente ao objeto biográfico estudado, apreender o melhor possível a sua temporalidade, se quiser separar o sujeito de sua história mítica e de seu entorno imaginário. Deve se dedicar a um trabalho de ‘desconstrução’, não porque esse imaginário seja artificial e falso. Ele faz parte da elaboração do mito do personagem e, nesse sentido, deve constituir uma parte essencial da elaboração do percurso biográfico. Ao escrever a biografia sobre Luís IX da França, mais conhecido como São Luís, Le Goff (1999, p. 20) chega à conclusão de que “[...] a biografia histórica é uma das maneiras mais difíceis de se fazer história”. E vai além, ao exprimir estas reflexões: Habituado por minha formação de historiador a tentar uma história global, fui rapidamente tocado, pela exigência da biografia, a fazer da personagem em questão o que consideramos, Pierre Toubert e eu, um sujeito “globalizante” em torno do qual se organiza todo o campo da pesquisa. Ora, que objeto, mais e melhor que uma personagem, cristaliza em torno de si o conjunto de seu meio e o conjunto dos domínios que o historiador traça no campo do saber histórico? São Luís participa simultaneamente do econômico, do social, do político, do religioso, do cultural; age em todos esses domínios, pensando-os de uma maneira que o historiador deva analisar e explicar – mesmo quando a busca do conhecimento integral do indivíduo em questão se torna uma “procura utópica”. (LE GOFF, 1999, p. 21). Ao refletirmos sobre a ideia de sujeito “globalizante” apresentada por Le Goff (1999), observamos que tal noção pode ser identificada em relação à vida política de Eduardo Gomes, uma vez que ele, como sujeito de grande importância para o século XX no Brasil, esteve envolvido em grandes acontecimentos políticos, sociais, econômicos, culturais e até mesmo religiosos, pois sua vida esteve praticamente pautada no catolicismo. Assim, não defendemos aqui a concepção de uma biografia total, mesmo porque toda biografia histórica se remete a determinadas escolhas que o historiador fará para construir a história de seu objeto, a começar pela seleção das fontes, dos temas fundamentais de sua vida etc. No entanto, determinados indivíduos na História, ainda mais, grandes vultos, trazem consigo importantes acontecimentos que fazem parte de sua época, os quais, por sua vez, eles mesmos ajudaram a produzir. São os casos de São Luís (ou Luís IX) e Eduardo Gomes. 34 De acordo com Le Goff (1999, p. 26): “O indivíduo não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas, e essa diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo. O conhecimento da sociedade é necessário para ver nela se constituir e nela viver uma personagem individual”. Le Goff procura ainda alertar que o historiador não é um juiz, ele tem que tomar cuidado para não construir uma empatia com o seu objeto de estudo. Assim, devemos acima de tudo, tentar compreender o personagem, tomando muito cuidado para não admirá-lo ou mesmo desprezá-lo. Para nossa pesquisa utilizamos o método biográfico, constituído pela modalidade de trajetória política, a fim de analisarmos as fontes. Desse modo, primeiramente discutimos e questionamos criticamente os escritos biográficos sobre Eduardo Gomes, com o intuito de identificar as ênfases e omissões em suas narrativas, pois se aproximam daquilo que Bourdieu (2000) chama de ilusão biográfica. Posteriormente, os documentos selecionados por nós serviram para dar embasamento ao estudo do itinerário político de Eduardo Gomes, colocando-o em confronto com sua memória. Nesse sentido, pensamos o Brigadeiro com base nas fontes, em sua trajetória, suas origens, em sua personalidade, seu meio social e no contexto que ele vivenciou. Um bom exemplo desse método é discutido por Borges (2019, p. 211): Em 1994, o convite para prefaciar a publicação de um documento — um diário com aquarelas sobre a Revolução de 1932 — resultou na primeira vez em que tive de me enfronhar na vida de um personagem: o desconhecido capitão Alfredo Feijó, autor do diário, envolvido na guerra civil entre São Paulo e o restante do Brasil. Esse primeiro esboço de biografia colocou-me diretamente diante da necessidade de pensar um indivíduo em sua trajetória, suas origens, sua personalidade e seu “contexto”. Dessa forma, é necessário e importante situar o indivíduo analisado em seu grupo e no contexto social em que se encontra. Para Borges (2019, p. 222-223, grifo da autora): O ser humano existe somente dentro de uma rede de relações. Assim, algumas coordenadas devem ser levadas em conta pelo pesquisador: deve-se atentar para os condicionamentos sociais do biografado, o grupo ou grupos em que atuava, enfim, todas as redes de relações pessoais que constituíam seu dia a dia. [...] É preciso também estar atento para não “enraizar” o indivíduo em seu meio social, em seu tempo; é preciso vê-lo em movimento. Dito de outra forma, o contexto histórico não pode ser um cenário descrito no primeiro capítulo e do qual depois o autor distinguirá a silhueta do biografado. [...] Para tal, deve procurar conhecer a sociedade, o tempo em que viveu seu biografado mediante obras de História e de Literatura; devem também se familiarizar com os temas que fazem parte da vida sobre a qual se debruça (por exemplo, se a biografada é uma líder feminista, é preciso conhecer bem esse tema para se compreender sua militância). 35 As ideias de Levi (2000), já discutidas acima, também são importantes para pensarmos o nosso método de análise das fontes, pois, para o autor, a abordagem da biografia e do contexto contribui para que o texto biográfico — em nosso caso, o estudo da trajetória política de Eduardo Gomes — mantenha sua especificidade e conserve a época, o meio e os fatores sociais que caracterizam todo o entorno atmosférico da vida política do sujeito estudado, permitindo compreender as omissões ou as lacunas com as quais o historiador se depara ao estudar o percurso político de um indivíduo. Nesse sentido, o contexto é importante para preencher as lacunas documentais, inclusive por meio de comparações com outras figuras que tenham alguma relação com o biografado. Tal metodologia nos auxilia a entender a trajetória política de Eduardo Gomes, levando-nos a estabelecer um equilíbrio entre sua vida individual e seu meio social. Para o desenvolvimento da trajetória política de Eduardo Gomes utilizamos diferentes fontes, como: documentos presentes em arquivos, localizados no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) e no Arquivo Nacional, ambos no Rio de Janeiro (RJ); escritos biográficos; projetos de leis da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF); livros da coleção da Aeronáutica; diário do Congresso Nacional; entrevistas; jornais e revistas; livros de época e de memórias, e documentos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esta tese encontra-se dividida em seis capítulos. O primeiro capítulo revela e analisa a memória construída sobre Eduardo Gomes, por meio dos escritos biográficos que foram produzidos sobre o militar. Constatamos que existe um imaginário que envolve o Brigadeiro, elaborado, sobretudo, em 1945 — ocasião em que Eduardo Gomes foi candidato à Presidência da República pela UDN — e após a sua morte. No segundo capítulo apresentamos a vida de Eduardo Gomes desde a sua infância até a sua entrada no Exército brasileiro. Analisamos a sua trajetória política, que teve início em 1922. Abordamos a situação do Exército nacional no começo da Primeira República; a época em que o Brigadeiro foi aluno da Escola Militar do Realengo, com o objetivo de refletir sobre suas relações sociais e a possível existência, nesse período, de uma politização no meio militar de que fez parte, fato que contribuiria para explicar o seu envolvimento nos movimentos tenentistas do começo da década de 1920. Tratamos também sobre o contexto histórico dos anos de 1920 no Brasil, a fim de compreendermos os acontecimentos que levaram à desencadear os movimentos tenentistas daquela época, e examinamos a participação de Eduardo Gomes nas insurreições de 1922, no Rio de Janeiro, e de 1924, em São Paulo, bem como a ideologia que pautava esses 36 movimentos. Por fim, estudamos o percurso político da figura aqui estudada, depois de 1924 até antes de seu envolvimento na Revolução de 1930. No terceiro capítulo discutimos sobre a participação de Eduardo Gomes na aviação e nos movimentos políticos ocorridos durante o governo Vargas na década de 1930, como: a Revolução de 1930; o Correio Aéreo Militar; a Revolução Constitucionalista de 1932 — especialmente da atuação de Eduardo Gomes no setor aéreo, contra os paulistas —; de seu combate contra os comunistas em 1935; sua oposição ao Estado Novo e seu suposto envolvimento na Revolta Integralista de 11 de maio de 1938. Analisamos também o contexto histórico desses episódios. No quarto capítulo tratamos sobre a criação do Ministério da Aeronáutica, em 1941 e do desenvolvimento da aviação brasileira na década de 1940. Analisamos o envolvimento de Eduardo Gomes na Aeronáutica, durante o contexto da Segunda Guerra Mundial e, a importância do Brigadeiro para o setor aéreo nacional, bem como para o bom relacionamento com os norte-americanos, que estavam no Brasil com intenções de construir e equipar as bases aéreas localizadas no Norte e no Nordeste do país. Essas bases foram importantes para a manutenção dos aviões de guerra que iam à África, com o intuito de levar recursos para as forças aliadas. Pudemos compreender entre a relação de Eduardo Gomes com os Estados Unidos, o posicionamento do militar e dos norte-americanos com relação as defesas contra as forças do Eixo. Também abordamos e analisamos como foi a atuação do Brigadeiro nas duas candidaturas que concorreu à Presidência da República pelo partido da UDN, em 1945 e 1950. No quinto capítulo discorremos sobre os dois projetos políticos distintos, que estavam em disputa, com maior intensidade, durante a década de 1950, prolongando-se até o Golpe Civil-Militar de 1964: o nacional-estatismo e o liberalismo-conservador. Eduardo Gomes foi representante do segundo projeto. Examinamos assim, a atuação do Brigadeiro nos movimentos políticos de 1954, 1955 e 1964, que ameaçaram a democracia representativa, a qual estava em processo de desenvolvimento desde 1945. Abordamos os motivos desses conflitos políticos e os interesses de cada grupo que participaram dessas agitações. Também realizamos uma comparação entre as ações de Eduardo Gomes e o projeto político que defendia, com a do marechal Lott, que pode ser considerado como representante das ideias do nacional-estatismo e da luta a favor da legalidade democrática. No sexto e último capítulo discutimos sobre os momentos finais da vida pública e política de Eduardo Gomes, vinculada ao contexto da Ditadura Militar e, por fim, realizamos alguns apontamentos sobre as memórias do Brigadeiro após a sua morte. 37 1 ESCRITOS BIOGRÁFICOS: O IMAGINÁRIO EM TORNO DE EDUARDO GOMES Neste capítulo trouxemos à tona a memória construída sobre Eduardo Gomes, por meio dos escritos biográficos que foram produzidos em relação a ele, pois existe um importante imaginário 22 que envolve esse militar e político brasileiro, especificamente produzido em 1945 — ano em que Eduardo Gomes foi candidato à Presidência da República pela UDN — e após a sua morte. Conhecer esse imaginário é fundamental para questionarmos a produção social de sua memória. Atentamos, particularmente, para a vida política de Eduardo Gomes. Consideramos relevante tentar responder à seguinte pergunta: o que da construção de sua memória política, é mito? Ainda que existam escritos laudatórios, estes fazem parte da História. Acreditamos que o historiador deve procurar distinguir o mito da verdade, mas não pode ignorar a criação do mito. Para examinarmos os escritos biográficos sobre Eduardo Gomes utilizaremos de teorias e métodos, principalmente da área da Ciências Humanas, já destacadas e explicadas no início deste trabalho, e de algumas indagações formuladas por nós. Como bem destaca Borges (2019), o historiador, ao desenvolver um trabalho biográfico, deve começar pelo que já foi escrito sobre o personagem, principalmente se o biografado for uma pessoa célebre, pois isso nos coloca diante de uma imagem já estabelecida e que pode ser revista. Considerando os motivos expostos, foram analisados, neste item, os escritos biográficos sobre Eduardo Gomes. Inicialmente, por meio dessas obras, refletimos sobre o imaginário que envolve o biografado. Segundo Musiedlak (2006, p. 106-107), tal imaginário “[...] torna-se, às vezes, mais importante do que sua própria personalidade”. Acreditamos, assim como o autor, que o ato de desmitificar é fundamental para retomar a vida do personagem e restituir o modo pelo qual esse imaginário foi construído. É também essencial realizar a contextualização e o emprego da crítica dos documentos que se têm em mãos, e não tratá-los como verdade absoluta, especificamente com relação às fontes aqui discutidas, isto é, os trabalhos biográficos sobre Eduardo Gomes. Bacellar (2019, 22 A concepção de imaginário usada aqui, está associada ao conceito de cultura política, que está ligado, entre outras questões, a “[...] representações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa, uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro” (MOTTA, 2014, p. 21). Para Motta, como já ressaltado neste trabalho, representações constituem um conjunto de ideias, das quais entre elas, encontra-se o imaginário. Assim, os escritos biográficos analisados neste capítulo fazem referência a um importante imaginário que foi produzido a respeito de Eduardo Gomes, sobretudo em 1945 e após a sua morte. 38 p. 64, grifo do autor) afirma que “acima de tudo, o historiador precisa entender as fontes em seus contextos, perceber que algumas imprecisões demonstram os interesses de quem as escreveu”. Estudamos os escritos biográficos sobre Eduardo Gomes, levando em consideração como o viés apologético sobre o biografado aparece na narrativa elaborada pelos autores, pois é visível nesses trabalhos a empatia que os autores têm com o personagem, justamente aquilo que Le Goff (1999) chama a atenção dos historiadores para evitarem a fazer. Tentamos perceber também se esses trabalhos biográficos seguem uma certa ilusão biográfica, conceito formulado por Bourdieu (2000), se os autores tomam cuidado com o que Avelar (2010) chama atenção, ou seja, a construção de uma vida pautada por regularidades, repetições e permanências, bem como se os escritores seguem uma tendência que Vilas Boas (2008), a partir de conceitos formulados, procura nos auxiliar como ferramenta para lermos e criticarmos uma biografia. Ao analisarmos os escritos biográficos sobre Eduardo Gomes, não só levamos em conta o imaginário erigido a respeito do personagem, mas também outras questões igualmente importantes. Por exemplo: Quem são os autores desses estudos? Esses autores possuem alguma ligação com o personagem? Quando esses trabalhos foram publicados? As datas dessas publicações têm alguma relevância histórica que se relaciona ao biografado? O que levou os autores de tais publicações a escreverem sobre Eduardo Gomes? Como esses autores descrevem a personalidade do biografado e os movimentos políticos de que participou? Quais documentos utilizaram em seus trabalhos? A imagem de Eduardo Gomes é a mesma em diferentes contextos? A qual ideologia política Eduardo Gomes é vinculado? 1.1 “BRIGADEIRO EDUARDO GOMES” A primeira biografia sobre o personagem, tem como título Brigadeiro Eduardo Gomes. Foi escrita por Gastão Pereira da Silva (1898-1987) e publicada, em 1945, pela Editora Panamericana Ltda, do Rio de Janeiro. O autor dessa obra nasceu em São José do Norte (RS), em novembro de 1898, e atuou como médico, psicanalista, escritor, pesquisador, biógrafo e jornalista. Foi o maior divulgador da Psicanálise de Sigmund Freud no Brasil e um dos primeiros psicanalistas do Rio de Janeiro. Lutou para tornar o debate sobre a psicanálise um tema mais acessível ao público leigo, sendo um crítico das normas elitistas da formação em psicanálise. Atuou também na imprensa, nas seguintes revistas: Carioca, Vamos ler, Dom Casmurro e Seleções Sexuais. Entre suas obras estão: Prudente de Morais: o Pacificador; 39 Rodrigues Alves e sua época; O romance de Oswaldo Cruz; Xavier da Silveira e a República de 89; Almeida Júnior: sua vida e sua obra; Para compreender Freud (PAULON, c2010). Silva (1945) não tinha ligação com Eduardo Gomes. A propósito, como publicou a obra em 1945, no ano das eleições políticas e no momento em que o Brigadeiro foi candidato à Presidência da República pela UDN, o autor se preocupou, inicialmente, em destacar que não estava atrelado a qualquer ideologia política ou partidária. Disse que apenas escrevia para o povo e que sua intenção era exercer livremente sua profissão de escritor. Contudo, no decorrer do livro, fica claro que o autor engradece a figura de Eduardo Gomes e que, indiretamente, se posiciona a favor da vitória do biografado na eleição para à Presidência da República. Silva (1945) afirma: Devo dizer, de ante-mão, que não estou, como nunca estive em minha vida, ligado a qualquer corrente político-partidária. Sou um escritor militante, um profissional das letras, e é apenas com as páginas dos meus livros que fabrico o meu pão de cada dia. [...]. Escrevo para o povo. Só me sinto ligado realmente ao povo porque faço parte integrante dêle e por isto a minha voz pode ser considerada insuspeita. Não tenho, outrossim, a mínima aspiração política, não desejo ocupar qualquer cargo. Só desejo, realmente é que me permitam exercer livremente a minha profissão de escrever, sem compromissos de qualquer espécie, para o povo. (SILVA, 1945, p. 9- 10). A caracterização de Eduardo Gomes como herói, criada devido a sua participação na Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 1922, além do fato de apresentar uma história de vida que poderia servir como exemplo para as gerações futuras, consiste em um dos principais motivos que levaram Silva (1945) a realizar sua biografia em questão. De acordo com o autor: O Brigadeiro Eduardo Gomes, com sua figura heróica e impressionante, nome lendário e incorrupto nos faustos gloriosos da nacionalidade, sobrevivente da epopéia dos 18 do Forte de Copacabana, é daqueles que, como Osvaldo Cruz, podem oferecer a história de sua vida para exemplo das gerações vindouras. (SILVA, 1945, p. 10). Silva (1945) conta que não realizou uma biografia mais completa de Eduardo Gomes em razão do tempo escasso “[...] e da impossibilidade de estabelecer contacto direto com o meu biografado, sempre arredio e inatingível a qualquer manifestação publicitária” (SILVA, 1945, p. 10). As fontes utilizadas por Silva (1945) foram jornais e entrevistas com pessoas que conviveram com Eduardo Gomes e que contribuíram para que o autor traçasse o retrato psicológico do personagem. 40 Acerca de um dos conceitos apresentados por Vilas Boas (2008), com relação a um dos modos de ler e criticar a biografia, isto é, a transparência, percebemos que Silva (1945), primeiramente, ainda que de modo sucinto, enfatiza, em seu livro, alguns dos motivos que o levaram a biografar Eduardo Gomes, as dificuldades e as fontes utilizadas para realizar a mencionada obra. No entanto, mesmo quando se apresenta transparente, comentando seus processos intelectuais e perceptivos sobre o biografado, o que o levou a