PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MARIA ANGÉLICA CHAGAS PARAIZO Populismo e o projeto de desenvolvimento do governo Lula Marília, SP. 2017 MARIA ANGÉLICA CHAGAS PARAIZO Populismo e o projeto de desenvolvimento do governo Lula Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP (campus de Marília) para a obtenção do título de mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Determinações do Mundo do Trabalho Discente: Maria Angélica Chagas Paraizo. Orientador: Prof. Dr. Jair Pinheiro. Marília, SP. 2017 Paraizo, Maria Angélica Chagas. P222p Populismo e o projeto de desenvolvimento do governo Lula / Maria Angélica Chagas Paraizo. – Marília, 2017. 117 f. ; 30 cm. Orientador: Jair Pinheiro. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, 2016. Bibliografia: f. 108-117 1. Classes sociais. 2. Populismo. 3. Desenvolvimento econômico e população. 4. Brasil - Presidente (2003-2006 : Lula). 5. Brasil - Presidente (2007-2010 : Lula). I. Título. CDD 329.981 Banca examinadora Prof. Dr. Jair Pinheiro (orientador) DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS DA FFC-UNESP Prof. Dr. Armando Boito Jr. (membro) INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH - UNICAMP Prof. Dr. Anderson Deo (membro) DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS DA FFC-UNESP Suplentes: Prof. Dr. Eliel Ribeiro Machado DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – UEL – LONDRINA Profª. Drª. Angélica Lovatto DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS DA FFC-UNESP Aos meus avós, Nazaré Miranda Chagas e Sebastião Chagas (in memorian). AGRADECIMENTOS Gostaria de inicialmente agradecer aos funcionários da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP de Marília, principalmente à equipe da Secretaria de Pós- Graduação, pois sempre me ajudaram em todas as questões burocráticas que surgiram durante a realização do meu mestrado. Agradeço também meu orientador, Jair Pinheiro, por sua dedicação. Também sou grata aos professores Anderson Deo e Armando Boito Jr. pelas importantes observações e sugestões feitas em meu exame de qualificação. Demonstro aqui também minha gratidão aos meus amigos. À Marília e Ellen, minhas amigas de infância, pela presença sempre constante em minha vida. À Thaylizze, pelos bons momentos que vivenciamos na “Fortaleza Vermelha”. À Carol, pelo incentivo mútuo, pelas horas que passamos conversando sobre questões teóricas e também por nossas conversas aleatórias. À Anne, por ser sempre tão presente e companheira. Ao Rodrigo, por compartilharmos as angústias da vida acadêmica. À Fran, por sempre ter uma palavra de conforto nas horas difíceis. À Jéssica, pela torcida e companheirismo de sempre, mesmo que distante. A todos e todas queridos e queridas que se fizeram presentes nesta etapa da minha vida! Além da minha gratidão, todo meu amor, ao meu companheiro Wagner, por sempre estar ao meu lado, segurando minhas barras e me dando forças, por toda a sua compreensão, por seu constante incentivo e por ler meus textos milhões de vezes. À minha família. À minha avó Nazaré, por todo seu amor e preocupação. À tia Sueli, pelo eterno carinho. Aos meus pais, Vera e Geraldo Paraizo, por fazerem juntos o possível e o impossível para me manter em uma universidade pública. À Fernanda Paraizo, minha Tata, obrigada por estar sempre ao meu lado, desde minha alfabetização. À minha sobrinha, Isabela, por me fazer ter fé na vida. À Adelaide, por trazer fofura aos meus dias. Amo-os sem limites. Por fim, agradeço à CAPES, pelo financiamento desta pesquisa. Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas. Vladimir Maiakovski. RESUMO Esta dissertação tem como objeto de análise diferentes interpretações a respeito das políticas implementadas pelo governo Lula para as classes dominantes e para as classes dominadas. Seu objetivo consiste em realizar uma leitura crítica da bibliografia apresentada a fim de examinar como o atendimento de interesses seletivos das classes trabalhadoras foi funcional para o projeto de desenvolvimento deste governo, sendo estes interesses limitados à manutenção dos interesses fundamentais das classes burguesas. Deste modo, procuramos refletir sobre a ocorrência de algumas alterações sociais e econômicas durante o referido governo, entretanto, circunscritas às determinações do modelo neoliberal periférico. Com base no debate contido na bibliografia apresentada nesta pesquisa e na teoria de Estado de Nicos Poulantzas, buscamos, assim, expor as particularidades do cumprimento da função geral do Estado capitalista pelo governo Lula. Intentamos, ainda, demonstrar como as classes populares tornaram-se apoio do projeto neodesenvolvimentista que estava em curso por intermédio de uma ilusão ideológica com fundamentos materiais, resultando em uma relação do tipo populista destes setores sociais com o governo. Palavras-chave: Governo Lula; Classes Dominadas; Classes Dominantes; Populismo; Neodesenvolvimentismo. ABSTRACT This research has as object of analysis different readings about the policies implemented by the Lula government for the dominant classes and for the dominated classes. Its purpose is to present a critical review of the bibliography presented to demonstrate how the selective interests of the working classes served to the development project of the government and how these interest were limited to the maintenance of the fundamental interests of the bourgeois classes. Thus, we try to reflect about the occurrence of some social and economic changes during that government, however, circumscribed to the determinations of the peripheral neoliberal model. Through the discussion contained in the bibliography used in this work and based on the State theory of Nicos Poulantzas, we seek to expose the particularities of the fulfillment of the general function of the capitalist State by the Lula government. We also try to demonstrate how the popular classes have become the support of the neodevelopmentalist project through an ideological illusion with material foundations, resulting in a populist relationship between these social sectors and the government. Keywords: Lula government; Dominated classes; Dominant classes; Populism; Neodevelopmentism. SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................. 13 Capítulo 1 – As políticas sociais do governo Lula para as classes populares .......... 16 1.1 - A ascensão presidencial de Luís Inácio Lula da Silva .................................... 17 1.2 – Reformas e contrarreformas ........................................................................... 21 1.3 – O governo Lula e os movimentos sociais ...................................................... 27 1.4 – Os programas sociais de transferência de renda .......................................... 32 1.5 – O vínculo do presidente-operário com as classes populares ........................ 36 1.6 – Para além das políticas sociais focalizadas ................................................... 41 Capítulo 2 – O favorecimento das frações burguesas .......................................... 47 2.1 – O delineamento inicial do governo Lula ........................................................ 48 2.2 – O favorecimento da burguesia interna .......................................................... 52 2.3 – A polêmica do projeto de desenvolvimento brasileiro do século XXI .......... 60 2.4 – Neodesenvolvimentismo e pós-neoliberalismo ........................................... 64 2.5 – A defesa do novo desenvolvimentismo do governo Lula ............................ 68 2.6 – Análise crítica do novo desenvolvimentismo ............................................... 71 Capítulo 3 – Notas sobre a particularidade política do governo Lula ................... 75 3.1 – O governo Lula e os interesses de classe ................................................... 76 3.2 – A inter-relação entre as políticas do governo Lula para as classes domina- das e para as classes dominantes ......................................................................... 79 3.3 – Neodesenvolvimentismo e classes dominadas ........................................... 86 3.4 – Populismo: política e ideologia de Estado ................................................... 88 3.5 – O governo Lula corresponderia a uma forma de neopopulismo? ................ 92 3.6 – A particularidade da política populista de Lula e o projeto neodesenvolvi- mentista .................................................................................................................. 95 Considerações finais .............................................................................................. 101 Referências Bibliográficas ...................................................................................... 108 LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS Gráfico 1 – Aumento da renda familiar per capita (R$) no período de 2003 – 2009 ......................................................................................................... 42 Gráfico 2 – Evolução do crédito pessoal e do consignado (dez/2004 – dez/2010) – (Em % do PIB) ...................................................................................... 43 Gráfico 3 – Comparativo entre as décadas de 1990 e 2000 sobre a criação média anual de postos de trabalho (Em %) ......................................................................... 44 Tabela 1 – Evolução do salário mínimo durante o primeiro e o segundo mandato de Lula ........................................................................................................................... 42 Tabela 2 – Comparação da expansão das profissões com base na remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo entre as décadas de 1990 e 2000 (Em valores absolutos) ................................................................................................................. 45 Tabela 3 – Evolução do PIB do agronegócio brasileiro ........................................... 58 LISTA DE SIGLAS ALCA – Área de Livre Comércio das Américas BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BPC – Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CLT – Consolidação das Leis do Trabalho CUT – Central Única dos Trabalhadores DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos EC – Emenda Constitucional EJA – Educação de Jovens e Adultos FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FMI – Fundo Monetário Internacional FNT – Fórum Nacional do Trabalho IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBOPE - Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística IES – Instituição de Ensino Superior INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa INSS – Instituto Nacional do Seguro Social IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MDS – Ministério do Desenvolvimento Social MEC – Ministério da Educação MP – Medida Provisória MPS - Ministério da Previdência Social MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PBF – Programa Bolsa Família PCB – Partido Comunista Brasileiro PEC – Projeto de Emenda Constitucional PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PSL – Partido Social Liberal PIB – Produto Interno Bruto PMCMV – Programa Minha Casa, Minha Vida PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PROUNI – Programa Universidade Para Todos PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores RGPS – Regime Geral de Previdência Social SAT – Sistema de Administração Tributária 13 INTRODUÇÃO Nesta dissertação trazemos enquanto objeto de análise diferentes interpretações das políticas desenvolvidas pelo governo Lula para as classes dominantes e para as classes dominadas. O objetivo desta pesquisa consiste em demonstrar, por meio de um balanço bibliográfico, como as políticas sociais e econômicas destinas às camadas populares da sociedade brasileira foram funcionais para o projeto de desenvolvimento do governo em questão, projeto este que favoreceu sobremaneira as classes burguesas, com destaque para o restabelecimento do compromisso do Estado brasileiro com os grupos econômicos nativos. Antes de realizarmos uma explanação introdutória a respeito dos temas que iremos abordar neste trabalho, é importante destacar que esta pesquisa de mestrado se originou de questões inconclusas de nossa iniciação científica, intitulada O Governo Lula: entre o neoliberalismo e o “neopopulismo” – Políticas sociais e econômicas num governo de difícil caracterização, na qual realizamos uma síntese bibliográfica sobre as diferentes abordagens a respeito do caráter assumido pelo referido governo. A primeira questão consistiu no fato de que as políticas sociais e econômicas deste período se atrelaram, em certa medida, ao modelo neoliberal em vigência no Brasil; contudo, assumiram uma forma particular diante do projeto neodesenvolvimentista do governo Lula. A segunda questão suscitada referiu-se ao vínculo estabelecido entre as classes populares beneficiárias dos programas sociais do governo e a imagem pública de Lula, elemento que resultou na retomada do debate a respeito da existência de uma nova forma de populismo na política brasileira. A partir destas duas questões, uma terceira indagação ganhou forma, relacionada ao fato de que o presidente Lula, ao mesmo tempo em que incentivou o capital financeiro nacional e internacional por meio de políticas que favoreceram o bloco no poder, promoveu uma série de medidas que procuraram atender às necessidades dos setores mais pauperizados da população brasileira. Devido à característica meramente descritiva e pautada nas diferentes leituras a respeito da caracterização do governo Lula de nosso trabalho monográfico, as questões supracitadas não foram exploradas. Desta forma, originou-se a presente pesquisa de mestrado, na qual buscamos explorar o debate em torno das relações de 14 classe no governo em questão. Tendo como base teórico-metodológica os fundamentos marxistas, sobretudo a teoria de Estado de Nicos Poulantzas (1976; 1977), nossa dissertação busca expor, por meio de uma leitura crítica dos títulos abordados, as particularidades do cumprimento da função geral do Estado capitalista pelo governo Lula. Isto posto, destacamos que o presente trabalho é dividido em três capítulos distintos, mas que dialogam entre si, nos quais buscamos fundamentar o objetivo já mencionado. No primeiro capítulo, intitulado As políticas sociais do governo lula para as classes populares, realizamos um balanço bibliográfico sobre os avanços e os limites das políticas desenvolvidas pelo referido governo em favor destes setores sociais. Todas as leituras apresentadas neste debate não refutam o fato de que as políticas implementadas pelo governo Lula proporcionaram uma melhor condição de vida às classes populares. Entretanto, divergem na concepção sobre as alterações que estas políticas teriam realizado na estrutura social brasileira, marcada pela secular desigualdade social. As análises que denominamos enquanto “governistas” ressaltam a importância das políticas do governo Lula na construção de seu projeto de nação pautado no crescimento sustentado com base na justiça social. Já as interpretações críticas avaliam que as políticas do referido governo, em favorecimento de certos interesses econômicos das classes dominadas, mantiveram-se limitadas aos interesses fundamentais das classes burguesas. Ademais, neste primeiro capítulo, passamos pela discussão a respeito de como se alterou a relação do governo Lula com os movimentos sociais, de modo que estes também tiveram suas demandas contempladas dentro dos limites impostos pelos interesses políticos das classes dominantes. Em nosso segundo capítulo, sob o título de O favorecimento das frações burguesas, apresentamos o debate em torno da forma como o governo Lula beneficiou as classes dominantes. Mediante a exposição de diversos títulos que abordam esta temática, buscamos demonstrar como este governo lidou com uma política macroeconômica austera em seu primeiro mandato, atendendo as demandas do capital financeiro; e como a conjuntura do momento favoreceu a produção de commodities destinadas ao mercado internacional, o que provocou saldos positivos na balança comercial brasileira e reduzido sua vulnerabilidade externa. 15 Seguimos a discussão acerca do aumento da produção de commodities, fato que foi impulsionado pelo governo por meio de uma série de medidas que proporcionaram a ascensão de frações da burguesia brasileira no interior do bloco no poder, embora circunscritas pelos limites impostos pelo capital financeiro e pelas intempéries do mercado externo. Disto deriva as explanações a respeito de um novo projeto de desenvolvimento orientado pelo governo, que teve como principal favorecida a grande burguesia interna. Por fim, problematizamos as limitações do neodesenvolvimentismo do governo Lula no que se refere à superação da situação de dependência e subdesenvolvimento do país. Tomando como base o debate bibliográfico examinado nos capítulos anteriores, em nosso terceiro capítulo, Notas sobre a particularidade política do governo Lula, buscamos demonstrar – recorrendo a uma discussão teórica e empírica – a inter-relação existente entre as políticas desenvolvidas em favor dos interesses imediatos das classes dominadas e a contemplação dos interesses fundamentais das classes dominantes. Na realização deste debate, trazemos o polêmico e controverso conceito de populismo. Comumente o populismo é apresentado na literatura em sua acepção funcionalista, perspectiva que descaracteriza e/ou secundariza a luta de classes, de modo que a explicação da problemática apresentada se encontra nas supostas ou reais “distorções institucionais” da consolidação da moderna sociedade latino- americana. Entretanto, de acordo com as bases teóricas assumidas em nossa pesquisa, apresentamos o populismo enquanto uma política e ideologia de Estado, desenvolvida por determinado governo conforme a autonomia relativa do Estado capitalista. Deste modo, buscamos discutir como o governo Lula constituiu-se enquanto um governo populista por atuar enquanto promotor de uma série de medidas que favoreceram institucionalmente a grande burguesia interna, incluindo de maneira subordinada as classes populares em seu projeto de desenvolvimento. Destacamos que a pertinência de nossa pesquisa consiste em sistematizar os elementos encontrados na bibliografia aqui analisada, de modo a contribuir para a compreensão do governo Lula, visando colaborar com as reflexões a respeito desta complexa conjuntura que se apresenta na política brasileira nos dias atuais. 16 CAPÍTULO 1 - AS POLÍTICAS SOCIAIS DO GOVERNO LULA PARA AS CLASSES POPULARES Com a ascensão de Lula ao Executivo Federal no ano de 2002, antigos pontos programáticos que possuíam nuanças de esquerda, antes defendidos pelo Partido dos Trabalhadores, foram substituídos por políticas sociais adequadas aos interesses do capital. Aliás, os interesses do capital passam a ser o eixo estruturante das políticas do governo em questão, fato já anunciado durante a campanha eleitoral de 2002 na chamada “Carta ao povo brasileiro”, documento cujo objetivo foi transmitir segurança ao bloco no poder, trazendo em seu corpo elementos que denotam a valorização do agronegócio, redução da taxa de juros de forma sustentada, manutenção do equilíbrio fiscal e do superávit primário1. A apreciação destes fatos leva à constatação sobre como a modificação gradual da postura política assumida pelo Partido dos Trabalhadores incidiu na relação estabelecida pelo governo Lula com as classes sociais, as quais diz representar, e com as classes que este concretamente se comprometeu. Em outras palavras, esta análise ilustra a correspondência entre a efetivação de uma política de atendimento seletivo dos interesses imediatos (WRIGHT, 1981) das classes dominadas e a promoção dos interesses gerais das classes dominantes. Durante o governo Lula houve a melhora gradual e progressiva do salário mínimo, a redução do índice de desemprego no país, a facilitação do crédito aos setores populares, sendo estes elementos que contemplaram interesses imediatos das classes dominadas como um todo. Ao mesmo tempo, direitos eram suprimidos (como a Reforma Previdenciária - E.C. nº 41/03) e outros debatidos que não chegaram a se efetivar (a exemplo das reformas sindical e trabalhista), com o objetivo de corresponder à priorização dos interesses das classes dominantes. No debate apresentado neste trabalho, um dos fatores de maior destaque refere-se às políticas destinadas à população mais pobre do país. É inegável que houve certa melhora em termos de distribuição de renda e qualidade de vida das frações de classe mais pauperizadas durante o governo Lula, como o ilustre exemplo 1 Como trecho literal expresso na Carta: “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança e na capacidade do governo de honrar os seus compromissos. ”. 17 do Bolsa Família. Todavia, tais avanços no campo social não abalaram as bases do poder político, tampouco foram mudanças de significativo impacto estrutural. Assim, as políticas sociais que tiveram maior impacto durante o governo Lula, por seu caráter de focalização, seguiram as diretrizes impostas pelas agências multilaterais e relacionaram-se diretamente com a política econômica implementada pelo governo, sem abalar os interesses das classes dominantes brasileiras, nem descontentar o capital monopolista. Devido ao grande impacto causado pelo programa de transferência direta de renda deste governo, ganhou destaque a polêmica sobre como tais políticas teriam incidido num vínculo pessoal entre o “presidente-operário” e as classes populares atendidas por seus programas sociais, elemento que fomenta o debate a respeito do “lulismo” e de postura “populista” por parte do presidente em questão. 1.1 – A ascensão presidencial de Luís Inácio Lula da Silva Antes de iniciarmos uma análise sobre as políticas desempenhadas pelo governo Lula que impactaram as classes populares, se faz necessário realizarmos uma breve digressão a respeito da origem do PT e de suas modificações que conduziram à ascensão de sua principal figura à chefia do Estado brasileiro. Acreditamos que a breve exposição destas questões contribui para uma melhor reflexão a respeito do debate central apresentado neste trabalho, concernente às particularidades deste governo diante do cumprimento da função geral do Estado capitalista. O Partido dos Trabalhadores surgiu no final da década de 70 e início dos anos 80 numa conjuntura marcada pela resistência ao regime ditatorial que se arrastava por longos anos, tolhendo as liberdades democráticas da sociedade brasileira. Neste mesmo período, destacam-se as greves operárias no ABC paulista, região onde o PT iniciou a sua atuação. Em sua origem, embora o Partido dos Trabalhadores apresentasse um programa vinculado aos interesses da classe trabalhadora, ao agregar em sua formação diversos setores, desde a esquerda católica, sindicalistas, intelectuais, pequenos proprietários e organizações operárias, nota-se que o partido não possuía uma política homogênea. Não obstante, encontra-se alusões ao socialismo em 18 documentos originários do partido, a exemplo da Carta de Princípios do PT datada de 1º de Maio de 1979, sendo esta uma forma de lançamento do PT ao público, antes da oficialização do partido em 1980: O Partido dos Trabalhadores entende que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores que sabem que a democracia é participação organizada e consciente e que, como classe explorada, jamais deverá esperar da atuação das elites privilegiadas a solução de seus problemas. [...] O PT não pretende criar um organismo político qualquer. O Partido dos Trabalhadores define-se programaticamente como um partido que tem como objetivo acabar com a relação de exploração do homem pelo homem. (Carta de Princípios do PT, In. GADOTTI; PEREIRA, 1989, pp. 37-38) Além dos elementos contidos nesta citação, a Carta de Princípios do PT apresenta pontos como a erradicação dos latifúndios improdutivos, a estatização de empresas que prestam serviços públicos, bem como de empresas estrangeiras, grandes empresas nacionais e bancos. Apesar de ser composto por várias correntes, o que o caracteriza enquanto um partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, dado o contexto de sua origem e devido à sua atuação nos movimentos sociais, pode ser considerado como um partido que pertence ao espectro da esquerda. Problematizando a noção de socialismo petista, Lincoln Secco (2011) afirma que, o Manifesto do PT, documento aprovado em 10 de fevereiro de 1980 no Colégio Sion, local onde o partido fora de fato fundado, não falava em socialismo, diferentemente de sua Carta de Princípios. O autor ainda alega que o socialismo petista figurava em um “horizonte distante”, uma vez que o que o partido defendia era um programa democrático-popular: (...) o Manifesto do PT, aprovado naquela reunião, não falava em socialismo (ao contrário da Carta de Princípios divulgada no ano anterior), todavia era patente que se tratava de uma organização de esquerda e radicalmente favorável aos interesses imediatos dos trabalhadores, até então impedidos de ter voz na sociedade civil (...) O partido nascia fora da órbita do comunismo soviético, portanto do Partido Comunista Brasileiro (PCB); afastava-se do “populismo” e negava oficialmente a herança Social-Democrata. Os petistas afirmavam o socialismo num horizonte distante enquanto defendiam um “programa para a democracia”. (SECCO, 2011, pp. 35-36) 19 Tragtenberg, em um artigo escrito no ano de 19882, apresenta as contradições existentes no bojo do Partido dos Trabalhadores no que se refere às suas várias correntes internas, dando destaque à Articulação, corrente composta por sindicalistas oriundos do ABC paulista e intelectuais independentes. Esta corrente, que viria a se tornar hegemônica no interior do PT, originou-se em 1983 com o nome de Articulação dos 113 por meio do lançamento de um manifesto que reunia 113 assinaturas. De acordo com o autor, o conteúdo presente neste documento – a defesa de um partido de massas, combatendo as posições internas tanto de caráter liberal, quanto as posições que assumiam a necessidade de se construir um partido de vanguarda de caráter marxista-leninista – denotam um posicionamento socialdemocrata. Após assumir a hegemonia no interior do partido, a Articulação colocou à margem a discussão tanto com setores à direita, quanto à esquerda (TRAGTENBERG, 2009, pp. 59-60). Luís Inácio Lula da Silva sempre foi uma das principais figuras do Partido dos Trabalhadores. Iniciou sua militância política nas greves do ABC paulista como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, vindo a atuar na formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em meados dos anos 80 e também da fundação do próprio PT. Alinhado à Articulação, Lula compactuava com as feições sociais-democratas desta corrente. No pleito eleitoral de 1989 Lula disputou pela primeira vez a presidência da República, ascendendo historicamente ao segundo turno, contudo, derrotado por seu oponente, Fernando Collor de Mello. Posteriormente, nas eleições de 1994 e 1998, Lula concorreu novamente enquanto presidenciável, perdendo em ambos os pleitos para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Após sucessivas tentativas e fracassos eleitorais nos pleitos posteriores, Lula da Silva vence as eleições presidenciais de 2002 com significativa margem de votos válidos no segundo turno: 61%, derrotando o peessedebista José Serra. A vitória do presidente-metalúrgico representaria um marco histórico na política do país e condensou a esperança contida nos setores que compunham a base petista e que ansiavam por uma mudança no panorama político-social brasileiro: teria sido a 2 TRAGTENBERG, M. O dilema da estrela: branca ou vermelha? In. A falência da Política. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 54-64. 20 chegada da esquerda ao poder, que se oporia ao projeto neoliberal que se espraiava pela América Latina na década anterior. Contudo, com o desenrolar do primeiro mandato de Lula, toda expectativa por rupturas e mudanças profundas que permeavam o sentimento de esperança por parte daqueles que acreditavam no projeto político petista tornaram-se decepções ou ficaram aquém do esperado. De acordo com Pinheiro (2003), esta virada em direção aos propósitos antes refutados pelo PT já havia sido sinalizada durante a campanha de 2002. Para o autor, o referido pleito foi marcado por um baixo grau de polarização política e ideológica, reflexo das estratégias dos candidatos envolvidos que disputavam a corrida eleitoral. As pesquisas realizadas com o eleitorado indicavam certo desejo por mudança, entretanto, o período de instabilidade financeira conduzia os candidatos a tomarem uma postura que passasse segurança ao capital financeiro. Diante deste contexto, os presidenciáveis buscavam trabalhar em suas campanhas propostas que apresentavam mudanças para o eleitor e também estabilidade ao capital: Cada candidato procurou, à sua maneira, acenar com mudanças, para o eleitor, e com estabilidade financeira, para o capital. Daí resultou uma competição pelo figurino de oposição entre Ciro (como preparado e experiente), Lula (como maduro e conhecedor do Brasil profundo) e Garotinho (como religioso e comprometido com os pobres), ao mesmo tempo em que flertavam com o continuísmo. Serra, por sua vez, flertava com o figurino de oposição enquanto vestia o de continuísmo (continuidade sem continuísmo). (PINHEIRO, 2003, p. 3) A queda das intenções de voto no presidenciável do PSDB fez com que o comando da campanha de Lula viesse a trabalhar mais proficuamente para que não ressurgisse o “espírito anti-Lula”. O PT intensificou seu contato com empresários e banqueiros nacionais e internacionais, bem como com as organizações multilaterais. Com a chegada ao segundo turno, Serra e Lula buscavam ampliar suas bases eleitorais. Além de sua base social já consolidada, agora o PT tinha a tarefa de consolidar o apoio conquistado no setor empresarial. O pleito eleitoral de 2002 figurava, assim, num contexto de crise de hegemonia, resultando em candidaturas híbridas, ao passo que os candidatos assumiam uma retórica distinta das bandeiras esperadas. A ambiguidade foi o elemento principal destas eleições e com a vitória de Lula chegar-se-ia, assim, num final ambíguo:: o candidato petista, sempre identificado como oposição, assumira em sua campanha 21 aspectos e compromissos continuístas, para “catalisar a tendência oposicionista; movimento que é confirmado pelas primeiras medidas do governo Lula. ” (PINHEIRO, 2003, p.9). Não restam dúvidas de que este pleito foi um marco na história política brasileira. De acordo com Iasi (2006), ao assumir a presidência, o Partido dos Trabalhadores se distanciou tanto de conotações socialistas, quanto da socialdemocracia europeia. Com base nos apontamentos de Diniz (1982), a respeito das características dos partidos que assumem-se enquanto máquinas no processo político, consideramos que o PT operou uma transformação gradual de um partido de origem popular, que outrora fora atuante nas bases e munido de uma postura questionadora da realidade social brasileira, para uma máquina política cujos objetivos centrais passariam a ser a maximização de sua capacidade de atrair votos por meio da concessão de amplos benefícios a distintos e diversos grupos sociais. A título de exemplo, a já citada a Carta ao povo brasileiro, datada do pleito de 2002, convivendo conjuntamente com a expectativa dos setores populares na vitória de Lula nesta eleição. Tal fato denota uma postura estritamente pragmática por parte do partido e a sua disposição em se adequar ao status quo3. O Partido dos Trabalhadores transformou-se, assim, em um partido da ordem e sua mais emblemática figura, Luís Inácio Lula da Silva, tornou-se um chefe de Estado com boa conduta governamental diante da outrora criticada, contudo tão folgadamente abraçada, política institucional. Ao mesmo tempo, a empatia direta entre Lula e as massas foi mantida, fato que colaborou para a configuração de “um governo que fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e garante a boa vida aos grandes capitais. ” (ANTUNES, 2007). 1.2 – Reformas e contrarreformas A realização de medidas favoráveis às classes dominantes, sobretudo visando os interesses do capital financeiro foram recorrentes durante o primeiro governo Lula, o que resultou em dissidências e diversas críticas por parte de militantes e intelectuais da esquerda brasileira. As políticas neoliberais, duramente criticadas durante a 3 Para uma discussão mais aprofundada sobre a conceituação de máquina política: Cf. DINIZ, E. Voto e Máquina Política: Patronagem e Clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 22 década de 90, passaram a figurar na agenda da governabilidade petista. Um exemplo concreto para ilustrar este fato está na reforma previdenciária proposta no mês de abril de 2003, poucos meses depois de o Partido dos Trabalhadores alcançar o mais alto cargo da política brasileira com amplo apoio, sobretudo, de sua base na classe trabalhadora organizada oriunda do setor público. A reforma previdenciária assumiu um caráter impopular na medida em que passou a limitar os direitos previstos nas normas de seguridade social dos servidores públicos. Esta reforma estava na agenda do FMI e do Banco Mundial e foi realizada de maneira rápida, aprovada em agosto de 2003 pelo Congresso e em dezembro do mesmo ano pelo Senado. Marques e Mendes (2007) destacam que tal medida retomara pontos que haviam sido derrotados durante o governo de FHC4. Contraditoriamente, durante o regime do presidente peessedebista, o PT se posicionou contra as propostas de retirada de direitos dos servidores. O discurso governista avalia que esta medida é positiva e mal interpretada pelos críticos do governo à esquerda. Nesta interpretação, o novo modelo previdenciário seria similar à previdência pública básica (INSS) para salários de até R$ 2.801,56. Ultrapassando este teto o servidor faria uso dos chamados fundos de pensão, ou uma “previdência complementar pública não estatal”: Sobre a natureza dos fundos de pensão, acreditamos que não há dúvida: se o patrocinador será o governo, se os participantes serão servidores públicos e se a gestão será pública, tais fundos serão públicos, ainda que não estatais. Vale ressaltar também que, na reforma da previdência, o governo Lula propôs que o Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT) fosse um monopólio do INSS, o que não passou devido às articulações da oposição – PFL e PSDB. (ARAÚJO, 2006, p. 25) Para Mercadante (2010, pp. 27-28), a reforma previdenciária seria uma forma de eliminar “privilégios e distorções”, atuando como um mecanismo eficiente em termos de distribuição de renda e proteção previdenciária para os trabalhadores que aderissem aos fundos de pensão. O autor fundamenta o caráter positivo dos fundos privados ressaltando o exemplo sobre fundos da Previdência Complementar Fechada, que contavam com ativos na ordem de 189,4 bilhões de reais em 2002, dando um salto para 500 bilhões no ano de 2009, cerca de 17% do PIB. 4 Segundo Marques e Mendes (2007), as propostas derrotadas durante o governo FHC e colocadas em prática durante o primeiro governo Lula consistiram no estabelecimento de um teto para a aposentadoria de servidores, pondo fim à sua integralidade, assim como o início de medidas que conduzirão à unificação do RGPS dos trabalhadores do setor privado e do setor público. 23 O governo enfatizou que por meio da concretização desta reforma haveria a possibilidade de realocação de recursos para o serviço público, como na área da saúde (MARQUES e MENDES, 2007). Ademais, para explicar a reforma da previdência evocou-se a tão aclamada noção de “justiça social”, sob a alegação de que a média dos benefícios do RGPS são muito menores do que a média dos benefícios dos servidores: O governo Lula, para indicar a enorme injustiça social consubstanciada no regime previdenciário dos servidores civis, comparou, na Exposição de Motivos que encaminhou a proposta de reforma ao Congresso Nacional, a média dos benefícios do RGPS, de R$ 362,00, ao benefício de R$ 50 mil de um servidor. Não fosse pelo fato de esses dados terem sido exaustivamente repetidos na mídia, num arroubo de ingenuidade seria possível pensar que se tratou de um “equívoco”. Afora que não se compara uma média a um valor absoluto, fato conhecido por qualquer pessoa um pouco familiarizada com os “mistérios da distribuição”. Para o cálculo da média do RGPS foram indevidamente incluídos os benefícios dos rurais (de um salário mínimo) e as aposentadorias por idade, todos de caráter assistencial, com valores baixos, que “puxam” a média para baixo. Segundo os dados do próprio MPAS, a média de aposentadoria por tempo de contribuição é de R$ 812,30, bastante acima dos R$ 362,00 utilizados para respaldar a retórica. Já a média da aposentadoria da maioria dos servidores federais fica em torno de R$ 1.038,00, conforme divulgado pela CUT, no mesmo seminário mencionado acima. (MARQUES e MENDES, 2007, p. 10) Com a implementação da reforma, o teto das aposentadorias dos servidores públicos garantido pelo RGPS passou a ser de R$ 2.400,00. Assim, os servidores seriam levados a buscar a previdência privada, estimulando, consequentemente, a ampliação dos fundos de pensão. Com o estabelecimento do teto para a aposentadoria dos servidores, mais recursos poderiam ser direcionados à meta do superávit primário, voltados para o pagamento da dívida externa do país, imposição feita pelas agências multilaterais (MARQUES e MENDES, 2007, pp. 11-12). É importante destacar que a construção da proposta referente à reforma previdenciária por parte do governo Lula não teve participação plena do Partido dos Trabalhadores em sua elaboração, o que resultou na falta de discussão da proposta e na expulsão dos deputados membros do partido que votaram contra a reforma, bem como na suspensão daqueles que se abstiveram5. A alegação do governo para a 5 Os então deputados federais Orlando Fantazzini (SP), Ivan Valente (SP), Maninha (DF), João Alfredo (CE), Chico Alencar (RJ), Paulo Rubem (PE) e Mauro Passos (SC) e Walter Pinheiro (BA) foram desligados temporariamente da bancada do PT após se absterem na votação sobre a Reforma Previdenciária. Já a então senadora Heloísa Helena e os deputados federais João Batista de Araújo 24 reforma previdenciária consistia na existência de um possível déficit nas contas da previdência social, fato que foi posteriormente desmentido (MARQUES e MENDES, 2007, pp. 9-10). Além da reforma da previdência, houve também a proposta da realização de uma reforma sindical e trabalhista. Esta proposta foi desmembrada, centrando-se primeiramente na reforma sindical que viria a se tornar um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 369/05, com origem no Fórum Nacional do Trabalho (FNT), foi criado pelo Decreto n. 4.796, datado de 30 de julho de 2003. O FNT possuía caráter tripartite, isto é, reunia representantes dos trabalhadores (lideranças sindicais), representantes do empresariado (confederações empresariais) e do governo (sobretudo ex-sindicalistas em cargos de confiança). O propósito do Fórum Nacional do Trabalho consistia em modernizar as instituições de regulação do trabalho, buscando estimular o diálogo e o tripartismo “assegurando a justiça social no âmbito das leis trabalhistas, da solução dos conflitos e das garantias sindicais” (ALMEIDA, 2007, p. 57). A PEC 369/05, seguindo os propósitos do FNT, preconiza a negociação coletiva tanto no setor privado, quanto no público, incentivando a arbitragem para a resolução de conflitos no âmbito das relações trabalhistas (BRASIL, 2005). O fato de a reforma sindical ter assumido um status prioritário no governo Lula, ao ser prontamente encaminhada para votação no legislativo, causou certo descontentamento nos setores industriais, uma vez que estes ansiavam primeiramente por uma reforma de caráter efetivamente trabalhista e não unicamente sindical. De acordo com Paulo Skaff – presidente da FIESP no período considerado – uma grande mobilização deveria ser feita por parte dos empreendedores, com a finalidade de demonstrar que a reforma sindical deveria ser concomitante à trabalhista. Nas palavras de Jorge Gerdau Johanpeter, um dos mais influentes empresários brasileiros, as empresas no momento precisariam “de funcionários valorizados e não de funcionários politizados”6. “Babá” (PA), João Fontes (SE) e Luciana Genro (RS) foram considerados a ala “rebelde” do partido e expulsos por votarem contra a polêmica proposta. 6 O posicionamento do empresariado brasileiro diante da proposta da reforma sindical que expressamos neste trabalho foi retirado da reportagem “Indústria quer barrar reforma sindical no Congresso” do jornal Folha de São Paulo, em matéria publicada no dia 15 de março de 2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u94393.shtml. Acessado em: 15 fev. 2016. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u94393.shtml 25 Uma observação imediata do posicionamento dos setores do empresariado brasileiro pode levar ao equívoco de se supor que a reforma sindical resultaria em benefícios aos trabalhadores, pois os empresários se posicionaram contra as modificações que tal reforma traria ao âmbito das relações de trabalho. Entretanto, uma análise crítica sobre esta reforma denota o engodo existente por trás das modificações das leis sindicais. Galvão (2007) destaca que a reforma sindical limitaria a liberdade e autonomia dos sindicatos, devido à intervenção estatal direta nas organizações sindicais: A intervenção do Estado ocorre em diversos aspectos: em primeiro lugar, por meio do estabelecimento de rígidos critérios de representatividade para que as entidades sindicais possam adquirir existência legal. Essas exigências compreendem um número mínimo de filiados que é fixado, no caso do sindicato de trabalhadores, em 20% de sua base de representação. Em segundo lugar, a intervenção estatal se dá por meio da atribuição de personalidade sindical aos que preencherem os requisitos de representatividade: é o Estado, por meio do Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT) – cuja criação constava do projeto e, posteriormente, foi instituída pela MP 294/2006, que veio a ser rejeitada – que reconhece oficialmente as entidades sindicais. Em terceiro lugar, a intervenção estatal se manifesta através da definição de um estatuto padrão para os sindicatos com direito de representação exclusiva. (GALVÃO, 2007, pp. 13-14) Ademais, a autora assevera que esta série de critérios não são verdadeiramente efetivos no que tange à representatividade dos trabalhadores por parte dos sindicatos, pois a forma de intervenção estatal presente nesta relação impõe limites que determinam a maneira como os trabalhadores devem se organizar. Esta reforma favoreceria o estabelecimento de acordos entre a cúpula dos sindicatos – que centralizariam o poder decisório – e a patronal. Mediante este fato, a reforma sindical poderia facilitar a reforma trabalhista, tão esperada pelos empresários brasileiros, ao invés de impedi-la7 (GALVÃO, 2007, p.15). Neste debate é importante destacar a ocorrência de uma série de discussões a respeito da revisão e flexibilização das leis trabalhistas. Embora não tenha ocorrido grandes alterações em termos de uma efetiva reforma trabalhista durante o governo Lula, o referido presidente chegou a defender uma mudança na CLT, alegando que o panorama das relações de trabalho na atualidade seria outro, distinto do que vigorava em 1943. Lula enfatizava que as mudanças que defendia não correspondiam a uma 7 Devido à sua característica de emenda constitucional, a PEC 369/05 ainda não foi aprovada, mantendo-se em tramitação no Congresso Federal. 26 flexibilização das leis trabalhistas, mas sim a uma ampliação de direitos com a criação de mecanismos de combate ao trabalho informal, com a finalidade de desburocratizar e retirar a oneração de contratações informais8. No discurso governamental as reformas trabalhistas seriam um modo de incluir e assegurar direitos trabalhistas àqueles que não pertencem ao mercado de trabalho formal, não significando a retirada de direitos dos trabalhadores abarcados pela lei. Como contra-argumento desta posição, destacamos as observações de Galvão (2007) a respeito dos infortúnios que a flexibilização das leis trabalhistas traz à classe trabalhadora. A autora cita a lei 10.748/2003, a lei do Primeiro Emprego9, que propugna um contrato de trabalho limitado a no mínimo 12 meses, e questiona se tal medida seria uma forma de solucionar superficialmente as taxas de desocupação por meio da flexibilização dos contratos de trabalho. Ademais, Galvão também menciona a lei 1.1196/2005, que permite a contratação de prestadores de serviços enquanto pessoas físicas, e a lei de falências como exemplos de medidas promovidas pelo governo Lula na contramão dos direitos trabalhistas, medidas que favoreceriam a precarização das condições de trabalho10. Embora com uma aparência progressista, uma vez que apregoa a noção de inclusão dos setores formalmente excluídos do mercado de trabalho, a proposta de flexibilização das leis trabalhistas tem princípios claramente neoliberais, pois se fundamenta no combate aos direitos universais. Isto incide na fragmentação da classe trabalhadora: são leis “especiais” para tipos “especiais” de trabalhadores. Implicitamente a reforma trabalhista inculca nos trabalhadores “desprotegidos” pela universalidade das leis trabalhistas a ideia de que a desigualdade social, o desemprego e a informalidade são resultado da proteção excessiva concedida aos 8 Estas afirmações encontram-se na reportagem “Lula afirma que CLT precisa ser flexibilizada” no jornal O Estado de São Paulo, referente à edição do dia 18/05/2007, Nacional, p. A12. Disponível,em:http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/327604/noticia.htm?sequence=1. Acessado em: 15 fev. 2016. 9 A Lei do Primeiro Emprego abrange a parcela da população entre 16 e 24 anos, faixa etária na qual o desemprego atinge um maior índice. 10 Segundo a autora, a lei 11.196/2005 teria institucionalizado “ (...) o que antes era uma forma de burlar os direitos trabalhistas, pois possibilita a dissimulação da existência de vínculo empregatício. Além de isentar-se do pagamento de férias, 13º salário, FGTS, horas extras, aviso prévio, o empregador transfere ao empregado contratado como pessoa jurídica a responsabilidade de recolher os impostos decorrentes de sua atividade e de contribuir integralmente para a previdência. ”. Com relação a lei de falências, esta assume a característica de outro contrassenso, uma vez que em caso de falência de uma empresa, as dívidas trabalhistas priorizadas seriam as de até 150 salários mínimos, além de não haver garantia de estabilidade para os empregados durante o processo de uma possível recuperação da empresa. (GALVÃO, 2007, pp. 7-8). http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/327604/noticia.htm?sequence=1 27 trabalhadores em regime de CLT. O efeito deletério desta combinação de fatores abala a solidariedade de classe, favorecendo o avanço no desmonte dos direitos trabalhistas garantidos pela Constituição (GALVÃO, 2007, p. 11). Neste debate é importante ressaltar que mesmo tomando e discutindo medidas contrárias e prejudiciais à classe trabalhadora, o vínculo estabelecido pelo governo em questão para com estes setores não foi completamente esgarçado. O movimento sindical, por exemplo, manteve seu apoio ao governo Lula, agindo de maneira titubeante frente às questões mais polêmicas. Observemos a seguir alguns elementos que denotam como o governo Lula lidou com os movimentos pertencentes à classe trabalhadora organizada. 1.3 – O governo Lula e os movimentos sociais Como anteriormente mencionado, o Partido dos Trabalhadores foi fruto do movimento operário que conduziu as grandes greves do ABC paulista no final da década de 7011. A intensa mobilização e a postura atuante dos trabalhadores neste período resultaram no que se convencionou chamar de “novo sindicalismo”. Sinteticamente, podemos dizer que a novidade consistia no posicionamento combativo das lideranças sindicais frente às demandas e reivindicações dos trabalhadores, numa atuação totalmente desvinculada do Estado, algo distinto da forma vigente de atuação sindical até aquele momento. Num contexto marcado pela repressão militar, as lutas operárias ultrapassavam o campo das reivindicações econômicas, resultando em uma mobilização de caráter político. Discussões sobre direitos e cidadania passaram a compor a agenda das lideranças sindicais e das bases operárias. Os trabalhadores começaram a reconhecer a sua importância enquanto agentes políticos. Neste processo inicia-se o debate entre as lideranças do novo sindicalismo de que somente a atuação sindical não seria suficiente para maiores avanços políticos e surge a ideia da necessidade de organizar um partido para catalisar esta mobilização (KECK, 2010). Estavam lançadas as bases para o surgimento do Partido dos Trabalhadores. 11 Embora o setor de vanguarda das greves citadas localizava-se na região metropolitana de São Paulo, as mobilizações de trabalhadores se estenderam por todo o país. No ano de 1979 as greves se alastraram por quinze estados, indo além do setor metalúrgico, mobilizando trabalhadores dos setores de serviços urbanos, da indústria têxtil, da mineração, da construção civil, professores, bancários e até mesmo trabalhadores agrícolas (KECK, 2010, p. 101). 28 Posteriormente ao lançamento do PT, toda a efervescência e mobilização resultante desta nova postura sindical fomentou a criação de uma central que seria responsável por reunir todos os sindicatos combativos e organizar os trabalhadores: no ano de 1983 surge a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que no decorrer dos anos viria se tornar a maior central sindical da América Latina. Destaca-se que neste mesmo contexto de ascensão das lutas operárias, num panorama mais amplo de resistência e mobilizações por demandas democráticas que ocorriam no país, surge o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984. De acordo com Keck (2010) a relação entre o PT e o movimento sindical é complexa e difícil de ser analisada, pois não havia um vínculo institucional entre os dois. Entretanto, existia uma relação informal entre o partido e os sindicatos agregados pela CUT. O mesmo pode-se dizer do MST: embora autônomo e com maior abrangência pelo fato de sua pauta de reivindicação pela reforma agrária impactar o conjunto da sociedade brasileira (FONTES, 2003), é possível observar uma grande aproximação do movimento com o Partido dos Trabalhadores. Interpretamos este vínculo existente entre o PT e os movimentos sociais como resultante de uma conjuntura de lutas e reivindicações populares que foram condensadas e agregadas pelo referido partido em sua forma originária. O apoio dos movimentos sociais ao PT consistia na crença de que este poderia conduzir politicamente as demandas das classes dominadas, crença esta derivada do fato de que estes movimentos participavam efetivamente do partido. Durante a campanha eleitoral de 2002, ao discursar sobre a priorização das questões sociais como a tão almejada reforma agrária e o prometido crescimento com distribuição de renda, o PT recorria ao maciço apoio dos movimentos sociais. E estes depositavam suas esperanças na ascensão de Lula ao Executivo Federal. Contudo, a vitória de Lula não resultou numa efetiva vitória para a classe trabalhadora, o que se evidenciou com a escolha de uma equipe econômica com nítido caráter neoliberal para conduzir o seu governo. O espraiamento do neoliberalismo e da reestruturação produtiva que ocorreram no Brasil durante a década de 90 deterioraram sobremaneira a situação de trabalho e as condições de vida da classe trabalhadora e o governo Lula não reverteria totalmente este processo. A CUT, por sua vez, após passar por sucessivas transformações durante a década de 90, aderiu ao sindicalismo propositivo, aproximando-se cada vez mais do 29 sindicalismo de resultados da Força Sindical, assumindo um posicionamento conciliatório diante das reivindicações das classes trabalhadoras e dos interesses patronais (GALVÃO, 2009). A combatividade de outrora da Central Única dos Trabalhadores cedeu espaço para a cautela ao realizar críticas às medidas governamentais. Para exemplificar esta questão, destacamos o recuo da Central frente à polêmica reforma da previdência implementada pelo governo Lula: A situação é completamente diferente num governo que a CUT considera seu aliado: a proximidade entre a central e o partido afastou a CUT de manifestações e críticas ao governo, mesmo quando este ameaça direitos dos trabalhadores. Isso fica claro quando se observa a posição que a central assumiu em relação à reforma da previdência, implementada em 2003. Essa reforma gerou grande insatisfação nos servidores públicos, contrários à taxação dos inativos, ao fim da aposentadoria integral e da paridade entre ativos e inativos, bem como à criação de fundos de pensão. Embora a cúpula da central criticasse alguns pontos da reforma, como a taxação dos inativos, e fosse favorável a um benefício de valor mais elevado e a uma previdência complementar pública, procurou preservar o governo de qualquer desgaste, opondo-se à greve que havia sido convocada por entidades de servidores, muitas delas ligadas à CUT, e defendendo, em seu lugar, a negociação dos pontos polêmicos. (GALVÃO, 2009, p. 182) De acordo com Mattos (2003), em sua trajetória, a CUT teria optado pela institucionalização, uma vez que: [...] a Central que nasceu da crítica ao sindicato oficial, à burocracia, à perspectiva corporativista, ao controle do Estado sobre os sindicatos, à estrutura criada na época de Vargas não só se adaptou a essa estrutura (...) como também criou novos vínculos institucionais através da opção por participar de fóruns de gestão de recursos públicos, muitas vezes recursos dos próprios trabalhadores, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou mesmo o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)12. Todavia, embora o movimento sindical de caráter combativo tenha se afastado de seus princípios originais durante a década de 90, Boito Jr. e Marcelino (2010) apontam a existência de uma grande mobilização por parte dos sindicatos durante a década de 2000, período que abarca sobretudo o governo Lula. De acordo com os autores, o sindicalismo neste contexto foi um importante agente na política nacional, ao passo que ao apoiarem o governo em questão, recebiam o reconhecimento enquanto força política aliada, o que proporcionava a interlocução entre os sindicatos 12 Trecho referente à entrevista de Marcelo Badarós Mattos sobre o papel da CUT durante o governo Lula In. Demier, F. As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil. Rio de Janeiro: Bom Texto Editora, 2003. pp. 90-93. 30 e o governo. Neste processo houve a política de recuperação do salário mínimo, a redução do desemprego, o reajuste salarial dos servidores públicos – setor que promoveu diversas greves durante o governo Lula – além da reativação dos concursos públicos (BOITO JR., 2013). Deste modo, podemos afirmar que o governo Lula não virou as costas para as demandas dos setores da classe trabalhadora organizados no movimento operário. A contradição residia no fato de que o sindicalismo que outrora tinha como princípio ser desatrelado ao Estado, ousando ultrapassar os limites das reivindicações meramente econômicas, agora encontrava-se atrelado ao Estado, consistindo numa das principais bases de apoio ao governo em questão, atendendo as reivindicações das classes dominadas nos limites do possível dentro da lógica do capitalismo brasileiro. Outro ponto que merece destaque no âmbito deste debate sobre a relação política do governo Lula com os movimentos sociais, é a forma sobre como este governo lidou com a antiga bandeira da reforma agrária, apregoada outrora pelo PT, fator correspondente ao vínculo do partido com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Após assumir a presidência, o governo Lula criou o II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA), cujas principais metas seriam implantar, num prazo de cinco anos, 500 mil novos assentamentos, regularizar 500 mil posses, assentar mais de 150 mil famílias, além de atuar na demarcação de terras quilombolas. Todavia, passados cinco anos, o governo Lula teria assentado apenas 163 mil famílias em novos assentamentos, 30% da meta proposta no II PNRA, e regularizado a situação de 113 mil famílias, correspondendo a 33% da meta proposta13. Oliveira (2008) aponta que durante o governo Lula as medidas direcionadas à reforma agrária ou foram realizadas em áreas que não teriam ligação com o agronegócio, ou foram implementadas de maneira compatível à expansão do agribusiness. Deste modo, embora a esperança depositada na eleição de Lula como presidente fosse a de que a tão almejada e necessária reforma agrária fosse realizada, a fim de romper com os entraves históricos no desenvolvimento econômico e social 13 Realizando esta problematização, Oliveira (2008) destaca que o MDA/INCRA, por meio da divulgação de dados confusos e contraditórios, divulgam que no período de 2003-2007 foram assentadas um total de 448.954 famílias. Todavia, o autor refuta estes dados, ao passo que estes números englobam tanto a relação de beneficiários antiga e aos assentamentos referentes à regularização fundiária, quanto a relação de beneficiários novos. Ao desmembrar estes dados, o autor demonstra que os dados concretos da política de reforma agrária do governo Lula estão aquém do proposto no II PNRA. 31 brasileiro, tal esperança foi diluída diante da complacência do governo petista para com os agronegocistas. Nos anos iniciais do governo Lula, o MST teria identificado o caráter conservador assumido pelo PT no que se refere ao favorecimento do agronegócio, em detrimento de uma efetiva política de reforma agrária. Conquanto, esta conclusão por parte do movimento não teria sido suficiente para que o apoio a Lula fosse retirado. A hipótese para tal fato, de acordo com Barreira (2014), consiste no crescimento da renda – por meio das políticas compensatórias – e do emprego, verificados a partir de 2006. Assim, setores que compõem o MST, sobretudo a direção nacional do movimento, passaram a acreditar na postura “neodesenvolvimentista” por parte do governo Lula e as críticas desferidas ao modelo econômico foram substituídas por críticas ao modelo de gestão agrícola vigente14. Barreira (2014) ainda destaca que as políticas sociais focalizadas foram importantes para a contenção dos movimentos sociais por parte do governo, na medida em que certos benefícios às classes populares foram concedidos. Ademais, a manutenção do apoio ao governo Lula por parte do movimento camponês também pode ser justificada pelo implemento da ampliação do crédito à agricultura familiar com baixas taxas de juros, por meio da ampliação da função do PRONAF. Isto posto, podemos afirmar que não houve um distanciamento factual entre o governo Lula e os movimentos sociais, movimentos estes que sempre foram a principal base de apoio do Partido dos Trabalhadores durante as décadas de 80 e 90. No contexto após a eleição de Lula da Silva como chefe do Executivo, em 2002, o que se observou foi outra forma de empenho para a manutenção do apoio pelos movimentos sociais. A interlocução foi um dos pontos centrais da relação que foi construída entre governo e movimentos sociais, numa forma de reiterar o vínculo existente entre o Partido dos Trabalhadores (agora como partido da situação) e os movimentos populares. Todavia, as ações governamentais de caráter prático se mostraram muito aquém das bandeiras levantadas pelo PT em seus primeiros anos. Com relação ao MST, as políticas via PRONAF foram de grande importância, porém abarcaram apenas uma parcela do movimento camponês, enquanto outros setores mantiveram-se marginalizados e dependentes dos programas de renda 14 BARREIRA, M., Movimentos sociais e reforma agrária: um balanço crítico, In. Revista Outubro, ed. 22, 2014. pp. 73-74. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/movimentos-sociais-e-reforma- agraria-um-balanco-critico-dos-governos-lula-e-dilma/. Acessado em: 24 abr. 2016. http://outubrorevista.com.br/movimentos-sociais-e-reforma-agraria-um-balanco-critico-dos-governos-lula-e-dilma/ http://outubrorevista.com.br/movimentos-sociais-e-reforma-agraria-um-balanco-critico-dos-governos-lula-e-dilma/ 32 mínima. O movimento operário vinculado às principais centrais sindicais do país, por sua vez, embora tenha sido contemplado por uma série de medidas que favoreceram os interesses imediatos da classe trabalhadora organizada, viu-se estritamente atrelado ao Estado, fator limitador para o desenvolvimento da luta política desta fração de classe. O vínculo entre o PT e os movimentos sociais foi mantido, entretanto, com nuanças distintas da sua proposta de outrora, uma vez que as políticas que foram efetivadas pelo governo Lula em prol destes setores organizados mantinham-se nos limites impostos pelos interesses políticos das frações dominantes. 1.4 – Os programas sociais de transferência de renda Indubitavelmente as ações mais marcantes do governo Lula figuraram no campo dos programas sociais destinados às classes populares, sobretudo à sua parcela mais pauperizada. Contudo, estas políticas carregam em si polêmicas e contradições no que se refere à abrangência e efetividade de tais medidas diante da imensa desigualdade social brasileira. De acordo com a literatura que pensamos ser conveniente enquadrar na perspectiva governista, os anos em que Lula esteve à frente da presidência da República foram anos de mudanças e avanços democráticos. Milhares de brasileiros teriam mudado suas condições de vida, saindo da faixa de miséria mediante as políticas sociais desenvolvidas pelo PT. Já as abordagens que realizam uma análise crítica deste tema destacam que as políticas sociais do governo Lula, mesmo que trazendo benefícios reais às classes populares, mantiveram-se nos limites da lógica neoliberal devido às suas características de assistencialismo, focalização e inclusão via mercado. No Brasil, na década de 90, a extrema pobreza e a fome crônica mostravam- se como problemas que necessitavam ser superados. No ano de 1999 mais de um quarto da população brasileira (27,4%) vivia abaixo da linha da pobreza definida pelas organizações mundiais. Deste montante, a maior parte se concentrava nas regiões Norte e Nordeste: 36,2% e 48,8%, respectivamente, sobretudo nas áreas rurais. Projeções realizadas na época indicavam que, se nenhuma medida efetiva fosse realizada, a desnutrição infantil no país persistiria por um longo período de tempo, 33 existindo por mais dez anos na zona urbana do Nordeste, vinte e oito anos na zona urbana da região Norte, trinta e dois anos nas áreas rurais do Centro-Sul e por um período maior que sessenta e dois anos na zona rural nordestina (MONTEIRO, 2003). No ano de 2003 o governo Lula cria o Programa Fome Zero com o objetivo de combater a fome e suas causas estruturais, buscando garantir a segurança alimentar da população mais pobre. O Fome Zero constituiu-se enquanto um conjunto de trinta programas que visavam solucionar as causas imediatas e oriundas da insegurança alimentar no país. Vale destacar que este programa condensou outros programas de renda mínima como a Bolsa Escola, Cartão Alimentação, Auxílio Gás, entre outros, já existentes no governo Cardoso, porém agora centralizados numa única agência: o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A unificação dos programas teve o intuito de aumentar a eficácia da distribuição de renda, acabando com a distribuição desigual de renda entre as famílias que faziam jus aos benefícios. O Programa Bolsa Família teve sua origem no Programa Fome Zero. Foi implementado pelo governo Lula em outubro de 2003 e seus fundamentos seriam o combate à extrema pobreza e exclusão social, promovendo a melhora na qualidade de vida das famílias em situação de pobreza crônica. Assim, tornou-se o programa social do governo petista, por excelência. Para as famílias receberem o benefício, além de comprovar a carência15, devem acompanhar a saúde e o estado nutricional de seus filhos, bem como matricular e acompanhar a frequência escolar das crianças que cursam o ensino fundamental. De acordo com os fundamentos do programa, tais critérios tinham o intuito de promover o rompimento do ciclo da pobreza para as gerações futuras, por meio de oportunidades que visem à inclusão social. Segundo Ananias (2010), políticas públicas como o programa Bolsa Família promovem a superação da falsa dicotomia entre crescimento econômico e 15 Até o impeachment da presidenta Dilma, golpe parlamentar que colocou fim ao seu segundo mandato, os parâmetros do Bolsa família consistiam em: a) benefício básico para famílias com renda de até R$ 77,00 per capita mensais; b) benefício variável de R$ 35,00 por beneficiário, para famílias com renda per capita de até R$ 154,00 por pessoa, cujos membros sejam gestante, nutrizes e crianças de 0 a 15 anos mediante identificação e acompanhamento destes últimos na área de saúde local , bem como adolescentes na faixa etária de 16 a 17 anos regularmente inseridos na rede educional e com frequência escolar comprovada e c) famílias em situação de extrema pobreza, com renda per capita inferior a R$ 77,00 per capita tem direito ao benefício básico e ao benefício variável. As normas para a elegibilidade do programa pautam-se em um critério de renda, que define famílias pobres e extremamente pobres. As famílias que têm interesse em participar do programa devem se cadastrar no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e os municípios e o Distrito Federal são os responsáveis pela realização do cadastramento. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Bolsa Família: O que é – Benefícios. Disponível em http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia/o-que-e/beneficios/beneficios. Consultado em: 14 mai. 2016. 34 desenvolvimento social, ao garantirem certa dignidade humana à população que faz uso desse benefício, associadas à sustentabilidade do crescimento econômico. O consumo deste setor mais pauperizado da população passa a aquecer as economias locais e regionais. Em uma análise da formação histórica da pobreza no Brasil, Weissheimer (2006) avalia que décadas de desigualdade social, bem como concentração de renda, configuraram uma profunda violência institucional e não-institucional16. Ressalta também que os dados demonstram que a grande maioria da população brasileira em situação de extrema vulnerabilidade social são jovens na faixa dos 15 aos 24 anos, membros de famílias com renda per capita igual ou inferior a até um quarto do valor do salário mínimo. Deste modo, o programa Bolsa Família viria para colaborar com a superação da desmedida desigualdade social do país. De acordo com Mercadante (2010), o programa Bolsa Família foi o mais exitoso nos termos do combate às situações de pobreza, por melhorar de maneira imediata a vida das famílias beneficiárias, bem como por melhorar o acesso destas aos serviços básicos de saúde, educação e assistência social. Além do mais, o autor, figura notável do PT, destaca que o programa contribuiu para a geração de renda e melhoria do bem-estar das camadas mais pobres da população brasileira. O fato de que o referido programa promoveu melhoras na vida das populações mais pobres do país é inegável, como ilustrado pela pesquisa de Rego (2013), realizada com famílias beneficiárias do Nordeste. A autora entrevistou uma ampla gama de mulheres17 de diversos estados, como Alagoas, Piauí, Maranhão e Recife, e constatou que o benefício é direcionado para a obtenção de alimentos. De uma maneira geral, a avaliação das entrevistadas sobre o Bolsa Família é positiva, todavia, as reclamações centram-se no valor baixo do benefício: De modo geral, essas mulheres, ao mesmo tempo em que louvaram o BF, reclamaram que seu valor é insuficiente. Mas reconheceram que com o valor atual podiam comprar comida para a família e já não 16 O autor faz uma avaliação de como a pobreza e a desigualdade social no Brasil influem diretamente nos quadros de violência e criminalidade. O comportamento criminoso, na leitura apresentada pelo autor, encontra seu fundamento na desigualdade social. Apoiando-se na pesquisa de Enid Rocha e Luseni Maria de Aquino, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ( IPEA ), Weissheimer expressa o fato de que a violência cometida por jovens não é causada unicamente por necessidades materiais, mas também devido a sentimentos de injustiça e não reconhecimento social, potencializados pela convivência com pessoas e ambientes diametralmente opostos à realidade que pertencem. (2006, pp. 19-20) 17 Destaca-se que a titularidade do Bolsa Família é concedida diretamente às mulheres. 35 passavam tanta “necessidade” (termo este muito usado na sua linguagem para falar de carências e privações. (REGO, 2013, p. 96). Embora o Bolsa Família tenha seu efeito positivo, diversas são as críticas existentes quanto à forma deste programa. Os apontamentos de Filgueiras e Gonçalves (2007) acerca das políticas sociais do governo Lula são de grande valor para uma leitura crítica sobre a gestão petista. Primeiramente, os autores estabelecem uma diferenciação entre políticas sociais de governo e políticas sociais de Estado, destacando que as primeiras são oriundas de forças políticas partidárias que ocupam em determinado momento o aparelho de Estado; já as segundas são associadas aos direitos sociais garantidos por meio da Constituição, tornando-se direitos de cidadania. A diferença fundamental entre essas duas formas de medidas sociais está no fato de que as políticas sociais de governo são vulneráveis a cortes orçamentários, alterações e/ou extinção de programas mediante eventuais mudanças de governo e orientação política e as políticas sociais de Estado, para serem extintas ou modificadas, demandam uma operação política mais complexa e difícil, através da proposição e aprovação de emendas constitucionais. Considerando estas observações, estes autores explanam sobre aquilo que denominam de “lógica perversa” das políticas sociais focalizadas. Por meio da implementação de políticas sociais – sobretudo das “de governo” – as questões referentes à desigualdade social deslocam-se do âmbito das relações capital-trabalho e rumam para o âmbito individual da classe trabalhadora, ou seja, deixam de ser questões estruturais, tornando-se questões isoladas. A pobreza torna-se exógena aos mecanismos econômicos e sociais, sendo desconsiderados os fatores relativos à propriedade privada e poder, inerentes ao sistema capitalista. Este conceito de pobreza foi criado e difundido pelo Banco Mundial, de acordo com a noção de que a dificuldade e diferença de obtenção de capital humano está na desigualdade entre os indivíduos e família – maior ou menor acesso à saúde e educação, por exemplo (FILGUEIRAS e GONCALVES, 2007, p. 144). Nesta lógica, a pobreza (variável dependente) resultaria da baixa escolaridade (variável explicativa), devido à falta de estímulo em investimento no capital humano/escolaridade. Para a superação da desigualdade, bastaria a atuação das políticas focalizadas. A opção pela focalização exige um gasto reduzido da receita federal, se comparado ao investimento necessário para a implementação de políticas universais. E, de acordo com Filgueiras e Gonçalves, mediante este formato de 36 políticas públicas, adotado pelo molde neoliberal e ratificado pelo governo Lula como ponto nevrálgico de sua política, dado o enxugamento dos gastos públicos, mais recursos são liberados para a obtenção de superávits primários, tendo como fim o pagamento da dívida pública. O conjunto de políticas sociais vive há anos o embate entre duas correntes com orientações ideológicas e teórico-metodológicas distintas. Uma vertente vê avanços na redistribuição das políticas sociais que começaram a ser implantadas a partir da Constituição de 1988, com caráter universal; outra atribui às políticas sociais e aos gastos públicos ali investidos a causa dos inúmeros males da economia brasileira (FILGUEIRAS E GONÇALVES, 2007, pp. 146-147). A forma pela qual buscou-se superar a desigualdade social, pelo governo Lula também, viria a atuar no sentido de camuflar e ignorar as causas estruturais da pobreza, numa negação da existência de classes sociais no Brasil. Assim, conceitos inapropriados são criados para se definir ricos e pobres. Os ricos são identificados a partir de uma “linha de riqueza”, através de uma renda mensal familiar per capita baseada no total de R$ 2.170,00. Já os pobres e indigentes são incluídos numa estimativa de renda per capita de ½ ou ¼ do salário mínimo. Por este viés, a definição de linha de pobreza com valores bastante reduzidos decorre do objetivo principal de adequar a seguridade social nos limites da focalização das políticas públicas, tendo como meta a redução dos gastos (FILGUEIRAS E GONÇALVES, 2007, p. 149). O Programa Bolsa Família está imerso em controvérsias e contradições, devido ao seu formato e abrangência. Porém, outra questão polêmica em torno do referido programa consiste na criação de um vínculo entre os seus beneficiários e a imagem pública de Luís Inácio Lula da Silva. Esta questão, certamente, é de grande relevância e necessita ser apreciada. Entretanto, é preciso ressaltar que o inegável vínculo que se constituiu entre Lula e estes setores sociais não reside unicamente em uma identificação pessoal, uma vez que elementos concretos embasam esta relação. 1.5 – O vínculo do presidente-operário com as classes populares No pleito eleitoral de 2002, as variáveis que ilustravam o perfil daqueles que votaram em Lula correspondiam ao eleitorado vinculado à base originária do Partido dos Trabalhadores: o setor operário, sobretudo o localizado na região Sudeste do 37 país, com renda de até 5 salários mínimos. Todavia, após seu primeiro mandato, este perfil teria mudado. Nas eleições de 2006 os eleitores com renda de até 2 salários mínimos corresponderam a 55% dos votantes em Lula, 40% alocados na região Nordeste do país. Destaca-se o fato de que este percentual de eleitores ultrapassou a somatória entre aqueles que possuíam uma maior renda salarial18. De acordo com Singer (2012), o fato de o maior número de votantes em Lula no pleito presidencial de 2006 se concentrar na base da pirâmide social brasileira foi resultado da melhora nas condições de vida destes setores populares: por meio dos programas sociais do governo Lula, com destaque para o Bolsa Família, mais de 12 milhões de famílias teriam saído da linha da extrema pobreza19. Deste modo, esta fração de classe, que o autor denomina como “subproletariado20”, teria se tornado o principal sustentáculo do governo Lula. Singer ainda destaca que o sucesso obtido pelo governo Lula, para além da manutenção da ortodoxia econômica, foi ter focado na realização das demandas do subproletariado, fator que fomentou a construção de uma política de aquecimento do mercado interno. Nas palavras do autor: No entanto, se tivesse se limitado a conceder ao capital as garantias necessárias para manter a estabilidade, Lula só repetiria o sucesso do primeiro mandato de FHC [...] O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde a nada mais nada a menos que a realização de um completo programa de classe (ou fração de classe, para ser exato). Não da classe trabalhadora organizada, cujo movimento iniciado no final da década de 1970 tinha por bandeira “a ruptura com o atual modelo econômico”, mas o da fração de classe que Paul Singer chamou de “subproletariado” ao analisar a estrutura social do Brasil no começo dos anos 1980. (SINGER, 2012, pp. 76-77. Grifos do autor.) 18 De acordo com pesquisa realizada pelo IBOPE, disponível na 2ª edição do “Giro Ibope”, os eleitores de Lula com renda de mais de 5 salários mínimos corresponderiam a um total de 12%, e os votantes com rendas de 2 a 5 salários mínimos, 27%. Ademais, a região Sudeste, lugar de origem do PT, possuía 37% dos eleitores neste pleito, valor inferior ao contabilizado na região Nordeste. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/giroibope/2edicao/atualidades.htm. Consultado em: 22 mai. 2016. 19 O autor também destaca que outros setores populares, não tão pauperizados, também teriam aumentado o seu padrão de consumo, devido aos ganhos salariais e empréstimos consignados (SINGER, 2012, p. 11-12.) 20 Termo criado por Paul Singer para analisar a estrutura social do Brasil no início dos anos 1980. Para o autor o subproletariado seriam aqueles trabalhadores que oferecem sua força de trabalho sem ter quem os assegure um preço digno para que reproduzam suas condições, estando também apartados da efetiva luta de classes. (SINGER, P. Dominação e desigualdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981, p. 22.). http://www4.ibope.com.br/giroibope/2edicao/atualidades.htm 38 Assim, o programa realizado por Lula, associado à sua recepção por parte setores mais pauperizados da população, teriam engendrado o fenômeno do “lulismo”. O lulismo seria, então, a representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue se constituir enquanto classe social mediante as próprias formas de organização. Nesta relação, o subproletariado se empolga com a expectativa de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade sem ameaçar a ordem estabelecida (SINGER, 2012, p. 52). Para fundamentar o fenômeno do lulismo, Singer se apropria do termo “bonapartismo” ao estabelecer uma comparação entre o subproletariado durante o governo Lula e os camponeses parcelares sob o governo de Luís Bonaparte. A justificativa para esta fundamentação e comparação reside no fato de que tanto o subproletariado (base lulista), quanto os camponeses parcelares (base bonapartista) são apartados da luta política de classes por serem desorganizados e não se reconhecerem enquanto classes sociais. Cabe aqui mais uma citação do autor: As classes podem transformar-se em classes para si, isto é, conscientes de seus interesses e dispostas a lutar por eles no plano da política. No caso de classes em si que não logram se unificar e conscientizar-se para a ação coletiva, tendem a aparecer na luta política como massa, estruturada de fora para dentro, como acontece em O 18 Brumário. As classes fundamentais, por serem portadoras de um projeto histórico, como é o caso da burguesia e do proletariado no capitalismo, tenderiam a se organizar enquanto classes; as demais, a surgir na política como massa. O funcionamento da consciência, nas frações de classe que aparecem como massa, assemelha-se ao da pequena burguesia, isto é, seriam incapazes de perceber o contexto real em que estão situadas, pois este lhes é adverso. (SINGER, 2012, pp. 23-24) Contrapondo-se a esta explicação de Singer, Boito Jr. (2013) aponta como problemática a comparação entre o lulismo e o bonapartismo francês. Para Boito Jr., mesmo de maneira difusa e desorganizada, o subproletariado brasileiro aspira à distribuição de renda, sendo esta uma demanda progressista e popular e não conservadora, se comparada às aspirações dos camponeses parcelares franceses do século XIX que serviram de base a Luís Bonaparte. Acreditamos que esta crítica à afirmação de Singer é coerente, uma vez que os camponeses parcelares viram em Bonaparte a possibilidade de este restaurar a velha ordem que se encontrava ameaçada pela efervescência da luta de classes na França. Suas demandas residiam 39 na garantia da propriedade privada pelo Estado, sendo este um interesse bem distinto dos interesses do subproletariado brasileiro. Nas palavras de Marx (2011, p. 144): A dinastia Bonaparte não representa o camponês revolucionário, mas o camponês conservador; não o camponês que se projeta para além da parcela, mas, antes, aquele que quer consolidá-la; não o povo do campo que quer subverter a velha ordem cm a sua própria energia em aliança com as cidades, mas, pelo contrário, aquele que, apaticamente encerrado nessa velha ordem, quer ver a si mesmo posto a salvo e favorecido junto com a sua parcela pelo fantasma do Império. Essa dinastia não representa o esclarecimento, mas a superstição do camponês, não o seu parecer, mas o seu preconceito, não o seu futuro, mas o seu passado, não a sua moderna Cévennes, mas a sua moderna Vendée. Boito Jr. (2013, pp. 176-179) também critica a supervalorização dos subproletários na análise de Singer, uma vez que ao se comparar as melhorias destinadas às classes populares com os ganhos obtidos pelo capital no período considerado, é possível observar que o montante dos investimentos governamentais em políticas voltadas aos interesses populares é muitíssimo menor que o valor lucrado pelas classes dominantes. Deste modo, apesar das melhorias que ocorreram em função dos mais pobres, suas condições de vida e de trabalho ainda se mantiveram precárias, sobretudo pelas opções do próprio governo Lula em privilegiar os interesses burgueses. Como é possível notar no debate aqui exposto, embora Singer (2012) e Boito Jr. (2013) apresentem pontos dissonantes em suas reflexões, concordam que as políticas sociais implementadas pelo governo Lula fomentaram um vínculo de reconhecimento entre o referido governo e os setores para os quais tais políticas se destinam. A distinção entre estas duas abordagens encontra-se, de um lado, na interpretação de que a relação estabelecida entre o governo Lula e as classes dominadas caracterizar-se-ia enquanto uma forma de bonapartismo (Singer), e de outro, que tal relação seria uma forma de populismo (Boito Jr.). Para além das pequenas benesses materiais que garantiriam o apoio dos setores populares mais pauperizados ao governo Lula, a origem pobre do presidente em questão é citada como outro fator que colaborou para o exercício do despertar da simpatia da camada popular pobre e desorganizada ao então presidente. Marques e Mendes (2006) descrevem o governo Lula como um governo populista em um cenário neoliberal. Os autores igualmente alegam que este governo teria lançado bases para uma nova forma de apoio, fundamentada nas camadas mais pauperizadas da 40 população, as quais os programas de transferência de renda se destinam, engendrando, desta forma, um novo populismo21 na política nacional. Para fundamentarem a discussão sobre a característica do novo populismo do governo Lula, Marques e Mendes retomam criticamente os apontamentos de Francisco Weffort no que tange ao vácuo político para a emergência de uma liderança populista. Nesta problematização, enfatizam que durante a eleição de Lula não havia um vazio político que culminasse na ascensão de um governo populista, fator preponderante na conceituação da teoria populista de Weffort. O contexto em questão consistia num impasse por parte das oligarquias brasileiras, pelo fato de que estas não conseguiam ir mais longe na agenda do Banco Mundial e FMI. Deste modo, somente um representante do povo conseguiria ir além nas medidas prescritas pelas organizações mundiais, ao passo que no plano discursivo enfatizaria sua atuação em nome do povo. Assim, por intermédio do apelo à sua origem popular, além de seu passado militante em favor das lutas operárias, o ex-presidente Lula fez com que os objetivos populares se confundissem com os objetivos do capital imperialista22. Todavia, na realização de uma análise pautada no materialismo dialético, o vínculo que se estabeleceu entre Lula e as classes populares não pode ser fundamentado como expressão de mero carisma e demagogia por parte da liderança, uma vez que tal acepção assumiria uma conotação nitidamente weberiana23, que desconsidera as determinações de classes. As realizações políticas do governo Lula voltadas aos setores mais pauperizados da população são assinaladas por Boito Jr. como uma forma de populismo de caráter regressivo. O autor estabelece a diferenciação entre o novo populismo e o populismo clássico, pelo fato deste último ter apresentado um projeto desenvolvimentista e de defesa do capitalismo nacional por meio da industrialização, buscando resistir às investidas do capital imperialista, além de fomentar alguma 21 Os autores ressaltam que o termo “populismo” presente neste artigo é utilizado em sua acepção política, diferente da acepção usada na dimensão econômica: “O termo populismo aqui utilizado se funda na sua acepção política: “ação política que toma como referência e fonte de legitimidade o cidadão comum, cujos interesses pretende representar” ou “política fundada no aliciamento das classes sociais de menor poder aquisitivo” (Aurélio, 1999). Não se trata, portanto, do uso atualmente corrente na ciência econômica, em que populismo está associado ao governo que gasta mais do que arrecada. ” (MARQUES e MENDES, 2006, p. 70). 22 MARQUES,R.M. e MENDES,A., O Social no Governo Lula: a construção de um novo populismo em tempos de aplicação de uma agenda neoliberal. In. Revista de Economia Política, vol. 26, n. 1 (101), 2006, p. 71. 23 WEBER, M. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011. 41 ampliação dos direitos sociais dos trabalhadores no plano constitucional. Já o novo populismo é caracterizado como regressivo por não realizar reformas de caráter estrutural, mas sim medidas que se enquadram no âmbito do neoliberalismo, por ser compatíveis com as imposições das organizações multilaterais (BOITO JR., 2006, pp. 25-26). Contudo, ao expandirmos o foco de análise, observamos que, embora as políticas de transferência direta de renda tenham tido um enorme destaque no período considerado, o atendimento dos interesses das classes dominadas não se limitou a este tipo de política. Outras medidas foram efetivadas em função dos interesses econômicos das classes dominadas, elemento que deve ser levado em consideração neste debate. 1.6 – Para além das políticas sociais focalizadas O vínculo existente entre os estratos mais pauperizados da população brasileira, bem como de outros setores da classe trabalhadora com o governo Lula, é inegável. Assim como também é inegável o fato de que embora o referido governo tenha se afastado do programa inicial do Partido dos Trabalhadores, tomando diversas medidas impopulares e a favor das classes dominantes, outras medidas realizadas estimularam o seu recorde de aprovação popular. Neste item do trabalho, buscaremos ilustrar através de alguns dados empíricos a contemplação de certos interesses econômicos das classes populares neste período. Objetivamos, desta forma, enriquecer o debate bibliográfico que ilustra as políticas implementadas pelo governo Lula para as classes dominadas. Um exemplo a ser dado sobre as medidas implementadas pelo governo Lula responsáveis por sua ampla aprovação popular, para além das políticas sociais focalizadas, está na progressiva valorização do salário mínimo durante seus oito anos de mandato. Ao compararmos o valor de R$ 200,00 do salário mínimo em vigência no ano de 2002, último ano do governo FHC, e o total de R$ 510,00 referente ao último ano do governo Lula, chegamos à conclusão de que o salário mínimo teve um significativo aumento de aproximadamente 155% em seu valor nominal24 no período 24 O aumento real do salário mínimo durante o período considerado correspondeu a 53,6% com o desconto da inflação. Fontes: IBGE. Sistema nacional de Índices de Preços ao Consumidor. Disponível 42 citado, dos quais cerca de 112,5% ocorreu durante os dois mandatos de Lula, conforme expresso na tabela a seguir: Tabela 1 – Evolução do salário mínimo durante o primeiro e o segundo mandato de Lula Ano Valor Ano Valor 2003 R$ 240,00 2007 R$ 380,00 2004 R$ 260,00 2008 R$ 415,00 2005 R$ 300,00 2009 R$ 465,00 2006 R$ 350,00 2010 R$ 510,00 Fonte: Ministério do Trabalho e Previdência Social. Elaboração própria. Via: http://www.mtps.gov.br/salario-minimo, consultado em 22 de março de 2016. As melhoras dos índices salariais corresponderam, consequentemente, ao progressivo aumento da renda da população assalariada, figurando uma elevação de aproximadamente 25,32% da renda familiar per capita, como ilustrado no gráfico 1, em valores absolutos: Gráfico 1 – Aumento da renda familiar per capita (R$) no período de 2003-200925 Fonte:http://www.planejamento.gov.br/servicos/central-de-conteudos/publicacoes/idb-portugues.pdf., p. 12. Elaboração própria. em:http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/precos/inpc_ipca/defaulttab.shtm. Acessado em: 14 de out. 2016. 25 O período de análise limita-se até o ano de 2009 uma vez que o PNAD não fora realizado em 2010 devido à realização do CENSO no mesmo ano. 6 8 7 7 0 3 7 4 7 8 0 6 8 2 4 8 6 3 8 8 1 2 0 0 3 2 0 0 4 2 0 0 5 2 0 0 6 2 0 0 7 2 0 0 8 2 0 0 9 * Renda Domiciliar per capita http://www.mtps.gov.br/salario-minimo http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/precos/inpc_ipca/defaulttab.shtm 43 Soma-se à elevação da renda da população brasileira, que se deu por meio tanto do aumento do salário mínimo, quanto, das políticas de transferência direta de renda, a facilitação do crédito pessoal durante o governo Lula. De acordo com Mora (2015), o crédito concedido à pessoa física correspondia a 9% do PIB no ano de 2002, atingindo 21% do PIB em dezembro de 2010. A trajetória do aumento do crédito à pessoa física deve ser atribuída, principalmente, à implementação do crédito consignado, bem como ao financiamento de veículos e, sobretudo, às mudanças institucionais que facilitaram o posicionamento do sistema financeiro nacional em aumentar a oferta de crédito a estes setores. Nas palavras da autora: O crédito consignado – introduzido, em 2003, pela Lei no 10.820/20036 – possibilitou aos trabalhadores vinculados a determinados sindicatos e aos servidores públicos e aposentados o acesso ao crédito bancário a taxas de juros proporcionalmente mais baixas (que, vale frisar, ainda se mantinham elevadas, em termos absolutos), que já representavam 3,7 p.p. do PIB, em dezembro de 2010 (ou seja, um quarto dos empréstimos livres oferecidos a pessoas físicas), e explicavam o comportamento do crédito pessoal [...]. Mesmo a eclosão da crise em 2008 não reduziu o ritmo de expansão desta modalidade de crédito [...] (MORA, 2015, p. 14). Os dados ilustrados no gráfico 2 retratam a evolução tanto do crédito pessoal, quanto do crédito consignado em relação ao PIB, demonstrando um progressivo aumento destes valores durante o governo Lula. Gráfico 2 - Evolução do crédito pessoal e do consignado (dez./2004-dez./2010) - (Em % do PIB) Fonte: MORA,M., 2015, p. 16. 44 Ainda segundo Mora (2015), a implementação do crédito consignado teria repercutido tanto na taxa média de juros anual, com numa expressiva queda de 40% desta taxa ao ano. Além disso, o aumento do prazo para o pagamento dos empréstimos consignados teria reduzido o custo do crédito à pessoa física, pois com o prolongamento das prestações o valor destas também seriam reduzidos, não comprometendo expressivamente a renda daqueles que recorrem aos créditos. De acordo com os dados destacados acima, é possível observar que além dos programas sociais anteriormente mencionados – com destaque para o programa Bolsa Família – houve também a elevação real do valor do salário mínimo e a oferta de crédito para parcelas da classe trabalhadora. Estas medidas impulsionaram o consumo destes setores, proporcionando-lhes uma melhor condição de vida. Associado aos fatores supracitados houve o fortalecimento do mercado de trabalho através da expansão do número de postos de trabalho atrelados aos setores da economia que tiveram grande projeção no período. Este fator também contribuiu para a geração de emprego e ampliação da renda das camadas populares. Pochmann (2012) assevera que os novos postos de empregos formais que foram criados, mesmo correspondendo a postos de baixa remuneração, foram compatíveis para a absorção do grande excedente de força de trabalho ociosa resultando do período neoliberal posterior aos governos Lula. Os dados contidos no gráfico 3 e na tabela 2, nas páginas a seguir, ilustram estas afirmações. Gráfico 3 – Comparativo entre as décadas de 1990 e 2000 sobre a variação média anual dos postos de trabalho de acordo com a faixa de remuneração (em %) Fonte: POCHMANN, 2012, p. 31. Elaboração própria. 7,9 -0,9 -0,1 6,2 2,7 3,1 0,6 0,4 0,9 -3,3-4 -2 0 2 4 6 8 10 1990 2000 Sem remuneração Até 1,5 s.m. 1,5 a 3 s.m. 3 a 5 s.m. Mais de 5 s.m. 45 Por meio da análise dos dados ilustrados no gráfico acima é possível aferir que na década de 2000, período sob vigência do governo Lula a partir de 2002, a mais significativa variação nos postos de empregos formais ocorreu na faixa correspondente à remuneração de até 1,5 salário mínimo. Em comparação com a década de 1990, observamos a ocorrência de um pequeno crescimento nas ocupações correspondentes às remunerações maiores de 1,5 a 3 salários mínimos. Notamos também uma relevante queda nos valores referentes aos postos de trabalho não remunerados, além de um significativo declínio nos índices referentes às ocupações cuja remuneração é superior a 5 salários mínimos. Tabela 2 – Comparação da expansão de profissões com base na remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo entre as décadas de 1990 e 2000 (Em valores absolutos) 1990 2000 Setor de Serviços 489.528 6.119.193 Comércio 768.701 2.153.691 Indústria Extrativa e Construção Civil 18.016 1.998.033 Escriturários - 473.544 1.605.324 Funções Transversais -52.362 1.598.636 Atendimento ao Público 86.279 1.326.737 Fonte: POCHMANN, 2012, pp. 33-34. Elaboração própria. Ademais, observa-se que os setores que mais alocaram este crescimento do emprego foram os relativos ao setor de serviços e comércio, além da indústria ligada à construção civil e atividades extrativas. Isto reitera a afirmação de que durante o governo Lula a evolução do emprego se deu na base da pirâmide social brasileira, de maneira consubstanciada ao crescimento de setores econômicos que foram favorecidos neste período (POCHMANN, 2012). De acordo com os elementos empíricos apresentado