0 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GUSTAVO DE MELLO SÁ CARVALHO RIBEIRO DDDIIIRRREEEIIITTTOOO,,, JJJUUUSSSTTTIIIÇÇÇAAA EEE LLLIIITTTEEERRRAAATTTUUURRRAAA::: das Memórias de um sargento de milícias às Memórias do cárcere ARARAQUARA-SP 2021 1 GUSTAVO DE MELLO SÁ CARVALHO RIBEIRO DDDIIIRRREEEIIITTTOOO,,, JJJUUUSSSTTTIIIÇÇÇAAA EEE LLLIIITTTEEERRRAAATTTUUURRRAAA::: das Memórias de um sargento de milícias às Memórias do cárcere Tese de Doutorado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa Orientadora: Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel Bolsa: CAPES ARARAQUARA 2021 2 3 GUSTAVO DE MELLO SÁ CARVALHO RIBEIRO DDDIIIRRREEEIIITTTOOO,,, JJJUUUSSSTTTIIIÇÇÇAAA EEE LLLIIITTTEEERRRAAATTTUUURRRAAA::: das Memórias de um sargento de milícias às Memórias do cárcere Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa Orientador: Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel Bolsa: CAPES Data da defesa: 03/05/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel FCL - UNESP - Araraquara-SP Membro Titular: Profa. Dra. Cecília de Lara FFLCH - USP - São Paulo-SP Membro Titular: Prof. Dr. Júlio Cezar Bastoni da Silva UFC - Fortaleza-CE Membro Titular: Profa. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga FCHS - UNESP - Franca-SP Membro Titular: Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni FCL - UNESP - Araraquara-SP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 4 AGRADECIMENTOS A Babeth, Guy, Matheus, Natalia e Vô Léo, pela inspiração e pelo apoio. À minha orientadora, Profa. Dra. Maria Célia Leonel que, com dedicação e atenção, desde a iniciação científica, principiada em 2011, ao longo do TCC, do Mestrado e do Doutorado, acompanha-me na pesquisa acadêmica com valiosos ensinamentos. Aos professores que, no decurso da bela travessia de estudos, inspiraram-me e formaram meu amor pela docência: Zezé Lemos, Regina Bensassi, Regina Minchillo, Lílian Zaghi, Ailton dos Santos, Renata Soares Junqueira, Ude Baldan, Tom Pires, Guacira Marcondes, Adalberto Vicente, Juliana Santini, Márcia Zamboni e Jorge Valentim. Aos amigos, sempre presentes ao longo dessa jornada, sem os quais ela não seria possível: Moisés Romão, Larissa Costa, Binguinha Viana, Felipe Andrade, Luciana Mayumi, Vanessa Pileggi, Paula Bebber, Caio Calarga, Lucas Ravagnani, Pedro Furtado, Stéfano Stainle e Jonatan Santos. Aos alunos ingressantes nos anos de 2017, 2019 e 2020 no curso de Letras da FCL/UNESP de Araraquara, que consolidaram minha certeza na dedicação à vida docente e acadêmica. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 5 [...] quando governo quer, lei é sanfona. Autran Dourado (1999b, p.37). Que onde estiver nossa canção mesmo escravos, senhores seremos e mesmo mortos, viveremos. [...] E tudo será novamente nosso, ainda que cadeias nos pés e azorrague no dorso... E o nosso queixume será uma libertação derramada em nosso canto! - Por isso pedimos, de joelhos pedimos: Tirem-nos tudo... mas não nos tirem a vida, não nos levem a música! Noémia de Sousa (2016, p.31). Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável. Antonio Candido (1995, p.249). 6 RESUMO A justiça tem bastante relevância na prosa nacional, mas ainda são poucos os estudos dedicados a esse tema. Em vista dessa circunstância, o objetivo desta tese é verificar como a justiça brasileira é representada nos seguintes romances: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida e Memórias do cárcere de Graciliano Ramos. O fato de serem obras separadas uma da outra por um século e com modos bastante diferentes de abordar a questão da justiça - a primeira, narrativa centrada em personagens-tipo e a segunda, testemunhal - proporcionou a oportunidade para o exame de similitudes e diferenças na representação literária da justiça brasileira, levando-se em conta o contexto de cada produção. A metodologia do trabalho é a comparação. Para sua aplicação, cada obra foi minuciosamente analisada a partir de proposições teóricas tanto sobre justiça, direito e conceitos relativos a esses campos quanto sobre a composição da narrativa em suas categorias - personagens, história, narrador, focalização, tempo, espaço, linguagem - sempre relacionadas umas às outras. O resultado do exame de cada texto permitiu levantar semelhanças e diferenças em relação ao modo como o tema em pauta é neles literariamente elaborado. Para isso, lançamos mão de um embasamento teórico que pode ser resumido da seguinte forma: primeiramente, ensaios sobre os autores e suas obras, dentre os quais podemos destacar, "Dialética da malandragem" de Antonio Candido e Armas de papel de Fabio Cesar Alves; em segundo lugar, estudos sobre teorias do direito e da justiça, em que se destacam História do direito de Flávia Lages de Castro e Filosofia do direito de Paulo Nader; por último, proposições sobre a narrativa, como O discurso da narrativa de Gérard Genette e A teoria do romance de Georg Lukács. Palavras-chave: Literatura brasileira; Justiça e direito; Manuel Antônio de Almeida; Graciliano Ramos. 7 RÉSUMÉE La justice trouve une pertinence considérable dans la prose nationale, mais il y a encore peu d'études consacrées à ce sujet. Compte tenu de cette circonstance, nous avons pour objectif de vérifier la représentation de la justice brésilienne dans la littérature à partir des romans suivants: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida et Memórias do cárcere de Graciliano Ramos. Le fait qu'il s'agisse d'œuvres séparées les une d'autre pendant un siècle et avec des manières très différentes d'aborder la question de la justice - la première, narrative centrée sur les caractères types et l'autre, le témoignage - donne l'occasion d'examiner les similitudes et les différences dans la représentation littéraire de la justice brésilienne, en tenant compte du contexte de chaque production. La méthodologie du travail est la comparaison. Pour son application, chaque œuvre est minutieusement analysée à partir de prépositions théoriques sur la justice, le droit et les concepts liés à ces domaines et sur la composition du récit dans ses catégories - personnages, histoire, narrateur, focalisation, temps, espace, langue - toujours liés les uns aux autres. Le résultat de l'examen de chaque texte nous a permis de trouver des similitudes et des différences par rapport à la manière dont le sujet en question y est littéralement élaboré. Pour cela, nous avons utilisé une base théorique qui peut être résumée comme suit: premièrement, des essais sur les auteurs et leurs oevres, parmi lesquels nous pouvons souligner, "Dialética da malandragem" d'Antonio Candido et Armas de papel de Fabio Cesar Alves; deuxièmement, des études sur les théories du droit et de la justice, dans lesquelles se démarquent História do direito de Flávia Lages de Castro et Filosofia do direito de Paulo Nader; enfin, des propositions sur le récit, comme O discurso da narrativa de Gérard Genette et A teoria do romance de Georg Lukács. Mots-clés: Littérature brésilienne; Justice et droit; Manuel Antônio de Almeida; Graciliano Ramos. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................12 I JUSTIÇA, DIREITO E LITERATURA...................................................................20 1 Justiça como valor......................................................................................................20 2 Justiça e direito...........................................................................................................24 3 Justiça e direito no Brasil...........................................................................................27 4 A representação literária: memórias, autobiografia e ficção.................................33 II UM ANTECEDENTE: MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS.........42 1 Lugar da obra na literatura brasileira: da "Pacotilha" à "Dialética da malandragem"..................................................................................................................42 2 Contexto histórico e espaço social.............................................................................49 2.1 O tempo do rei...........................................................................................................49 2.2 O espaço social..........................................................................................................51 2.2.1 As classes populares...............................................................................................51 2.2.2 A movimentação das personagens: entre rixas e festas..........................................54 2.2.3 A "ausência quase total de contribuição negra".....................................................59 2.2.4 Religião: entre católicos e feiticeiros......................................................................61 2.2.5 A "praga dos ciganos"............................................................................................64 2.2.6 A administração pública.........................................................................................65 3 A variabilidade da justiça por meio das personagens.............................................67 9 3.1 Leonardo-Pataca, meirinho nada exemplar...............................................................67 3.2 O “arranjei-me” do compadre....................................................................................73 3.3 D. Maria, a judicialização das desavenças pessoais..................................................75 3.4 Chico-Juca, personificação da desordem...................................................................76 3.5 Major Vidigal, defensor da ordem, promovedor da desordem..................................78 3.6 Leonardo, malandro incorporado à ordem................................................................83 4 O narrador é juiz........................................................................................................85 III A JUSTIÇA NA OBRA DE GRACILIANO RAMOS: CRESCENTES MARCAS DE INIQUIDADE ATÉ AS MEMÓRIAS DO CÁRCERE.......................89 1 Graciliano: o estilo e as manifestações da justiça na produção romanesca.......................................................................................................................89 1.1 O inferno das relações sociais: a justiça em Caetés..................................................95 1.2 As penas de Paulo Honório: a justiça em S. Bernardo............................................101 1.3 Os "muques reduzidos" de Luís da Silva: a justiça em Angústia............................109 1.4 Um "lugar ruim": a justiça no inferno de Vidas secas.............................................113 1.5 Entre "chineladas e outros castigos oportunos": a justiça em Infância...................119 2 Memórias do cárcere: contexto histórico e recepção crítica..................................125 3 Testemunho literário da iniquidade: a voz narrativa e o homem por trás dela.129 3.1 Uma realidade inverossímil: a escrita testemunhal.................................................130 3.2 O homem por trás da voz narrativa.........................................................................132 3.3 A escrita literária: reflexões sobre a literatura.........................................................133 4 Situações kafkianas...................................................................................................136 4.1 O processo sem processo.........................................................................................136 10 4.2 A metamorfose de Graciliano..................................................................................139 5 Entre celas: construção do espaço nas Memórias do cárcere................................141 5.1 As viagens e o choque introspectivo.......................................................................142 5.2 A sombra da Colônia: no Pavilhão dos Primários...................................................147 5.3 Colônia Correcional: cerne do testemunho.............................................................153 5.4 O fantasma da Colônia: na Casa de Correção.........................................................157 6 Oprimidos e opressores: o papel das personagens nas Memórias do cárcere......160 6.1 Os oprimidos............................................................................................................160 6.1.1 Lágrimas de um advogado....................................................................................160 6.1.2 Sebastião Hora e a recusa à adaptação.................................................................163 6.1.3 Nise da Silveira.....................................................................................................164 6.1.4 Malandros.............................................................................................................165 6.1.5 Capitão Mata: o militar encarcerado....................................................................168 6.1.6 Imigrantes.............................................................................................................169 6.2 Os opressores...........................................................................................................172 IV ENTRE ORDEM E DESORDEM: A (IN)JUSTIÇA EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS E MEMÓRIAS DO CÁRCERE...................................179 1 Estrutura das narrativa: autores, narradores, história, narração e espaços......179 2 Manifestações da (in)justiça....................................................................................183 2.1 O autoritarismo policial...........................................................................................183 2.2 A administração pública..........................................................................................184 2.3 Figuras do judiciário ou essenciais à justiça............................................................186 11 2.4 Justiça pelas próprias mãos e rixas..........................................................................187 2.5 Justiça: entre ordem e desordem, entre aparência e essência..................................188 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................191 REFERÊNCIAS...........................................................................................................204 12 INTRODUÇÃO Relevante tema representado na literatura, a justiça - numa acepção ampla - marca obras de grandes escritores universais, como Franz Kafka e Albert Camus, fazendo-se assunto, muitas vezes, com os estudos literários. Temos consciência de que o sentimento do justo varia de acordo com as civilizações, ou, nas palavras de Cesare Beccaria (2011, p.37), “Cada homem tem seu ponto de vista, e o mesmo homem, em épocas diferentes, pensa de modo diferente." Assim, a noção de justiça é bastante escorregadia, "[...] é um tema inexaurível, sempre atual que, ao longo dos tempos, desafia reflexões e assertivas dos filósofos." (NADER, 2014, p.71). O fenômeno, porém, não pode ser confundido com o direito, que é o instrumento estatal que busca a justiça, mas nem sempre com ela coincide. Flávia Lages de Castro (2011, p.4) ensina que o direito, como produção humana, é cultura e, sendo cultura, “[...] é produto histórico no qual a sociedade que o produziu ou produz está inserida [...], se parece com a necessidade histórica da sociedade que o produziu; é, portanto, uma produção cultural e um reflexo das exigências dessa sociedade.” Logo, ele reflete os costumes, as iniquidades sociais, a corrupção e os valores da sociedade que regula. Dessa forma, embora haja muita discussão sobre a justiça, é normalmente a injustiça que deixa marcas na sociedade, ensejando diversos estudos críticos. "Para John Rawls, a justiça é a primeira das virtudes das instituições sociais. Mesmo quando se revelam estruturadas, as leis e instituições não têm valor algum se forem injustas." (RAMOS, 2019, p.13). Para ele, direitos e garantias individuais não devem ser suprimidos em prol de um suposto bem maior que pode variar de acordo com as conveniências políticas. Embora essas questões sejam incansavelmente estudadas pela filosofia, pela sociologia e pela história, é na literatura que elas aparecem de maneira mais complexa, muitas vezes amalgamando diversos campos do saber. Isso porque a literatura, pelo potencial de imaginação, representando situações universais com personagens localizadas no tempo e no espaço, consegue tocar mais fundo os problemas humanos de determinada época. Não à toa, é quase lugar comum afirmar que George Orwell (2021), por exemplo, teria previsto o futuro ao escrever 1984. A arte literária está, em geral, um passo à frente das ciências sociais. 13 Nesse diapasão, percebe-se que, em nossa literatura, o tema em pauta – a justiça - tem destaque em relevantes obras de vários períodos. Martins Pena (2019) representa, comicamente, a corrupção no sistema judiciário brasileiro em O juiz de paz da roça; a presença de bacharéis em direito é notável em toda a obra de Machado de Assis: de seus nove romances, "[...] seis têm protagonistas bacharéis em Direito. Ao todo, são oito bacharéis de relevo, dos quais seis advogados, além de um desembargador e um diplomata aposentado." (SCHIBSKY; MATOS, 2008, p.27). Luis Carlos Olivo (2008, p.193), num levantamento de 202 contos machadianos, conclui que em 98 há presença de personagens que exercem funções jurídicas. Também a obra adulta de Monteiro Lobato faz críticas à justiça brasileira (GODY, 2008, p.211). Em Urupês, compara-a a uma traquitana, por ser antiga e morosa. Dedica ao tema, ainda, contos inteiros, como "Júri da roça" em Cidades mortas, em que, pelo discurso direto, mostra comicamente a linguagem jurídica: "Era só o 'nobre orgo do ministério' praqui, o 'meretrício doutor juiz' prali. Sabia dizer as coisas o ladrão!" (LOBATO, 2009, p.72). No final da narrativa, o réu some, sem que ninguém se dê conta disso, provando que, naquele espaço, o direito é visto como detentor de excessos formais e pouco conteúdo, numa aplicação de justiça distante do povo, logo, que não cumpre o seu papel. No Brasil agrário da República Velha representado em Sagarana de Guimarães Rosa (1965), o Estado, detentor legítimo do poder de fazer justiça, quase não aparece e a justiça surge desdobrada em duas faces: a de mão própria, realizada pelo indivíduo para assegurar um direito que julga ter, e a divina, vista como providência de Deus (RIBEIRO, 2016). Aliás, acredita-se ser esse, justamente, um dos motivos da disseminação da violência no sertão: a ausência do Estado nos logradouros afastados das cidades maiores. Embora sendo ampla a quantidade de obras brasileiras dedicadas ao tema, o número de estudos que envolvem direito e literatura ainda não é grande. Tal campo de pesquisa pode ser dividido em três categorias de acordo com Ibaixe Jr. e Menezes (2019, p.18): a) o direito na literatura, que é o que fazemos neste trabalho, mostrando como o tema é construído literariamente; b) o direito como literatura, que investiga a potencial literariedade de alguns discursos jurídicos; c) o direito da literatura: disciplina jurídica ocupada com a análise da regulamentação do meio literário, em que se 14 encontram o direito do autor e a legislação que envolve o mercado editorial por exemplo. Propõe-se, nesta tese, pensar ainda, uma espécie de quarta categoria, decorrente da primeira. Seria a possibilidade de a literatura ser ela mesma um instrumento de justiça. Assim, um livro como Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, ao apresentar literariamente os eventos vividos pelo escritor quando estava preso, seria um modo encontrado por ele para, ao revelar as iniquidades vivenciadas, fazer justiça, como será visto. O intuito do trabalho é, portanto, verificar como a justiça brasileira é representada em dois livros: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida (1978) e Memórias do cárcere de Graciliano Ramos (2008b). Para tanto, leva-se em consideração o contexto de composição das obras e também a produção romanesca do escritor alagoano, que contribui sobremaneira para a compreensão do tema1. Nota-se que a justiça, enquanto valor, está, nessas narrativas, distanciada do direito, que é ignorado pelas personagens e, muitas vezes, subordinado a interesses do poder executivo. Essa situação aparece, por exemplo, numa sociedade cujos membros transitam, livremente, entre ordem e desordem, conforme veremos nas considerações sobre a "Dialética da malandragem" de Antonio Candido (1993). O tema da justiça com tal característica é construído pelos elementos imanentes à narrativa - narrador, focalização, história, personagens, espaço e tempo - que são analisados em cada um dos textos literários que compõem o corpus. A escolha dos dois romances não é fortuita e as obras não estão unidas simplesmente por ostentarem a palavra "memórias" nos títulos. A pertinência de tal aproximação deve-se, em primeiro lugar, por ter como tema a justiça. Para examinar como ela é representada, não cabendo o estudo de muitas das obras centradas nessa questão, colocam-se lado a lado duas maneiras muito diversas de recriar tal tema em diferentes tempos. Manuel Antônio de Almeida, no reinado de Dom Pedro II, narra uma história fictícia e cômica ambientada no período joanino e vivida por personagens 1Como se sabe, as obras que compõem o corpus deste trabalho já foram bastante exploradas pela crítica. Ao analisarmos episódios destacados anteriormente pelos estudiosos, temos como intuito verificar sobretudo a relação que estabelecem com o tema da justiça. 15 típicas. Já Graciliano Ramos, escrevendo após o Estado Novo, testemunha os eventos de 1936, quando foi preso sem processo formal pelo primeiro governo de Getúlio Vargas. Tal narrativa, partindo de fatos reais, conta ainda com elementos da imaginação de um indivíduo complexo que relata episódios envolvendo sujeitos também complexos. Aproximar e contrapor, no que cabe à representação da justiça no país, uma obra vivenciada, a princípio, por personagens planas do século XIX a outra experimentada por seres complexos que, de fato existiram e foram recriados literariamente, significa a possibilidade de examinar essa face das nossas instituições e da nossa cultura. Além do fato de serem "memórias" - embora o sentido do termo seja diferente em cada livro - e de apresentarem, contundentemente, o tema da justiça, há, ainda, condições que aproximam as duas narrativas. Graciliano Ramos (2014b, p.324) foi leitor confesso de Manuel Antônio de Almeida, um dos romancistas nacionais que mais lhe agradavam. Ademais, na obra de ambos, a comunicação entre ordem e desordem na sociedade brasileira é representada em meios habitados por malandros e detentores do poder. Quando publicadas as Memórias de um sargento de milícias, estávamos em pleno Romantismo e a literatura propunha-se a mostrar o que era o Brasil, com romances históricos, sociais e indianistas, muitos deles com espírito nacionalista. A obra de Manuel Antônio de Almeida, difundida em folhetins, passou praticamente despercebida, mas conseguiu, com a comicidade próxima da do teatro de Martins Pena, representar de modo profundo a sociedade do país não só do "tempo do rei", mas também do seu próprio tempo. Nas palavras de Alfredo Bosi (2006, p.134): As Memórias nos dão, na verdade, um corte sincrônico da vida familiar brasileira nos meios urbanos em uma fase em que já se esboçava uma estrutura não mais puramente colonial, mas ainda longe do quadro industrial burguês. E, como o autor conviveu de fato com o povo, o espelhamento foi distorcido apenas pelo ângulo da comicidade. Que é, de longa data, o viés pelo qual o artista vê o típico, e sobretudo o típico popular. Nessa história de tipos da sociedade brasileira do século XIX, o tema da justiça é construído sobretudo: a) pela forte presença da classe profissional dos meirinhos, na qual se inclui o pai do protagonista. A partir disso, vê-se o retrato do sistema judiciário e do processo judicial, como nos mostra o narrador logo no primeiro capítulo; b) pela 16 personagem D. Maria, cuja "mania de demandas" revela a cultura da sentença2 que segue na sociedade brasileira ainda hoje; c) pela dialética entre "ordem e desordem", percebida por Antonio Candido (1993, p.36), uma vez que o direito, sendo instrumento estatal para a manutenção da ordem, é frequentemente manifestado de forma desordeira. Como exemplo, há o Major Vidigal que, de um lado, incorpora a maior fonte de ordem entre as personagens - chegam a dizer a ele, no final da narrativa: "[...] o que é a lei, se o Sr. major quiser?" (ALMEIDA, 1978, p.201). De outro lado, tal figura rende-se à desordem, aceitando ingressar em rixas e num esquema de favores. Inclusive, em uma de suas últimas aparições no romance, Vidigal surge de tamancos e rodaque de chita, caricatamente retratando a maior fonte de ordem com vestimentas que não correspondiam a tal status. Já em 1953, quando são lançadas as Memórias do cárcere, o Brasil havia passado pela República Velha e pelo Estado Novo. Nossa literatura era consistente após as conquistas de Machado de Assis e das duas fases do Modernismo. Graciliano Ramos, que publica a parte mais expressiva de sua obra na década de 30, era considerado um dos maiores escritores brasileiros, capaz de, num estilo inconfundível, somar a crítica social à tensão psicológica das personagens. Nas memórias testemunhais do autor, confluem elementos de toda a sua produção, que também revelam traços importantes do coronelismo e da passagem do Brasil agrário para o urbano. Alfredo Bosi (2006, p.400, grifo do autor) afirma que Graciliano Ramos manifesta, "[...] em termos de romance moderno brasileiro, o ponto mais alto de tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou." Já Valentim Facioli (1993, p.49) considera que o autor de Angústia "[...] era um escritor preocupado sobretudo com o modelo realista da verdade e da autenticidade da ficção, distanciado da alternativa do vôo imaginativo e da fantasia, exigindo observação 'fria dos fatos' e das 'pequenas verdades nossas conhecidas'." Sobre o lugar de Memórias do cárcere na obra do autor, Antonio Candido (1965, p.63) evidencia a existência de "[...] um nítido processo de descoberta do próximo e revisão de si mesmo, que o romancista anota sofregamente, como que completando pela própria vivência o panorama que antes havia elaborado no plano fictício." 2 De maneira ampla, entendemos “cultura da sentença” como o hábito, comumente alimentado por grande parte da população brasileira, de, havendo condições, buscar a solução de conflitos no judiciário, apesar da onerosidade e da morosidade do sistema. 17 O romance que tomamos, com Alfredo Bosi (2002), como testemunhal, mostra a profunda crise do estado de direito brasileiro da era Vargas. Graciliano ao relatar suas experiências na cadeia, reflete sobre a justiça brasileira. Abrangem suas elucubrações questões referentes à legalidade e ao devido processo legal, pois, afinal, de maneira kafkiana, não sabia qual era a acusação contra si ou se havia, sequer, alguma denúncia formal. Nesse contexto, o memorialista faz diversas ponderações sobre a justiça de um modo geral, como, por exemplo: "Tinha o direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos? De forma nenhuma. Não há nada mais precário que a justiça." (RAMOS, 2008, p.25). Refere-se, também, à justiça de mão própria exercida pelo executivo por meio dos militares, classificando seus atos como "[...] justiça tarimba, que prende um sujeito para convencê-lo." (RAMOS, 2008, p.72). E, ainda, sobre a despersonalização que um processo judicial, na época, provocava nos réus, anota: As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento. No íntimo havia talvez o incerto desejo de provocar a nova justiça inquisitorial, perturbar acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e patifarias. Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam em mim um indivíduo, com certo número de direitos. Logo ao chegar, notei que me despersonalizavam [...] Não me acusavam, suprimiam- me. Bem. Provavelmente seria inquirido no dia seguinte, acareado, transformado em autos. (RAMOS, 2008, p.31). As críticas continuam ao longo das memórias, acompanhando os relatos feitos pelo narrador, cujo corpo estava à disposição de um Estado autoritário. Nas palavras de Facioli (1993, p.63): E mesmo da perspectiva ostensivamente política, sabendo que vai escrever um relato contra o regime que o encarcerou injustamente - ou, pelo menos, sem processo - o narrador impõe-se a exigência da verdade, nos estreitos limites da liberdade possível entre a sintaxe e a delegacia de ordem política e social. Vê-se, portanto, o relevo do tema da justiça brasileira em Memórias do cárcere, assim como em Memórias de um sargento de milícias. Para depreender o máximo de elementos possíveis do paralelo entre as duas narrativas, valemo-nos de embasamento teórico que pode ser dividido em quatro partes: a) livros que tratam da filosofia, sociologia e teoria geral do direito; b) obras concernentes à teoria literária; c) fortuna crítica das Memórias de um sargento de milícias; d) estudos sobre as narrativas de Graciliano Ramos. 18 Entre os trabalhos que abrangem temas de direito e justiça, destacam-se: Introdução crítica à criminologia de Vera Malaguti Batista (2012), O medo na cidade do Rio de Janeiro da mesma autora (BATISTA, 2003) História do direito de Flávia Lages de Castro (2011), Dos delitos e das penas de Cesare Beccaria (2011), Justiça de Michael Sandel (2014) Filosofia do direito de Paulo Nader (2014), Estudos de filosofia do direito de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2009), Manual de direito penal de Mirabete e Fabrini (2012), Introdução ao estudo do direito de Silvio Venosa (2010), entre outros. Sobre teoria literária, o aporte teórico divide-se em estudos sobre questões literárias mais amplas, como "O direito à literatura" de Antonio Candido (1995) e A teoria do romance de Georg Lukács (2009); e outros mais específicos, como "Considerações sobre autobiografia" de Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto, O discurso da narrativa de Gérard Genette ([197-]), "A personagem do romance" de Antonio Candido (2007), Lima Barreto e o espaço romanesco de Osman Lins (1976), entre outros. Quanto à obra de Manuel Antônio de Almeida, salientam-se os seguintes ensaios: "Dialética da malandragem" de Antonio Candido (1993), base de cada uma das análises da tese; “Memórias de um sargento de milícias: memórias de um repórter do Correio Mercantil?” de Cecília de Lara (1979); O folclore na ficção brasileira de Reginaldo Guimarães; "Introdução" de Mário de Andrade (1978); "No tempo do rei" de Walnice Nogueira Galvão (1976); Sobre o império da letra de Mamede Jarouche (1997), "Espírito rixoso" de Edu Otsuka (2007) e "Um velho romance brasileiro" de José Veríssimo (1978), entre outros. Sobre Graciliano Ramos e sua obra, sublinhamos: "Graciliano Ramos: configurações autobiográficas" de Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto (2013), Ensaio de literatura brasileira de Letícia Malard (1976) e Ficção e confissão de Antonio Candido (1992), Uma história do romance de 30 de Luís Bueno (2006), Armas de papel de Fabio Cesar Alves (2016), entre outros. Dividiu-se o texto em quatro partes. A primeira aborda aspectos teóricos, sociológicos e filosóficos da justiça, do direito e da literatura. Dessa forma, compreende-se como a arte literária, através dos elementos da narrativa pode construir o tema da justiça. A segunda seção encerra a análise de Memórias de um sargento de milícias, levantando situações representadas na história que se repetirão nos livros de 19 Graciliano Ramos. A terceira parte versa justamente sobre a obra do escritor alagoano: começa com uma breve exposição do seu estilo e de como o tema da justiça se manifesta nos romances Caetés, S. Bernardo, Angústia, Vidas secas e Infância; em seguida, concentrando questões vislumbradas em todo o trabalho, debruça-se especificamente sobre Memórias do cárcere. Por último, um capítulo comparativo: embora a comparação seja feita ao longo do trabalho, concentramos nessa última parte o levantamento das manifestações da justiça em cada uma das obras analisadas, apontando aproximações e diferenças. A estrutura do texto deixa nítido que a "Parte II" é significativamente mais curta, em número de páginas, que a "Parte III", o que não implica em desproporção de análise. Isso se deve, primeiramente, ao fato de as Memórias de um sargento de milícias serem um romance de menor fôlego do que as Memórias do cárcere, além de Graciliano Ramos ter uma produção bem maior do que a de Manuel Antônio de Almeida - e levaremos grande parte dessa obra em consideração, uma vez que a narrativa testemunhal de 1953 concentra muitas posições que dialogam com textos anteriores do autor. Entretanto, são os traços destacados em Memórias de um sargento de milícias que dão as cartas da nossa comparação: é nessa narrativa que estão os principais aspectos da justiça que são analisados na obra do escritor alagoano. Ademais, ao fazermos uma breve leitura das manifestações da justiça nos romances de Graciliano que antecedem a publicação das Memórias do cárcere, atemo-nos justamente aos pontos destacados nas Memórias de um sargento de milícias, enriquecendo a comparação entre as obras dos dois autores. 20 I JUSTIÇA, DIREITO E LITERATURA 1 JUSTIÇA COMO VALOR Há temas, na literatura, que se fazem sempre presentes, independentemente da época, da corrente de estilo ou do gênero literário. A justiça é, sem dúvida, um deles, representada ficcionalmente ao logo de toda a história ocidental e ainda muito valorizada nas letras contemporâneas. Nota-se, por exemplo, que uma das mais importantes tragédias gregas, a Antígona de Sófocles (1990), composta por volta de 442 a.C., é recorrentemente utilizada como ponto de partida em cursos de filosofia do direito, justamente por ter como eixo um conflito que envolve a justiça. Ademais, uma das referências do romantismo universal, Os miseráveis, de Victor Hugo (2017), no qual se encontra o tema construído com maestria, não só marcou o século XIX, como contou com diversas adaptações, inclusive para o cinema, a última delas, de 2012, consagrada com oito Óscares. Fato é que se trata de uma das questões mais instigantes da humanidade: não é tarefa fácil, afinal, definir o que é justiça, palavra proveniente do latim Iustitia, referente à equidade e à imparcialidade. Parece-nos muito mais fácil perceber o que é injusto pela impressão de ser algo mais objetivo3 do que o próprio teor do justo. Não à toa, o professor da Universidade de Harvard, Michael J. Sandel (2014) criou um dos cursos mais concorridos da instituição, problematizando, em toda a ementa, a essência daquilo que pode ser considerado justo. Tal disciplina foi transformada no livro Justiça: o que é fazer a coisa certa. Todo o esforço para compreender a questão deve-se ao fato de ser um valor humano que muda ao longo do tempo e é diferente em cada região: cada povo, dependendo do espaço geográfico e do momento histórico em que se encontra, vê a justiça de maneira própria. E conforme a evolução da filosofia, o assunto fica cada vez mais complexo. 3 De acordo com Paulo Nader (2014, p.72), muito dessa impressão de objetividade deriva do fato de aquilo que é injusto poder sê-lo em diversos níveis de intensidade, enquanto o que é justo, é categórico. 21 Pode-se perceber a mutabilidade das dimensões do justo de acordo com a sociedade, ao refletirmos sobre aquele que foi um dos primeiros conjuntos de leis escritas, o Código de Hammurabi, elaborado entre 1792 e 1750 a.C., na Babilônia. Há ali um artigo que determina o seguinte: "Se um construtor edificou uma casa [...] mas não reforçou seu trabalho, e a casa, que construiu [...] causou a morte do filho do dono da casa, matarão o filho desse construtor." (apud CASTRO, 2011, p.18). Normas como essa são pautadas pelo princípio de Talião4, famoso pela expressão bíblica "olho por olho, dente por dente", parâmetro que, pelo menos hoje, transmite uma sensação de injustiça. Esse sentimento é causado, no exemplo dado, pelo nítido desrespeito à individualidade: o filho do pedreiro é usado como instrumento do Estado para punir o pai. Por mais que, atualmente, essa ideia possa parecer extrema e injusta, foi considerada, por muito tempo, na cultura ocidental, como modelo valorativo de equidade. E, ainda, o fato de constar uma exemplificação dela na Bíblia realça a relação que existe entre justiça e religião. Não é por acaso que, no catolicismo, além de expressões como "juízo final", há a noção de que os justos merecem o céu e os injustos, o inferno. Mesmo na literatura brasileira, é possível encontrarmos obras que unem esses aspectos, como O auto da compadecida de Ariano Suassuna (2018), que representa o pós-morte das personagens como um tribunal em que Jesus é o juiz, Maria, a advogada e o diabo, o promotor. Ainda nas nossas letras, muitas narrativas de Guimarães Rosa, conforme mostramos em nossa dissertação de mestrado (RIBEIRO, 2016), apresentam uma espécie de "justiça divina", providencial, que conduz eventos narrados para finais em que a equidade se realiza. A relação também faz com que Alfredo Bosi (2003) intitule como "Céu, inferno" o ensaio em que compara o escritor mineiro a Graciliano Ramos, cuja obra representa, com mais afinco, a injustiça. Ocorre que, embora a religião possa ser vista como produto cultural, assim como o próprio direito, ela ultrapassa, para parte da sociedade, esses limites, atingindo a dimensão metafísica. Assim, torna-se orientadora de conduta moral, o que não se confunde com justiça porque o domínio da moral é mais amplo: "Enquanto a justiça 4 Alguns historiadores (CASTRO, 2011, p.17) consideram que o princípio de Talião possa ter sido o primeiro a nortear as normas sociais estabelecidas pelos povos antigos. 22 requer alteridade, pois somente se é justo em face de outrem, na moral ela pode estar ausente, pois há os deveres da pessoa para consigo [...]" (NADER, 2014, p.69). O paralelo mostra que a moral faz parte do interior da pessoa, constituindo-se numa ordem identificada com o que os filósofos chamam de bem5. Já a justiça e, por conseguinte, a injustiça, só existem na convivência dos seres humanos entre si. São valores advindos da vida gregária e revelam aquilo que determinada comunidade considera como virtuoso ou não. Com base nisso, Aristóteles (1984, p.49), que aborda a justiça em Ética a Nicômaco, parte da noção de que a finalidade geral das ações humanas é a de conseguir chegar à felicidade e, assim, a atitude justa seria aquela que, em suma, contribuísse para esse estado de espírito. Para tanto, é preciso "[...] dar às pessoas o que elas merecem. E para determinar quem merece o quê, devemos estabelecer quais virtudes são dignas de honra e recompensa." (SANDEL, 2014, p.17). Estamos diante de uma das mais famosas máximas latinas, formulada pelo jurista Ulpiano, segundo a qual "suum cuique tribuere", isto é, a cada um dá-se aquilo que lhe pertence. Tal concepção, aceita na antiguidade clássica, foi problematizada com as transformações da filosofia ao considerar valores muito mais amplos do que aqueles que se busca definir, como felicidade e mérito, porque, para convencionarmos o que cada um merece, é preciso ter em mente uma escala de valores que extrapola o assunto em tela. Afinal, como definir quem é digno de honra e mérito e quem não é? Isso deriva dos princípios que conduzem a reflexão política aristotélica, segundo os quais a justiça é teleológica e honorífica (SANDEL, 2014, p.233), ou seja, para verificar o que é justo, é necessário estudar o objetivo de uma atitude social e definir quais virtudes devem ou não ser honradas e recompensadas, o que varia também de acordo com a história e a geografia. Em uma linha mais radical, o inglês Jeremy Bentham pensou a justiça como um dos meios de atingir a máxima felicidade. Para ele, "[...] a coisa certa a fazer é aquela que maximizará a utilidade. Como 'utilidade' ele define qualquer coisa que produza 5 Vale salientar que o conceito de bem não é pacífico na filosofia. Foi pensado "[...] na Grécia antiga, pelos epicuristas, como tudo aquilo que proporciona prazer à pessoa, enquanto para os estoicos o bem consistia na resignação, no desprendimento, na superação das paixões." (NADER, 2014, p.68). Essa dupla definição tem efeito nas concepções de moral e, consequentemente, nas de justiça, como será visto. 23 prazer ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento." (SANDEL, 2014, p.48). Na prática, a aplicação desse pensamento leva a ações que, geralmente, desprezam os direitos individuais em prol dos coletivos. Um exemplo usado por Michael Sandel (2014, p.49-50) é a construção de um asilo isolado da zona urbana para retirar os mendigos das ruas à força, deixando os habitantes da cidade mais "felizes". É evidente que essa noção de justiça não pode ser acatada ao pé da letra. Suponhamos que um governo considere o comunismo algo que traria infelicidade às pessoas e, em prol do coletivo, encarcerasse ou mesmo condenasse à morte todos aqueles que pudessem ser considerados comunistas, como aconteceu em algum momento em certos países como o nosso. Situação parecida ocorreu com Graciliano Ramos e, como veremos, foi uma iniquidade. Além disso, o que Jeremy Bentham propõe viola os chamados "direitos e garantias individuais", conquistas históricas que são vistas pela teoria jurídica como indispensáveis, inalienáveis e irrenunciáveis. Um indivíduo não pode, por exemplo, renunciar ao direito de ir e vir porque isso, em ocasiões extremas, poderia ensejar manobras políticas para limitar direitos dos inimigos. Ao analisarmos a obra do escritor alagoano e a de Manuel Antônio de Almeida, veremos que o direito brasileiro, por diversas vezes, valeu-se dessa ideia de justiça para regulamentar a sociedade. O aspecto injusto da teoria de Bentham dá-se pela possibilidade de seres humanos serem usados como meio para alcançar o objetivo da máxima felicidade, o que é condenável, se nos voltarmos aos postulados de Immanuel Kant, segundo os quais o homem é um fim em si mesmo e não pode ser tratado como instrumento. Ao levarmos essa visão em conta, entendemos que só será justo aquilo que considerar a pessoa humana pelo que ela é: portadora de uma dignidade intrínseca que nasce da potencialidade de racionalizar. Assim, a justiça kantiana "[...] obriga-nos a preservar os direitos humanos de todos, independentemente de onde vivam ou do grau de conhecimento que temos deles, simplesmente porque são seres humanos, seres racionais e, portanto, merecedores de respeito." (SANDEL, 2014, p.156). O ponto de vista de Kant da justiça é considerado no estabelecimento da base axiológica da Constituição Federal brasileira de 1988. Ela estampa, no artigo primeiro, inciso terceiro, como fundamento da República, a dignidade da pessoa humana. É nesse 24 ponto que a justiça, valor estudado por filósofos, entra em contato com o direito, produto cultural investigado pelos cientistas e teóricos jurídicos. 2 JUSTIÇA E DIREITO Pela polissemia do vocábulo, a justiça é, normalmente, tomada como sinônimo de direito. Não é raro ouvir alguém dizer, ao ingressar com um processo judicial, que está "entrando na justiça"; a palavra também é usada para nomear órgãos oficiais do poder judiciário, como Justiça Militar, por exemplo. Entretanto, os dois fenômenos, embora andem juntos, não se confundem. "O fim do direito [produto cultural] é buscar permanentemente a justiça [valor]. Essa é a finalidade que define e justifica o direito." (VENOSA, 2010, p.209). Portanto, o direito deve sempre buscar ser justo. Como o Estado detém esse poder, os cidadãos esperam que seu direito à justiça seja tutelado da melhor maneira. Assim, o jurista Miguel Reale (apud VENOSA, 2010, p.64) elaborou a chamada "Teoria tridimensional do direito", afirmando que há, no fenômeno jurídico, três dimensões: fato, valor e norma. Em suma, "[...] ao fato social atribui-se um valor, o qual se traduz numa norma." Tomemos como ilustração dessa teoria o artigo 121 do Código Penal. O fato é o homicídio, o valor tutelado é a vida humana e a norma é o próprio artigo que imputa pena a quem matar alguém. Com base no fato e no valor, cria-se a norma legal que, pela coerção, deve ser observada por todos. A justiça está, assim, no centro da questão, ligando o fato à norma. Porém, nem sempre o direito é justo no que concerne à vida social e, muitas vezes, a literatura, de modo geral, representa criticamente essa questão com ênfase na relação que o direito tem com a política, "[...] atividade humana concernente à organização e governo da sociedade civil ou política, v.g., da comunidade que modernamente se define como Estado." (CHORÃO apud VENOSA, 2010, p.229). Dessa forma, o direito é, ao mesmo tempo, produto e limitador da atividade política (VENOSA, 2010, p.231). É produto porque as leis são feitas pelo poder legislativo e, excepcionalmente, pelo executivo, que é quem também as cumpre. É limitador porque é nele que se encontram os mecanismos para evitar abusos do poder político. 25 Tendo em vista a interdependência entre justiça, direito e política, verifica-se que a literatura brasileira, ao tematizar o injusto, normalmente, representa as seguintes circunstâncias: a) quando o Estado, devendo estar presente para o correto cumprimento da lei, omite-se de alguma forma; b) quando há submissão do judiciário à política - na maioria das vezes, ao executivo; c) quando há abuso de poder, em que normas e princípios fundamentais são desrespeitados. O tópico referente à omissão do Estado manifesta-se, primeiramente, como ausência propriamente dita do poder público. É aspecto bastante presente em obras com traços regionalistas e na construção literária de espaços considerados periféricos. A sociologia jurídica parte do fato de que o homem, quando passa a viver em sociedade, vê-se na necessidade de criar normas para possibilitar o convívio, abrindo mão de parte de sua liberdade e, em especial, do uso indiscriminado da força: A violência (enquanto vis, força) está ligada à natureza do homem e não resta dúvida de que a agressividade do comportamento humano é um dado palpável. Daí a importância da fixação de limites no seu uso, mormente quando sabemos que, no ser humano, em princípio, ela não tem limites. (FERRAZ JR., 2009, p.81). Assim, por exemplo, quando o Estado tem presença fraca, ocorre uma espécie de vácuo que é logo preenchido pela autotutela, quando a pessoa defende seus direitos com as próprias forças. É preciso notar que o ato de fazer justiça com as próprias mãos pode ocorrer inclusive na presença do Estado, mas com outro tipo de omissão. Isso acontece com recorrência quando, mesmo havendo leis supostamente justas, o acesso à justiça é dificultado por obstáculos como burocracia, onerosidade e arranjos políticos. Ou ainda, quando o cumprimento da lei é moroso ou incerto e o indivíduo é levado a agir com as próprias mãos porque sabe que, ao praticar a violência, dificilmente ou muito demoradamente será punido. Trata-se de cenário em que o Estado é omisso por permitir a lentidão e a incerteza. Quanto a isso, Cesare Beccaria (2011, p.77), pensador italiano considerado um dos pais do direito penal, afirma: [...] a prontidão da pena é mais útil porque, quanto mais curta é a distância do tempo que se passa entre o delito e a pena, tanto mais forte e durável é, no espírito humano, a associação dessas duas ideias, delito e pena, tal modo que, insensivelmente, se considera uma como causa e a outra como consequência, necessária e fatal. 26 A necessidade de prontidão da pena para que ela seja considerada justa é um ideal buscado por Cesare Beccaria, o que não é alcançado pelo sistema judiciário brasileiro. Quanto mais tempo passa-se entre o delito e a pena, maior a sensação de incerteza a respeito de sua aplicação e a opinião pública tem mais chances de esquecer a ação criminosa cometida, o que deixa uma percepção de injustiça, encorajando novas ações de justiça pelas próprias mãos. Ademais, comumente, a justiça de mão própria é realizada por vingança que, na maioria das vezes, advém de questões alheias às jurídicas, atreladas à honra pessoal. Quando está nas mãos do Estado, entende-se que a punição não tem esse tipo de finalidade: “[...] o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer o delito já cometido. [...] O fim da pena, pois, é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo.” (BECCARIA, 2011, p.56). Mas, quando a sanção pessoal envolve a honra, abre-se espaço para a rixa, manifestada por determinados tipos das Memórias de um sargento de milícias, quando uma ação é realizada em retribuição a outra e ainda pode haver mais uma em revanche da última e, assim, sucessivamente. Já ao mencionarmos a submissão do direito à política, referimo-nos, em primeiro lugar, a um problema tangente à tripartição dos poderes de Montesquieu (CASTRO, 2011, p.205), segundo a qual judiciário, legislativo e executivo devem ser independentes e harmônicos entre si. Mais recentemente, o princípio dos "freios e contrapesos" permite certa invasão de um poder no outro, no intuito de evitar descomedimentos. Entretanto, quando um deles sobrepõe-se aos outros dois, há problemas que podem causar injustiça. É o que se vê quando membros de um dos poderes corrompem-se em prol de benefícios pessoais e/ou políticos. Por último, o abuso de poder advém do desrespeito aos direitos e garantias fundamentais e pode ser cometido por membro de qualquer um dos três poderes, como no caso do juiz que se aproveita do cargo para conseguir favores dos cidadãos, do deputado que se vale da compra de votos ou do policial, vinculado ao executivo, que, contando com o a autoridade e com o porte legal de armas, age com excesso ou mediante interesse próprio. Cada uma dessas faces da justiça foi representada em nossa literatura, cada autor à sua maneira, possibilitando vasto campo de investigação. Somado a isso, Antonio 27 Candido (1993), na "Dialética da malandragem", chama a atenção para o fato de que, no Brasil do século XIX, representado nas Memórias de um sargento de milícias, ordem e desordem emaranham-se, sem que seja possível dizer quando acaba uma e começa outra. A constatação, como veremos, envolve plenamente o problema do direito e da justiça e transcende a narrativa de Manuel Antônio de Almeida, estando presente em diversas outras obras. 3 JUSTIÇA E DIREITO NO BRASIL Para compreendermos como ordem e desordem comunicam-se também no que diz respeito ao tema da justiça na literatura brasileira, faz-se necessário refletirmos sobre a nossa sociedade e sua relação histórica com o direito, seara em que essa dialética também pode ser percebida. Nosso direito, como também a política, sempre viveu a chamada "herança colonial". Sabe-se, por exemplo, que "O modelo colonial brasileiro combinava [...] mão de obra escrava com a grande propriedade monocultora, o personalismo dos mandos privados e a (quase) ausência de esfera pública e do Estado." (SCHWARCZ, 2019, p.42). Daí surge a constante execução de justiça pelas próprias mãos: com a ausência ou omissão do Estado, as rixas pessoais ganham força, o que é visível inclusive na esfera pública. Lilia Schwarcz (2019, p.68), ao retomar diversos estudiosos, resume que, até hoje, no Brasil, "[...] a prática política é ainda muito afeita à mistura entre afetos públicos e privados. Essa contaminação de esferas, leva, por sua vez, ao fortalecimento dos pequenos e grandes poderes pessoais, ampliando as possibilidades de suas ações nas esferas do Estado." No Brasil colônia, os políticos "[...] sentiam-se desobrigados de prestar contas de seus atos à metrópole, até porque esta não detinha instrumentos capazes de vigiá-los." (SCHWARCZ, 2019, p.69). Havia leis a serem observadas aqui, mas a falta de fiscalização adequada e eficiente fez com que se criasse uma atmosfera de lugar sem lei. Literariamente, esse fato é representado no romance histórico Boca do inferno de Ana Miranda (2016, p.56), em que a personagem Antonio de Sousa, ao cometer um ato ilegal por abuso de poder, afirma: "Estamos a um oceano do príncipe e a dois do papa". 28 A frase é emblemática e revela um pouco da sensação que deveria haver na época: estar-se num território alheio ao cumprimento da lei e da moral. Desde então, o medo passa a ser difundido na sociedade brasileira como instrumento de controle. Vera Malaguti Batista (2003, p.21), em O medo na cidade do Rio de Janeiro, explica como tal sentimento serviu de pilar para sustentar a polícia e o direito desde o período colonial até os dias atuais, reprimindo especialmente as classes chamadas de populares: "No Brasil a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas." (BATISTA, 2003, p.21). Nas obras que compõem nosso corpus, podemos notar essa difusão do medo tanto na vadiagem combatida por Vidigal em Memórias de um sargento de milícias como no suposto perigo de insurreição comunista, que justifica extraoficialmente algumas das prisões relatadas nas Memórias do cárcere. Ao longo do tempo, os governos nacionais buscaram apartar os considerados indesejáveis do restante da sociedade, usando como base a figura do delinquente: "[...] historicamente, a prisão foi e sempre será depósito infecto de pobres e indesejáveis." (BATISTA, 2012, p.36). Essa ideia embasava-se incoerentemente nos postulados que o criminologista italiano Cesare Lombroso teceu em O homem delinquente, segundo os quais "[...] a causalidade do comportamento criminal é atribuída à própria descrição das características físicas dos pobres e indesejáveis conduzidos às instituições totais de seu tempo." (BATISTA, 2012, p.45). Esse pensamento era ainda incipiente no momento de escrita das Memórias de um sargento de milícias, em que se iniciavam as propostas higienistas no Rio de Janeiro, mas é bastante visível no testemunho contido nas Memórias do cárcere, em especial no que se vê na parte "Colônia Correcional" por meio da figura dos presos tidos como indesejados na sociedade. Em pleno Brasil republicano, percebia-se latente a noção de criminoso nato que Lombroso desenvolveu: aquele que é normal - inclusive seguindo certos padrões físicos - deve ser aceito pela sociedade, aquele que não é, deve ser separado dela, na cadeia. Assim, "A prisão [...] reproduz a realidade social e aprofunda a desigualdade." (BATISTA, 2012, p.90). Isso fica claro ao analisarmos as personagens presentes na 29 Colônia Correcional de Memórias do cárcere: há, ali, malandros, ladrões, estrangeiros, supostos comunistas. Todos eles perseguidos pelo Estado por não estarem no padrão de ordem desejado. Entretanto, a própria configuração dos espaços por onde Graciliano Ramos passou ao longo do encarceramento reflete as mazelas da sociedade brasileira, como um microcosmo. A constante que permeia os recrutamentos do major Vidigal e o cárcere de Graciliano Ramos é a imposição da ordem num país considerado desordeiro, o que ocorre comumente com uso de força autoritária policial e com discriminação das classes populares. "O processo punitivo estaria intrinsecamente ligado ao controle e ao disciplinamento do mercado de trabalho." (BATISTA, 2012, p.81) e da busca de certa ordem social. Nesse diapasão, tem-se que "[...] a hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social." (BATISTA, 2003, p.23). É o que se percebe tanto no abuso de poder exercido pelo major Vidigal quanto nos absurdos narrados nos estabelecimentos prisionais de Memórias do cárcere. O autoritarismo torna-se estrutural, partindo do colonialismo e passando pelas leis que surgiram no pós-independência. Um exemplo é que "A discussão em torno da reforma do código penal de 1830 articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de controle e punição da escravidão." (BATISTA, 2003, p.32). Era uma contradição porque buscava um ideal de justiça iluminista, tentando adaptá-lo a uma desumanidade que era a escravidão, o que mostra uma das faces do encontro da ordem e da desordem no próprio ordenamento jurídico brasileiro. Essas incongruências foram comuns na formação do direito pátrio, que sustenta muitas injustiças ao procurar em sistemas estrangeiros soluções para problemas enraizados no país, o que acabou perpetuando a desigualdade e o autoritarismo: "As sociedades autoritárias e desiguais, fundadas na violenta hierarquização, não suportam o encontro com o outro." (BATISTA, 2003, p.33). A literatura representa isso muito bem, como veremos, por exemplo, no modo como os narradores de Memórias de um sargento de milícias e Memórias do cárcere veem o outro - a religião do outro, a etnia do outro, a classe social do outro, a posição política do outro. Sobre tal ponto, Castor Bartolomé 30 Ruiz (2009, p.10-11) sustenta que "A injustiça sempre é uma forma de negação do outro, uma violação da alteridade humana." Vera Malaguti Batista (2003, p.37) entende que a escravidão foi ponto-chave para a crescente intolerância com o outro. Os africanos trazidos para cá eram vistos como massa a ser domada e vigiada, podendo gerar desordem se conseguisse fazer revoltas contra os dominantes, o que gerava medo na população branca tanto no tempo colonial e monárquico quanto no pós-abolição, em que havia a insegurança ante o povo libertado que agora estava sem trabalho. "Esse medo branco que aumenta com o fim da escravidão e da monarquia produz uma República excludente, intolerante e truculenta com um projeto político autoritário." (BATISTA, 2003, p.37). É assim que o receio de desordem como o encontrado nas operações policiais de Vidigal torna-se o pavor do caos social após a escravidão, o que vemos de modo acentuado nas Memórias do cárcere. Em Medo branco de almas negras, Chalhoub, ao estudar as "operações policiais" travadas para eliminação das habitações coletivas e das epidemias na corte imperial na segunda metade do século XIX, afirma que é nessa época que pontifica o conceito de classes perigosas. Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras de doenças. (BATISTA, 2003, p.37). Apesar de se referir à segunda metade do século XIX, é possível perceber um embrião desse fato já nas Memórias de um sargento de milícias, como o medo que a elite tinha da propagação de doenças pelos pobres, uma vez que o Rio de Janeiro vivia uma epidemia de febre amarela no momento em que Manuel Antônio de Almeida escrevia, em folhetins, os capítulos do romance. As pessoas viviam em permanente estado de insegurança porque os médicos não entendiam bem as causas da enfermidade, alastrada velozmente, dado que a cidade não tinha sequer sistema de esgoto e os dejetos humanos eram jogados pelos escravos nas ruas para serem levados pela maré. Segundo Cecília de Lara (1979, p.67), esse problema de saneamento básico era, inclusive, uma das principais causas de reclamação dos leitores do Correio Mercantil. Em meio a isso, "As preocupações higienistas com a pureza dizem respeito à sujeira da desordem." (BATISTA, 2003, p.53). Reiteradamente, a falta de limpeza e disseminação de moléstias são associadas às classes populares, como as compostas por 31 vadios, escravos libertos e ciganos, conforme veremos na análise das Memórias de um sargento de milícias. O fato é que tanto no Brasil colonial quanto no império, "Eram as classes dominantes que organizavam as milícias que tratavam de submeter a ralé ao trabalho. O poder central não dispunha de força militar própria." (BATISTA, 2003, p.134, grifo da autora). Era preciso fazer o povo trabalhar e essa é tônica do romance de Manuel Antônio de Almeida: o protagonista vaga pela desordem até entrar na ordem como sargento. O final é considerado feliz porque ele está trabalhando, incorporado à ordem. É esse um dos motivos que faz o último capítulo chamar-se "Conclusão feliz", associando ordem e trabalho ao sentimento de felicidade. Isso porque eram consideradas ofensas à ordem pública: "[...] vadiagem, mendicância, embriaguez, capoeiras, enfim aqueles incômodos que a ordem burguesa-industrial trataria de criminalizar, inventando, já no final do século, as medidas de segurança: para os medos burgueses existiria crime além da lei." (BATISTA, 2003, p.140). Nesse contexto, Tatiana de Fátima Moysés afirma (2014, p.164) que Desde o Código Criminal do Império, de 1830, até o Código Penal da República, de 1890, o direito oprimia os grupos excluídos. Os artigos 295 e 296 do Código Criminal do Império, introduzidos pelo título “Dos mendigos e vadios”, tipificavam o ato da pessoa que não tivesse uma ocupação honesta e útil que fosse capaz de garantir sua subsistência, bem como a mendicância praticada em grupo ou em lugares considerados inadequados. Essa legislação fundamentava a repressão policial, pois pessoas marginalizadas podiam ser presas sob a alegação de que não exerciam qualquer atividade remunerada que as tornassem cidadãs apropriadas para o Império. Tal condição é representada em Memórias de um sargento de milícias, em que rixas pessoais, justiça de mão própria, prática do favor e da repressão policial contra os vadios são responsáveis por estruturar a história. Nota-se que o Código Criminal data de 1830, momento posterior ao tempo do rei, mas em voga na adolescência do protagonista Leonardo e também durante a escrita do romance. Outra questão que marca negativamente o direito brasileiro, segundo Vera Malaguti Batista (2012, p.17), é o modo como o positivismo jurídico foi incorporado por nosso ordenamento: Se a história da criminologia é uma acumulação de discursos, podemos ver o positivismo como uma grande permanência [...], como 32 um corpo teórico, uma maneira de pensar e pesquisar que sempre nos afastou do nosso povo. Aliás, a pergunta de Zaffaroni (como pôde Lombroso florescer na Bahia?) é atual: que dispositivos foram necessários para inculcar tão profundamente um corpo teórico que é contra nós mesmos? Os sistemas positivistas importados da Europa não condiziam com a realidade brasileira. Cesare Lombroso, por exemplo, como vimos, criou o retrato do criminoso: para ele, o delinquente nato teria um biótipo muito parecido com biótipos comuns no Brasil, por isso a pergunta de Zaffaroni. O direito brasileiro importou teorias, engendrando doutrinas contrárias às nossas condições e ambientando-as de modo violento e preconceituoso. Essa reflexão pode nos revelar mais um dos motivos da mescla indistinta entre ordem e desordem na nossa sociedade: os favores, os "arranjos", a malandragem, muitas vezes, são apenas a maneira encontrada pela população para conviver com a imposição de um sistema injusto. Por isso, seria necessário criar uma criminologia brasileira, sob uma perspectiva "oswaldianamente atropofágica" (BATISTA, 2012, p.17), que possa buscar o que há de bom nas teorias criminológicas estrangeiras e ambientá-las verdadeiramente às condições pátrias, relendo-as para incorporá-las, efetivamente, ao nosso favor porque muitas teorias positivistas antigas foram adotadas como "[...] racionalizações justificadoras da repressão ilimitada e da morte [...]" (BATISTA, 2012, p.18). Ainda hoje, nas teorias do crime que embasam o ordenamento nacional, "[...] o positivismo transfere o objeto do delito demarcado juridicamente para a pessoa do delinquente." (BATISTA, 2012, p.26, grifo nosso). É o que vemos na criminalização dos vadios, das classes populares e, mais tarde, em Graciliano Ramos, na figura dos opositores políticos. Resumindo os ensinamentos de Massimo Pavarini, Vera Malaguti Batista (2012, p.19) afirma que "[...] para entender o objeto da criminologia, temos de entender a demanda por ordem de nossa formação econômica e social." O Brasil, na condição de país colonizado, sempre tentou impor a ordem, mas ela esteve constantemente permeada pela desordem, o que se reflete até nos nossos dias, como vemos nos casos de corrupção, no combate às drogas na periferia e no discurso autoritário e intolerante que vem crescendo nos últimos anos. 33 Por isso, é possível afirmar que a dialética ordem/desordem está no âmago da relação entre direito e justiça no país. Todas essas questões são importantes para entendermos os motivos pelos quais nosso direito, em geral, é injusto e produz tantos injustiçados representados na literatura. O crime é um fato social e deve ser compreendido no contexto social em que é reprimido e punido. Nossa literatura sempre representou essa questão, dando vida, por meio da linguagem, à iníqua justiça brasileira. Segundo Castor Bartolomé Ruiz (2009, p.10), "Ao olharmos criticamente para a justiça percebemos que sua existência histórica remete diretamente para o injustiçado e para a injustiça contra ele cometida." É assim que, por meio de duas memórias literárias, veremos como a arte da linguagem é capaz de construir esse tema, fazendo-nos ver que, no Brasil, a injustiça sempre foi preponderante sobre a justiça. 4 A REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA: MEMÓRIAS, AUTOBIOGRAFIA E FICÇÃO A literatura, como arte, não tem o dever de estudar nem analisar um tema específico da humanidade, ela o representa, valendo-se de metáforas ou "palavras polivalentes" (MOISÉS, 2004, p.269) para expressar, significativa e artisticamente, o tema ali constituído. Em outras palavras, o texto literário, pela estrutura formal de que faz parte a linguagem, propõe diversos significados para o leitor, que dependem da interpretação e do senso crítico. No ensaio "O direito à literatura", de 1988, Antonio Candido (1995, p.245) faz a seguinte afirmação: Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em conseqüência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo. (CANDIDO, 1995, p.245). É isso que faz com que o leitor crítico passe a ter um senso aguçado para a análise da sociedade, por exemplo. Isso ocorre quando o tema é construído por meio de componentes estruturais e palavras que compõem situações que, muitas vezes, percebemos, mas não conseguimos expressar verbalmente. Assim, o mundo organiza-se 34 em nosso intelecto de modo a fundir, analiticamente, diversos saberes condensados numa obra. Nas palavras de Roland Barthes (2013, p.17), Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso [...] de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (BARTHES, 2013, p.17). Obviamente, não são todos os livros que ostentam tal abrangência, mas, aqueles que marcaram determinado momento histórico, canonizando-se, costumam apresentar essa característica, o que mostra que os ler é verdadeira vivência porque o leitor pode experimentar eventos novos e profundos pelo ponto de vista de um eu-lírico ou de personagens. Destarte, [...] a ficção, ao mesmo tempo que ilumina a realidade, mostra que outros mundos, outras histórias e outras realidades são possíveis, libertando o leitor de seu contexto estreito e desenvolvendo nele a capacidade de imaginar, que é um motor de transformações históricas. (PERRONE-MOISÉS, 2006, p.25). O próprio Antonio Candido (1995, p.242) afirma que é intrínseca à natureza humana a necessidade de fabulação e que não passamos sequer um dia sem fazê-la, nem que seja ao menos em sonho. Assim, é a literatura um dos campos mais férteis para cultivar essa capacidade, uma vez que, partindo de palavras, ela leva o leitor à imaginação. Não por acaso, Charles Baudelaire (1995, p.804) considera a imaginação a "rainha das faculdades", o que nos diferencia sobremaneira de outros animais e que promove as propriedades promotoras da humanização6. Pelo potencial de significação, a literatura é uma experiência mais profunda que a das ciências aparentemente mais objetivas como a filosofia, a sociologia e a história, o que fica ainda mais perceptível ao entendermos os três gêneros literários básicos: drama, lírico e épico. Para esta tese, interessa um olhar mais profundo sobre o romance, subgênero das obras que compõem nosso corpus. Nessa forma literária, temos, uma vida que passa por nossos olhos, deixando marcas do momento histórico e dos pensamentos que abarcam a visão de mundo do autor. Desse modo, ao romancizar-se, o 6 Para Antonio Candido (1995, p.249), a humanização é o que reforça um conjunto de traços essenciais para o ser humano, como "[...] o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor." 35 homem passa a compreender melhor o mundo e a complexidade do próprio eu, que Lukács chamou de "problemático". Segundo ele (LUKÁCS, 2009, p.79), Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades mutuamente condicionantes. Quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados como evidência imediata, e o mundo, cuja construção os mesmos objetivos realizados levaram a cabo, pode lhe reservar somente obstáculos e dificuldades para a realização deles, mas nunca um perigo instrinsecamente sério. O perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a ideias, quando estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideais, no homem. Percebe-se que o herói do romance é um sujeito em permanente busca de sentido para a existência e que não se vê em harmonia perfeita com o mundo em que vive. Isso porque o homem moderno, quando nasce, não tem as funções sociais pré-estabelecidas. Ele deve, pelo contrário, construir sua identidade e buscar permanentemente, apesar dos obstáculos que possa encontrar, o papel que vai desempenhar. No nosso corpus, temos dois heróis romanescos que, apesar de serem modernos, diferem-se muito entre si: o protagonista das Memórias do cárcere é complexo e apresenta-se às voltas com a inverossimilhança da situação que experimenta; já o das Memórias de um sargento de milícias, é plano e, embora tente, permanentemente, seguir suas vontades, acaba sendo condicionado pelas demais pessoas que com ele convivem a ingressar na ordem. O termo "memórias", presente no título dos romances é usado também em sentido diferente em cada um deles. É, portanto, necessário fazermos algumas observações sobre o conceito dessa espécie literária. Numa abordagem ampla, Massaud Moisés (2004, p.279-280, grifo nosso) considera memórias o "[...] relato na primeira pessoa do singular que visa à reconstrução do passado, com base nas ocorrências e nos sentimentos gravados na memória." Dessa definição, podem-se salientar duas importantes características: a) a necessidade da primeira pessoa do singular, ou seja, alguém que viveu a história relatada, independentemente de tê-la ou não protagonizado; b) esse eu enunciador reconstruir a experiência vivida, apelando para a memória, o que mostra que não se trata de uma narração de eventos presentes ou próximos, contados com base em registros objetivos, mas sim de reformulação de eventos passados, demandando rememoração e, consequentemente, alguma imaginação. Nesse sentido, Paul Ricoeur (2007, p.25) pondera que É sob a égide da associação de ideias que está situada essa espécie de curto-circuito entre memória e imaginação: se essas duas afeções 36 estão ligadas por contiguidade, evocar uma - portanto, imaginar é evocar a outra, portanto, lembrar-se dela. Assim, a memória, reduzida à rememoração, opera na esteira da imaginação. A afirmação é interessante principalmente ao tomarmos contato com as considerações de Graciliano Ramos em Memórias do cárcere, que, no primeiro capítulo, confessa sentir-se com mais liberdade por não ter conseguido salvar o material de anotações que fez no cotidiano da prisão porque, se os tivesse, sentir-se-ia "propenso a consultá-lo a cada instante" (RAMOS, 2008b, p.14). Isso dá o caráter de subjetividade da obra porque o escritor selecionou o que foi narrado e como o foi, de acordo com a memória e a imaginação. Possivelmente resida aí o maior teor de literariedade da narrativa. Complementando essa visão, Luiz Costa Lima (2006, p.353) considera que memórias, enquanto forma narrativa, caracterizam-se "[...] pelo realce de face pública da experiência de vida de alguém, seja o próprio autor, seja um terceiro; realce que, ao se tratar da própria vida daquele que narra, frequentemente contém momentos de sua face interna, i.e., de como ele se via a si próprio." A definição dá ênfase para o fato de o autor não precisar ser necessariamente o memorando - podendo ser, por exemplo, um parente ou um amigo - e pela mescla entre face pública e interna do protagonista. Nas Memórias do cárcere - justamente o exemplo tomado por Luiz Costa Lima - isso é bem nítido: Graciliano Ramos não se limita a contar os eventos passados na cadeia, mas faz reflexões, julgamentos, comparações entre esses momentos e alguns outros da sua infância, por exemplo. Além disso, faz constantes autocríticas a diversos aspectos de sua vida, incluindo a sua produção literária. Embora trace perfis de diferentes pessoas com quem conviveu, essa elaboração passa pelo próprio ponto de vista: é algo subjetivo. Ele, Graciliano Ramos, é autor, narrador, focalizador e protagonista daquilo que relata. Trata-se, pois, de uma escrita de si: uma narrativa autobiográfica. Por isso, faz-se necessário trazer à baila, sucintamente, uma proposta de tipologia da autobiografia de Maria Célia Leonel e José Antônio Segatto (2013). Há quatro possibilidades colocadas pelos estudiosos: a) autobiografia convencional: "Nela o indivíduo real narra, de maneira sumária, num determinado tempo e espaço, a própria existência, focalizando, em particular, sua história." (LEJEUNE apud LEONEL; SEGATTO, 2013, p.202). Um exemplo trazido 37 pelos autores (LEONEL; SEGATTO, 2015), em outro ensaio que aborda especificamente a obra de Graciliano Ramos, é Infância, em que o autor rememora os primeiros anos de vida, resgatando, em especial, os maus tratos recebidos no ambiente familiar e suas experiências iniciais com a leitura e com a escrita; b) autobiografia confessional: é a obra ficcional em que há elementos - em maior ou menor grau - da vida do autor, como o romance publicado no ano em que o alagoano foi preso, Angústia, em que opiniões do protagonista acerca da sociedade, por exemplo, são as mesmas que o escritor ostenta; c) autobiografia de personagem de ficção: é o caso de romances em que o protagonista conta a história da própria vida, como em S. Bernardo, em que Paulo Honório faz sua autobiografia, contando como se tornou fazendeiro e sua melancólica relação com Madalena. Outro exemplo desse tipo de autobiografia nas nossas letras são as Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis; d) autobiografia de testemunho: são as Memórias do cárcere, "[...] um híbrido de 'memória individual com história' - não é 'nem ficcional, nem documental, mas testemunhal.'" (BOSI apud LEONEL; SEGATTO, 2013, p.203). De fato, as Memórias do cárcere são um testemunho da iniquidade vivida por Graciliano durante o período em que esteve preso indevidamente. Segundo Alfredo Bosi (1995, p.310), O testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas tarefas são delicadas: ora fazer a mímese de coisas e atos apresentando-os "tais como realmente aconteceram" (conforme a frase exigente de Ranke), e construindo, para tanto, um ponto de vista confiável ao suposto leitor médio; ora exprimir determinados estados de alma ou juízos de valor que se associam, na mente do autor, às situações evocadas. Crê-se, nesse tipo de literatura, que aquilo que é narrado foi de fato vivido, mesmo entendendo-se que o relato e as descrições emitidas no discurso são subjetivos, bem como, naturalmente, as opiniões. Há uma espécie de documentação de algo que foi vivido realmente, mas o texto não deixa de ser criação artística que se vale da imaginação e do trabalho estético. Para Paul Ricoeur (2007, p.170), "Com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental." 38 Mesmo a “[...] autobiografia não diz necessariamente como os fatos ocorreram. O exagero, a criação de alguma situação específica é inerente ao ser humano quando este fala de si sobre seu próprio ponto de vista: descrevemos o que sentimos e o que nos marcou." (NIGRO, 2010, p.20). Graciliano, escritor de alta qualidade, tem noção da força da criação literária e do poder simbólico da literatura. É viável, portanto, a diferença entre as "memórias" de Graciliano Ramos, que têm caráter testemunhal e as de Manuel Antônio de Almeida que, em se tratando também de forma literária narrativa, são falsas memórias porque não temos nelas um narrador que faz parte da história e se limita a fatos ficticiamente vividos. Também por razão da escolha do narrador heterodiegético, não podem as Memórias de um sargento de milícias figurarem como "autobiografia de personagem de ficção". Nesse livro, a palavra "memórias" tem um sentido amplo que remete ao passado da cidade do Rio de Janeiro, mas com foco na biografia ficcional de uma personagem, Leonardo. Não podem, portanto, ser encaixadas em nenhum dos tipos de escritas de si. O fato de não contar com um narrador autodiegético ou homodiegético permite uma representação abrangente do Rio de Janeiro do período joanino porque a voz heterodiegética comporta, sem prejuízo da verossimilhança, uma focalização onisciente, possibilitando que o autor cumpra seu objetivo com a narrativa: reconstruir literariamente um grande quadro da sociedade carioca do início do século XIX. Mas as memórias de Graciliano Ramos e as de Manuel Antônio de Almeida também se aproximam. Em ambas as obras, os narradores estão em uma época representando outra, passada, mas não muito distante, após refletirem sobre esse tempo passado. Graciliano demorou cerca de uma década para começar a escrever o livro, gozando de um período temporal suficiente para analisar e julgar aquilo que viveu. Manuel Antônio de Almeida, jornalista, embora não tivesse presenciado o período joanino, fez longa pesquisa sobre esse momento histórico, com a distância necessária para avaliá-lo e compará-lo com o presente da escrita. Além disso, Cecília de Lara (1979) mostra que muitos dos eventos narrados nas Memórias de um sargento de milícias foram inspirados em fatos reportados pelo Correio Mercantil na própria época da escrita dos folhetins, o que revela a grande carga de realidade existente na história. Aprofundando a reflexão sobre a presença de "memórias" no título dos dois romances, é possível constatar que a palavra traz, intimamente com o espaço, o caráter 39 temporal que ele carrega consigo. Toda e qualquer memória refere-se ao passado: a um tempo passado e a um lugar passado - o Rio de Janeiro em que Leonardo viveu não é o mesmo em que Manuel Antônio de Almeida escreveu que, por sua vez, é diferente daquele em que Graciliano Ramos foi preso e, futuramente, escreveu seu romance testemunhal. Tempo e espaço estão sempre relacionados um com o outro. Essa relação fez Mikhail Bakhtin (2018, p.11) considerar o tempo como a quarta dimensão do espaço ao estabelecer o conceito de cronotopo: "[...] interligação essencial das relações de espaço e tempo como foram artisticamente assimiladas na literatura.", tanto na forma quanto no conteúdo de uma obra. No mesmo sentido, Osman Lins (1976, p. 63), em Lima Barreto e o espaço romanesco, questiona os perigos de tratar de uma categoria narrativa separadamente da outra, embora saliente a necessidade de voltar mais os olhos para a espacial que, na época em que o estudo foi realizado, era menos estudada que a temporal. Esse entrelaçamento é um dos motivos que nos faz dar ênfase, neste estudo, aos elementos narrativos do espaço (físico e social) e do tempo (do narrado e da narração). Michel Foucault (2009, p.411) afirma que "A época atual [segunda metade do século XX] seria talvez de preferência a época do espaço.", porque somos sujeitos situados, vivendo no simultâneo, na dispersão e num meio estabelecido por relações de posicionamento social, econômico e político. O estudioso francês, em "Outros espaços", afirma que "Estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos." (2009, p.413). A base dessas relações envolve o poder: centro e periferia, normas e desvios, lugares que integram a sociedade e lugares que apartam seus componentes. Ele analisa a oposição entre utopia e heterotopia, sendo a primeira irreal e a segunda, real, uma espécie de realização daquela irrealidade. Nesse sentido, teríamos hoje, por exemplo, as chamadas "heterotopias de crise", que são os desvios da norma. Se entendemos essa norma como o ideal (utópico) de uma sociedade, tudo aquilo que não vai ao encontro disso é desvio. É o caso das prisões e colônias correcionais: os indivíduos ali encarcerados são, por algum motivo - político, no caso de Graciliano Ramos - desviantes em relação ao que se espera da sociedade. Os prisioneiros, portanto, foram considerados contrários aos ideais almejados pelo Estado. Como tudo faz parte de um processo histórico, nas Memórias de um sargento de milícias, embora não tenhamos 40 ainda uma sociedade tão complexa quanto a do século XX, vê-se já a necessidade de oprimir os indivíduos desviantes da ordem social - desordeiros, ciganos, malandros, feiticeiros, vadios, praticantes de capoeira, entre outros -, papel desempenhado pela autoridade policial do major Vidigal. Voltando a Foucault (2009), ao estabelecer as distinções mencionadas, levam-se em consideração as macroestruturas sociais. Em oposição - ou complementação - a isso, Michel de Certeau (1998), em A invenção do cotidiano, vale-se das microestruturas da vida urbana para estudar as relações de poder imanentes do espaço, examinando, por exemplo, como o cidadão consegue driblar as normas da cidade, como o trânsito e o comércio. É nesse sentido que ele elabora os conceitos de "estratégia" e "tática" (CERTEAU, 1998, p.46). A primeira é a norma estabelecida para manipular o cidadão e a segunda é a maneira de driblar essa norma, muitas vezes "[...] engenhosidades do fraco para tirar partido do forte [...]" (CERTEAU, 1998, p.45). Pensar essas questões sociais que envolvem a categoria do espaço é crucial para verificar a representação testemunhal das Memórias do cárcere. As relações de posicionamento, com base no poder, retiram o protagonista do convívio social urbano de Maceió para ser preso político no Rio de Janeiro. No trajeto até a prisão e nos diferentes cárceres para onde é levado, percebe-se que os sujeitos ali aprisionados passam a criar táticas para driblar o sistema coercitivo que os oprime - muitas vezes, pelo simples comércio ilegal de cigarros que envolve policiais e encarcerados. É esse um dos aspectos do espaço na narrativa, que, conforme será visto, vai ao encontro da confusão entre ordem e desordem na sociedade brasileira que Antonio Candido (1993) analisou no espaço social das Memórias de um sargento de milícias. O espaço, portanto, tem estreita relação com aqueles que o habitam. Dependendo do momento literário ou do autor, ele pode ser considerado mera paisagem - o local ameno para onde os árcades sonhavam fugir - ou até mesmo ser reflexo dos sentimentos experimentados pelas personagens, como ocorre constantemente no Romantismo. Em Memórias do cárcere, essa correspondência é recorrente, marcando a tensão entre o narrador e os lugares em que é aprisionado. De acordo com Osman Lins (1976, p.72), a capacidade de conotação nas descrições espaciais é muito ampla e, usualmente, ocorre uma transcendência daquilo que é caracterizado. Em Graciliano Ramos, conforme será visto, isso é frequente. Basta 41 citar, como exemplo, o contraste entre luz e sombra que, com significados distintos, ocorre tanto no navio Manaus de Memórias do cárcere quanto na igreja de fazenda de Paulo Honório em S. Bernardo. Memórias de um sargento de milícias e Memórias do cárcere apresentam traços em comum e, também, grandes diferenças. Uma leitura comparativa é sempre enriquecedora porque, ao longo da confrontação, aspectos convergentes e divergentes das obras iluminam-se mutuamente. Além da comparação, outros métodos e teorias poderiam ser utilizados no trabalho. Até o sistema de fontes e influências, advindo dos franceses, poderia ser um caminho de interpretação, uma vez que no "Autorretrato de Graciliano Ramos aos 56 anos", o escritor alagoano (RAMOS, 2014b, p.324), ao citar os "romancistas brasileiros que mais lhe agradam", nomeia, em primeiro lugar, Manuel Antônio de Almeida7. Porém, preferimos o alinhamento aos estudiosos dos EUA, como René Wellek, por partirmos da imanência do texto para realizar o estudo de um tema, verificando como a justiça e o direito brasileiros foram representados nas duas narrativas. Nas Memórias de um sargento de milícias, o tópico é representado através de estruturas, aparentemente mais simples, com personagens cômicas e típicas, que não apresentam a complexidade do protagonista das Memórias do cárcere, livro que faz com que a literatura, por si, seja um ato de fazer justiça, mostrando que ambas andam juntas. Não à toa, usando a palavra "justa" para referir-se à sociedade ideal, Antonio Candido (1995, p.249, grifo nosso), considera que "Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.", por toda a capacidade de humanização que ela potencializa. Por isso, a visão da justiça e do direito presente em obras literárias, transcende saberes históricos, filosóficos ou sociológicos, por estarmos no domínio da representação e da imaginação, muitas vezes contendo todas essas áreas conjuntamente. 7 A lista completa, na ordem apresentada pelo escritor, é: "Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Raquel de Queiroz" (RAMOS, 2014b, p.324). 42 II UM ANTECEDENTE: MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS JUIZ: Sr. Escrivão, faça o favor de ir buscar a viola. (sai o ESCRIVÃO) Não façam cerimônia; suponham que estão em suas casas... Haja liberdade. Esta casa não é agora do Juiz de Paz - é de João Rodrigues. JUIZ: Aferventa, aferventa! Martins Pena (2019, p.107-108). 1. LUGAR DA OBRA NA LITERATURA BRASILEIRA: DA "PACOTILHA" À "DIALÉTICA DA MALANDRAGEM" No século XIX, consolida-se a literatura brasileira com o Romantismo, que começa com aspirações históricas: "O romance colonial de Alencar e a poesia indianista de Gonçalves Dias nascem da aspiração de fundar um passado mítico para a nobreza recente do país [...]" (BOSI, 2006, p.92). A prosa literária vai ganhando cada vez mais volume e espaço, em grande parte pelos caminhos abertos por Joaquim Manuel de Macedo e pela popularidade de José de Alencar. Nesse contexto, encontra-se, no Rio de Janeiro, o jornal Correio Mercantil, que tinha tradição liberal e era abrigo de intelectuais (REBELO, 1943, p.29), dentre eles, muitos dos escritores que fizeram fama no século. Por cerca de três anos, o periódico contou com o suplemento "A Pacotilha", publicação partidária, conhecida largamente por fazer incisivas críticas a políticos, tanto em verso quanto em prosa (REBELO, 1943, p.30). Na redação do suplemento, trabalhava Manuel Antônio de Almeida, e ali surgiu uma obra vista como lateral no Romantismo (BOSI, 2006, p.134), as Memórias de um sargento de milícias. Originalmente em folhetins, o romance foi publicado entre 1852 e 1853. Na maioria dos números, os capítulos da narrativa não eram textualmente separados das notícias e reportagens que os precediam e sucediam8, o que foi motivo para Cecília de Lara (1979), pioneiramente, dizer sobre o livro de Manuel Antônio de Almeida no contexto do jornal Correio Mercantil, que "[...] à medida em que o autor escrevia ocorriam fatos de cunho semelhante, no dia a dia." (LARA, 1979, p.78). Isso fica nítido, 8 Afirma Cecília de Lara (1979, p.61) que "[...] no final nem sempre havia algum sinal gráfico que indicasse a passagem para outro tipo de matéria [...]". 43 por exemplo, nas costumeiras críticas ao clero que, quando surgiam de modo mais incisivo nos editoriais, eram representadas também ficcionalmente na narrativa (LARA, 1979, p.72). Ainda no caso da representação do clero, as semelhanças podiam ser notadas inclusive nos nomes das personagens, como certo Leonardo que era sacristão na Sé no período de circulação do periódico (LARA, 1979, p.74). Dessa forma, embora analisemos, neste trabalho, o romance em sua autonomia, tal qual foi publicado posteriormente pelo autor, é importante, para o tema da justiça, verificarmos essa possibilidade de interpretar os capítulos de acordo com o contexto do jornal, notando o modo como a época do rei é ficcionalizada para representar a sociedade do momento da escrita. Pode-se, assim, ver essa escrita como um modo de fazer justiça social, ao colocar a nu os problemas do presente por meio da fabulação do passado. Por isso, é possível afirmar que, em Manuel Antônio de Almeida, há o escritor e o repórter. Como repórter, registrou paisagens e costumes do povo do Rio de Janeiro do seu tempo. Como escritor, pintou paisagens e tipos humanos literariamente, mas em outro momento histórico, com forte teor irônico para representar a sociedade. Pensando nos dois ofícios do autor das Memórias de um sargento de milícias, salienta-se que "[...] a posição do jornalista que participava dos acontecimentos e os canalizava para a 'Pacotilha' diferia, em muitos pontos, da do escritor que iria transpor essa mesma realidade para a esfera ficcional." (LARA, 1979, p.63). Muitos dos valores que se acredita que Manuel Antônio de Almeida teria defendido, alinhado às ideias do Correio Mercantil9, sem a proteção do pseudônimo “Um brasileiro”, são opostos àquilo que surge na voz de seu narrador irônico. Um dos assuntos recorrentes no jornal com bastante influência nos temas do romance é a higiene da cidade. O Rio de Janeiro de meados do século XIX não tinha sistema de esgoto e sofria com condições sanitárias de imensa precariedade: Uma das questões mais dramáticas era a da febre amarela, que nessa mesma década de 1850 chega ao auge, interrompendo as atividades da cidade. Por volta de 1852, o jornal registra, na lista de mortos, marinheiros estrangeiros, além de pessoas da cidade, atingidos pela febre amarela; denuncia, como causa do grande número de vítimas 9Segundo Cecília de Lara (1979), os principais assuntos noticiados pelo periódico eram do universo comercial, o que nos faz presumir que grande parte de seus consumidores eram comerciantes. Vale ressaltar que questões relativas ao mercado eram bastante discutidas, inclusive judicialmente, na época, tendo em vista que, em 1850, havia sido promulgado o Código Comercial - cuja regulação no que se refere ao mercado marítimo está em vigor no Brasil até hoje. 44 entre caixeiros, as péssimas condições de vida dos empregados do comércio, mal acomodados em quartos sem ventilação no fundo de vendas e lojas. (LARA, 1979, p.67). Por ser um veículo de informação dirigido, em especial, a comerciantes, era preciso advertir o setor para os perigos da epidemia. Vinculado a isso, existia a ideia de que a proliferação da doença tinha ligação com a má higiene de pessoas oriundas das classes populares da cidade, que não tinha mais o major Miguel Nunes Vidigal para reprimi-las. Mesmo levando essa questão da higiene para o período de estadia de Dom João VI no Brasil, Manuel Antônio de Almeida não perdeu de vista o fato de que [...] o Rio da segunda metade do século XIX apresentava duas faces opostas: uma clara, alegre, constituída pelo brilho dos saraus, nos quais imperava o luxo desmedido, pelas festas religiosas e populares, com demonstrações de fogos de artifício, pelas músicas e danças em festas barulhentas, nas casas e cortiços de ilhéus e ciganos. E a outra face opaca, da doença, da opressão, da sujeira. (LARA, 1979, p.69). Portanto, o momento da escrita é de extrema relevância para a narrativa: praticamente tudo o que vemos na história de Leonardo tem similaridades com o que ocorre no presente da composição, motivo que faz Cecília de Lara (1979, p.80, grifo da autora) afirmar que: Narrando um passado que, sem ser demasiado afastado, era distante o suficiente para lhe conceder maior liberdade, Manuel Antônio de Almeida faz o jogo contínuo do ontem-hoje, sempre com o intuito de mostrar que, afinal, as coisas em sua época não estavam tão diferentes. Pouco mudou na capital do país de uma época para outra e diversos aspectos sociais representados na obra continuam presentes até a atualidade. Por isso, é necessário refletir sobre a composição em si, percebendo o quanto ela continua viva em diferentes elementos, conforme veremos. Pensando primeiramente na história, vê-se que ela é relatada linearmente: Leonardo, filho ilegítimo de Leonardo-Pataca e Maria da hortaliça, imigrantes portugueses que vieram para o Brasil no tempo de D. João VI, ao ser abandonado pelos pais, é criado pelo padrinho, um barbeiro cego de amor pelo afilhado, contando ainda, a seu favor, com as constantes intervenções da madrinha, a parteira chamada apenas de "comadre". Desde cedo, o protagonista demonstra vocação para a traquinagem, a malandragem e a desordem, fazendo brincadeiras com religiosos, dedicando-se à vadiagem, participando de pândegas e rodas de viola. Apesar disso, acaba incorporado à ordem graças às ações de várias personagens que gravitam ao seu redor: o padrinho, a 45 madrinha e D. Maria, amiga destes. As duas últimas, arquitetando planos e valendo-se de favores, convencem o major Vidigal, chefe da polícia, temido por todos e verdadeira personificação da ordem, a tornar o rapaz vadio sargento de milícias, que acaba casado com Luizinha, sobrinha de D. Maria. Todos esses acontecimentos são permeados ou intercalados por vários outros, muitos deles acessórios à história do protagonista ou, não raro, alheios a ela. Um dos motivos dessa estrutura é o fato de o autor valer-se da obra para descrever muitos dos costumes da época em que D. João VI estava no país. Nesse contexto, o Brasil ainda estava longe do padrão dos países do velho mundo: não independente, predominantemente agrário, escravista, sem uma burguesia instaurada e muito pouco urbanizado. Não à toa, a ficção brasileira até o final do século XIX representa espaços sociais geralmente privados: a vida pública e urbana era ainda muito diminuta. Vemos isso nas Memórias de um sargento de milícias, em que figuras como Chico-Juca, Teotônio, Leonardo-Pataca e Vidigal são conhecidas por toda a capital.