UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP JAQUELINE TREVISAN PIGATTO O papel das corporações transnacionais na governança global da Internet: Google e Facebook nas discussões sobre neutralidade da rede e política de dados (2013-2018) São Paulo 2020 JAQUELINE TREVISAN PIGATTO O papel das corporações transnacionais na governança global da Internet: Google e Facebook nas discussões sobre neutralidade da rede e política de dados (2013-2018) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”, na linha de pesquisa “Relações Exteriores dos Estados Unidos”. Orientador: Marcelo Passini Mariano. São Paulo 2020 JAQUELINE TREVISAN PIGATTO O papel das corporações transnacionais na governança global da Internet: Google e Facebook nas discussões sobre neutralidade da rede e política de dados (2013-2018) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”, na linha de pesquisa “Relações Exteriores dos Estados Unidos”. Orientador: Marcelo Passini Mariano. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Passini Mariano (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) ______________________________________________ Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) ______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Affonso Pereira de Souza (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) São Paulo, 18 de fevereiro de 2020. Para minha pessoa preferida de todos os universos, Gi. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2018/02378-4. Meus mais sinceros agradecimentos a esse apoio tão importante. Realizar um mestrado em Relações Internacionais no San Tiago Dantas só foi possível graças a pessoas muito importantes na minha vida. Primeiramente, agradeço aos meus pais Oswaldo e Sandra, e a minha irmã Giovana, por me apoiarem e me permitirem trilhar um caminho difícil, mas muito gratificante. Agradeço todo o investimento na minha educação e a liberdade com a qual pude atingir meus objetivos. Ter vocês comigo em cada passo foi essencial, vocês são minha base e minha maior paixão. Ademais, passar por dois anos de estudos em São Paulo só aconteceu graças a dois amigos super especiais. Mark, obrigada por me acolher tão bem na vida acadêmica, pela paciência, pela gentileza, pelas inúmeras trocas de informações, pelos empurrões, e acima de tudo, obrigada por ter se tornado um amigo tão querido. Você foi a maior surpresa desse meu mestrado e espero que tanto nossa parceria quanto nossa amizade sejam muito duradouras. Nossos passeios na Paulista estarão sempre em meu coração, lembranças de uma fase maluca de nossas vidas, mas também muito especial. Karan, anjo que facilitou tanto minha vida na cidade grande e que encheu meus dias de luz, risadas, ensinamentos e muito carinho. Muito obrigada por todo seu apoio, sua amizade, por me receber sempre de braços abertos e fazer parte da minha trajetória. Mark e Karan, vocês foram a melhor equipe que eu poderia ter para esse mestrado. Essa conquista é nossa. No San Tiago Dantas, sou extremamente grata a todos os professores e funcionários que contribuíram para o meu mestrado: Isabela, Giovana, Graziela, Prof. Samuel Soares, Prof. Carlos Gustavo, Prof. Flávia Mello, Prof. Tullo Vigevani, Prof. Laís Thomaz e Prof. Karina Mariano. Agradeço também as minhas colegas de academia e amigas super queridas que estão comigo desde a graduação: Bárbara e Julia, é uma honra seguir os passos de duas pesquisadoras tão fantásticas, obrigada por todo o envolvimento e apoio que vocês sempre me proporcionaram. Aos professores que aceitaram compor minha banca, Prof. Alexandre Fuccille e Prof. Carlos Affonso, expresso meus mais sinceros agradecimentos e admiração, não só pelos seus trabalhos e conhecimentos que me inspiram na academia, mas também por serem profissionais e pessoas incríveis, cujas trajetórias acompanho com muita consideração. Ao orientador incrível que tenho a sorte de ter desde o primeiro ano da graduação: Prof. Marcelo Mariano, só tenho a agradecer pela paciência, as conversas e discussões rotineiras, a atenção, o cuidado e o profissionalismo com que sempre me orientou, além de constantemente me incentivar e buscar o melhor do que eu poderia realizar. Agradeço por sempre ter acreditado em mim e no meu trabalho. Se aventurar nesse tema tem sido desafiador e acredito que estamos conseguindo trilhar um bom caminho para nossa área. Espero que nossa parceria dure muitos anos! Por fim, aos meus amigos, meus anjos que estão sempre presentes, independente da distância, e que em muitos dias desse mestrado me acolheram, me escutaram e me incentivaram. Vocês deixaram meus dias mais leves e cada um de vocês acompanha meu crescimento profissional e pessoal, vivendo momentos singulares ao meu lado, sou muito grata por tê-los em minha vida: Isa, Ca, Rafa, Tangará, Norbs, Mau e Dan, vocês são f***! The freedom of a country can only be measured by its respect for the rights of its citizens, and it's my conviction that these rights are in fact limitations of state power that define exactly where and when a government may not infringe into that domain of personal or individual freedoms that during the American Revolution was called ‘liberty’ and during the Internet Revolution is called ‘privacy’. (SNOWDEN, 2019, p. 8). RESUMO A governança global da Internet busca se consolidar pelo caráter multissetorial, onde atores estatais e não-estatais compartilham interesses, objetivos e ações no meio digital que afetam sociedades de modo profundo. Seja econômica, cultural ou politicamente, as plataformas digitais exercem papel fundamental na vida dos usuários da Internet, atingindo também a esfera estatal. Desse modo, as características originais da Internet como liberdade e universalidade são tensionadas diante de tais atores. Problemas como uso indiscriminado de dados pessoais por grandes corporações transnacionais e diferentes conteúdos disponibilizados pelo setor privado em diferentes países são alguns dos processos que evoluíram em discussões e regulações nos últimos anos. Foi em 2013 que as denúncias de Edward Snowden sobre a espionagem estadunidense criaram um questionamento mais forte acerca da centralidade da Internet nos Estados Unidos, com outros países como Brasil e União Europeia se sobressaindo na governança global, ao mesmo tempo em que grandes empresas como Google e Facebook detêm recursos de poder consideráveis, a partir da coleta e do processamento de dados de bilhões de pessoas no mundo todo. A autorregulação privada que se fortaleceu após o caso Snowden enfrenta um revés a partir de 2018, com tentativas de regulação estatais pela União Europeia, à luz do caso Cambridge Analytica, onde processos eleitorais foram influenciadas pelo uso indevido de dados pessoais. Assim, é no Fórum de Governança da Internet (IGF) onde tais atores têm o espaço para diálogos e troca de conhecimentos para implementar políticas e práticas, seguindo o caráter multissetorial. As ações privadas acabam por pautar muitas dessas discussões, ao mesmo tempo em que foram sendo priorizados encontros bilaterais entre entes governamentais e privados, havendo portanto uma diminuição do grau de multissetorialismo, uma vez que o Estado passou a ser mais afetado pelo funcionamento dessas plataformas. Ainda que regulações estatais tenham ocupado mais espaço ao longo do período analisado, as grandes corporações privadas ainda mantêm uma preponderância e certa liberdade de autorregulação em meio a governança multissetorial, já que detêm recursos de poder tecnológicos e influência relevantes nas sociedades ocidentais. Palavras-chave: Internet. Governança. Instituições. Transnacionais. Multissetorialismo. ABSTRACT The global Internet governance aims to consolidate itself through the multistakeholder model, where state and non-state actors share interests, goals and actions on the digital space, which can deeply affect societies. Whether economic, cultural or political, the digital platforms play a fundamental part on the Internet users lives, reaching also the state sphere. Therefore, the Internet’s original characteristics, such as freedom and universality, are stressed by these private actors. Issues as the indiscriminate use of personal data by large transnational corporations and varied available content by the private sector in different countries are some of the procedures that have evolved in discussions and regulations over the last years. In 2013, the Edward Snowden’s disclosures on the U.S. espionage have created a stronger questioning regarding the Internet’s centrality in that country, with other state actors such as Brazil and the European Union projecting themselves dominantly on global governance, at the same time that large companies such as Google and Facebook hold resources of considerable power, starting from the data collect and processing from billions of people all around the world. The private self-regulation that became stronger after the Snowden case has been facing a setback since 2018, with attempts of state regulations by the European Union, in view of the Cambridge Analytica case, where electoral procedures were influenced by the inappropriate use of personal data. Thereby, it is on the Internet Governance Forum (IGF) that such actors have space for dialogues and knowledge exchange to implement policies and activities, following the multistakeholder nature. The private actions ended up guiding several of these discussions, while bilateral meetings between governmental and private entities were being prioritized, leading to a decrease in the multistakeholder model, once that the state became more affected by the functioning of these platforms. Although the state regulations have occupied more space during the analyzed period of time, the big private corporations still hold a preponderance and a certain freedom of self-regulation among the multistakeholder governance, since they hold resources of technological power and relevant influence on the Western societies. Keywords: Internet. Governance. Institutions. Transnational. Multistakeholder. RESUMEN La gobernanza global de Internet busca consolidarse por su carácter multisectorial, donde los actores estatales y no estatales comparten intereses, objetivos y acciones en el ambiente digital los cuales afectan a las sociedades de manera profunda. Sean de carácter económico, cultural o político, las plataformas digitales juegan un papel fundamental en la vida de los usuarios de Internet, afectando también el ámbito estatal. De esta manera, las características originales de Internet como libertad y universalidad son tensionadas ante dichos actores. Los problemas en relación al uso indiscriminado de datos personales por parte de grandes corporaciones transnacionales y a la exposición de diferentes contenidos por parte del sector privado en distintos países son algunos de los procesos que han sido debatidos en las discusiones y regulaciones en los últimos años. Las acusaciones hechas por Edward Snowden en 2013 sobre el espionaje estadounidense plantearon un cuestionamiento más incisivo sobre la centralidad de Internet en los Estados Unidos (cuestionamiento también hecho por Brasil y la Unión Europea, los cuales se sobresalieron como actores destacados en la temática de la gobernanza global), al mismo tiempo en que grandes empresas, como Google y Facebook, poseían considerables recursos para recopilar y procesar datos de miles de millones de personas en todo el mundo. La autorregulación privada que se había fortalecido tras el caso Snowden ha enfrentado un revés desde 2018, con los intentos de regulación estatal por parte de la Unión Europea tras el caso Cambridge Analytica, en que los procesos electorales fueron influenciados por el mal uso de los datos personales. Por lo tanto, es en el Foro de Gobernanza de Internet (IGF) donde dichos actores tienen el espacio para el diálogo y el intercambio de conocimientos para implementar políticas y prácticas, siguiendo una orientación de carácter multisectorial. Las acciones privadas terminan por guiar muchas de estas discusiones, al mismo tiempo en que las reuniones bilaterales entre entidades gubernamentales y privadas han sido priorizadas, reduciendo así el grado de multisectorialismo, una vez que el estado se encontró más afectado por el funcionamiento de estas plataformas. Aunque las regulaciones estatales han ocupado más espacio durante el período analizado, las grandes corporaciones privadas aún mantienen una preponderancia y cierta libertad de autorregulación en medio de la gobernanza multisectorial, por tener significativo poder tecnológico y de influencia en las sociedades occidentales. Palabras clave: Internet. Gobernanza. Instituciones. Transnacionales. Multisectorialismo. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Três camadas da governança da Internet……………………..……………….. 16 Figura 2 - Organograma da ICANN……………………..……………………………….. 43 Figura 3 - Composição da Diretoria (Board) da ICANN……………………..………….. 45 Figura 4 - Contribuições para o IGF por ano…………………………..…………………. 52 Figura 5 - Usuários do Facebook pelo mundo, em 2017………………………..………... 67 Figura 6 - Gastos com lobby da Amazon, Facebook e Alphabet ao longo dos anos……... 75 Figura 7 - Relatórios de lobby que mencionam a neutralidade da rede entre 2005 e 2013. 80 Figura 8 - Gráfico de participação dos stakeholders no IGF, entre 2013 e 2018………… 110 Figura 9 - Representantes presentes nos encontros do IGF entre 2013 e 2018…………... 111 Figura 10 - Presença das plataformas em relação ao total de workshops………………….. 113 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANPD Autoridade Nacional de Proteção de Dados ARPANET Advanced Research Projects Agency Network ASO Address Supporting Organization AT&T American Telephone and Telegraph BPF Best Practice Forum CCNSO Country-Code Names Supporting Organization ccTLD Country-Code Top Level Domain CERN European Organization for Nuclear Research CGI.br Comitê Gestor da Internet no Brasil Cloud Act Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act CMSI Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação DNS Domain Name System FBI Federal Bureau of Investigation FCC Federal Communications Commission FTC Federal Trade Comission GAC Governmental Advisory Committee GDPR General Data Protection Regulation GNSO Generic Names Supporting Organization gTLD Generic Top Level Domain HTML Hypertext Markup Language IANA Internet Assigned Numbers Authority ICANN Internet Corporation for Assigned Names and Numbers IETF Internet Engineering Task Force IGF Internet Governance Forum IP Internet Protocol ISOC Internet Society ISP Internet Service Provider LGPD Lei Geral de Proteção de Dados MAG Multistakeholder Advisory Group MIT Massachusetts Institute of Technology MPDFT Ministério Público do Distrito Federal e Territórios NSA National Security Agency NSFNET National Science Foundation Network NTIA National Telecommunications and Information Administration OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OMC Organização Mundial do Comércio ONU Organização das Nações Unidas PDP Policy Development Process RSSAC Root Server System Advisory Committee SO Supporting Organization SSAC Security and Stability Advisory Committee TCP/IP Transmission Control Protocol/Internet Protocol TIC Tecnologias de Informação e da Comunicação TLD Top Level Domain UIT União Internacional das Telecomunicações VPN Virtual Private Network WG Working Group WIPO World Intellectual Property Organization WSIS World Summit on the Information Society WWW World Wide Web SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO E CONCEITUALIZAÇÃO…………………...…………... 14 2 HISTÓRIA DA INTERNET E SUA GOVERNANÇA….………....…….….. 31 2.1 Histórico e mecanismos de governança……….….................................…….. 31 2.1.1 Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN)…….. 42 2.1.2 Fórum de Governança da Internet (IGF)......…………................................….. 48 2.2 A concepção de governança…......………..............................................…… 55 2.3 Conclusões parciais………………...............................….................................. 64 3 A INTERNET COMERCIAL E AS GRANDES EMPRESAS.................….. 66 3.1 Empresas transnacionais: Google e Facebook……......................................... 66 3.2 Atuações de Brasil e Estados Unidos…………………………………………. 83 3.3 Conclusões parciais…………………………………………………...……….. 102 4 ATUAÇÕES DAS EMPRESAS GLOBAIS NA GOVERNANÇA DA INTERNET…………………………………………………………………….. 104 4.1 Google e Facebook na ICANN………………………………………………... 104 4.2 Google e Facebook no IGF……………………………………………………. 109 4.2.1 IGF 2013……………………………………………………...………………… 113 4.2.2 IGF 2014……………………………………………………...………………… 118 4.2.3 IGF 2015……………………………………………………...………………… 125 4.2.4 IGF 2016……………………………………………………...………………… 132 4.2.5 IGF 2017……………………………………………………...………………… 136 4.2.6 IGF 2018……………………………………………………...………………… 139 4.3 A governança multissetorial………………....................................................... 142 4.4 Conclusões parciais…………………………………………………...……….. 151 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS……..…………………………………………... 155 REFERÊNCIAS……………………………………………………………….. 172 APÊNDICE A – RELATÓRIO DE PARTICIPAÇÃO NA REUNIÃO DE “POLICY MEETING” DA ICANN – 25 A 28 DE JUNHO DE 2018 – CIDADE DOPANAMÁ……………………………………………………….. 196 APÊNDICE B – ENTREVISTA COM BEN WALLIS - ANALISTA DE POLÍTICAS REGULATÓRIAS DAMICROSOFT………………………… 202 APÊNDICE C – ENTREVISTA COM JULIANA NOLASCO – GESTORA DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOOGLE………………… 205 APÊNDICE D – INFOGRÁFICO DE EXPANSÃO DO GOOGLE……….. 207 APÊNDICE E – INFOGRÁFICO DE EXPANSÃO DO FACEBOOK…… 208 14 1 INTRODUÇÃO E CONCEITUALIZAÇÃO A governança da Internet é um vasto campo com imensa diversidade de atores, redes, serviços, interesses e regimes que coexistem em meio a interdependência da comunicação. A Internet em si depende de colaboração e coordenação para seu funcionamento, o que cada vez mais se soma ao desenvolvimento de políticas e às inovações tecnológicas e digitais. Os últimos dez anos viram um forte protagonismo de grandes empresas de tecnologia que se tornaram partes essenciais do cotidiano da sociedade ocidental, devido a oferta de serviços financeiramente gratuitos em sua maioria, mas que em troca realiza uma profunda coleta de dados pessoais desses usuários. As empresas de conteúdo digital, plataformas como Google e Facebook, também encontraram um outro conflito, especialmente em seu país natal: o fim da neutralidade da rede, onde o poder financeiro e interesses diversos podem ameaçar o que cada usuário acessa no mundo digital, podendo assim existir diferentes níveis de acesso a depender de onde se acessa. Embora a discussão sobre plataformas esteja fortemente presente na mídia, a bibliografia acadêmica de governança da Internet tem dado preferência a assuntos relacionados a nomes de domínio e questões técnicas que atingem a política internacional. A presente pesquisa é, portanto, contemporânea nas Relações Internacionais, que busca investigar o tratamento de problemas cotidianos da Internet que atingem o usuário final, da perspectiva de atores privados e estatais dentro de uma governança global. É importante ressaltar que nos referimos aqui como “governança global” de acordo com os possíveis níveis de governança: local, nacional, regional e, portanto, “global” para o sistema internacional. No entanto, sem menosprezar a importância do mercado chinês e de ações russas nesse campo, a pesquisa se restringe ao Ocidente, buscando compreender dinâmicas restritas à Estados Unidos, Brasil e Europa, onde a Ásia corresponde a uma futura agenda de pesquisa. Desse modo, os conflitos de interesses, os desafios comuns à diferentes países onde atuam essas plataformas digitais e a tentativa de se manter uma Internet universal, como foi proposta em sua criação, demandam uma governança que reúna todas as partes interessadas, a 15 chamada governança multistakeholder ou multissetorial1, nesse caso analisada em nível global. A governança da Internet pode ser entendida em três diferentes camadas, das quais duas apresentam mecanismos de governança bem consolidados, enquanto a camada mais próxima da população, que é a camada socioeconômica da rede, enfrenta maiores dificuldades em conciliar interesses, regimes de Direitos Humanos, mercado e poder do Estado nacional. Essa divisão é resumida pela figura 1. Seguindo a proposta da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN) como exposto na figura 1 (página a seguir), a camada de infraestrutura (verde) possibilita a existência da Internet em si, sendo majoritariamente formada por especialistas técnicos. Já a camada lógica (laranja) permite que as diferentes redes de conexão pertençam à uma única Internet, papel esse desempenhado pela ICANN e por órgãos associados. Por fim, a camada socioeconômica (azul) abrange as aplicações construídas na Internet, seja por empresas ou por cada usuário que cria, compartilha e consome conteúdo, em redes sociais, serviços de streaming, serviços financeiros, entre muitas outras possibilidades. É nessa última camada que a governança da Internet ainda batalha para se manter alinhada ao caráter original da rede, de abertura e universalidade, já que ali tanto o setor privado quanto os Estados nacionais estabelecem suas próprias regras, arriscando fragmentar a rede. É necessário esclarecer que entendemos a camada lógica também como pertencente a dimensão socioeconômica e política, porém, para fins didáticos, vamos separar as nomenclaturas conforme a divisão proposta pela ICANN, nos referindo portanto a camada de atuação das plataformas como “camada socioeconômica”. 1 O caráter multissetorial, apoiado pelos Estados Unidos desde a comercialização da Internet na década de 1990, se opõe à proposta multilateral, onde apenas os países participariam de discussões e decisões relativas ao funcionamento e uso da Internet, visão defendida por China e Rússia. Sobre o discurso do multissetorialismo e suas assimetrias, ver Hofmann (2016). 16 Figura 1 - Três camadas da governança da Internet Fonte: ICANN, 2015. 17 Há, também, uma discussão crescente sobre questões de conteúdo na União Internacional de Telecomunicações (UIT)2, o que se diferencia dos espaços de governança aqui estudados por constituir um caráter multilateral. Ainda que a agência da ONU permita a participação de atores privados e observadores da sociedade civil, os votos são restritos aos Estados membros. O tratamento da Internet pela UIT sempre foi delicado, com países como os Estados Unidos demandando uma abordagem multissetorial em detrimento desse espaço tradicional e multilateral (vide a criação da ICANN aprofundada adiante). Porém, recentemente países em desenvolvimento levaram temas como os impactos das plataformas para essa arena, que também debate a chegada do 5G3 para a Internet global, aumentando assim sua importância na governança. O ano de 2018 foi particularmente interessante para a retomada da UIT na governança da Internet, já que a ICANN se aplicou como um membro da organização, o que está melhor discutido no capítulo 4. Para facilitar o entendimento das camadas, partiremos da proposta de Kleinwächter (2015) onde há dois tipos de gerenciamentos a respeito da Internet: o microcosmo, que lida com nomes e números da rede, basicamente as funções da ICANN; e o macrocosmo, que trata de políticas públicas relacionadas a Internet, ou seja, temas de conteúdo bastante discutidos no Fórum de Governança da Internet (IGF). Ambos trazem questões políticas, econômicas, sociais, culturais, e legais, mas que são tratadas em sua maioria e em maior profundidade no IGF, ou seja, é nesse ramo que estão os assuntos estudados por essa pesquisa (proteção de dados e neutralidade da rede). No entanto, como este trabalho mostra, o espaço melhor consolidado até hoje e o melhor exemplo de funcionamento eficaz de processos e tomada de decisões multissetoriais é a ICANN, o que justifica sua presença neste trabalho. Ainda seguindo a proposição de Kleinwächter (2015), o autor considera que a agenda para a governança da Internet deve se subdividir em quatro áreas: cibersegurança, cibereconomia, Direitos Humanos e tecnologia. Nesse sentido, este trabalho perpassa todas as quatro áreas, já que a privacidade e a liberdade de expressão (previstas como Direitos 2 Em abril de 2018, a UIT aprovou uma recomendação sobre regulação de OTTs (aplicações Over The Top, ou seja, que atuam na camada socioeconômica da rede). ITU. ITU-T Recommendation D.OTT (D.xxx), 2018. Disponível em: http://www.convergenciadigital.com.br/inf/recomendacao_ott.pdf. Acesso em: 1 nov 2019. 3 A quinta geração da Internet (5G) permite uma maior velocidade de conexão, assim como uma maior estabilidade, que permite uma melhor viabilização de inovações como a Internet das Coisas (IoT) e realidade virtual. WALL, M. O que é o 5G e como ele pode mudar as nossas vidas. BBC Brasil, 24 julho 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-44936142. Acesso em: 1 nov 2019. 18 Humanos4) estão diretamente relacionadas com os lucros e o poder financeiro das empresas aqui tratadas. Sendo assim, este trabalho faz um recorte dessa imensa camada socioeconômica, a partir de duas das maiores empresas privadas de Internet que atuam globalmente, as norteamericanas Google e Facebook. Ambas enfrentam desafios e conflitos com usuários e Estados nacionais cotidianamente, mas o foco desta pesquisa recai sobre dois temas que preponderaram na agenda internacional nos últimos anos: a proteção de dados pessoais e a neutralidade da rede. A partir dessas análises, procura-se compreender melhor o funcionamento da governança dessa camada, que se pretende multissetorial, ou seja, promover o debate e a tomada de decisões conjunta pelo setor governamental, o setor privado e a sociedade civil. É interessante ressaltar que embora o ator estatal tenha adentrado essa governança tardiamente, foi a partir de 2016 que a atenção do Estado se volta com mais força para a Internet. A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos chamou a atenção para questões de conteúdo como controle de propagandas eleitorais em redes sociais e disseminação de notícias falsas. O foco do Estado para com as redes sociais abre assim um questionamento mais aprofundado nas atividades baseadas em coleta e processamento de dados pessoais. A hipótese apresentada é de que existe uma preponderância do setor privado, referente às grandes transnacionais de tecnologia, pelo seu poder concentrador de dados e pela capacidade de processá-los e influenciar decisões. Para este trabalho, entendemos a ideia de preponderância relacionada a capacidade do ator em criar constrangimentos aos demais atores5. No caso do grande setor privado da Internet (também denominado big tech), é importante analisar essa preponderância em um contexto de dependência, onde as sociedades ocidentais aqui expostas possuem os serviços dessas plataformas de maneira muito intrínseca à atividades cotidianas, como comunicação, acesso à informação, à sistemas de localização e mapas, comércio, entre outros. Todos esses serviços são possibilitados através de dados coletados dos próprios usuários e interligados com outras fontes de informação, consistindo portanto em bases de usuários e informações muito significativas, tanto financeiramente (pelo 4 A proteção da liberdade de expressão pode ser vista na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como na Organização dos Estados Americanos (OEA), enquanto a proteção da privacidade também encontra diversos dispositivos jurídicos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem da Assembleia Geral das Nações Unidas (1948); a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). 5 Para aprofundar a questão da preponderância estadunidense no ecossistema da Internet, especialmente no âmbito técnico, ver Canabarro (2014) e DeNardis (2009). Acerca das assimetrias do multissetorialismo, ver Hofmann (2016). 19 valor dos dados pessoais voltados ao setor publicitário) quanto para fins de inteligência (segurança nacional) e controle. Tal contexto pode ser corroborado por Castells (2016, p. 9): […] networks of mass self-communication became appropriated by hundreds of millions of users who were dependent on the infrastructure of telecommunications and technology companies but were largely autonomous in defining the content of their interaction, at the expense of surrendering their privacy. [...] Our societies have become almost fully networked by digital communication on a global scale. (CASTELLS, 2016, p. 9). A ligação de dependência entre algumas dessas plataformas e o consumidor é tão forte que podemos hoje equiparar a serviços públicos. Muitos canais governamentais, inclusive, utilizam de plataformas como Facebook e Whatsapp para comunicação entre cidadão e administração pública. Assim, no caso da neutralidade da rede, veremos adiante que existe uma preponderância comercial ao priorizar pacotes de dados onde o acesso à determinadas plataformas é gratuito ao consumidor. É possível aliar essa ideia também ao conceito gramsciniano de hegemonia adotado por Carr (2015), já que aqui a hegemonia não se refere à dominância baseada em poder coercitivo, mas sim à uma forma de poder social baseada em relações de consenso. No caso das plataformas digitais, o consenso, na verdade, é um contrato unilateral (quando o usuário aceita os termos e condições de uso), melhor explorado ao longo do trabalho. É importante ressaltar ainda, como coloca Carr (2015), a percepção da Internet como um mecanismo de projeção de poder, tanto de soft power por questões linguísticas e culturais, quanto de hard power em termos de ataques cibernéticos, embora neste trabalho o foco recaia sobre o primeiro tipo. No caso dos dados pessoais, podemos pensar também nessa gama de informações que se transformam em conhecimento, que influenciam ideias e modificam padrões culturais, ou seja, as empresas possuem o que Benkler (2008) denomina “produção social”. As ideias que circulam online são produto de uma ação coletiva, podendo ser concentradas graças a própria estrutura da Internet. Há, então, acúmulo de poder em determinadas corporações que criam camadas de interação muito fortes e que se apropriam dessa produção social, aumentando cada vez mais sua influência. É o que presencia-se cotidianamente ao fazer uma busca no Google ou assistir um filme recomendado por algoritmos, que aprendem com o padrão de comportamento do usuário. A gravidade desse tipo de prática, já demonstrada em 2013 pela espionagem norteamericana revelada por Edward Snowden, melhor exposta adiante, ficou mais evidente no campo da política e da democracia no início de 2018, quando foi revelado por um então 20 funcionário da consultoria britânica Cambridge Analytica que dados pessoais de usuários do Facebook foram indevidamente coletados e utilizados para direcionar propagandas políticas, utilizando a própria plataforma de rede social para influenciar as eleições presidenciais norteamericanas de 2016, que elegeram Donald Trump, assim como no referendo do mesmo ano que optou pelo Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia. Esse acontecimento comprovou uma nova tendência e um problema já existente mas agora presente em uma maior dimensão: o uso do poder computacional6 em eleições políticas que afetaram Estados democráticos (o Brasil também sendo um exemplo em 2018, já que redes sociais foram essenciais para propagandas direcionadas); e a urgência pelo estabelecimento de normas, práticas e até mesmo leis sobre uso de dados pessoais. Nesse sentido, é vital reconhecer o padrão estabelecido pela União Europeia, ao colocar em vigor em maio de 2018 sua Regulação Geral de Proteção de Dados (GDPR), alterando o funcionamento de empresas do mundo todo, já que basta executar serviços em territórios da União Europeia para estar sujeito à lei. Como se estabeleceu ao longo do tempo o caráter multissetorial para essa governança, este trabalho procura analisar esse mecanismo participativo com foco no setor privado. O objetivo é verificar qual a atuação de Google e Facebook dentro dos espaços multissetoriais da ICANN e do IGF, referente aos temas de política de dados, onde países estão ou implementando leis, ou não intervindo em situações novas que afetam diversos atores e interesses, e há grande pressão da opinião pública sobre o tema; e à neutralidade da rede, ideia de definição controversa que, dentro do sistema internacional westfaliano, pode levar em casos extremos à fragmentação da Internet como a conhecemos. Não pretende-se focar em questões de legitimidade e representatividade do sistema multissetorial, mas sim em dados empíricos de um período específico de tempo, opondo contextos diferentes. Primeiramente, o caso Snowden nos mostra uma relevância do setor privado quando da ação do Estado norteamericano em atividades de espionagem. Em um segundo momento temos que o Estado, agora representado pela União Europeia, ocupa uma posição de liderança a partir de ação indevida do setor privado, mais especificamente do Facebook no caso Cambridge Analytica. De todo modo, vemos que a legitimidade do setor privado se encontra em dois fatores: o alto nível de conhecimento técnico e os discursos 6 Por "poder computacional" entende-se um grande volume de atividades nas mídias sociais, com indícios de uso coordenado e profissional (ITS RIO, 2018). 21 alinhados aos princípios da Internet, muitas vezes coincidindo com a comunidade epistêmica e a sociedade civil, em oposição à alguns Estados nacionais. Assim, esta pesquisa questiona qual o papel das grandes empresas transnacionais dentro da governança da Internet, se elas pautam as discussões e como se dá a dinâmica entre seu poder e a soberania dos Estados nacionais. Afinal, instrumentos regulatórios são produtos do próprio processo de governança, que visam garantir o funcionamento correto de sistemas complexos e podem ser, de acordo com Belli (2019, p. 49): […] de origem pública, tais como convenções internacionais, leis, regulamentos e decisões tomadas por tribunais e agências nacionais, mas podem ter também natureza privada. Neste último caso, a regulação privada pode ser de natureza contratual, como os termos e condições que definem as regras para o uso de plataformas web, aplicativos móveis e redes de acesso à Internet, ou podem ser de natureza técnica, como algoritmos, padrões e os protocolos que definem a arquitetura de software e hardware que determinam o que os usuários podem ou não fazer no ambiente digital. (BELLI, 2019, p. 49) A configuração que se estabeleceu com o surgimento e expansão dessas empresas estadunidenses que atuam em escala global foi de autorregulação, exercendo muitas vezes até mesmo um poder de polícia, onde de acordo com Belli et al. (2019, p. 447): […] tais funções têm sido cada vez mais delegadas às plataformas pelas autoridades públicas, ao mesmo tempo em que as plataformas atribuem a si próprias estas funções para evitar serem responsabilizadas, tornando-se, de fato, ciber-reguladores e ciberpoliciais. (BELLI et al., 2019, p. 447). Como é claro nas relações internacionais, cada Estado é soberano para implementar suas leis e políticas dentro de seu território, teoricamente não interferindo em assuntos internos de outros Estados. Nesse sentido, o contexto aqui trabalhado surge justamente da ausência de uma autoridade soberana no sistema internacional, ou seja, os atores privados buscam ocupar essa lacuna através de regulações privadas ou private ordering (BELLI et al., 2019). A partir de casos que atingiram diretamente algumas democracias, alguns Estados nacionais começaram a intensificar sua participação no ecossistema de governança, ainda que alguns priorizem o mercado enquanto outros priorizam valores morais e éticos. Esse dilema é sintetizado por Lessig (1999, p.542): "For values like privacy, bottom-up regulation is unlikely to change an architecture — here, the architecture of commerce — that so significantly benefits a particular powerful class of users". O recorte temporal da pesquisa abrange seis anos dessa governança. O início em 2013 se deve às revelações de Edward Snowden acerca da espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA) estadunidense, onde o caso é diretamente ligado às plataformas de Internet, 22 já que um dos programas de vigilância, o PRISM, tinha acesso direto aos servidores dessas companhias. A vigilância massiva desse programa permitia acesso à dados de navegação na Internet, inclusive conteúdos de e-mails, chamadas de voz e vídeo, transferência de arquivos, entre outros. Empresas como Google, Microsoft, Facebook e Yahoo! apareceram nos arquivos mostrados por Snowden como “colaboradores” do projeto. Assim, esse episódio evidenciou a dimensão e a profundidade do poder concentrado por essas empresas e pelo próprio governo norteamericano, o que aumentou a pressão internacional e os questionamentos sobre a centralidade da rede naquele país. Tal conjuntura permitiu ao Brasil, à época, se tornar protagonista na busca de um novo modelo de governança, o que culminou no evento multissetorial realizado em 2014 em São Paulo chamado NETMundial, além da aprovação de uma lei nacional que regulasse alguns pontos sobre o uso da Internet no país, o Marco Civil da Internet, primeira legislação desse tipo no mundo. Entretanto, a instabilidade interna que se seguiu fez com que essa pauta fosse gradativamente diminuída no país, papel que ao fim desses seis anos parece ter se transferido para a União Europeia. Para as análises desses seis anos de governança, dois espaços de discussão desse ecossistema são estudados. O Fórum de Governança da Internet (IGF), estabelecido sob os auspícios da ONU em 2005, que trata de temas de políticas públicas da camada socioeconômica da rede e em âmbito multissetorial, ainda que não tome decisões vinculantes; e também a ICANN, já que seu mecanismo de governança multissetorial é amplamente reconhecido, tendo em vista que aqui existe uma tomada de decisões institucionalizada nesse caráter, mas para a camada lógica da rede. Seu funcionamento é o que permite uma única rede global conectada, ou seja, a Internet em si. Ademais, em 2016 a organização concluiu a transição de supervisão das funções da Autoridade para Atribuição de Números da Internet (IANA), terminando um contrato com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos e se tornando, de fato, uma organização global e multissetorial de caráter privado. Assim, o ano de 2018 vê dois anos da “nova ICANN” e, ainda, a implementação de uma lei extraterritorial de proteção de dados que também atinge essa organização, a ser melhor explorada no decorrer do trabalho. Embora o ecossistema da governança global da Internet seja composto por muitas outras organizações e espaços de discussão, optou-se por analisar o IGF pela sua primazia em debater políticas públicas para a camada socioeconômica, ou seja, os problemas de proteção de dados e neutralidade da rede aparecem constantemente nesse Fórum, onde há presença 23 tanto de atores governamentais quanto do setor privado, além de uma forte presença da sociedade civil. No caso da ICANN, seu reconhecimento em aplicar o caráter multissetorial em tomada de decisões se faz relevante para a governança da Internet como um todo, possibilitando o funcionamento de uma Internet global e também trazendo para a arena política da camada lógica atores privados e estatais, ainda que governos não possuam poder de voto nessa instituição. Desse modo, o período estudado nos permite visualizar duas conjunturas bastante claras: em um primeiro momento, as revelações de Snowden geram certa preponderância do setor privado, no sentido de proteger a privacidade de seus usuários contra os abusos estatais. Porém, o recente caso da Cambridge Analytica altera esse quadro para uma preponderância estatal em busca de maior regulação, já que as plataformas falharam em proteger dados pessoais que foram indevidamente usados para fins políticos. A assimetria da governança multissetorial, como já apresentada por Hofmann (2016), e a tese de Canabarro (2014) sobre a preferência norteamericana por esse desenho de governança, são revistos e atualizados neste trabalho sob a perspectiva empresarial e com foco na camada socioeconômica da rede. Existe, de fato, uma governança multissetorial? E quais são as dinâmicas existentes entre as empresas analisadas e os Estados nacionais, dentro das pautas aqui analisadas? Com a hipótese de que há preponderância do setor privado na governança multissetorial, é necessário tratarmos de alguns conceitos já nesta parte introdutória do trabalho, para a seguir compreendermos as dinâmicas do ecossistema da Internet, desde sua origem até as principais transformações contemporâneas envolvendo Estados nacionais e empresas transnacionais. Um dos principais argumentos aqui apresentados é de que o Estado nacional tardou a adentrar essa governança pela própria configuração que se internacionalizou a partir dos Estados Unidos: a liberdade de intervenção estatal nas atividades acerca da Internet possibilitou o nascimento de grandes empresas de tecnologia, também livres de regulações sobre dados pessoais e afins, onde se criou uma cultura de autorregulação privada. Para nos referirmos aos serviços digitais fornecidos pelo Google (e-mail, agenda, documentos online, etc.), assim como a rede social Facebook, utilizamos o termo “plataformas”, no mesmo sentido empregado por Mattiuzzo (2018) em online advertising platforms (OAPs), o que significa que são serviços cujo lucro é baseado nas propagandas que, por sua vez, são criadas e disseminadas a partir dos dados pessoais coletados dos usuários que participam daquela plataforma. Esse modelo de negócios onde o serviço é financeiramente 24 gratuito para o usuário em troca de seus dados, os quais serão processados e utilizados para personalização de marketing, é a base da economia digital que se consolidou pela Internet nos últimos anos. Com essa nova dinâmica, o uso dos dados pessoais passou a atingir não apenas objetivos financeiros, como veremos adiante. Frazão (2017) também apresenta uma definição para plataformas digitais, onde: […] podem ser compreendidas como modelos de negócio que possibilitam a interação de pelo menos duas partes ou polos, que ficam agregados e em contato um com o outro. Dessa forma, longe de serem meros instrumentos ou ferramentas, as plataformas digitais são, na verdade, o próprio modelo de negócio, baseado em criação de networks escaláveis e com grandes efeitos de rede. (FRAZÃO, 2017). É importante ressaltar que, seguindo o Marco Civil da Internet do Brasil (BRASIL, 2014), as plataformas também podem ser entendidas como provedores de aplicações. No entanto, é válido também diferenciar as plataformas dos provedores de conexão. Estes são empresas fornecedoras de serviços e infraestrutura que possibilitam o acesso dos seus clientes à Internet, também conhecidas como Internet Service Providers (ISPs). É pertinente esclarecer, ainda, os chamados provedores de conteúdo, que variam desde pessoas físicas ou jurídicas que criam e desenvolvem conteúdo na rede (seja por um website ou blog), até grandes sites de imprensa. Avançando aos temas pelos quais se dá a análise da governança multissetorial, é necessário também conceituarmos os dados pessoais e as questões subjacentes, assim como é importante esclarecer que entendemos as bases de dados e de usuários concentradas pelas empresas como recursos de poder. A questão de privacidade e proteção de dados pessoais traz vários conceitos, a exemplo da ideia de controle das informações pelo próprio usuário, o que está diretamente relacionado, segundo Zanatta (2017), ao pensamento europeu sobre privacidade e dignidade. Porém, a própria disputa de interesses dentro da pluralidade de atores faz com que não exista uma definição universal para “dados pessoais”. Como explica Sérgio Amadeu da Silveira (2017, p. 43-44): Essa definição não é pacífica, nem meramente científica, uma vez que é disputada pelas forças do mercado de dados. Dependendo do que seja considerado dado pessoal um corretor de dados (broker) terá mais dificuldade legal para coletá-lo e vendê-lo. Representantes de agências de análise de crédito, por exemplo, defendem que dados cadastrais e biométricos não devem ser considerados dados pessoais, não devem requerer autorização para o seu tratamento, uma vez que são de interesse dos agentes econômicos, da polícia e, por conseguinte, seriam de interesse de toda a 25 sociedade. Para alguns segmentos da economia informacional, quase nada deveria ser considerado um dado pessoal. (SILVEIRA, 2017, P. 43-44). Através de um relatório publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, 2013), podemos ter uma ideia do valor dos registros de dados pessoais por essas empresas: em 2012, o valor dos dados de cada usuário do Facebook era de US$112. A Organização entende por dados pessoais “any information relating to an identified or identifiable individual (data subject)” (OECD, 2013, p.7), o que é uma definição bastante ampla e pode incluir: conteúdo criado pelo usuário, como comentários e fotos postadas; termos de buscas realizadas; compras online e método de pagamento; contatos de amigos na rede social; localização (tanto do IP de acesso quanto o próprio endereço residencial); informações como idade, sexo, raça e até mesmo preferências políticas. Portanto, é essa concepção de dados pessoais utilizada na presente pesquisa. Além disso, o que este trabalho mostra é que possuir bases de dados e, consequentemente, de usuários, são recursos de poder com importância crescente no sistema internacional. Para tanto devemos considerar, como Baldwin (2016), que a definição de “recurso de poder” é dependente do contexto analisado, ou seja, devemos destacar o contexto contemporâneo de disseminação da Internet e das plataformas que se fazem presentes no cotidiano de bilhões de pessoas no mundo todo, aliado a ideia de “difusão do poder” apresentada por Nye (2011)7. As bases de usuários são criadas juntamente com inovações tecnológicas que são ferramentas para atender interesses e demandas da sociedade, seja do setor governamental, privado, acadêmico ou civil. Plataformas como o Facebook para interação social, o Airbnb para demanda imobiliária ou o Uber como alternativa aos meios tradicionais de transporte urbano, são concentrações de usuários ligados por relações de interdependência, mas que podem atingir outras dimensões para além daquela para qual foi criada. A produção dos dados gerados por esses serviços revelam padrões sociais, comportamento econômico, preferências políticas e culturais, dentre outras informações que, uma vez processadas e agrupadas, podem servir a diferentes interesses e ter usos diversos (MARIANO et al.; 2018), não apenas um uso comercial, como já é explorado pelas empresas que possuem essas bases, mas também para construção de estratégias políticas, como foi visto, por exemplo, no referendo que optou pela 7 Para Joseph Nye (2011), poder cibernético se refere a “a capacidade de obter resultados preferenciais através do uso dos recursos de informação interconectados eletronicamente do domínio cibernético” (tradução nossa). Assim, esse conceito está diretamente relacionado a concepção de difusão do poder, pois trata-se de um recurso não exclusivo dos Estados ou de um único ator no sistema internacional, estando também disponíveis para atores não-estatais. 26 saída do Reino Unido da União Europeia em junho de 2016. Alia-se a essas bases de dados8, o conhecimento e a capacidade informacional para processá-los, montar agrupamentos, fazer análises e obter resultados concretos a partir de dados e metadados9 que são gerados a todo o tempo pelos serviços e plataformas que se utilizam da Internet. Essas empresas possuem o que Castells (2011) denomina de programadores e comutadores, respectivamente, a capacidade de criar, programar e reprogramar as redes sociais e a capacidade de controlar e interligar redes, a exemplo das aquisições feitas pelas grandes empresas, como a compra do Instagram pelo Facebook. Pode- se traduzir parte dessa ideia pelo funcionamento de algoritmos, que permitem a utilização dos resultados desses dados sobre os próprios usuários (a exemplo das "bolhas" criadas pelo Twitter e pelo Facebook10). Para nos referirmos a toda essa ideia de modo sintetizado, utilizaremos o conceito de Castells (2011) de network-making power, que aqui chamaremos de “poder de formação de redes”. Para o autor, esse conceito se refere aos donos e controladores de grandes redes de comunicação, que possuem poderes como decisão de conteúdo e formato da comunicação, que em sua finalidade atingirá objetivos de lucro, criação de poder e criação cultural. Ainda que empresas como Google e Facebook não sejam formalmente classificadas como empresas de mídia, tomaremos esse conceito de Castells dentro do contexto de máxima utilização e proveito de dados gerados constantemente por diferentes populações, abrangendo assim diversas sociedades, entendido como um recurso de poder determinante na atual arena internacional. Essa ideia pode ser complementada pelos conceitos apresentados por Belli (2019) de “lex eletrônica” ou “lex informática”, referente a regulação de natureza privada, dentro do contexto de autorregulação predominante até então no ecossistema da Internet. Apesar deste trabalho não se aprofundar em teorias de poder, partimos do pressuposto de Castells (2016) onde relações de poder são as relações fundamentais da sociedade, pois 8 Podemos entender também as bases de dados pelo termo big data, comumente utilizado pela mídia e pelos estudiosos de Ciência de Dados. Como coloca Maike Wile dos Santos (2017), o conceito de big data é um conjunto de dados relacional, cujo uso da Internet forneceu uma nova dimensão, transformando esse fenômeno em representações de nós mesmos, usuários da rede. 9 Metadados são informações geradas pelo uso de determinada ferramenta tecnológica, geralmente contendo dados pessoais, como por exemplo, a localização geográfica do usuário e o horário em que ele realizou uma determinada ligação pelo seu telefone celular. Para maior detalhamento, ver Canabarro (2014, p.335). 10 ALANDETE, D. “O problema é que damos todo o poder para plataformas como Google e Facebook”. El País, 20 jun 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/19/cultura/1497900552_320878.html. Acesso em: 1 nov 2019. 27 constroem e moldam as instituições e normas que regulam a vida social. Aplicando-se ao caso das grandes transnacionais da Internet, temos que […] those social actors who exercise power construct the dominant institutions and organizations in any given society according to their own values and interests, in a configuration that is specific to each society - and which is derived from its history, geography, and culture. (CASTELLS, 2016, p.2). Já o tema de neutralidade da rede também demanda definições e, assim como a questão de dados pessoais, apresenta controvérsias quanto ao seu significado. A origem dessa atribuição à rede, de que deve ser neutra, está ligada às origens do protocolo que possibilitou o funcionamento da rede mundial de computadores, o TCP/IP, que não enxerga diferenciações e/ou especificações dos pacotes de dados, ou seja, apresenta um caráter neutro. Foi esse princípio do tráfego “de ponta a ponta” que baseou inovações como e-mail e a própria web (WU, 2017). O provedores de conexão ou Internet Service Providers (ISPs) são os protagonistas do cenário da neutralidade da rede, opondo-se geralmente às plataformas como o Google e o Facebook. A disputa surgiu porque alguns ISPs estavam procurando serviços escalonados para cobrar taxas diferenciadas de acesso a seus canais para diferentes tipos de conteúdo (permitindo, por exemplo, um fluxo de receita de vídeo sob demanda). A neutralidade da rede tornou-se uma questão global quando os reguladores e os próprios provedores de conexão passaram a agir de modos diferentes entre países, o que se relaciona diretamente com o mercado de cada um. Por exemplo, o alto nível de concorrência na prestação de serviços de banda larga no Reino Unido tornou esse debate menos relevante, uma vez que o mercado estava bem posicionado para moldar as ofertas online (DUTTON; PELTU, 2009). Assim, a perspectiva mercadológica é bastante forte na discussão desse tema, como também apresentado pela visão da Microsoft em entrevista realizada para esta pesquisa11. Para Canabarro (2014, p.79, grifos nossos), o não cumprimento da neutralidade está diretamente relacionado a uma invasão de privacidade, pois […] implica potencialmente a necessidade de se vasculhar parcial ou totalmente o conteúdo trafegado, bem como características mais precisas sobre as aplicações e os usuários das pontas a partir de onde e para onde o tráfego flui. Por isso, uma Internet não neutra pode se relacionar com a violação aos direitos e às garantias fundamentais do sigilo e da privacidade das comunicações, consolidadas constitucionalmente, via de regra, em 11 De acordo com Ben Wallis, analista de políticas regulatórias da Microsoft, a empresa apoia a neutralidade da rede, mas considera esse um tema mais dependente de políticas nacionais, por ser uma questão de competição de mercado, embora haja espaço para que organismos internacionais recomendem boas práticas. A entrevista completa está no apêndice B. 28 grande parte das democracias liberais. Também, o oferecimento de níveis de serviço diferenciados para a conexão à Internet introduz um elemento de desequilíbrio e de iniquidade no acesso do conteúdo online, porque geralmente implica – para um mesmo tipo de aplicações – a priorização do acesso a determinados conteúdos e serviços patrocinados para serem mais fácil e rapidamente acessados, em detrimento daqueles conteúdos que optem por níveis de serviço inferiores. Ainda, determinados modelos de negócio que preconizam a não neutralidade se sustentam a partir do oferecimento de apenas alguns tipos de serviço (e-mails e redes sociais, sem acesso à transferência de vídeo e voz, por exemplo) restringindo o acesso a outras funcionalidades permitidas na Internet. Finalmente, a não neutralidade pode significar a ideia de que uma das pontas conectadas à Internet precisa pagar de maneira específica por cada conexão que deseja realizar ou por cada ponta que deseja alcançar. (CANABARRO, 2014, p. 79, grifos nossos) Há ainda que se considerar a perspectiva técnica, já que algumas aplicações demandam menor latência12 do que outras (uma transmissão de vídeo ao vivo por exemplo, com relação ao envio de um e-mail). Assim, a neutralidade pode ser entendida apenas entre aplicações do mesmo tipo (WU apud CANABARRO, 2014). Ambos os temas de proteção de dados e neutralidade da rede são discussões que já datam de anos, especialmente nos Estados Unidos. Assim, esta pesquisa foca em um determinado espaço de tempo, que se dá entre os anos de 2013 e 2018, como já mencionado, com início referente ao caso Snowden. Apesar de a preocupação com segurança de dados datar de muitos anos anteriores, assim como a espionagem estadunidense como veremos no capítulo seguinte, “[…] foi somente a partir de meados de 2013 que se teve uma ideia concreta da extensão, da profundidade e da minúcia, bem como das potenciais e efetivas ilegalidades contra cidadãos norte-americanos e de outros países indistintamente” (CANABARRO, 2014, p.333), o que gerou grande pressão internacional sobre a centralidade da Internet nos Estados Unidos. A partir desse episódio, uma série de acontecimentos tornaram-se casos relevantes para a agenda de pesquisa em governança da Internet, dos quais essa pesquisa busca compreender: o protagonismo momentâneo assumido pelo Brasil na governança global da rede; o encerramento do contrato entre a ICANN e o Departamento de Comércio estadunidense; o uso indevido de dados pessoais da plataforma Facebook, utilizados em campanhas políticas nos Estados Unidos e no Reino Unido em 2016; uso indevido de dados tanto do Facebook quanto do Google e; o fato de que Estados nacionais passaram a questionar com maior intensidade as condutas dessas empresas, também tomando ações legislativas 12 Em termos de conexão, latência é o mesmo que atraso, no contexto em que um pacote de dados vai de um ponto a outro. 29 como implementação de leis de proteção de dados, casos de União Europeia e Brasil. Tais episódios justificam os estudos até o ano de 2018, procurando compreender como a governança global da Internet respondeu a esses casos e se houve modificações substanciais nesses seis anos. O Brasil é visto nesta pesquisa como um ator de destaque, principalmente devido às ações tomadas após o caso Snowden, como se analisa com maior detalhamento no capítulo 3. A criação da lei pioneira “Marco Civil da Internet”, assim como a organização do evento NETMundial, ambos em 2014, colocaram o país no centro da governança global da Internet, sendo o NETMundial o primeiro encontro efetivamente multissetorial da rede que aprovou princípios de políticas públicas para o funcionamento da Internet. A União Europeia é outro ator de destaque na presente pesquisa, ainda que não previsto no projeto inicialmente. Com a entrada em vigor de sua Regulação Geral de Proteção de Dados (GDPR, no acrônimo em inglês), as consequências tanto para as empresas quanto para a governança em si foram bastante significativas. O Brasil também aprovou sua Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no mesmo ano e a ICANN mostrou dificuldades em se adequar a lei extraterritorial europeia, o que trouxe uma outra dimensão não prevista para este trabalho sobre transparência de dados na camada lógica da Internet e situou os Estados também como variáveis independentes na pesquisa, para além das empresas. Tal preponderância do tema de proteção de dados neste trabalho se deve justamente a mudança da agenda internacional em contemplar esse problema em detrimentos de outros, como a neutralidade da rede que teve maior protagonismo nas questões de governança entre 2014 e 2015. Como se mostra no capítulo 4, o tema da neutralidade foi a principal pauta da décima edição do IGF (realizada no Brasil), em grande parte devido a uma ação do Facebook, mas teve suas discussões bastante reduzidas no encontro de 2018, na França, onde a proteção de dados foi um dos principais tópicos, devido a entrada em vigor da lei europeia e do uso dos dados em campanhas políticas no Ocidente. Do mesmo modo, o IGF atende mais essa agenda política da Internet do que a ICANN, o que justifica sua primazia nesta pesquisa. Tendo em vista o contexto apresentado acima, utilizamos a proposta de Canabarro (2019) para uma divisão cronológica da governança da rede em três fases: 1) em um primeiro momento, a experimentação acadêmica que levou a constituição de uma comunidade epistêmica e a cultura ciberlibertária da Internet; 2) em seguida, a exploração comercial aliada a popularização da rede, assim como uma governança institucional a partir da jurisdição estadunidense e; 3) finalmente, o aumento na pluralidade de atores, assim como das 30 aplicações e espaços dentro da Internet (redes sociais, avanços tecnológicos na exploração e uso de dados, etc.) que tornaram ainda mais complexo o ecossistema dessa governança. Portanto, o foco deste trabalho é a terceira fase, mas para isso, é necessário retomarmos as duas fases anteriores para compreendermos a dinâmica entre os setores governamental e privado na evolução da Internet. O presente trabalho segue dividido da seguinte maneira: primeiramente apresentamos este capítulo de introdução e conceitualização, para esclarecer de modo mais específico os subtemas aqui trabalhados, a proteção de dados e a neutralidade da rede, além de explanar outros termos utilizados na pesquisa, já utilizando de uma breve revisão bibliográfica. O segundo capítulo faz uma retomada histórica das origens da Internet que justificam o protagonismo estadunidense até os dias atuais, mostrando a pouca participação do setor privado e o patrocínio governamental, até sua efetiva globalização e governança, esta iniciada por uma comunidade epistêmica que hoje ainda procura manter os ideais de universalidade e abertura da rede. Este capítulo também aborda, em três subseções, as origens da ICANN na década de 1990, do IGF na década de 2000, assim como seus desenhos institucionais e funcionamentos, e se encerra com uma discussão teórica das Relações Internacionais sobre o conceito de governança, o papel do Estado nacional e o modelo multissetorial. É no terceiro capítulo que se faz uma análise do cenário doméstico estadunidense, onde surgiram as empresas Google e Facebook, além de dados sobre o lobby dessas empresas no congresso norteamericano. Ademais, esse capítulo também olha para o Brasil, mostrando quais avanços políticos foram feitos após o caso Snowden e como o país participou da transição que envolveu a ICANN, encerrando o vínculo da organização com o governo dos Estados Unidos, assim como os temas de neutralidade da rede e proteção de dados foram abordados nos dois países, tanto pela perspectiva governamental quanto empresarial. Finalmente, é no quarto capítulo que se apresenta estudos concretos sobre o tensionamento do modelo da ICANN e o envolvimento das referidas empresas na governança multissetorial, com análises empíricas da participação de Google e Facebook nas reuniões do IGF ao longo desses seis anos: quais seus discursos, ações tomadas e articulações com países referentes aos temas aqui estudados. Além disso, a última subseção faz uma análise mais profunda acerca do multissetorialismo, analisando a tendência de um multilateralismo que ganhou força nessa governança dentro do período analisado. A pesquisa é então concluída com algumas considerações finais acerca desse momento da governança global da Internet, assim como apresenta uma futura agenda de pesquisa. 31 2 HISTÓRIA DA INTERNET E SUA GOVERNANÇA 2.1 Histórico e mecanismos de governança Ao falarmos de governança da Internet, devemos primeiramente esclarecer alguns dos conceitos da própria rede para, então, tratarmos dessa governança em si. Antes de definirmos “governança”, tanto dentro da bibliografia de Relações Internacionais quanto na área de estudos sobre Internet, devemos contextualizar a rede em sua origem e princípios. É essa história que determina os parâmetros para sua discussão ao longo do tempo. Não nos cabe aqui retomar as origens do computador ou de comunicações como o telégrafo, como já foi feito em inúmeros trabalhos que tratam da Internet13. Sem menosprezar a importância de algumas descobertas, avanços e figuras como a de Alan Turing, que deu os primeiros passos em algoritmos e inteligência artificial na criação de computadores, vamos diretamente para a criação da Internet, a rede das redes. É importante ressaltar, como nos lembra Castells (2001), que a ARPANET se originou do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, ainda que as aplicações militares fossem um projeto secundário. As conexões e compartilhamento acadêmicos eram o primeiro plano para o uso da rede. Castells (2009) também recorda que em 1970, o Departamento de Defesa ofereceu para a AT&T (corporação norteamericana de telecomunicações) a transferência das operações da ARPANET, mas a empresa recusou por não ter visto no projeto um interesse comercial. Tal acontecimento foi vital para que a Internet se tornasse o que é hoje. Desse modo, a dinâmica entre os setores governamental, privado e acadêmico (especialmente referente a comunidade epistêmica que surgiu nos primórdios da rede) deve ser revista, para então compreendermos o atual cenário da governança multissetorial. Os rumores sobre a criação da ARPANET, a rede militar estadunidense, em sua maioria, tratam da ideia de uma proteção nacional frente a um ataque nuclear. No entanto, como Hafner e Lyon contam no livro “Where Wizards Stay up Late” (1996), apesar de a ARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada, no acrônimo em inglês) ter de fato surgido durante o governo Eisenhower para competir com os esforços russos após o lançamento do Sputnik, a agência de projetos de pesquisa passou por uma reestruturação onde novos objetivos foram estabelecidos, inclusive aderindo a participação de mais jovens estudantes e acadêmicos. Dentro da ARPA, destaca-se a figura de Joseph Licklider cuja fascinação pelos 13 Para um histórico mais abrangente, ver Canabarro (2014). 32 computadores e sua visão de que esses equipamentos seriam facilitadores da comunicação humana levaram a agência a ter um foco especial na área da computação. Quase que simultaneamente, no início da década de 1960, outros pesquisadores como Paul Baran e Donald Davies tinham a ideia de criar uma nova rede de comunicações, baseada em "packet-switching", ou “troca de pacotes de dados”. Foi Baran quem criou o conceito de redes distribuídas, para garantir maior segurança à infraestrutura de comunicação. Nesse período, também, criavam-se os protocolos, configurações e procedimentos para envio e recebimento de informações. O projeto da ARPA, financiado pelo governo, fez parceria com uma pequena empresa na época para desenvolver a rede e lidar com os inúmeros problemas e dificuldades que envolviam tal projeto. A BBN Technologies chegou até a receber um telegrama do então senador Edward Kennedy, parabenizando a companhia por seu contrato em construir "the interfaith message processor" (HAFNER; LYON, 1996). Ao mesmo tempo, a ARPA encontrou com muitos céticos no setor privado quanto ao projeto de criação da rede, pois construir o hardware não foi o mais difícil, o desafio era interoperar hardware e software. Empresas como AT&T e IBM não viam possíveis lucros nesse funcionamento, que não possuía um mercado de massas como as redes de telefonia ou de televisão. No entanto, a AT&T possuía um subcontrato com outra agência do Pentágono para linhas de transmissão. Ainda que indiretamente, a grande companhia telefônica esteve envolvida na criação da Internet através da infraestrutura que possibilitou as primeiras conexões. Dentre os universitários que participavam do projeto, destacam-se Vint Cerf, Steve Crocker e Jon Postel. Haviam, em 1968, quatro "host sites" ou os primeiros pontos de conexão da rede: a Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), o Instituto de Pesquisas de Stanford (SRI), a Universidade da Califórnia em Santa Barbara (UCSB), e a Universidade de Utah. Um dos principais mecanismos de trabalho colaborativo, pelo qual mais tarde se basearia a governança técnica da rede, nasceu entre esses universitários: notas trocadas entre eles, chamadas de "Request for Comments" (RFCs) ou “pedidos para comentários” em tradução literal, a primeira sendo enviada em 7 de abril de 1969, em um envelope. RFC Number 1 described in technical terms the basic “handshake” between two computers—how the most elemental connections would be handled. “Request for Comments,” it turned out, was a perfect choice of titles. It sounded at once solicitous and serious. And it stuck (HAFNER; LYON, 1996). 33 Os RFCs ajudaram a espalhar o "espírito da Internet", onde todos eram iguais e disseminavam um trabalho colaborativo, um ambiente acolhedor e cooperativo, baseado no consenso14. Um dos principais protocolos que nasceram a partir desse grupo de universitários, agora autodenominados Network Working Group (NWG), foi o "host-to-host protocol", onde os pacotes de dados eram transmitidos independente do que aqueles dados eram: um arquivo, uma imagem gráfica ou uma sessão entre pessoas em dois terminais. A transferência de arquivos pelo protocolo FTP (file-transfer protocol) foi uma conquista significativa. Em 1972, esse protocolo foi “oficializado” no RFC 354, pelas mãos de Jon Postel. Logo o e-mail também se popularizou entre os participantes da ARPANET, inclusive com total liberdade de expressão: "There were antiwar messages and, during the height of the Watergate crisis, a student on the ARPANET advocated Nixon’s impeachment" (HAFNER; LYON, 1996). Até mesmo outros setores governamentais passaram a utilizar e-mails, como o Departamento de Comércio, a Agência de Segurança Nacional (NSA) e a campanha presidencial de Jimmy Carter em 1976. Com tais avanços, surgiram também os primeiros problemas de privacidade. O comando FINGER foi criado no início dos anos 1970 por um cientista da computação chamado Les Earnest, no Laboratório de Inteligência Artificial de Stanford, que permitia aos usuários espiar os hábitos online de outros usuários na rede. Ele não permitia a leitura das mensagens de outra pessoa, mas poderia informar a data e a hora do último login da pessoa e quando ela tivesse lido a última mensagem. Enquanto alguns usuários buscaram alterar configurações que aumentassem a privacidade, outros contestaram as modificações e preferiam a manutenção da rede livre (HAFNER; LYON, 1996). A década de 1970 também viu o nascimento de outras tentativas de redes fora dos Estados Unidos. Assim, os esforços para unir as diversas “internets” nacionais culminaram em uma única Internet global. Haviam também outras redes dentro dos Estados Unidos, como a acadêmica CSNET. Dessa maneira, um fator vital pôde unir todas esses redes e criar a Internet, de fato: o protocolo TCP/IP (Transfer Control Protocol / Internet Protocol) criado em 1974 por Vint Cerf e Bob Kahn, que publicado abertamente, ou seja, podendo ser reproduzido livre de restrições autorais, pôde viabilizar a transferência de dados não somente entre computadores, mas entre redes distintas (CANABARRO, 2014). 14 Esse caráter é essencial para compreendermos a preferência pelo modelo multissetorial que permeia a governança da Internet até hoje. 34 Foi esse protocolo que consolidou e popularizou a Internet (permitiu a “rede das redes”), levando-a para a sociedade civil. Como definem Wu e Goldsmith (2006, p.23, grifo nosso): In technical jargon, they created a network with “open architecture,” or “end-to-end” design. In nontechnical terms, the founders embraced a design that distrusted centralized control. In effect, they built strains of American libertarianism, and even 1960s idealism, into the universal language of the Internet. (WU; GOLDSMITH, 2006, p. 23, grifo nosso). Assim, devido ao conglomerado de redes que agora podiam se comunicar pelo protocolo TCP/IP, esse conjunto de redes passou a ser chamado de Internet, utilizando a primeira palavra do “Internet Protocol”. Agora, também, era possível diferenciar “internet”, com inicial minúscula, de “Internet”, com inicial maiúscula, onde segundo Hafner e Lyon (1996) "internet" era qualquer rede utilizando o protocolo TCP/IP, podendo ser uma rede privada, enquanto "Internet" era a rede pública, financiada pela federação, que unia todas as outras redes utilizando o TCP/IP. Ainda segundo os autores, a distinção não importava até meados da década de 1980, quando os fornecedores de roteadores começaram a vender equipamentos para construir internets privadas fora do meio acadêmico. Mas a distinção rapidamente se desfez quando as empresas privadas construíram portais para a Internet pública. Sem um forte envolvimento do governo norteamericano, a década de 1980 viu o surgimento de uma das mais importantes instituições para a manutenção da Internet, sob a liderança de sua comunidade epistêmica. A criação da Internet Engineering Task Force (IETF) em 1986 foi o início de uma institucionalização para a governança da rede, preservando os valores e a cultura ciberlibertária. Wu e Goldsmith (2006) fazem uma comparação entre os mecanismos governamentais “top-down”, ou seja, quando há uma cadeia de comando “de cima para baixo” onde os cidadãos obedecem devido aos custos de coerção, e o mecanismo contrário presente nessas instituições que surgiam como a IETF, onde não havia decisões impostas, mas sim discussões, argumentos e consensos que emergiam “de baixo para cima”. Tal ideia é sintetizada na famosa frase de um dos membros dessa comunidade, Dave Clark: “We reject: kings, presidents, and voting. We believe in: rough consensus and running code”. Essa dinâmica é determinante para a construção da governança da Internet que se tem hoje. É notável também que, atualmente, muitos dos participantes do IETF representam interesses do setor privado, ou seja, o mercado determina decisões técnicas que implicam em políticas públicas. É o que DeNardis (2014) chama de privatização da governança da Internet. 35 A ARPANET, oficialmente, funcionou até o ano de 1990, quando foi incorporada pela rede acadêmica NSFNET. Assim, ainda que a academia exercesse um protagonismo na criação e no gerenciamento da rede, o financiamento e o interesse pela troca das informações em si ainda colocavam o governo dos Estados Unidos como um protagonista discreto: O acesso à informação é privilégio de uma sociedade restrita aos círculos do poder estatal e ao conhecimento científico comprometido com a governabilidade e as ações contratadas de elaboração de documentos estratégicos e de circulação tática de informações. (SILVA apud LUCERO, 2011, p.53). Passando a outro ponto vital da história da Internet, temos o surgimento da World Wide Web (WWW) ou, simplesmente, da web em 1989. Sua criação é atribuída à Sir Tim Berners-Lee, à época físico na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), que teve a ideia de organizar e compartilhar informações de modo simplificado, o que gerou a linguagem hypertext mark-up language ou html. Nasceu assim uma das principais aplicações da Internet, onde um clique em um hyperlink permite o acesso à todo um conjunto de informações, seja um texto ou uma imagem, as possibilidades são diversas. Como exemplo, podemos citar os vários links de referências presentes nesse trabalho, que quando “clicados” redirecionam o leitor para aquela página da web. São os navegadores, ou browsers, que permitem nosso acesso à web, seja ele um navegador fornecido por uma empresa, como o Chrome, do Google, ou um navegador de código livre como o Mozilla Firefox, mantido por centenas de colaboradores. A web foi um fator decisivo para popularizar o uso da rede graças à sua interface gráfica. Assim, é pertinente diferenciar a Internet da web, esta última sendo uma aplicação da Internet. Em 1993, Berners-Lee estabeleceu um padrão para que a web fosse algo totalmente livre e gratuito, permitindo a qualquer um no mundo inovar e compartilhar informações, aumentando assim a colaboração e a criatividade entre os usuários. No ano seguinte, o inventor da web se mudou para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde fundou o World Wide Web Consortium (W3C), uma comunidade internacional voltada a desenvolver protocolos da web aberta (WEB FOUNDATION, 2018). O acesso à websites se dá através de nomes de domínio, por exemplo o site da organização Web Foundation, de Sir Tim Berners-Lee, é webfoundation.org, que corresponde à um número de endereço IP. Os nomes foram justamente criados para que não precisássemos guardar as sequências de números IP, do chamado Sistema de Nomes de Domínio (DNS), criado durante a década de 1980, cuja arquitetura corresponde a 13 servidores raiz, que https://webfoundation.org/ 36 distribuem a informação para servidores espelho. Desses 13 servidores, 10 estão em território estadunidense. Um endereço de IP corresponde ao formato 192.168.0.20 (no antigo protocolo Ipv4) ou fe80::b861:d65d:dc93:2108/64 (no novo protocolo Ipv6). São esses códigos alfa- numéricos que identificam as máquinas conectadas à rede15. Assim, com cada máquina possuindo um identificador diferente e, mais tarde, os servidores onde websites são hospedados, iniciou-se o que seria essa base de dados que relaciona os números IP (endereços) com seus respectivos nomes. De acordo com Datysgeld (2018), a consolidação da Internet está fortemente atrelada ao controle governamental estadunidense, em especial o DNS e as funções da Autoridade para Atribuição de Números da Internet (IANA) que coordenam a raiz dos nomes e números da rede. Isso culminou em anos de conflito pelo controle da governança da Internet por várias partes interessadas, a exemplo de um grupo de pioneiros que se reuniu na Sociedade da Internet (ISOC). Entretanto no ano de 1998, a ICANN foi formada por um pedido do governo democrata de Bill Clinton […] to transition the DNS from a liability to the United States government into an asset led by the private sector that would allow for international input into its policies, but still remain under supervision of the United States. (DATYSGELD, 2018, p. 6). Jon Postel, um dos pioneiros da Internet, foi um dos pesquisadores por trás da gestão de registros de nomes e números, o que levou a criação da IANA, melhor explicada adiante quando falarmos da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN). Em resumo, os nomes de domínio representam um forte exemplo do conflito entre a Internet e os Estados nacionais, já que não pode haver o mesmo nome de website dentro de um mesmo top level domain (TLD), como .com ou .net, o que gera disputas em nomes como .amazon16, por exemplo. A popularização da Internet e sua breve comercialização não representou um sucesso imediato ao setor privado, inclusive à BBN, empresa que participou da criação da rede. Eles 15 A diferença entre os protocolos IPv4 e IPv6 é que o primeiro, formulado na década de 1980, tinha uma capacidade máxima de 4 bilhões de endereços, o que se mostrou insuficiente diante da expansão da Internet. Assim, criou-se o protocolo IPv6 que permite um número muitas vezes maior de endereços, além de viabilizar a Internet das Coisas (IoT). Vicentin e Rosa (2016, p.70) chamam a atenção para uma possível consequência do uso do IPv6 para proteção da privacidade, já que "o número potencialmente ilimitado de endereços abre a possibilidade de que cada aparelho receba um número de IP fixo, que combinado com outras informações, deverá facilitar a identificação dos usuários". 16 O caso do .amazon é melhor explanado no capítulo 4. 37 perderam milhões de dólares em 1993, assim como perderam uma grande oportunidade ao não adentrar ao mercado de roteadores (HAFNER; LYON, 1996). A partir de então, a rede se ampliou e passou a incorporar valores comerciais. Mas como ressalta Castells (2009, p. 103): “By and large, the Internet emerged in a legal vacuum with little supervision from regulatory agencies, including the FCC17. The agencies that were created developed on an ad hoc basis to solve the needs of the users of the network”. Temos, então, no início da década de 1990, um ponto de transição entre o protagonismo da comunidade epistêmica e o envolvimento governamental. Lih (2009, p. 51) sintetiza esse contexto: The Internet had been around since the early 1980s, as the TCP/IP networking standard had made it easy to patch together separate networks run by various research corporations and universities. But utilizing the Internet in the early days was not a user-friendly experience. You had to know how to use a “command line” interface to type in cryptic incantations to transfer files or pull information from other computers. And it most certainly did not have anything graphical or visually compelling for the beginner as we have with today’s Web browsers. Until 1990, the Internet was the domain of the geeks—a place for text-based electronic mail, message boards, and file transfers. It was highly biased toward the English language. The Internet’s origins in U.S. military research meant there was a lack of standards for dealing with the coding of foreign languages. That made it especially deficient for non-Roman texts such as Arabic and Chinese. (LIH, 2009, p. 51) A cultura que se consolidou na criação da Internet pela sua comunidade epistêmica está bem sintetizada na Declaração de Independência do Ciberespaço, redigida por John Perry Barlow em 1996. O ativista político era contrário ao envolvimento dos governos e da própria lógica do mercado que começavam a adentrar a rede durante a década de 1990 (BARLOW, 1996, grifos nossos): Governments derive their just powers from the consent of the governed. You have neither solicited nor received ours. We did not invite you. You do not know us, nor do you know our world. Cyberspace does not lie within your borders. Do not think that you can build it, as though it were a public construction project. You cannot. It is an act of nature and it grows itself through our collective actions. You have not engaged in our great and gathering conversation, nor did you create the wealth of our marketplaces. You do not know our culture, our ethics, or the unwritten codes that already provide our society more order than could be obtained by any of your impositions. (BARLOW, 1996, grifos nossos). 17 Castells se refere aqui ao Federal Communications Commision (FCC), ou Comissão Federal de Comunicações, órgão regulador estadunidense equivalente a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) no Brasil. 38 Barlow se opunha fortemente a qualquer tipo de controle governamental, já que o ciberespaço é tido como algo único e que foge do espaço controlado por um governo. Cappi e Venturini (2018) relacionam as ideias de Barlow ao conceito de “ciberlibertarianismo”, do acadêmico Milton Mueller, “que se funda na ideia de que a Internet se manteria livre, porque a liberdade estaria incorporada enquanto princípio em seus protocolos”, o que traz um caráter neutro à tecnologia, evidentemente contrário a situação atual e global da Internet. Barlow foi uma figura fundamental na história da rede, tendo fundado a Eletronic Frontier Foundation (EFF), uma organização que defende o caráter aberto da rede e sem intervenção estatal, contando até mesmo com apoio de empresas como a Microsoft na década de 1990. Se Cerf e Postel são os engenheiros que simbolizam a comunidade epistêmica da Internet, Barlow consolidou o que Wu e Goldsmith (2006) chamam de “revolução da Internet”. Podemos complementar essa análise sobre a comunidade epistêmica através de Castells (2001, p. 33), concernente a institucionalidade da governança da rede, que ali nascia: […] the truly surprising accomplishment is that the Internet reached this relative stability in its governance without succumbing either to the bureaucracy of the US government or to the chaos of a decentralized structure. That it did not was mainly the accomplishment of these gentlemen of technological innovation: Cerf, Kahn, Postel, Berners-Lee, and many others, who truly sought to maintain the openness of the network for their peers, as a way to learn and share. In this communitarian approach to technology, the meritocratic gentry met the Utopian counterculture in the invention of the Internet, and in the preservation of the spirit of freedom that is at its source. The Internet is, above all else, a cultural creation. (CASTELLS, 2001, p. 33). Este cenário mudaria a partir da década de 1990, durante o governo Clinton. O comércio eletrônico já dava seus primeiros passos e, em 1995, o presidente democrata encarregou seu assessor Ira Magaziner para coordenar e elaborar uma política pública sobre o comércio eletrônico global, cujo mantra era "liderança do setor privado" (LUCERO, 2011). Com o crescimento de interesse comercial nos nomes de domínio para websites, a gestão da rede que passou do Departamento de Defesa para a Fundação Nacional da Ciência (NSF), foi então para o Departamento de Comércio, além de logo ganhar sua própria instituição, a ICANN. Criada em 1998, essa entidade estava vinculada ao Departamento de Comércio, afinal, a privatização da Internet foi voltada à comercialização de nomes de domínio, comércio e a veiculação de anúncios18. Como explica Lucero (2011, p.93-94): 18 O Yahoo!, fundado em 1994, foi um dos sites pioneiros em veiculação de anúncios na web, posteriormente seguido pelo buscador Google e hoje disseminado em grande escala, especialmente pelas redes sociais, o que atingiu questões de privacidade pelo uso dos dados pessoais. 39 Pela Diretiva Presidencial de 1/7/1997, o presidente Clinton redistribui para o Departamento de Comércio as funções até então desempenhadas pela NSF, com a orientação de que este favoreça a implantação de regime privado autorregulado do DNS, que possa dirimir potenciais conflitos entre o uso de nomes de domínio e direitos sobre marcas registradas, em bases globais. (LUCERO, 2011, p. 93-94). A missão da ICANN é definida em assegurar a operação segura e estável do Sistema de Nomes de Domínio (DNS). Hoje a corporação conta, dentro de seu ecossistema, com diversas organizações interessadas em manter a Internet aberta e competitiva, sendo uma delas a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO, no acrônimo em inglês), cujos representantes participam, na posição de observadores, do Comitê Consultivo Governamental (GAC, no acrônimo em inglês), um dos vários comitês consultivos que compõem a organização19. Como colocam Canabarro e Gonzales (2018, p. 254): Nomes domínios dotados de valor econômico, social, político e cultural passaram a conformar um mercado próprio, atraindo fluxos consideráveis de capital e habilitando uma nova arena de atuação para agentes financeiros. O simbolismo semântico desses identificadores tem gerado, constante e crescentemente, disputas acirradas em torno do seu uso. (CANABARRO; GONZALES, 2018, p. 254). A ICANN será melhor tratada na subseção seguinte, mas já podemos perceber que a Internet estava se tornando uma arena de disputa. Agora não mais concentrada nos Estados Unidos, os ideais que pautaram sua criação como abertura, liberdade e universalidade, eram ameaçados frente aos interesses da pluralidade de atores que participavam desse ecossistema, sendo o governo norteamericano um deles. Para além da questão comercial, vale ressaltar também as preocupações sobre liberdade e vigilância que surgiram entre as décadas de 1990 e 2000. Castells (2001) remete a questão da liberdade às origens da rede, que graças ao seu desenvolvimento nos Estados Unidos, já vinha com uma proteção constitucional da liberdade de expressão, garantida pelas cortes estadunidenses e pela Primeira Emenda da Constituição. O governo fez sua primeira tentativa de controle da Internet já no governo Clinton, em uma articulação com o Congresso e o Departamento de Justiça, alegando proteção das crianças contra os males sexuais oriundos da Internet20. 19 Para um estudo aprofundado sobre a atuação de Estados nacionais no ecossistema da ICANN, sob uma perspectiva das Relações Internacionais, ver Datysgeld (2017). 20 Vale destacar que a seção 230 da lei protege provedores de conteúdo, como as plataformas, da responsabilidade por conteúdos postados pelos usuários. The Communications Decency Act of 1996. Internet Law. Disponível em: https://internetlaw.uslegal.com/free-speech/the- communications-decency-act-of-1996/. Acesso em: 8 nov 2019. 40 O envolvimento do governo com a rede em questões eleitorais, que ganhou foco com a eleição presidencial de 2016, também data de administrações do final da década de 1990 e início dos anos 2000. Uma base de dados foi criada durante as eleições de 2000, chamada Aristotle, que utilizando dados de diversas fontes, fornecia perfis políticos de cidadãos a serem vendidos ao maior comprador, geralmente escritórios de campanhas dos candidatos (CASTELLS, 2001). A vigilância também se mostra presente no ano 2000, ou seja, mesmo antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, que garantiram uma amplificação da vigilância massiva que culminou no caso revelado por Edward Snowden, em 2013. Na época, o Congresso financiou, a pedido do Federal Bureau Investigation (FBI), alguns programas para vigilância como o “Digital Storm”, que gravava conversas telefônicas e permitia busca direcionada por termos específicos. Castells (2001) destaca o papel do setor privado de forma irônica, já que as empresas de Internet carregavam a ideologia libertária das origens da rede, mas ao mesmo tempo forneciam a tecnologia necessária para quebrar anonimato e restringir privacidade, cenário que traz esse conflito até a atualidade. Foi também ao final da década de 1990 e início da década de 2000 que começaram a surgir empresas no Vale do Silício como os próprios Google e Facebook, melhores analisados no capítulo 3. O ambiente norteamericano propiciou o crescimento dessas empresas que, em poucos anos, alcançariam um mercado global. Desse modo, percebe-se que a Internet sempre esteve ligada, em disputas pelo seu controle, a dois temas essenciais: a liberdade de expressão e o uso dos dados gerados por seus usuários. Como veremos adiante, a liberdade de expressão liga-se diretamente a questão da neutralidade da rede. A história da Internet é, até hoje, permeada por conflitos, disputas e poderes entre os Estados e a sociedade, enquanto que empresas privadas do setor tecnológico ficam geralmente entre esses dois atores, possuindo poderes consideráveis. Em um ambiente sem regulações, onde o maior favorecido é o mercado, a Internet se expandiu não só em conectividade, mas em conteúdo. O surgimento das mais diversas plataformas e sistemas operacionais para computadores trouxeram para a sociedade ocidental nomes que se tornaram parte do cotidiano: Microsoft, Yahoo!, Apple, Google, Facebook. O parâmetro para atuação dessas empresas e para o funcionamento da Internet em si se mantinha sendo o ciberlibertarianismo, ainda que na prática não fosse exatamente assim. A gestão da rede passou de uma comunidade epistêmica concentrada nos Estados Unidos para uma pluralidade de atores atingidos pela Internet e, logicamente, interessados em 41 seu uso e funcionamento, assim como na negação de um papel forte do Estado, o que culminou no caráter multissetorial para essa governança. Nesse sentido, com o aumento dos atores participantes, começou também um aumento em temas, desafios e novidades que as inovações na Internet propiciaram ao ecossistema digital. Destaca-se o modelo de negócios de muitas plataformas, como as do Google e do Facebook, baseado nos dados pessoais dos usuários para personalizar experiências e render às companhias lucro proveniente dos serviços publicitários, direcionados especificamente para públicos-alvo, graças aos perfis de personalidade gerados pelos processamento de dados. Nesse sentido, vemos que a cultura da criação da Internet junto ao contexto favorável estadunidense permitiu as empresas de tecnologia prosperarem sem restrições. Desde o incentivo governamental para também usufruir das ferramentas de comunicação, passando pelas universidades e a comunidade epistêmica, até a política governamental de liderança do setor privado, todos esses fatores possibilitaram o surgimento de uma economia baseada em dados e informação, que hoje sabemos, favorece não só as empresas que detêm esse recurso de poder, o poder de formação de redes, como também o próprio governo para fins estratégicos, seja econômica ou politicamente. Como é exposto no capítulo 3, o ambiente sem regulações norteamericano hoje enfrenta um cenário oposto vindo da Europa, o que tensiona a Internet global em si. Pelo foco dado neste trabalho ao setor privado estadunidense, nossos estudos sobre governança não focam na UIT, ainda que essa organização seja um espaço participante na temática. Ao atuar especialmente na camada de infraestrutura da Internet, a agência da ONU para telecomunicações nunca abordou a Internet profundamente para além dessa camada, embora tenha emitido resolução sobre plataformas em 2018, como já mencionado. Tal documento preza por boas práticas e por ambientes favoráveis ao desenvolvimento de aplicações, sem estabelecer alguma regulação. O mandato da UIT trata exclusivamente de aspectos técnicos, deixando de fora portanto temas relacionados a Direitos Humanos, ainda que hoje esse âmbito seja intrínseco à tecnologia. Até mesmo o trabalho da agência em desenvolvimento de padrões foi perdendo monopólio frente as grandes corporações privadas como AT&T e Sprint, como coloca Kurbalija (2014, p.37) “Since most Internet traffic is carried over the telecommunication infrastructures of such companies, they have an important influence on Internet developments”. O caráter multissetorial fica claro desde os primeiros trabalhos colaborativos de criação da rede, tornando-se “oficial” na década de 1990 e buscando aprimorar a cooperação 42 entre atores, cujo número é cada vez maior no contexto da globalização. A seguir, vemos como se compõem dois dos principais espaços de governança multissetorial para a Internet global: a ICANN, um órgão privado recentemente desvinculado do governo estadunidense; e o IGF, um fórum mais voltado ao Estado nacional, mas com pretensões multissetoriais. 2.1.1 Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN) A Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN) é a principal organização mundial quando se trata tanto de Internet quanto de modelo multissetorial. Seu papel no funcionamento dos endereços IP e sua dimensão fazem com que seja o principal espaço global para discussão e formulação de políticas para a Internet. Assim, faz-se necessário saber sua história, seu funcionamento e seu papel no cenário da governança da rede. Jon Postel era um dos pesquisadores por trás da gestão de registros de nomes e números durante a década de 1980, o que levou a criação da Autoridade para Atribuição de Números da Internet (IANA), posteriormente absorvida pela ICANN em 1998. Com subsídios do governo estadunidense à IANA, Postel criou uma espécie de “lista telefônica da Internet” relacionando cada número IP ao seu dono, além de tomar decisões técnicas que moldaram o funcionamento da rede. Com a chegada da web na década de 1990, a Internet ficou mais acessível e o número de usuários passou a crescer, assim como todo o sistema de nomes de domínio (DNS). O potencial comercial dos websites foi percebido pela administração Clinton que, em 1997, privatizou o DNS no intuito de aumentar a competitividade e também permitir maior participação internacional em sua gestão (CASTELLS, 2009). O Departamento de Comércio estabeleceu então a ICANN em 1998 sem envolvimento direto de governos, como aponta Castells (2009, p. 105): A coalition formed by an active user community, civil libertarians, and the US courts became the guardian of the Internet’s autonomy, so that much of the Internet remained a vast social space of experimentation, sociability, and autonomous cultural expression. Every attempt to tame or parcel out the Internet was countered with such determination that governments and corporations had to learn to use the Internet to their benefit without subduing its autonomous development […] Yet, when the expansion of broadband and the rise of Web 2.0 opened up new opportunities for profit-ma