LEONARDO LIMA BREDA “Ó do Brasil! Alerta!”: Cipriano Barata e o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco (1823) Assis 2022 LEONARDO LIMA BREDA “Ó do Brasil! Alerta!”: Cipriano Barata e o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco (1823) Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador: André Figueiredo Rodrigues Assis 2022 Breda, Leonardo Lima B831d "Ó do Brasil! Alerta!": Cipriano Barata e o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco (1823) / Leonardo Lima Breda. Assis, 2022. 128 p. : il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. André Figueiredo Rodrigues 1. Brasil - História - Império, 1822-1889. 2. Sentinela da Liberdade (Jornal). 3. Almeida, Cipriano José de, 1762-1838. 4. Jornais brasileiros - Pernambuco - Séc. XIX. 5. Imprensa - História - Aspectos políticos - Brasil. I. Título. CDD 079.81 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 BREDA, Leonardo Lima. Ó do Brasil! Alerta!: Cipriano Barata e o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco (1823). 2022. 128 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2022. Resumo Durante as primeiras décadas do século XIX, o projeto institucional que daria vida ao nascente império do Brasil veria a formação de uma conjuntura histórica de intensos debates entre as diferentes vertentes jornalísticas da imprensa periódica, pelas mãos de seus editores, intelectuais membros das elites da América portuguesa e engajados com as discussões políticas de seu tempo. Deste cenário ideológico efervescente, criador de culturas políticas únicas, o sujeito histórico do homem “letrado” ergue-se como figura combativa, incendiária e mobilizadora da opinião pública de seus leitores, no que os métodos de análise da argumentação retórica, conjuntamente com os estudos léxico-linguísticos, puderam desvelar a natureza deste personagem. E em um primeiro momento de investigação histórica, a análise do periódico “Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco”, publicado durante o ano 1823, por Cipriano José Barata de Almeida, mostra-se como uma luz experimental para um projeto de tipificação ulterior. Em meio a diversos brados de “Alerta!”, Cipriano Barata construiu a sua guarita em Pernambuco, onde se portou como “sentinela” do liberalismo brasileiro. Palavras-chave: Império do Brasil; Sentinela da Liberdade; Cipriano Barata; Análise Retórica; Lexicologia. BREDA, Leonardo Lima. Ó do Brasil! Alerta!: Cipriano Barata e o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco (1823). 2022. 128 p. Thesis. (M.Sc. in Liberal Arts) – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis. 2022. Abstract During the first decades of the 19th century, the institutional project that would give life to the nascent empire of Brazil would see the formation of a historical conjuncture of intense debates between the different journalistic strands of the periodical press, at the hands of its editors, intellectuals members of the Portuguese America´s elites and engaged with the political discussions of their time. From this effervescent ideological scenario, creator of unique political cultures, the historical subject of the “lettered” man rises as a combative, incendiary figure that mobilizes the public opinion of its readers, in which the methods of the rhetorical argumentation analysis, together with the lexical-linguistic and semantic studies were able to reveal the nature of this character. And in a first moment of historical investigation, the analysis of the periodic “Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco”, published during the year of 1823, by Cipriano José Barata de Almeida, shows itself as an experimental light for a further typification project. In the middle of several cries of “Alert!”, Cipriano Barata built his guardhouse in Pernambuco, where he behaved like a “sentinel” of Brazilian liberalism. Key-words: Empire of Brazil; Sentinel of Liberty; Cipriano Barata; Rethorical Analysis; Lexicology. Agradecimentos Em especial à minha família, minha mãe Meire, meu pai Sidnei, e minha irmã Lívia, por todo o apoio, ajuda e paciência investidos em mim durante esses anos, a qual só tenho a agradecer imensamente. Aos meus avós, por todo o carinho e zelo nos momentos do dia a dia; além do exemplo de pessoas que vocês são e que com certeza levarei para a minha vida toda. Aos amigos, em especial Ellan, pelas diversas discussões de cunho filosófico que tivemos, e que foram responsáveis por aclarar algumas das questões de pesquisa. Aos meus orientadores, o Prof. Dr. André Figueiredo, por me guiar nesta importante fase acadêmica que é o Mestrado, e ao Prof. Dr. Thiago Granja, por ter me auxiliado a “caminhar com as próprias pernas” na época da graduação. E, por fim, ao grande amor da minha vida, Luana, por estar ao meu lado em todos os momentos; só tenho a agradecer. O resultado de todo este trabalho não seria possível sem a ajuda de cada um de vocês... Obrigado! Tabelas e Gráficos Tabela lexicométrica I..................................................................................................................73 Tabela lexicométrica II (Parte 1)..................................................................................................75 Tabela lexicométrica II (Parte 2)..................................................................................................76 Gráfico de frequência diacrônica I...............................................................................................79 Gráfico de frequência diacrônica II..............................................................................................81 Gráfico de frequência diacrônica III.............................................................................................83 Gráfico de frequência diacrônica IV............................................................................................85 Sumário Introdução .................................................................................................................................... 8 Capítulo 1: Analisando o “Sentinela”: abordagens para o discurso argumentativo ......... 13 1.1 Definindo o corpus: o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco .................... 14 1.2 O orador e o discurso: teorias e metodologias da análise argumentativa .................... 22 Capítulo 2: Cipriano José Barata de Almeida: a tipificação do homem letrado ................. 29 2.1 A aproximação conceitual: o “homem de letras” e os homens “letrados” ..................... 30 2.2 O tipo ideal em História: a compreensão sociológica dos homens “letrados” .............. 45 Capítulo 3: O editor e o seu editorial: relações de palavras e ideias .................................. 54 3.1 O estudo do léxico: a construção do discurso .............................................................. 55 3.2 Tabelas lexicométricas: estruturação e funcionamento do discurso ............................ 73 3.3 Relações lexicais: os gráficos de frequência diacrônica ............................................... 79 Capítulo 4: “Ó do Brasil! Alerta!”: as estratégias argumentativas do “Sentinela” ............ 89 4.1 As técnicas de retórica: argumentos, figuras e presunções ......................................... 90 4.2 Categorização do discurso: a enunciação semântica do editor .................................... 99 4.3 O enredo histórico: o “Sentinela” e a conjuntura política de 1823 .............................. 107 Conclusões .............................................................................................................................. 124 Referências .............................................................................................................................. 127 8 Introdução Quando o historiador se volta para a análise da conjuntura histórica dos anos 1820, do universo político e social luso-brasileiro, uma das características que mais chamam a atenção é o fato de ser este um período agitado, de instabilidades políticas e efervescência de ideias, entorno de um nascente espírito liberal e revolucionário. Tal conjuntura resumia-se através das discussões acerca da funcionalidade das Luzes emanadas da Universidade de Coimbra em relação com a convocação de representantes políticos da América portuguesa a se sentarem nas cadeiras parlamentares de uma nova constituinte em Lisboa. Ao mesmo tempo, retóricas “recolonizadoras” e, posteriormente independentistas, eram exploradas pelos escritores da imprensa periódica brasileira daquele momento. Eis que dessa imprensa emergente uma série de panfletos, pasquins e “folhetinhos” começaria a incitar a opinião pública, no ataque aos inimigos políticos de seus editores, convocando-os a “pegarem em armas”, na luta contra aquilo que ainda representava, em seus ideais, os resquícios históricos de um absolutismo português. Na América portuguesa, estes editores fariam, pois, verdadeira cruzada ideológica, no persuadir das ações políticas de seus leitores, em especial durante os anos de 1822 e 1824, dando origem às guerras de independência que as diferentes províncias brasileiras teriam de lutar, para enfim verem-se livres do jugo lusitano, modificando com isso, o universo da cultura política de então. Sob os estigmas das guerras independentistas, que carregam em seu arcabouço o processo de emancipação política da nação bragantina, adviriam tensões políticas e diplomáticas que se deram por diversas regiões provincianas, envolvendo a sede metropolitana da corte fluminense no Rio de Janeiro, passando pelas pradarias da província cisplatina, no Sul, e pelas praias, matas e sertões do então Norte da América portuguesa, em um cenário belicoso, cansativo e sangrento.1 1 Alguns destes trechos introdutórios foram inspirados em capítulos de minha autoria presentes na obra organizada pelo historiador Flávio José Gomes Cabral, A independência do Brasil em foco: história, cultura e instituições. Ver: Cabral, 2021. 9 Partiu-se então, do questionamento de como a imprensa periódica se relacionou com sua conjuntura política no surgimento de sujeitos históricos (editores) e seus trabalhos escritos (editoriais), nos quais estes fitavam a mobilização da opinião de uma elite letrada que agia politicamente, sob os auspícios da emancipação brasileira. Muitas foram as abordagens empregadas nesta elaboração teórica, na definição de seus temas, objetivos e problematizações. Um dos principais pontos dentre estes, balizou-se na tentativa de tipificar o que viria a ser esta elite “letrada” e, especificamente, seus editores “letrados”, imersos na conjuntura histórica da independência do Brasil. Partindo do estudo de uma individualidade, para enfim tipificá-la, estabeleceu-se um método pautado na análise destes homens “letrados”, que levou em consideração suas estratégias argumentativas (retóricas), as relações com os seus leitores, as estruturas de seus periódicos, suas características linguísticas (lexicais e semânticas), e as interações sociais entre estes sujeitos, entendidos como uma espécie de cultura, ou grupo, político e histórico. Na busca de discussões historiográficas que levavam em conta a análise dos homens “letrados”, chegou-se na obra do historiador francês Michel Winock (2006), nos seus postulados teóricos acerca dos “homens de letras” franceses do século XIX. Nas palavras do autor, se tratavam de sujeitos eruditos, versados em premissas filosóficas e que viveram estritamente de suas letters, ou seja, das suas ideais “materializadas” no papel escrito, consumidas por um público leitor que, por sua vez, garantia a subsistência destes escritores.2 Teorizados, originalmente, em um ambiente historiográfico francês, foram eles aqui aproximados a uma conjuntura histórica luso-brasileira 3 , através de alguns pontos de semelhança entre a figura do “homem de letras” 2 Mais detalhes acerca dos “homens de letras” winockianos e sua aproximação com os homens “letrados” brasileiros estão presentes nas discussões teóricas do capítulo 2. 3 O vintismo, enquanto tema historiográfico, é identificado como sendo a conjuntura política dos primeiros anos da segunda década do século XIX, do universo luso-brasileiro, num contexto de choque entre duas ideologias dominantes: a de um conservadorismo com tendências ao “despotismo antigo”, e a de um liberalismo inspirado no movimento das Luzes portuguesas. Das relações sincréticas entre ambas, surgiria o que se poderia considerar como a cultura política vintista. Para maiores informações, recomenda-se a leitura da obra Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822), da historiadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (2003). 10 francês, e a elite de “letrados” presente na América portuguesa daquele momento, sempre atentando-se ao fato de que tal adaptação foi realizada em níveis de inspiração teórica, não se tratando de uma transposição prática de conceitos, visto serem eles distintos em alguns de seus alicerces. A homogeneidade de capital cultural e de uma formação acadêmica liberal e erudita, fez com que estes editores da imprensa periódica dos oitocentos depositassem em seus editoriais partes marcantes de suas ideologias políticas, pensamentos sobre a sociedade contemporânea a eles, e opiniões pessoais sobre o sistema institucional de sua época. Em alguns casos, este discurso se extremaria, até se tornar radicalizado, ou incendiário. Tendo por inspiração historiadores brasileiros como José Murilo de Carvalho (2008) e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (2006), esta dissertação seguiu buscando o identificar dos componentes de uma imprensa brasileira incendiária, mobilizadora, liberal e exaltada. Alguns pontos teóricos foram reunidos para tal, como as historiografias voltadas para os estudos do iluminismo português, elites políticas, cultura política e o uso de tipos ideais em História, além de aproveitamentos práticos, como o emprego do método linguístico de estudos do léxico (lexicologia e lexicometria) e dos métodos do campo da nova retórica. 4 Devido à complexidade do tema, preferiu-se partir de um inaugural estudo de caso de um dos indivíduos que, após análises de caráter empírico, demonstrou-se ser o “estereótipo”5 destes editores letrados do século XIX, do contexto histórico luso-brasileiro: seria ele Cipriano Barata, e o seu periódico circulado durante o ano de 1823, o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco. Nas Sentinela 6 , Barata acompanhou e debateu as guerras de independência do Brasil, noticiou informações do contexto político e social 4 A respeito da discussão destes diferentes termos, ver o exposto nos tópicos referente à teoria e metodologia de pesquisa, entre as páginas 21-53. 5 O tipo ideal do homem “letrado” é caracterizado como um sujeito que, formado pelas Luzes do século XVIII, desenvolver-se-ia como escritor da imprensa periódica brasileira, atuando socialmente como político, professor, editor, mas também como médico e advogado. 6 Se faz necessário explicar que, referente ao nome do periódico editorado por Cipriano Barata, a fins de não se incorrer em uma exaustiva repetição de termos, quando seu título não constar em sua forma completa durante o decorrer da dissertação, abrevia-se o mesmo na forma de Sentinela, apenas. Preferiu-se assim devido a questões de fluidez textual. Atenta-se ainda que não se pôde realizar a abreviação na forma já conhecida de Sentinela da liberdade devido ao 11 europeu e americano, opinou sobre as decisões da assembleia constituinte do império do Brasil, além de participar ativamente nas discussões institucionais antecederam o ano de 18247, levando ao fechamento de seu periódico e sua respectiva prisão, em novembro de 1823. Após este período, passaria alguns anos preso em diferentes cadeias dentro do território brasileiro, continuando a redigir suas gazetas acerca de temas ligados à política imperial até finais da década de 1820 (PRADO FILHO, 2017, p. 1-2). Sempre marcado pela sua atividade editorial incendiária, e vestindo o papel do editor que escrevia para uma elite letrada, Cipriano Barata se mostrou o sujeito histórico ideal para as indagações e objetivos de pesquisa, e a sua gazeta, a Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco, o material de onde a atividade heurística pôde encontrar o seu caminho. Logo, no capítulo 1º são apresentados, após uma primeira parte biográfica, os motivos da escolha de Cipriano Barata e de seu periódico como objetos de análise (tópico 1), além de uma seguinte discussão teórica e metodológica, das maneiras pretendidas para se trabalhar com o seu discurso (tópico 2). Já no capítulo 2, pretendeu-se focar nos estudos acerca da adaptabilidade historiográfica do conceito do “homem de letras” francês, na aproximação com a figura dos homens “letrados” do contexto brasileiro (tópico 1), e, segundamente, em uma elaboração de tal conceito, a partir dos postulados teóricos de tipos ideais, do campo da sociologia compreensiva (tópico 2). O capítulo 3 é responsável por apresentar os resultados empíricos da aplicação dos métodos linguísticos, do léxico e da semântica, na construção do discurso editorial de Cipriano Barata (tópico 1), além da listagem de tabelas (tópico 2) e gráficos (tópico 3) de frequência diacrônica. fato de que, durante aquela conjuntura histórica, alguns outros periódicos terem surgido em outras províncias com este nome, o que poderia causar certa confusão desnecessária em pesquisas futuras. Para todos os fins, a abreviação simples de Sentinela ou a forma completa de Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco são as duas únicas empregadas nesta dissertação. Em relação a uma listagem de todas as referidas Sentinelas publicadas por Barata em vida, ver: Sodré, 1998, p. 67-68. 7 Durante a segunda metade do ano de 1823, as discussões presentes na pauta da assembleia constituinte do império do Brasil giraram em torno do que viria a ser o projeto de constituição, tema amplamente abordado por Cipriano Barata, que o revisa, julga e combate nas páginas de sua gazeta. Para maiores detalhes acerca do dito projeto de constituição e suas discussões durante as sessões da assembleia constituinte, ver: Florindo, 2020. 12 Por fim, o capítulo 4 desenvolve uma análise que se utiliza dos estudos do campo da nova retórica, precisamente acerca das análises de estratégias argumentativas, para identificação daquelas utilizadas pelo editor durante todo o ano de 1823, focalizando as maneiras quais o seu discurso veio a persuadir o seu público leitor (tópico 1), as categorias enunciativas e de semântica, possíveis de serem investigadas (tópico 2) e uma exemplificação dos dados levantados através de uma narrativa histórica dos principais temas desenvolvidos pelo Sentinela (tópico 3). Após as sessões dos capítulos, e seguindo-se às conclusões desta dissertação, o referencial bibliográfico buscou reunir, juntamente à bibliografia empregada, as fontes de pesquisa, tanto de periódicos quanto de documentação oficial do período, e as fontes de acervos digitais, que seguem discriminadas, respectivamente. 13 Capítulo 1º Analisando o “Sentinela”: abordagens para o discurso argumentativo 14 1. Definindo o corpus: o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco Filho do tenente baiano Raymundo Nunes Batista com sua esposa Luiza Josefa Xavier, Cipriano José Barata de Almeida nasceu em 26 de setembro de 1762, na freguesia de São Pedro Velho, Bahia. Viveu boa parte de sua infância na região de Salvador, juntamente com seus outros dois irmãos, Joaquim e José Raymundo Barata. Segundo Marcos Morel, em sua obra Sentinela da liberdade e outros escritos (1823-1835), de fato, não se sabe muito a respeito da infância de Cipriano, que enquanto criança e adolescente, vivenciou um contexto político e social de massacres a escravos e indígenas na capital baiana, e de taxações cada vez maiores à produção colonial, realizadas pelas autoridades portuguesas, de onde, especula-se, possa ter surgido partes de seu patriotismo nativista (MOREL, 1986, p. 14). Ao se aproximar dos finais dos setecentos, Cipriano é enviados por seus pais para receber educação adequada na Universidade de Coimbra, assim como faziam outros indivíduos da sociedade colonial portuguesa, que viam na burocracia estatal e na vida acadêmica, certo meio de ascensão social. E deste modo foi Cipriano para a metrópole, com os seus vinte e quatro anos de idade, estudar na renomada universidade, no ano de 1786, onde ficaria até 1790, bacharelando-se em Filosofia e cursando as matérias de Medicina (Cirurgia) e Direito. Destas últimas, não teve a oportunidade de alcançar o grau de bacharel devido ao falecimento de seu pai, motivo qual o fez retornar ao Brasil (MOREL, 1990, p. 28). Da sua estadia como aluno em Coimbra, pode-se citar o turbulento momento político e social que vivenciou de perto, estando em Portugal no auge dos eventos da Revolução Francesa, iniciada em 1789. Vale ressaltar que, quando iniciou os seus estudos em Coimbra, Cipriano teve contato direto com o iluminismo português, visto que a referida universidade havia passado por uma reforma institucional no ano de 1772, devido às políticas pombalinas.8 Somando-se então à educação iluminista que recebeu no recém-criado curso de Filosofia, além dos eventos históricos que estava acompanhando de perto, chega-se à conclusão de que Cipriano, desde a casa dos seus vinte 8 Mais informações acerca da reforma da Universidade de Coimbra e questões sobre o caráter iluminista português encontram-se discorridas nas páginas 38-41. 15 anos, radicalizara o seu discurso cada vez mais, de tal modo que, no ano de 1788, enquanto estudante de Medicina, foi acusado de heresia pelo Tribunal do Santo Ofício. Enquanto aluno em Coimbra, Cipriano pôde interagir com outras personalidades que, posteriormente, seriam detentores de papéis importantes na política imperial brasileira, tais como José Bonifácio de Andrada e José da Silva Lisboa. Diferente de Cipriano Barata, que nutria um liberalismo exaltado, secessionista, estes últimos viam na possibilidade de manutenção dos moldes portugueses na política brasileira, um meio de conservação do status quo elitista. De fato, as rusgas entre Barata e estes outros estudantes de Coimbra se tornariam acirradas quando estes viessem a ocupar cargos importantes dentro da corte fluminense. No contexto dos escritos do Sentinela durante o ano de 1823, José Bonifácio de Andrada, juntamente com seus irmãos, dominavam politicamente boa parte do ministério do Rio de Janeiro, enquanto que José da Silva Lisboa, por um bom tempo atuou ativamente como chefe da imprensa nacional. De ambos, ácidas críticas e ameaças chegavam a Cipriano, visto como revolucionário, no que este os rebatia em suas gazetas (MOREL, 1990, p. 30). Todavia, do seu retorno ao Brasil em 1790, com vinte e oito anos de idade, Cipriano Barata se instalaria em Salvador, e passaria a atuar como profissional liberal, como médico, cirurgião e professor de latim, grego e filosofia. Neste ponto de sua vida, na casa dos trinta anos de idade, casou-se com Anna Joaquina de Oliveira, com quem teve seis filhos, dois homens e quatro mulheres. Com o passar do tempo, o sustento qual Barata trazia ao lar, através de suas atividades liberais, não supria as necessidades da família. Preocupado com o seu bem estar, Cipriano adentrou o mundo dos empreendimentos agrários da colônia, arrendando uma sesmaria e atuando como lavrador nas terras do senhor de engenho Joaquim Inácio da Siqueira Bulcão, por quem passou a ter certa proximidade. Passados oito anos desta relação, em 1798, Cipriano Barata, convencido dos ideais liberais e iluministas do grupo político e intelectual organizado por Bulcão, é convidado a juntar-se à chamada sociedade dos 16 Cavalheiros da Luz, composta por membros da aristocracia agrária baiana, e que planejavam uma revolta nativista contra o sistema colonial, visando especificamente suas taxações. Sua função para o grupo era atuar através de suas letras, ou seja, no redigir de panfletos incendiários que convocavam o povo baiano a pegar em armas contra a administração da metrópole lusa. Proferindo os seus discursos em praças públicas, Cipriano pregava ao povo de Salvador contra o domínio monopolista do sistema colonial, pedindo a abertura dos portos para as “nações amigas”, exigindo a proclamação da independência do Brasil, além do desligamento da Igreja em relação ao Vaticano, o que, de maneira acentuada, gerou atrito com o sacerdote português José da Fonseca Neves, que passaria a denunciar o movimento, os seus participantes, e dar ênfase no envolvimento do dito “baratinha” em meio aos revoltosos de Joaquim Bulcão (MOREL, 1986, p. 21). Cerca de quarenta e nove indivíduos foram presos através das ações repressivas advindas da administração colonial portuguesa, com a revolta tendo sido desfeita. Anos mais tarde, durante os eventos de 1823, Cipriano Barata seria ferrenho opositor do padre José da Fonseca Neves, seu delator durante os eventos da conjuração baiana, acusando o sacerdote de corrupção e incompetência política, quando este passou a receber o financiamento do governo imperial. Acusado de inconfidência, aos 36 anos, Barata é preso, ficando então em cárcere até a data de seu julgamento, que se dá um ano depois, em 1799, do qual é absolvido, pois não se conseguiu comprovar que os panfletos que circularam em Salvador no auge da revolta, serem de sua autoria. Ao retornar para casa, para sua mulher e seus seis filhos, Cipriano deixa de atuar politicamente, contentando-se com as suas atividades liberais pelos próximos anos. Teoriza-se que a prisão pela qual passou Cipriano, por cerca de um ano, possa ter alterado a sua visão em relação ao poder colonial, de modo que este não deixou de nutrir sentimentos exaltados, vulgo incendiários, mas que passou a tomar um pouco mais de cuidado em suas atividades como agitador dos ânimos da opinião pública nortista. Seu envolvimento em questões políticas só se daria mais de uma década depois, durante os eventos revolucionários de 1817, quando um grupo de senhores de terras e profissionais liberais membros da elite nortista, se 17 organizaram em torno de uma “lei orgânica” para enfim derrubar o governo colonial, através da formação de um governo republicano com sede em Pernambuco, mesmo que provisório. Em meio a tentativas de repressão por parte da metrópole lusa e discussões que surgiam nos antros de sociedades secretas, as notícias do movimento chegaram aos ouvidos de Cipriano Barata, residente nesta época na capital baiana. Através de diálogos com um dos mensageiros dos revolucionários, o padre de nome Roma, Cipriano arquitetava a sua entrada no movimento, a fim de vê-lo se difundir na província da Bahia. Infelizmente para Barata, o emissário mandado a seu encontro, o próprio padre Roma, foi preso assim que desembarcou em Salvador, sendo fuzilado logo em seguida. Impedido de participar diretamente da revolução de 1817 pela infelicidade da prisão do dito padre, Cipriano buscou outras maneiras de ver vingar os ideais dos revolucionários pernambucanos. A partir do diálogo com os familiares dos revolucionários, foi capaz de organizar, em sua casa, um comitê de anistia, com o intuito de arrecadamento de fundos, quais seriam destinados para a preservação do bem-estar dos revolucionários presos no processo de repressão portuguesa. O comitê, em si, funcionou durante os anos de 1818 a 1820, angariando para Barata reconhecimento político entre os participantes de tal movimento, transformando-o em uma referência no combate ao sistema colonialista, e propulsor de um primeiro sentimento “antilusitanista” que alguns anos mais tarde, levá-lo-ia a defender o processo de independência do Brasil. Em 1820, Cipriano, bem estabelecido em Salvador, e com largo reconhecimento das elites locais, faz-se saber dos ocorridos da revolução que se dava na cidade do Porto, em Portugal, no que os revolucionários exigiam a criação de um sistema constitucional para a metrópole lusitana. Através de tal conceito, Barata passa a agitar os ânimos na capital baiana, convocando as elites de Salvador a destituírem a junta governativa da cidade, completamente portuguesa, na substituição por uma junta mista, composta por portugueses e brasileiros. O sucesso de tal empreitada rendeu-lhe ainda mais fama política, que, em certa medida, propiciaram a sua eleição como deputado destinado a integrar as cortes constituintes em Lisboa, no ano de 1821, como representante 18 da província da Bahia. Em Lisboa, Cipriano era um dos poucos deputados das cortes que demonstravam uma espécie de nacionalismo brasileiro, mais assemelhado a um nativismo antilusitano, vestindo-se com casaca de algodão, sapato de couro de bezerro, chapéu de palha e bengala, todos utensílios de vestimenta originários de sua terra. A sua estadia em Lisboa como deputado constituinte não foi das melhores, envolvendo-se em conflitos políticos com outros deputados lusos por defender pautas espinhosas, como a questão da liberdade de imprensa, ensino e comércio, o fim da insalubridade das prisões portuguesas, além de diversas extinções de impostos e matérias de questão jurídica (MOREL, 1990, p. 77-78). Durante o ano de 1822 a tensão entre Cipriano Barata e seu grupo de deputados brasileiros, começaria a crescer em relação aos outros integrantes das cortes, de modo que, ao datar das discussões acerca do processo de independência do Brasil e extinção do pacto colonial, Barata e mais outros seis deputados fogem de Lisboa, indo primeiramente para Londres, na Inglaterra, e depois para o Brasil, instalando-se em Recife, no Pernambuco. Mesmo que Cipriano quisesse retornar para a sua cidade natal, Salvador, Bahia, esta se encontrava no auge dos conflitos das guerras de independência do Brasil, sendo sitiada pelas tropas revolucionárias brasileiras, que tentavam, a todo custo, derrubar o general português Luís Carlos Madeira de Melo. Não tardaria para, em 1823, Cipriano dar início à circulação de sua primeira gazeta, a Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco, vindo a acompanhar o cenário político nacional da sua tipografia em Recife, opinando sobre assuntos como a guerra de independência do Brasil, os projetos constitucionais da corte do Rio de Janeiro, além de outras matérias de locais e informes políticos internacionais. Devido à notoriedade que passara a receber, tanto de sua atuação em Lisboa, quanto dos escritos de sua gazeta, Cipriano Barata acaba por ser convocado a ser parte da assembleia constituinte que se desenrolaria com sede no Rio de Janeiro, oferta qual o mesmo recusa, por saber que tal assembleia estava sob o controle de um de seus ex-colegas de universidade em Coimbra. É durante o ano de 1823 que as rivalidades políticas e ideológicas com José Bonifácio de Andrada e seus irmãos, cresceria ainda mais, até 19 alcançar o seu auge no datar da prisão de Cipriano, e fechamento de seua gazeta, em novembro do mesmo ano. De vida efêmera, mas enérgica, a Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco, legou a Cipriano o reconhecimento de autores da imprensa periódica por diversas regiões do Brasil, como é o caso de Luís Augusto May, redator do jornal incendiário A malagueta. Devido ao fato de ter que passar sete anos em cárcere, de 1823 a 1830, Cipriano continuou a sua atividade jornalística, escrevendo as inúmeras Sentinelas da liberdade que recebiam os nomes das prisões por onde esteve, legando aos seus leitores uma grande quantidade documental acerca de suas ideias. Barata retorna para Salvador, de onde passa a escrever novamente, mas desta vez, de maneira livre. Acusado de se envolver em uma possível rebelião de escravos, em 1833, aos setenta e um anos de idade, o editor das Sentinelas é preso novamente, ficando em cárcere por cerca de um ano. Através de protestos de seus leitores, e por complicações de saúde, Cipriano, em 1834, é liberto. Muda- se com a família para Natal, onde passa os últimos anos de sua vida, vindo a publicar na imprensa periódica pela última vez no ano de 1835. Falece, em 1838, aos 76 anos de idade, em sua residência em Natal, no Rio Grande do Norte (MOREL, 1990, p. 175). Destarte, deparando-se com a necessidade de se abordar e definir um corpus que abrangesse, ao mesmo tempo, certa “totalidade” do tema em questão, mas que o fizesse a partir de um estudo de caso, e tendo-se como ponto de partida a convicção de se estar trabalhando com uma análise de imprensa e, consecutivamente, o seu contexto social circundante, valeu-se aqui da afirmação do historiador André Figueiredo Rodrigues, acerca do fato de que “a imprensa como fonte deve ser tomada como um espaço de representação, ou melhor, de momentos particulares da realidade; sendo sua existência fruto de determinadas práticas sociais de uma época” (RODRIGUES, 2020, p. 13). Citando a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, Rodrigues ainda nos leva a refletir sobre a questão de que a produção material realizada por esta imprensa deve ser vista como “um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem desveladas” (CAPELATO. Apud. RODRIGUES, 2020, p. 13). 20 Devendo debruçar-se inicialmente na escolha de um periódico ou grupo de periódicos que atendessem aos requisitos teóricos de comporem uma imprensa dita "incendiária”, a primeira guinada rumo a tal processo se deu com a escolha de um escritor letrado dentre muitos presentes nos inícios do século XIX do mundo luso-brasileiro, para servir de aporte inicial a todo o referencial gestado. Feita tal escolha, balizou-se temporal essa atividade, situando-a em meio aos anos em que a imprensa brasileira encontrara maiores níveis de liberdade de atuação e de expressão, ou seja, no biênio 1822-1823, conjuntura histórica que contém a presença de um conjunto de leis de liberdade de imprensa, advindas de Lisboa.9 Contendo-se temporalmente dentro destes dois anos, objetivou-se um recorte espacial a fins de se iniciar a investigação desta imprensa “incendiária”. Todavia, a decisão de qual província da América portuguesa os estudos acerca destes periódicos deveriam partir foi uma primeira dúvida que se fez presente: se do Rio de Janeiro, fonte de maior atividade editorial, visto ser o centro cosmopolita da América portuguesa, ou se de regiões mais afastadas da capital fluminense, mas que, porém, não se deixavam passar quando o quesito era a discussão política em meios jornalísticos, como é o caso das províncias de Maranhão e Grão-Pará. Imerso nesta indagação, pensou-se ainda na possibilidade de um estudo dual acerca da circulação “extra provinciana”, como das relações entre os periódicos do eixo Rio de Janeiro-Bahia-Maranhão, ou Cisplatina-São Paulo-Rio de Janeiro. Entretanto, nenhuma destas opções se mostrou viável quando aplicadas à prática, visto que se incorria sempre a entrar em dois extremos: ou se tinha pouquíssima disponibilidade de material publicado, principalmente em se tratando de províncias do Norte, ou, quando a escassez não era um problema, não se tinha um “ineditismo” de pesquisas historiográficas acerca deste ou daquele periódico, como se observa com a imprensa do Rio de Janeiro, amplamente pesquisada pela historiografia brasileira. 9 A construção gradual de um cenário histórico de liberdade de imprensa no Brasil possibilitou o surgimento de escritores da imprensa periódica que vieram a deter peso ideológico entre as elites políticas da América portuguesa. Os passos rumo a este espaço de liberdade editorial se encontram descritos entre as páginas 32-35. 21 Adveio então a possibilidade de se trabalhar com a província de Pernambuco, visto que, especificamente um periódico daquela região, destacou-se em níveis de interesse acima dos outros, justamente devido a dois fatores: o primeiro deles, da sua disponibilidade quase que integral e de fácil acesso através da ferramenta de pesquisa da Hemeroteca Digital, no site da Biblioteca Nacional10, e, segundo ponto, o teor de seu discurso, facilmente identificado como de caráter político, incendiário, e que não havia sido totalmente trabalhado pela historiografia, abrindo diversas possibilidades de abordagem. Foi pelas páginas da gazeta Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco que se teve acesso ao seu editor. Naquele biênio de 1822-1823, Cipriano Barata vestiria claramente o papel de escritor erudito, engajado com a situação política de seu tempo, e de um intelectual que falava para uma elite letrada. Logo, percorridos estes caminhos investigativos, definiu-se enfim o corpus de pesquisa, que passou a ter a gazeta Sentinela, redigida por Cipriano Barata, como objeto de sua análise, e o desvelar das características intelectuais de seu editor (composição do léxico e estratégias de retórica), um dos objetivos da mesma. Dito isso, atenta-se ainda para uma questão: ao decorrer desta atividade, se analisou apenas aquilo que fora escrito diretamente por Cipriano, ou seja, suas sessões de editoriais, no que textos de outra natureza, tais como anúncios, comunicados, proclamações, documentos oficiais, cartas de leitores e afins, que não são de sua autoria, foram deixados de fora. Acerca das cartas de leitores recebidas pelo editor, estas foram trabalhadas apenas em caráter de investigação das redes de sociabilidade entre Cipriano e os seus leitores, e o emprego destas atreladas a estratégias argumentativas do próprio Barata. Feita tal exposição, adentra-se agora na metodologia elegida para se vir a trabalhar com os editoriais do Sentinela11. 10 O periódico encontra-se disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx? bib=759961&pasta=ano%20182&pesq=&pagfis=0. Acesso em: 12 jun.2022. 11 A abreviação de Sentinela, identificada em nota de rodapé anterior (nr. 8), além de fazer alusão ao nome do periódico editorado por Cipriano Barata, o Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco, também referencia a própria figura de seu editor, dito Sentinela, denominado desta forma pelo seu próprio público leitor, qual detinha a visão de que Cipriano vigiava, “fazia guarita”, para que seus direitos e suas liberdades não fossem violados. Ver a análise realizada durante o capítulo 4. 22 1.2 O orador e o discurso: teorias e metodologias da análise argumentativa Tendo em vista o que foi apresentado até este ponto, pode-se elencar os caminhos de uma trajetória de pesquisa que buscou identificar a possibilidade de se pensar os homens “letrados” brasileiros, no contexto do ano de 1823, não somente como sujeitos históricos particulares, isolados, e nem conquanto “parte” de uma generalização abstrata, mas sim como um tipo ideal. Buscou-se o preenchimento de um modelo que atendesse a certas perguntas, dos "comos” e dos “porquês" do agir deste personagem, compreendendo-se, na esteia weberiana de análise, os sentidos de ação social destes. Inclusa no conjunto teórico dessa dissertação está a essência das indagações que se fizeram a este “ser” tipificado, interrogado sob a luz do método historiográfico. Logo, pode-se afirmar que o que se buscou identificar como os traços marcantes deste tipo ideal são definidos a partir das seguintes características: Primeiramente que, se incorreu no levantamento de dados voltados para um mapeamento biográfico acerca da “persona” de Cipriano Barata. Os termos que, de fato, mais importaram à tipificação do mesmo, foram as informações que disseram respeito à sua origem social, formação acadêmica, erudição, ocupação profissional e participação em cargos políticos, além do próprio periódico editorado. Todas estas categorias respondem diretamente ao que Michel Winock, em seu artigo As Ideias políticas, presente na obra organizada de René Rémond (2003, p. 271-294), puderam elucidar como importantes ao historiador em seus processos investigativos. Um segundo grupo de características traçadas se resume a uma parte majoritariamente "mental" de Cipriano Barata, a partir de suas ideias e crenças acerca de política, religião e valores culturais, todos desvelados mediante a análise argumentativa empregada por Cipriano em seus editoriais. Por fim, em terceiro lugar, a intelectualidade de Cipriano Barata foi visada. Mediante os termos apresentados por Jean François-Sirinelli, em seu artigo Os intelectuais, também incluso na obra organizada de René Rémond (2003, p. 231-270), e nos próprios exemplos dados por Michel Winock (2006, p. 9-19), em Barata interrogou-se sobre seu itinerário intelectual, suas redes de 23 sociabilidade, suas cadeias de afetividades, familiaridades e antagonismos, sejam eles acadêmicos, amorosos ou políticos. Através dessa tentativa de enquadramento por estas frentes teóricas, pôde-se avançar para a escolha de uma metodologia de pesquisa que satisfizesse suas necessidades. O que será apresentado a partir deste ponto se resume não mais a conjuntos teóricos e articulações conceituais, mas sim aos métodos empregados na atividade empírica. Optou-se pelo método linguístico de análise do discurso, nos moldes definidos pela historiadora francesa Régine Robin, escolhida como alicerce para vir a se trabalhar com este editor. Em Robin (1973), o texto aparece como discurso, na divisão clássica empreendida pela linguística sausurriana12, onde Regine Robin pretenderia “constituir no campo da História o nível discursivo como novo objeto de estudo” (ROBIN, 1973, p. 27). E é desta maneira que se encara os escritos do Sentinela, como "discursos" de natureza política, carregados em si de significados e ideologias, não podendo ser identificados ingenuamente como neutros, apáticos ou não tendenciosos. Nas definições de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, em sua obra organizada, Domínios da história: O pressuposto essencial das metodologias propostas para a análise de textos em pesquisa histórica é o de que um documento é sempre um discurso que, assim considerado, não pode ser visto como algo transparente. Ao debruçar-se sobre um documento, o historiador deve sempre atentar, portanto, para o modo através do qual se apresenta o conteúdo histórico que pretende examinar, quer se trate de uma simples informação, quer se trate de ideias. Especialmente no caso de pesquisas voltadas para a história das ideias, do pensamento político, das mentalidades e da cultura, o conteúdo histórico que se pretende resgatar depende muito da forma do texto: o vocabulário, os enunciados, os tempos verbais, etc. (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 539). 12 Segundo a historiadora Régine Robin (1973, p. 24-25), o linguista e filósofo suíço Ferdinand de Saussure seria responsável por realizar a divisão entre os conceitos de língua e fala, para que estes pudessem ser considerados os objetos de análise da Linguística enquanto disciplina, separando-se “o que é social do que é individual”, ou seja, o que é a própria estrutura da linguagem do que são os ditos discursos sobre a mesma. Destes discursos, a característica política seria uma das que mais se sobressairiam em relação às demais. 24 Tendo o texto de Cipriano Barata como, essencialmente, um discurso, na maioria das vezes de natureza política, elaborou-se um roteiro metodológico de “duas leituras”. Em cada uma destas se analisou o referido corpus através de visões diferentes, definidas, pois, pelos métodos: léxico (tanto lexicológico quanto lexicométrico), e retórico. Os estudos lexicais em História, derivativos do campo da Linguística, apesar de manterem-se fixados em sua natureza quantitativa, quando relacionados com as teorizações e métodos de análise do discurso, desenvolvidos pelos pesquisadores da área da nova retórica, ganham, por sua vez, um peso qualitativo maior que chama a atenção do historiador, preocupado menos com a constância de usos e desusos de palavras no tempo e mais com a sua natureza volátil e diacrônica em períodos específicos da História. No mais, a investigação sob a ótica de “duas leituras” que parte das estruturas mentais de Cipriano Barata, em seu caráter cognoscivo e de formulação de ideias, e que vai até as escolhas de estratégias argumentativas empregadas no convencimento daqueles que o leem, tornaram frutíferos os resultados de pesquisa. Deste modo, partindo-se da lexicologia, essa se inspira na já citada historiadora Régine Robin, que em vida almejou o desenvolvimento de um método linguístico voltado para a pesquisa e para as perguntas do historiador (ROBIN, 1973, p. 12). Em sua obra História e linguística, Robin apresenta os métodos lexicológico e lexicométrico, testados primeiramente pelo Instituto de Saint-Cloud, na década de 1970, para pesquisa em História. O método se consiste em partir de um inventário exaustivo do corpus pretendido, mediante análise lexicométrica, numa atividade de contagem e categorização de repetições de palavras, ou seja, as ocorrências do texto, estabelecendo-se assim listas de frequências de palavras, das que mais se repetiram durante a extensão analítica às que menos se encontraram presentes na mesma, subdividindo-as em três zonas arritmo-semânticas: Palavras-Tema, Palavras-Base e Palavras-de-Caracterização, aqui nesta dissertação abreviadas, respectivamente, como PT, PB e PdC (ROBIN, 1973, p. 137-138). Acerca destas três zonas arritmo-semânticas, Régine Robin as define da seguinte forma: 25 PT: “Geralmente são encontradas em todas as frases; quer dizer que é quase impossível exprimir uma ideia sem recorrer a elas. É em torno delas que se organiza o pensamento, donde seu nome de ‘palavras-tema’”. PB: “As palavras de base, ou seja, as 4.000 palavras que vem em seguida, e que constituem a substância do discurso”. PdC: “Finalmente, 20.000 palavras de baixa frequência, de grande restrição de sentido, e, portanto, muito precisas. São denominadas “palavras de caracterização” (ROBIN, 1973, p. 139-143). É necessário dizer que se teve que adaptar o método linguístico de Régine Robin na medida em que se constatou uma ordem de fatores que atrapalhariam a obtenção de resultados empíricos. Nota-se que Robin advoga o uso de seu método inspirando-se nos resultados aferidos das pesquisas lexicométricas e lexicológicas do Instituto de Saint-Cloud, em um contexto histórico diferente do desta pesquisa, o que acarretou na exigência de sua adaptação, em termos metodológicos. Fato é que, em questões de proporcionalidade de corpus, aquela selecionada pelo Instituto de Saint-Cloud se mostra severamente maior do que a do corpus que deu origem a esta dissertação. Ao invés de se estar trabalhando com um texto que facilmente pode abarcar listas de frequência de mais de 20.000 ocorrências, esta pesquisa veio a se deparar com uma lista de pouco menos de 500 ocorrências. O uso ipsis literis da metodologia robiniana, ao final, não se demonstraria satisfatório, com os riscos de, ou acabar se incorrendo à obviedade, ou até mesmo constatar-se a inaplicabilidade do método. Tendo isso em vista, e pautando-se pelo fato de que a própria autora em determinado momento discorre sobre questões de relativa arbitrariedade de escolha de ocasionais limites de frequência entre as zonas arritmo-semânticas (ROBIN, 1973, p. 139), buscou-se reduzir em certa escala a progressão matemática que distinguia as três zonas de Palavras-Tema, Palavras-Base e Palavras-de-Caracterização. Originalmente, em Robin, se tem um modelo de progressão exponencial que se dá na seguinte proporcionalidade: PT = 50 a 100 palavras de maior repetição; PB = 4.000 palavras seguintes; PdC = 20.000 palavras posteriores a estas; num gráfico de porcentagem que se apresenta tal como: PT = 0,5%; PB 26 = 16,5%; PdC = 83%; do total de ocorrências proposto pelo Instituto de Saint- Cloud. (ROBIN, 1973, p. 139-143). O que esta pesquisa se propôs a fazer é a adaptação do método robiniano para uma relação de progressão cúbica onde se teria PT = 17%; PB = 30%; PdC = 53%; de um total de 454 ocorrências identificadas a partir do texto de Cipriano Barata. A principal vantagem de tal adaptação é tornar os resultados muito mais qualitativos do que quantitativos, trazendo para a interpretação destes dados, uma visão focada menos na linguística e mais na história. Além disso, outros conceitos robinianos foram empregados no auxílio dos estudos lexicológicos e lexicométricos do texto, tais como as noções de lematização e a categoria especial de Palavras-Chave (ROBIN, 1973, p. 143). Da lematização possibilitou-se a extração de uma maior densidade léxica e semântica das ocorrências identificadas, com a formação, quando possível, de respectivos campos léxicos e campos semânticos13. Já da utilização do conceito analítico de Palavras-Chave – abreviada aqui, a partir da sigla de PC –, tornou-se plausível a extensão de um gráfico de listagem de frequência não somente em níveis estáticos, como fez o Instituto de Saint-Cloud, mas, sim, em uma relação diacrônica, onde se pôde observar, em um recorte temporal que vai de abril a novembro de 1823 – meses de publicação e circulação do periódico Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco – palavras que detinham maiores repetições em inícios do ano, mas que perderam em frequência até finais do ano, e vice-versa, alinhando-as sempre à conjuntura histórica que estavam inseridas, juntamente com balanços de oscilação entre diferentes palavras, sincronizando-as em gráficos de frequência.14 Além de Régine Robin, o método utilizado por Jean Dubois (1962), em sua obra Le vocabulaire politique et social en France de 1869 à 1872, serviu de inspiração para a formação, quando possível, de quadros léxicos a fins de se 13 Para definições mais aprofundadas dos conceitos metodológicos robinianos, ver as páginas 55-57, onde os mesmos são devidamente articulados. 14 Ver as tabelas lexicométricas listadas nas páginas 73-78, que trazem estas relações de frequência entre as principais ocorrências do léxico de Cipriano Barata durante sua atividade editorial daquele ano de 1823. 27 compreender quais seriam as relações de oposição, associação e identificação entre as diferentes ocorrências presentes no texto (ROBIN, 1973, p. 153-158). Em Cardoso; Vainfas (1997, p. 543-544), o método empregado por Jean Dubois demonstra-se como um suplemento qualitativo aos estudos do léxico, vindo a complementar os postulados linguísticos de Régine Robin, auxiliando na pesquisa em história, na identificação de cadeias de relações entre as ocorrências de um discurso. Para Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (1997), “o pressuposto de Dubois é o de que ‘o léxico não é um simples aglomerado de uma quantidade de palavras isoladas, mas um sistema em que todas as unidades se coordenam entre si ou se opõem entre si’”. Feita esta primeira leitura, avança-se para um segundo momento de análise semântica dos grupos de enunciados presentes no texto. A justificação para uma metodologia de complemento aos métodos do léxico se encontra presente na própria obra de Robin, no que a mesma viria a expor que: O historiador, numa primeira abordagem, deve utilizar os instrumentos que podem permitir que ele construa suas primeiras hipóteses de trabalho, determine as palavras-tema e as palavras-chave do corpus, para as quais atentará mais particularmente e que tratará por outros métodos. Estatísticas lexicais e métodos de análise do discurso são, freqüentemente, complementares e, muitas vezes, um - que mais não fosse pelas insuficiências e questões suscitadas - abre caminho para o outro. (ROBIN, 1973, p. 150). Para tal, a utilização dos estudos da nova retórica, do filósofo polonês da área do Direito, Chaïm Perelman (2005), voltados para a análise argumentativa do discurso, serviram de abordagem capaz de interpretar as estratégias empregadas por Cipriano Barata, na figura de um homem “letrado”, no diálogo com os seus leitores, participantes de uma elite “letrada”. Nos termos de Perelman, um orador que dirige o seu discurso para convencimento de seu auditório15. 15 O campo de estudos retóricos aberto pela famosa obra Tratado da argumentação: a nova retórica, desenvolvida em conjunto pelos filósofos poloneses da área do Direito, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005), deu renovação às teorias e metodologias de análise argumentativa do discurso. Inspirando-se e tendo por alicerce a vertente da retórica aristotélica clássica, sua adaptação ao campo historiográfico pôde se realizar devido ao seu entendimento de discurso aparentar-se com a visão de “discurso” adotada nesta dissertação. 28 O uso dos estudos retóricos do autor se tornou possível sem muitos entraves, visto que tanto Chaïm Perelman, quanto Lucie Olbrechts-Tyteca, co- autora da obra Tratado da argumentação: a nova retórica, definem o discurso, principal objeto de sua análise conjunta, como sendo tanto o “texto falado” quanto o texto escrito. Logo, o pesquisador que se propõe a analisá-lo segue como “um lógico desejoso de compreender os caminhos do pensamento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6), inclusive daqueles que se encontram em meio às brumas do passado. Tendo apresentado as principais características metodológicas e de construção do corpus, além de algumas das inspirações teóricas, segue-se agora para o início do segundo capítulo, que se inicia com uma discussão a respeito da adaptabilidade conceitual do “homem de letras” francês ao cenário da elite letrada brasileira, de inícios do século XIX, e quais os pontos historiográficos que permitem a existência deste aporte. Acerca de seus termos característicos, de orador, discurso e auditório, os mesmos representam as três instâncias da discussão retórica, sendo o primeiro, aquele que promove o debate argumentativo, o segundo, a própria substância da argumentação, e o terceiro, aqueles que validam ou desacreditam dos argumentos suscitados, ou seja, seu público e/ou leitores. Para maiores informações, ver: Perelman; Olbreschts-Tyteca, 2005. 29 Capítulo 2 Cipriano José Barata de Almeida: a tipificação do homem letrado 30 2.1 A aproximação conceitual: o “homem de letras” e os homens “letrados” Pensando-se nos objetivos aqui estabelecidos, buscou-se uma teoria que fosse aplicável aos mesmos, a partir de uma série de interpretações a respeito do corpus disponível. Desde o trato de conceitos pertencentes a matizes teóricas diferentes, multidisciplinares, à definição do procedimento metodológico selecionado. Vale ressaltar que, apesar da diversidade teórica que se tinha para se vir a tratar dos ditos homens “letrados” da imprensa brasileira do séc. XIX, na medida em que a atividade empírica prosseguia, foram elas, aos poucos, sendo descartadas, em uma análise qualitativa que fez perdurar, dentre muitas, as teorizações do historiador político francês Michel Winock (2006), presentes em As vozes da liberdade: escritores engajados do século XIX, obra qual retrata as trajetórias, redes de sociabilidade e itinerários, de indivíduos que, em sua maioria, eram escritores, jornalistas, membros do Estado francês, ou que à época buscavam participarem de seus respectivos governos. O “homem de letras”, sujeito histórico winockiano, escritor atento à política de seu século, que escreve em meio a crises e revoluções, é definido pelo próprio autor, como pertencente a um grupo de indivíduos que: Engajam-se, pró ou contra a liberdade, pró ou contra a Monarquia ou a República, pró ou contra os socialistas. (...) Ambicionam cadeiras no Parlamento, alguns se tornam até ministros, quando não chefes de governo. Querem arcar com suas responsabilidades e convicções nessa sociedade censitária e totalmente elitista. Aristocratas por nascimento ou aristocratas pelo saber e pelo talento consideram que, se pensam e comentam a política, é preciso que a pratiquem também. (WINOCK, 2006, p. 16). Ao se analisar a história da liberdade durante o século XIX, e admitindo que a mesma pode ser “concebida de diversas maneiras”, Winock decide por escolher a história “das lutas que os homens de letras, escritores ou escrevinhadores (...) desfecharam, simultaneamente, contra os poderes e contra outros homens de letras, servidores da autoridade reacionária ou da 31 autoridade utopista” (WINOCK, 2006, p. 15). E Michel Winock ainda continua definindo-os em sua atividade intelectual, como sujeitos que: Redigem profissões de fé, fazem campanhas, participam de banquetes cívicos, expõem seu amor-próprio ao veredicto das urnas, ocupam cadeiras na Assembléia, interpelam, participam dos governos, bradam ao povo: menos que a ambição (geralmente tem mais a perder do que a ganhar), é uma voz interior que os impulsiona, a vontade de servir, o desejo mimético de conduzir, de dirigir, de guiar. (WINOCK, 2006, p. 16). O ato de encará-los como “sujeitos de carne e osso”, como diria Winock, imersos em seus agitados cotidianos, traz consigo uma luz de hermenêutica, que busca tratá-los não de maneira simplista, de achar que se pode subsumi- los unicamente em suas ideias, mas sim como participes de seus meios sociais e políticos. Em muitos momentos, apesar de suas divergências em questões de projetos institucionais e visões filosóficas, contribuiriam todos para o avanço do ideal jornalístico de “liberdade” na França (WINOCK, 2006, p. 61). Porém, o mais marcante da obra de Michel Winock é o escopo que este empregou no tratamento destes sujeitos, vendo-os não apenas meramente como produtores de ideias políticas e filosóficas, no que “falar de seus estilos de vida, seus amores, suas ambições rasteiras, suas vaidades e fraquezas também explica suas ideias, sem que isso os diminua a nossos olhos” (WINOCK, 2006, p. 17). E ainda, respondendo a possíveis críticos desta visão muito mais humanizada da análise destes “homens de letras”, o autor conclui que não se trata de desenvolver uma história literária, pois a trama de seu livro é, em sua natureza, política (WINOCK, 2006, p. 15). Nas palavras de Michel Winock: Não se trata de uma epopeia edificante em que os protagonistas, como anjos da paz, transmitem a chama sagrada de geração em geração; trata-se da travessia de um século trepidante, contraditório, por vezes desesperador, mas cujas obras de pensamento permanecem nossa herança inalienável. (WINOCK, 2006, p. 15). 32 Entretanto, é necessário ressaltar que quando Winock escreve acerca de escritores engajados, vulgo “homens de letras”, este o faz de um determinado lugar e o articula pensando exclusivamente no cenário francês. De fato, admite-se que apesar da existência de características históricas que possibilitam a aproximação entre os “homens de letras” franceses do século XIX, e os homens “letrados” da imprensa brasileira, dos anos 1820, ainda assim, suas particularidades, principalmente em questões de contexto social e político, tornam impossível uma adaptação conceitual aprofundada, sendo a utilização de tal aproximação pertinente apenas em níveis de inspiração teórica para se vir a pensar na tipificação ideal destes escritores “letrados”. Foi deste ponto que se iniciaram as primeiras experimentações de aproximação de um conceito de um historiador francês preocupado com a história dos intelectuais e escritores políticos de seu país, a uma realidade brasileira. E esta aproximação se guiou pelo postulado bourdieuano, de que em todo o desenvolvimento de pesquisa, a “prática” deve fornecer os materiais necessários para a interpretação da “teoria”, como no caso dos “homens de letras” winockianos, e figuras históricas brasileiras tais como Cipriano Barata. Ao todo, duas foram as características utilizadas nessa aproximação, que são: um cenário precoce de liberdade de imprensa que possibilitara a atividade intelectual destes escritores engajados; uma mesma formação cultural e acadêmica, responsável pela homogeneização de um grupo ou cultura política únicos, dotados de mesmos hábitos e condutas. Além destas, também pode ser citada a existência distinta de um discurso voltado para a mobilização de pessoas, ou seja, para a “tomada de ação” social mediante condicionamento da opinião pública, por meio de escritos cunho ideológico, onde o “ser-jornalista” confundia-se com o “ser- educador”, no que a imprensa periódica detinha o papel de porta-voz das ideias de seus editores “letrados”. A partir daqui, estes dois pontos de aproximação pontos serão tratados, respectivamente, ficando a parte da análise do discurso mobilizador, para ser trabalhada conjuntamente com a aplicação da metodologia proposta. Primeiramente que, a existência na França do século XIX de um cenário de liberdade de imprensa, precoce para aquele momento, propiciou o 33 surgimento e sustento de um grupo social de escritores, engajados politicamente, durante boa parte de todo o século XIX, possibilitando a circulação de diversos textos impressos que, por sua vez, tiveram papel ativo na formação da opinião pública da época (WINOCK, 2006, p. 9-19), o que torna necessária a procura de um cenário semelhante a este no caso brasileiro dos homens “letrados”. Seguindo nesta investigação, deparou-se com a existência de uma série de leis de liberdade de imprensa, emitidas durante os anos de 1820 e 1822, primeiramente pelas cortes constituintes de Lisboa e, depois, pelo próprio imperador D. Pedro I, que tornam possível a atividade editorial irrestrita destes intelectuais, que puderam surgir e se manter no Brasil do período vintista. Tendo por fontes os documentos oficiais emitidos pelas cortes constituintes de Lisboa, que se encontram nos Diários do governo 16 , juntamente com as decisões, e decretos presentes na Coleção de leis do império do Brasil17, além da obra de historiadores especialistas na área18, constata-se que de 1808 – ano que assistira ao surgimento da tipografia nacional, mediante portaria emitida pelo então príncipe regente D. João VI, no contexto da transmigração da Corte portuguesa para o Brasil – a 1821 se experimentou um momento de controle governamental sobre a imprensa, através da utilização da censura prévia e do monopólio sobre as tiragens impressas, imposto pela necessidade de ter que se utilizar da impressão régia para tal. A respeito da temática da censura régia no universo luso-brasileiro, salutar é o trabalho do historiador brasileiro Luiz Carlos Villalta (2015), que, durante a parte II de sua obra, no capítulo intitulado A censura sob o reformismo ilustrado, definiria a atitude de preocupação dos governos nacionais em relação às denominadas obras de “caráter político” que 16 Cujos documentos se encontram na íntegra na página da Hemeroteca Digital, presente no site da Biblioteca Nacional: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/LeisdeImprensa/ MonarquiaC.htm. Acesso em 12 jun. 2022. 17 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de- leis. Acesso em 12 jun. 2022. 18 Dentre as quais pode ser citada a obra de Luiz Carlos Villalta, Usos do livro no mundo luso- brasileiro sob as Luzes: reformas, censuras e contestações, qual aborda de maneira profícua as relações entre o reformismo ilustrado português, as práticas censórias da Coroa e a circulação de obra de caráter erudito pelo mundo luso-brasileiro. Ver: Villalta, 2015. 34 passariam a circular durante o período das Luzes europeias. Na definição do autor, pode-se pensar que: Na Europa do século XVIII, no bojo de um conjunto de reformas promovidas pelos governos, desenvolveu-se uma política de estatização da censura, que foi acompanhada pelo crescimento da preocupação com as obras de caráter político em detrimento das religiosas. Em Portugal, em 1768, criou-se a Real Mesa Censória, tribunal régio em cuja com posição havia um maior número de clérigos que de leigos. A instalação desse órgão acompanhava a tendência geral de secularização da censura e fazia parte da política reformista, absolutista e regalista, teórica e prática, seguida pela Coroa portuguesa a partir do reinado de D. José I, expressando, desse modo, os interesses específicos do Reformismo Ilustrado Português. (VILLALTA, 2015, p. 171). Este cenário só passaria a se alterar durante os movimentos que deram origem à constituição de Portugal, em 1821. A partir da abolição da censura prévia, pelo decreto de 2 de março deste mesmo ano, instituído pelas cortes constituintes de Lisboa, ficava suspendida a “prévia censura que pela actual Legislação se exigia para a impressão dos escriptos que se intente publicar”19. Entretanto, o “fim” desta censura prévia viria com uma série de outras pré- disposições, que dificultariam a aplicabilidade do próprio decreto. Assim como afirma a historiadora Tassia Toffoli Nunes, em sua dissertação intitulada Liberdade de imprensa no império brasileiro: os debates parlamentares (1820-1840), se pode anuir que: A não observação destas ordens acarretaria em penas que iam de multas até a detenção, além do confisco dos materiais apreendidos. Dessa forma, o efeito prático desse decreto não era, como ele próprio afirmava, extinguir a censura prévia, mas sim mudar o procedimento pelo qual se encaminhavam os impressos para a Censura, a fim de acelerar o processo. (NUNES, 2010, p. 37). Depois deste decreto, de março de 1821, seria somente em julho do mesmo ano que a liberdade de imprensa seria regulamentada oficialmente, por 19 BRAZIL. Coleção das Leis. Decreto de 2 de março de 1821. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. 35 intermédio, primeiramente, de um decreto expedido por D. João VI, no dia quatro, e, posteriormente, pela lei de liberdade de imprensa, instituída no dia doze pelas cortes constituintes de Lisboa. 20 O acatamento oficial destas disposições acerca da liberdade de imprensa seria atendido no Brasil pelo ministério do reino em 28 de agosto de 1821, através de uma decisão de governo, que determinaria: Tomando S. A. Real em consideração quanto é injusto que depois do que se acha regulado pelas Cortes Geraes Extraordinarias e Constituintes da Nação Portugueza sobre a liberdade da imprensa, encontrem os autores ou editores inesperados estorvos á publicação dos escriptos que pretenderem imprimir: E’ o mesmo Senhor servido mandar que se não embarace por pretexto algum a impressão que se quizer fazer de qualquer escripto, devendo unicamente servir de regra o que as mesmas Côrtes tem determinado sobre este objecto. (REINO, n. 51, 28 de agosto de 1821). A partir deste ponto, inicia-se enfim um cenário histórico de liberdade de imprensa no Brasil, qual propiciaria a atividade editorial de diversos homens “letrados” brasileiros, dentre eles, Cipriano Barata. No entanto, mesmo após a instauração destes termos, a nascente imprensa livre viveria ainda um cenário de instabilidades, numa trajetória de constantes avanços e recuos (NUNES, 2010, p. 37-38) porque, como aponta a historiadora Isabel Lustosa, em sua obra O nascimento da imprensa brasileira: É importante lembrar alguns aspectos dessa imprensa que nascia em meio a tanta disputa. A legislação relativa aos usos e abusos da liberdade de imprensa ainda não fora regulamentada. Valia o que fora estabelecido nas bases da constituição portuguesa e, na prática, iam-se adaptando as velhas leis. (LUSTOSA, 2003, p. 31). E estas “adaptações” de velhas leis seguiriam por dois anos, em um jogo político truncado, entre o governo, constituído pelo grupo de ministros, imperador e deputados constituintes, e uma série de escritores “letrados” que lhes atacavam por meio dos periódicos, pasquins e folhetinhos, que passaram 20 BRAZIL. Coleção das Leis. Decreto de 12 de julho de 1821. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. 36 a circular pelas ruas em mãos da elite letrada de então, num verdadeiro jogo de “insultos impressos” 21, como diria a própria Lustosa (2000). Todavia, as disputas jornalísticas só amainariam em finais de 1823, quando o imperador D. Pedro I redigiria o decreto de 22 de novembro, acerca da liberdade de imprensa, substituindo o que fora definido anteriormente pelas disposições das cortes constituintes de Lisboa, e assegurando-se de que, a partir daí, fosse dado cabo de uma emergente imprensa de oposição ao seu governo, através da imposição de limites à atividade editorial, perdurando até o final de seu reinado, em 183022. Eis que se observa a existência de uma lacuna historiográfica que toma por ponto de partida a decisão de 28 de agosto de 1821, emitida pelo ministério do reino, com a finalidade de acatar as atribuições das cortes de Lisboa, indo até meados de novembro de 1823, contabilizando dois anos de uma “liberdade de expressão” quase que irrestrita na imprensa brasileira, onde até mesmo se podia escrever sob a segurança de pseudônimos. Frutificara-se então o caminho editorial para a atividade destes escritores, no que, por exemplo, na imprensa do Rio de Janeiro: De qualquer maneira, o debate estava aberto e as gazetas e panfletos que agora faziam parte do cotidiano dos cariocas se digladiavam em torno das diversas tendências que começavam a emergir. (...) no espaço livre da imprensa, onde se tinha o direito de escrever sob pseudônimo, choviam ataques (LUSTOSA, 2003, p. 30). Seria este um primeiro ponto de viabilização conceitual da teoria francesa dos “homens de letras”, analisada em paralelo aos homens “letrados” do Brasil, a partir dos anos de 1821-1823. A existência deste cenário conjuntural de liberdade de imprensa em um país que se formava como nação independente, a seu próprio modo, possibilitou o surgimento e crescimento jornalístico de escritores políticos amplamente engajados, participantes das principais discussões políticas do nascente império e criadores eles de artigos 21 Para mais definições destas disputas jornalísticas entre estes escritores “letrados” brasileiros, no contexto independentista, recomenda-se a leitura da obra de Lustosa (2000), Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na independência. 22 O decreto encontra-se na íntegra em: https://digigov.cepese.pt/pt/jornais/listbyyear monthday?ano=1821&mes=9&tipo=a-diario&res=. Acesso em: 12 jun. 2022. 37 de opinião que repercutiriam por meses nos cafés, tribunas, clubes e debates do dia a dia de uma elite letrada, ávida por seus textos (CARVALHO, 2008; NEVES, 2003, p. 36). Um segundo ponto de reflexão, além do cenário de liberdade de imprensa exposto até este momento, se apresenta na questão da homogeneidade social e cultural destes sujeitos, ao compartilharem um mesmo contexto de formação acadêmica e vivenciarem um universo de erudição filosófica e debate político semelhante, constituindo-se em uma elite de letrados. A fim de se trabalhar esta questão, é possível pensar em algumas das premissas historiográficas presentes na obra de José Murilo de Carvalho, A construção da ordem, origem do livro no qual o autor discute questões como as da formação das elites políticas brasileiras e o seu desenvolvimento durante todo o século XIX. Primeiramente que, pensar sobre este conceito teórico exige uma melhor definição do mesmo. No A construção da ordem, José Murilo de Carvalho (2008, p. 25-27) se utiliza de conceitos como os de “elite política”, provenientes das ciências políticas e da sociologia, elaborados por pesquisadores como Gaetano Mosca (1939) e Vilfredo Pareto (1966). Pela visão de Carvalho, pode-se definir que: Para Mosca, a classe política constrói e mantém o domínio na medida em que suas habilidades possuam algum sentido social, na medida em que controle alguma ‘força social’ (dinheiro, terra, conhecimento, religião) que seja predominante. (...) A elite dirigente de Pareto também está em perpétuo fluxo, dependente da distribuição dos resíduos, e de sua incapacidade de manipular ao mesmo tempo a força e a persuasão. (CARVALHO, 2008, p. 25) No cenário brasileiro, estas elites políticas foram geradas, em grande medida, pelas políticas coloniais portuguesas, que por sua vez surgiram de um contexto histórico de “revolução burguesa abortada”, onde o caráter burocrático da elite sobressaía-se em relação ao caráter capitalista, ou liberal, no que se tinha uma necessidade de “treinamento” funcional dos futuros membros desta mesma elite, voltado para o exercício do governo, dando início ao que seria um movimento de “profissionalização” da figura do empregado público como sujeito 38 importante dentro dos procedimentos burocráticos da monarquia portuguesa (CARVALHO, 2008, p. 31-32). José Murilo de Carvalho argumenta, portanto, que a elite política brasileira, surgida da burocracia estatal portuguesa, era caracterizada, sobretudo, pela homogeneidade ideológica, de treinamento, e, em partes, social (CARVALHO, 2008, p. 21). Segundo o autor, tal homogeneidade era devida às questões de socialização, ocupação profissional, carreira política e educação recebidas pela elite letrada, sendo o aprendizado homogeneizado o seu ponto de maior relevância. Existiriam três possíveis razões, ou “porquês”, para esta homogeneização, que, como atesta Carvalho, se deu a partir do ensino superior: Em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela (...). Em segundo lugar, porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava, até a Independência, na Universidade de Coimbra (...). A concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes de várias capitanias e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil. (CARVALHO, 2008, p. 65) Chega-se enfim à questão da universidade de Coimbra, como formadora de toda uma geração de escritores políticos que, posteriormente, durante o biênio de 1822-1823, se tornariam os escritores “letrados” da imprensa brasileira nascente. Não à toa a importância da formação acadêmica recebida de Coimbra, visto que boa parte da elite política imperial passaria pelas suas salas de aula, durante o período pós-reforma institucional pombalina23, de 1772 a 1821, onde se mudara o quadro de ensino tradicional, de alcunha jesuítica, em substituição por um modelo pautado pelos preceitos iluministas (CARVALHO, 2007, p. 29-32). 23 A respeito das tratativas políticas que levaram ao surgimento da reforma institucional de Coimbra, além de análise do novo quadro curricular de disciplinas que passaram a ser ensinadas pela aquela instituição após o ano de 1772, recomenda-se a leitura da tese de Flávio Rey de Carvalho, intitulada Um iluminismo português. A reforma da Universidade de Coimbra de 1772. Especificamente sobre a reforma, ver: Carvalho, 2007, p. 29-54. 39 Atenta-se que nesta dissertação a questão do iluminismo é tida menos como a de um movimento unificado e teleológico, organizado de cima, automatizado, e mais como “uma série de problemas e de debates, revestida sob formas e aspectos particulares, conforme os diferentes contextos nacional e cultural” (CARVALHO, 2007, p. 18). Para tal, o historiador Flávio Rey de Carvalho segue na esteia daquilo que pesquisou a historiadora norte- americana Dorinda Outram (1995), acerca do Iluminismo, em sua obra The enlightment. A respeito do trabalho de Outram, Rey de Carvalho a caracterizaria dizendo que: Outram sugeriu pensar a questão do Iluminismo como série de problemas e de debates, revestida sob formas e aspectos particulares, conforme os diferentes contextos nacional e cultural. O posicionamento da autores tornou mais complexa a a imagem que se tem na atualidade do Movimento Iluminista, pois as ideias nele contidas não seriam mais mapeadas de cima, por um olhar distante, nem consideradas como objetos autônomos (...), mas consideradas como encravadas na sociedade, sendo emolduradas por ela. (CARVALHO, 2007, p. 18). Citando a obra de Dorinda Outram, Flávio Rey de Carvalho afirmaria ainda que a autora teria sugerido “pensar o Iluminismo não como uma expressão que fracassou em englobar a complexa realidade histórica, mas, preferivelmente, como uma cápsula contendo conjuntos de debates, tensões e preocupações” (OUTRAM. Apud. CARVALHO, 2007, p. 18). Balizando-se ainda pelo que escreveu o historiador Luiz Carlos Villalta (2015), a respeito do que o autor chamou de “reformismo ilustrado português”, pode-se afirmar que a atitude adotada pela Coroa portuguesa se deu de maneira singular, para com as novas ideias que irradiavam dos debates filosóficos proporcionados pelo contexto sociocultural das Luzes europeias. Nas palavras de Villalta: A Coroa portuguesa, sob o Reformismo Ilustrado, fez uma incorporação seletiva das ideias das Luzes, rechaçando aquelas que ameaçavam as prerrogativas absolutistas do trono, o domínio colonial e a religião. Com isso, a Ilustração constituiu, ao mesmo tempo, referência e alvo de ataque. O Reformismo buscava conciliar a valorização da Razão e das ciências à 40 anteposição de obstáculos ao que soava como ameaça ao absolutismo monárquico, à religião católica e à manutenção do Império Colonial, cerceando a infuência das vertentes mais radicais da Ilustração. O Reformismo Ilustrado, além disso, procurava romper com o panorama cultural estabelecido, atacando especifcamente os milenarismos, o anticientifcismo e as teorias de poder corporativas. (VILLALTA, 2015, p. 27-28). Logo, a existência de um iluminismo de matiz portuguesa se torna claramente possível, seja mediante a ideia de um “reformismo ilustrado” (VILLALTA, 2015), ou por outras terminologias, tais como “iluminismo católico”, “ecletismo” e “ilustração de compromisso”.24 Nas palavras de José Murilo de Carvalho, este iluminismo que atingia enfim Portugal, vinha na “sequência, se não na dependência, de novo surto de fortalecimento do poder estatal, agora engajado num esforço para soerguer a economia”, sempre ameaçada pelo “início da decadência do ciclo do ouro, pelas flutuações do preço do açúcar e pela sempre presente dominação inglesa” (CARVALHO, 2008, p. 67). Ainda continuaria o autor dizendo que: Surgindo nesse contexto, o Iluminismo português ficou mais próximo do italiano do que do francês. Preparado pelos padres do Oratório, com Luís Antônio Verney à frente, esse Iluminismo era essencialmente reformismo e pedagogismo. Seu espírito não era revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como o francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e humanista. Era o Iluminismo italiano: um Iluminismo essencialmente cristão e católico. (CARVALHO, 2008, p. 67). 24 Flávio Rey de Carvalho desenvolve uma análise de cunho historiográfico acerca de diferentes conceitos que tiveram presença marcante no ideário ilustrado de Portugal. A começar pela ideia de “iluminismo católico”, Carvalho, inspirando-se no trabalho do jurista português Luís Cabral de Moncada (1950), expõe a forma qual a forte tradição religiosa do catolicismo italiano, na figura de eruditos católicos, pôde firmar-se em Portugal nos tempos das Luzes, pactuando-se com um reformismo que não viesse a ferir a ortodoxia da Igreja. A respeito do “ecletismo”, esta é uma visão defendida pelo historiador e filósofo luso Pedro Calafate (1994), adotando o sentido de uma ilustração desprovida de uma doutrina fechada em si mesma, aberta para o diálogo com outras vertentes, numa atitude de se seguirem gradativas medidas de conciliação entre a fé católica e a razão ilustrada. Por fim, o conceito de “ilustração de compromisso” se fez presente a partir da obra do historiador português Norberto Ferreira da Cunha (2001), na medida em que este defenderia a existência de uma noção supostamente adotada pelos ilustrados lusos, de seguirem com o compromisso de não ferirem, em seus postulados, as tradições e práticas culturais católicas da nação portuguesa. Para definições mais aprofundadas destes três conceitos de iluminismo português, ver: Carvalho, 2007, p. 19- 27. 41 Formados pelas luzes do iluminismo português, a elite letrada brasileira, e os homens “letrados” da imprensa detinha em si o debate público acerca dos preceitos ideológicos que deveriam ou não reger, em teoria, o funcionamento institucional do recém-nascido Estado imperial brasileiro25, enquanto que boa parte da população se via excluída das discussões. Constituíram assim uma verdadeira "ilha de letrados em meio a um mar de analfabetos” (CARVALHO, 2008, p. 65). Apesar das diferenças essenciais entre as vertentes francesa e portuguesa dos processos, ou movimentos, de cunho iluminista, essa mesma formação cultural “intra-elites” é outro fator que viabiliza a aproximação conceitual dos homens “letrados” brasileiros, como Cipriano Barata, para com os “homens de letras” franceses, teorizados por Michel Winock (2006), mesmo que ainda mantenham as suas especificidades. Trazendo a reflexão para o lado da imprensa, e assumindo o pressuposto de que os seus editores eram, em grande medida, membros desta elite política definida por José Murilo de Carvalho (2008), e que tiveram sua formação acadêmica a partir da irradiação das luzes portuguesas, principalmente advindas da Universidade de Coimbra, pode-se atestar que a própria atividade jornalística se dava no sentido de disseminação das ideias provindas desta nova formação, sob as Luzes portuguesas. Como aponta Isabel Lustosa: O próprio papel da imprensa naquele momento era visto de outra maneira. Num tempo em que o acesso à educação era tão menos democrático, em que vivíamos a mudança do mundo a partir das ideias disseminadas pelo Iluminismo ao longo do século anterior, a imprensa se firmara como um importante difusor das chamadas Luzes. Naquele contexto o jornalista se confundia com o educador. (LUSTOSA, 2003, p. 15). Logo, já era de se esperar que, se os jornalistas se confundiam com educadores, que também vestissem a roupagem de políticos, participando 25 Acerca dessa geração de letrados formados pelo movimento das Luzes europeias, que tiveram atuação direta na política brasileira do contexto histórico da independência, recomenda-se a leitura de Maxwell, 1999, especialmente, o capítulo A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. 42 diretamente dos discursos apresentados na tribuna. E é este o ponto ressaltado na análise de José Murilo de Carvalho (2008), quando este descreve a imprensa durante o período do império do Brasil. O Império foi o período da história brasileira em que a imprensa foi mais livre. (...) Os jornalistas lutavam na linha de frente das batalhas políticas e muitos deles eram também políticos. Muitos políticos, por seu lado, escreviam em jornais nos quais o anonimato lhes possibilitava dizer o que não ousariam da tribuna da Câmara ou do Senado. A imprensa era, na verdade, um fórum alternativo para a tribuna, importante principalmente para o partido na oposição muitas vezes sem representação alguma na Câmara. (CARVALHO, 2008, p. 54). Pode-se incluir ainda nesta breve análise da homogeneidade cultural das elites letradas do Brasil oitocentista, os postulados expostos pela historiadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, na sua já citada obra Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822): Entre 1820 e 1822, o mundo luso-brasileiro assistiu a um intenso debate em torno das ideias liberais, propiciado pela divulgação, sem precedentes, de escritos diversos, sob a forma de folhetos e jornais, cuja circulação teve início na maioria das vezes em Portugal, mas que logo chegavam também ao Brasil. (NEVES, 2003, p. 16). Lúcia Neves também compartilha da ideia de que a homogeneidade cultural da elite brasileira nasce do chamado movimento do iluminismo português, a partir das políticas pombalinas e, especialmente, por meio da reforma curricular de 1772 26 , qual deu origem à geração “coimbrã” de intelectuais, juristas e políticos brasileiros. Muitos dos escritores “letrados” que atuariam posteriormente durante os anos da independência do Brasil tiveram 26 A Coroa portuguesa, a partir do ano de 1772, nas intenções de modernizar o ensino institucional de sua nação, até então de caráter jesuítico, empreendeu a reforma da Universidade de Coimbra, considerada um marco da entrada das ideias pertencentes ao movimento das Luzes no país, institucionalizando muitos dos princípios da chamada “República das Letras” francesa. Dentre as principais mudanças da dita reforma, conta-se a reformulação da Faculdade de Leis e a importante criação da Faculdade de Filosofia, ambas pautas em preceitos iluministas. Uma profícua discussão acerca de tal reforma é desenvolvida em Carvalho, 2007. 43 sua formação nas luzes de Coimbra, graduando-se em cursos como os de filosofia, direito, medicina e matemática (NEVES, 2003, p. 29-31). Outro fator interessante a ser pensando, acerca da comunhão “intra- elites” existente no Brasil vintista, reside no fato de que os artigos dos periódicos, a partir daquele momento, passaram a criar certas redes de sociabilidade, sendo discutidos publicamente em cafés, livrarias e academias frequentadas por estes homens “letrados”, ainda mais com a difusão secreta de obras de caráter iluminista, em sua maioria, francesas. Nas palavras de Lucia Neves, “utilizando-se principalmente de uma linguagem política, os jornais traziam à tona os novos paradigmas do liberalismo” (NEVES, 2003, p. 36). Estes homens “cultos” acompanhavam as novidades advindas da Europa, no que muitos deles, mesmo às escondidas, liam e recitavam, ou até mesmo detinham em suas bibliotecas particulares, obras de teóricos e revolucionários franceses, revestindo-se do papel de intelectuais. Atenta-se que aqui entendeu-se “intelectual” tão somente através dos termos de "escritor político", no que foram deixadas de lado outras definições para esta personalidade histórica. Escolheu-se este sentido levando-se em consideração as teorizações do próprio Michel Winock (2006) enquanto membro integrante do movimento da nova história política francesa, organizada pelo historiador René Rémond (2003). Trilhou-se este caminho interpretativo menos pelas premissas do autor aqui citado e mais pelo campo teórico original da historiografia voltada aos estudos dos escritores do “Político”, e que escrevem sobre a “política”. Todavia, como já explicitado anteriormente, os “homens de letras” franceses diferenciam-se dos homens “letrados” brasileiros em alguns quesitos, sendo o principal deles o fato de que estes escritores, no caso francês, conseguiam viver somente de suas letters, ou seja, daquilo que publicavam, sejam seus escritos políticos ou até mesmo obras de conhecimento geral, o que dificilmente se observa no caso do Brasil (NEVES, 2003, p. 52). Deste lado do Atlântico, ser escritor de matérias políticas significava, antes de tudo, que estes homens “letrados” precisavam se sustentar por outros meios de remuneração que não as suas letters. 44 No caso do escritor “letrado” em análise, Cipriano Barata, este passaria alguns anos após a sua formação acadêmica atuando profissionalmente como professor. Após este período, migraria, primeiramente, para o campo político, sendo um dos deputados eleitos para participar das discussões empreendidas pelas cortes constituintes de Lisboa, e, posteriormente, ao datar de sua cisão interna com os deputados lusos, devido à sua visão de “nativista radical” que não agradava aos seus pares, retornaria ao Brasil (SODRÉ, 1998, p. 66-68). Impedido de se instalar na Bahia, por conta das forças armadas reunidas do general português Inácio Luís Madeira de Melo, no contexto das guerras de independência do Brasil, se instalaria em Recife, no Pernambuco, onde começaria a elaborar o projeto editorial do Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco. Vestindo a figura do Sentinela sempre em “Alerta!”, como diria o mesmo inúmeras vezes em sua gazeta, tornou-se assim, um dos escritores “letrados” daquele século XIX. (SODRÉ, 1998, p. 67). Este terceiro ponto, que diferencia conceitualmente os “homens de letras” franceses, dos homens “letrados” da elite brasileira finaliza, por sua vez, este tópico inicial. A partir daqui, já se torna possível pensar e articular outras concepções teóricas, como da questão dos tipos ideais em História e a inclusão destes homens “letrados” através de uma categoria tipificada, que condiz não somente a um sujeito singular, mas sim a uma ideia de sujeito, a níveis gerais de análise. 45 2.2 O tipo ideal em História: a compreensão sociológica dos homens “letrados” A fim de se realizar esta empreitada de tipificação, recorreu-se à aplicação da sociologia compreensiva de Max Weber 27 à área do conhecimento histórico, de onde alguns historiadores brasileiros da teoria da História, que realizaram semelhante aporte, serviram de baliza no momento de pensar acerca do conceito. Foi através, principalmente, de José Carlos Reis (2012), em sua obra Teoria e história, e Virgínia Fontes, no capítulo História e modelos, incluso na obra coletiva de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (1997), Domínios da história, que se chegou às definições pretendidas no procedimento da atividade de tipificação. Para se entender o “trabalhar-se” com a categoria teórica de “tipos ideais” em História, é importante que se parta de uma base de compreensão filosófica da própria realidade, pautada pela ação social, objeto de estudo da sociologia weberiana, no que a exposição realizada por José Carlos Reis (2012) possibilitou a simplificação de um tema complexo como este. O autor persegue a premissa de Max Weber, de que “a ação social é uma atividade de sujeitos racionais”, e que logo, é “inteligível” e “se dá à compreensão” (REIS, 2012, p. 159) de outros sujeitos racionais, eis o porquê ser ela uma característica humana e que serve de base para os estudos das ciências sociais. Entretanto, “compreender não é participar”, nem mesmo “reviver” o outro, mas sim o realizar de um discurso sobre ele, no que “não é preciso ser César para compreender César, isto é, não é preciso ter tido uma experiência pessoal para compreender uma ação. E compreender César não é tornar-se César, o que seria impossível” (REIS, 2012, p. 159). Tendo essa reflexão por 27 A ideia de sociologia, em Weber, é gestada a partir do conhecimento científico que tem por objeto de estudos as ações sociais dos indivíduos inclusos em sociedade, na medida em que estas se dão de infinitas maneiras, a partir de um incontável número de motivações. A fim de estudar esta característica social, Max Weber (1910) propôs a criação do conceito de “tipos ideais”, espécie de constructos mentais dotados de teoria científica, capazes de, se não explicar a ação social em seu substrato, ajudar na busca pela compreensão de seu acontecimento. A sociologia compreensiva baseia-se na tentativa de mensuração das motivações dos diferentes agentes sociais, que geram a realidade das relações sociais em sua totalidade. Para um estudo acerca da teoria weberiana aplicada ao meio historiográfico, recomenda-se a leitura das obras de Reis, 2012, p. 161-169; Weber, 2004. 46 pressuposto teórico, não se é preciso ser um membro da elite “letrada”, nem mesmo um escritor da imprensa do século XIX, para se compreender tais sujeitos. E José Carlos Reis continua sua reflexão dizendo que em Weber, “para compreender pode-se recorrer à construção do ‘tipo ideal’ de uma ação puramente racional”, e que o tipo ideal, além de uma construção racional, também é “uma hipótese, que permite abordar e apreender o real. É uma construção racional que permite conhecer fatores irracionais” (REIS, 2012, p.160). Em outras palavras: Um tipo ideal é uma síntese, um quadro ideal não contraditório de relações pensadas, uma utopia lógica, uma forma, uma construção de realidades objetivamente possíveis, um meio de conhecimento, um conceito limite, puramente ideal, visando a apreensão de individualidades históricas. Ele não avalia, não é uma utopia ética, um imperativo categórico. É perfeito apenas logicamente. (...) A construção conceitual é a única via para a superação da obscuridade retórica e determina clara e rigorosamente a diferença entre pontos de vista possíveis. (REIS, 2012, p. 160-161). Fazendo então um paralelo com as reflexões da historiadora Virgínia Fontes, pode-se afirmar que: O tipo ideal não deve, segundo Weber, em momento algum ser pensado como aquilo que “deveria ser” ou como o caso “exemplar”, aliás nem mesmo sequer como “típico”, pois ele não existe como tal na realidade, mas às ideias que podemos constituir dessa realidade. (...) Seu objetivo é atuar como meio para o conhecimento e não enquanto conhecimento em si mesmo. (FONTES, 1997, p. 521). Para Virgínia Fontes, historiadora que aborda o uso de modelos analíticos em meio à pesquisa histórica, o “tipo ideal” weberiano, ou melhor, a sua noção como teoria aplicável às ciências sociais, aproxima-se do trabalho com modelos históricos, no que, a “construção de modelos utópicos (pela caricatura de traços difusos que se encontram na sociedade)”, gerariam “um novo ‘personagem’ que passaria a funcionar como ‘padrão’ de comparação e de medida para os demais indivíduos de seu grupo”, logo, no que diz respeito, especificamente, à conduta dos indivíduos, “segundo Weber, sendo sempre 47 particulares, só podem ser apreendidas pela elaboração de tipos ideais de condutas” (FONTES, 1997, p. 521-522). A autora conclui dizendo que “desse ponto de vista, o modelo não é a própria instância do conhecimento, mas um dos momentos da elaboração cognitiva” (FONTES, 1997, p. 513). Além da tipificação deste sujeito histórico, o escritor “letrado” brasileiro dos anos 1820, entendido no sentido de “escritor político”, que é engajado, principalmente em defensa da liberdade de imprensa, e que escreve para uma elite letrada, também se fez necessária a sua inclusão em um grupo social, emergido da lógica contextual de uma cultura política inerente à sua atividade como intelectual. Deparou-se então com o conceito de imprensa "incendiária", como sendo o local de pertencimento cultural e social destes escritores “letrados”. Entenda-se, o homem “letrado” brasileiro dos anos 1820, além de todas as suas características próprias, possuía também ligações socioculturais e políticas que o incluíam em uma atividade jornalística sempre disposta ao “incendeio” do discurso público. O conceito de imprensa que é "incendiária" veio de inspiração a partir dos pensamentos e trabalhos coletivos dos historiadores José Murilo de Carvalho, Lúcia Neves e Marcelo Basille, através de um seminário participante da série 200 anos da independência, organizado pela Fundação Biblioteca Nacional. Nesta apresentação, intitulada Os “panfletos incendiários da independência”28, José Murilo de Carvalho, conjuntamente com outros, além de apresentar os conceitos de guerra literária, desenvolve a ideia de uma imprensa que seria dotada de um linguajar radical, combativo e ideológico, o que serviu de guia para se pensar na elaboração teórica de uma pesquisa voltada não para os ditos panfletos, mas sim para uma imprensa “incendiária” brasileira, também ela radical em seus editoriais, combativa em relação a seus opositores e claramente ideológica. Em vias de regras, o termo incendiário, dentro do dicionário Aurélio da língua portuguesa, é identificado como: Substantivo: aquele que incendeia; que comunica fogo a alguma coisa; Figurativo: revolucionário, exaltado (INCENDIÁRIO. In: DICIONÁRIO Aurélio, 2010). Utilizou-se desta definição de 28 Disponível em: https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/11/200-independencia- panfletos-incendiarios-independencia. Acesso em: 12 jun. 2022. 48 “Incendiário” por se estar construindo tal conceito a partir de uma visão do Presente acerca daquele momento histórico. Logo, uma imprensa que é incendiária, se posiciona ativamente como exaltada e/ou revolucionária, em confronto direto ou indireto com a ordem política estabelecida. Teoriza-se que estes homens “letrados”, através de sua atividade editorial, buscaram o “incendeio” da opinião pública de uma elite letrada, impelida à tomada de posicionamento, ação e identificação política. Seguindo-se por estes caminhos teóricos, chegou-se ao conceito de cultura política como resultante das atividades da imprensa “incendiária” brasileira. Cultura política, por sua vez, é um conceito que surge nos anos 1960, dentro do cenário de desenvolvimento das ciências políticas norte-americanas, com o artigo dos pesquisadores Gabriel Almond e Sidney Verba, primeiramente publicado em 1963 sob o título de An aproach to political culture, incluso dentro da obra The civic culture, a fim de pensar o mundo democrático após a eclusão da I e da II Guerra Mu