UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES – CAMPUS SÃO PAULO GABRIELA POVO DE CASTRO KELLY PRISCILA ARMILIATO AUTONOMIA E CONTROLE NO ENSINO DE TEATRO: corpos marcados pelas experiências e relações artístico-pedagógicas São Paulo 2023 GABRIELA POVO DE CASTRO KELLY PRISCILA ARMILIATO AUTONOMIA E CONTROLE NO ENSINO DE TEATRO: corpos marcados pelas experiências e relações artístico-pedagógicas Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para obtenção dos títulos de Licenciadas em Arte-Teatro. Orientadora: Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli São Paulo 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. C355a Castro, Gabriela Povo de, 1999- Autonomia e controle no ensino de teatro : corpos marcados pelas experiências e relações artístico-pedagógicas / Gabriela Povo de Castro, Kelly Priscila Armiliato. - São Paulo, 2023. 67 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Arte-Teatro) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Teatro na educação. 2. Representação teatral - Estudo e ensino. 3. Autonomia escolar. 4. Aprendizagem. I. Armiliato, Kelly Priscila, 1984-. II. Bredariolli, Rita Luciana Berti. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 372.66 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 GABRIELA POVO DE CASTRO KELLY PRISCILA ARMILIATO AUTONOMIA E CONTROLE NO ENSINO DE TEATRO: corpos marcados pelas experiências e relações artístico-pedagógicas Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para obtenção dos títulos de Licenciadas em Arte-Teatro. Trabalho de Conclusão de Curso aprovado em: 01/02/2023 Banca examinadora _______________________________________________ Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli Instituto de Artes da Unesp - Orientadora _________________________________________________ Profa. Dra. Lilian Freitas Vilela Instituto de Artes da Unesp AGRADECIMENTOS Agradeço a minha família, Maria, Silvio, Rafaela e Alessandra, meus pais e minhas irmãs, por todo suporte, incentivo e condições criadas para que eu pudesse cursar e finalizar esta graduação. Aos meus sobrinhos Sara e Olavo, pelas histórias e brincadeiras que sempre me movem na direção da esperança e da alegria. A todos meus amigues e colegas, artistas e professores, especialmente aos integrantes do LAT 018, aos bolsistas e voluntários do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID, edital 2018) e do Programa de Residência Pedagógica (edital 2020), que marcaram minha formação através de debates contínuos engajados e críticos, sempre esperançando e acreditando na necessidade de mudança constante. Aos estudantes que conheci durante os estágios no ensino formal, que me marcaram com suas perguntas e perspectivas. As professoras/professores que marcaram meu processo durante a licenciatura, movendo minha curiosidade e me inspirando, Fernanda Raquel, Igor Gasparini, Lilian Freitas Vilela, Lucas Larcher, Marcella Vicentini, Mariana Mayor, Natália Tazinazzo, Priscila Leonel de Medeiros Pereira, Rejane Galvao Coutinho, Rita Luciana Berti Bredariolli e Sidiney Peterson Ferreira De Lima. E por fim, a minha grande amiga e parceira Priscila Klesse (Kelly Priscila Armiliato), com quem partilhei durante os últimos anos minhas descobertas, alegrias, tristezas, crises, epifanias, esperanças, indignações e a escrita deste TCC, te agradeço por sempre me escutar com muita paciência e atenção, me encorajando sempre. — Gabriela Povo de Castro Agradeço à minha família por todo o apoio e incentivo desde o vestibular e durante toda a graduação, em especial à minha mãe Leonice e irmã Ana que além de apoio e incentivo sempre me surgem como inspiração para seguir. Aos meus amigos artistas da Associação Cultural Opereta que me incentivaram e apoiaram durante todo esse período, em especial à Lidiane Santos e Marco Senna pela oportunidade e confiança que me deram para que eu começasse a ensinar e dirigir teatro. Agradeço a todos os professores que tive ao longo da minha vida, todos colaboraram para que eu me tornasse quem sou hoje, mesmo os que de alguma forma me oprimiram ou não me incentivaram. Em especial quero agradecer aos professores que foram inspirações fundamentais em minha trajetória nesta graduação: Lilian Freitas Vilela, Fernanda Raquel, Natália Tazinazzo Figueira de Oliveira, Lucas de Carvalho Larcher Pinto, Igor Gasparini, Maíra Leme de Andrade, Rejane Galvão Coutinho, Priscila Leonel de Medeiros Pereira e muito especialmente a nossa orientadora Rita Luciana Berti Bredariolli. Também agradeço aos amigos que encontrei nessa graduação, com que tive a oportunidade de estudar e criar juntes, em especial a essa minha parceira Gabriela Povo, que rapidamente nos identificamos em tantas coisas e resolvemos partir nessa jornada de Trabalho de Conclusão de Curso juntas, dividindo nossas descobertas, alegrias, tristezas e a raiva também, que sempre soubemos trabalhar para nos fortalecer e não nos distanciar. Por fim agradeço a todas aqueles que ao longo de minha trajetória como artista educadora tive a oportunidade de encontrar, criar e experimentar artisticamente juntes. — Kelly Priscila Armiliato A educação é um ato de amor e, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa. Como aprender a discutir e debater com uma educação que impõe? Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque, recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção. — PAULO FREIRE RESUMO O presente trabalho busca discutir sobre a autonomia e o controle no ensino de teatro por verificar que a criação do sujeito em situação de aprendizagem é pautada, majoritariamente, pelo desejo e padrões estipulados pelo educador/diretor, que através de seu ideal estético ou acadêmico deposita suas expectativas na criação do estudante, e pela necessidade condicionada de se subjugar a com estigmas e padrões impostos culturalmente e socialmente. Partindo da compreensão do conceito de autonomia em oposição à heteronomia, que em nosso contexto são as estruturas de controle e poder, dependências e as marcas deixadas em nossos corpos, articulamos, por fim, caminhos para a autonomia dentro de uma prática de ensino-aprendizagem teatral que busca superar esses controles e limites, através de práticas didáticas relacionadas principalmente ao modelo democrático/libertador de ensino e a modalidades teatrais específicas, como Viewpoints e Teatro Comunitário. Palavras-chave: Autonomia; ensino de teatro; pedagogia do teatro; educação democrática; ensino-aprendizagem. ABSTRACT The present work seeks to discuss autonomy and control in theater teaching by verifying that the creation of the subject in a learning situation is guided, mostly, by the desire and standards stipulated by the educator/director, who, through his aesthetic or academic ideal, deposits their expectations in the student's upbringing, and the conditioned need to subjugate themselves to culturally and socially imposed stigmas and standards. Starting from the understanding of the concept of autonomy as opposed to heteronomy, which in our context are the structures of control and power, dependencies and the marks left on our bodies, we finally articulate paths to autonomy within a teaching-learning practice theater that seeks to overcome these controls and limits, through didactic practices related mainly to the democratic/liberating model of teaching and specific theatrical modalities, such as Viewpoints and Community Theater. Keywords: Autonomy; theater teaching; theater pedagogy; democratic education; teaching-learning. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO………………………………………………………………………….. 9 2. AUTONOMIA: PERSPECTIVAS DE UM CONCEITO………………………… 13 3. ESTRUTURAS DE CONTROLE E PODER…………………………………….. 21 3.1 HIERARQUIAS……………………………………………………………………. 21 3.2 ESPAÇOS DE PODER…………………………………………………………… 23 3.3 CONTROLE DOS CORPOS - BIO-POLÍTICA………………………………… 32 4. PROPOSTAS METODOLÓGICAS PARA A AUTONOMIA NO ENSINO DE TEATRO……………………………………………………………………37 4.1 O MODELO AUTORITÁRIO E O MODELO LIBERTADOR/DEMOCRÁTICO SEGUNDO FÁTIMA FREIRE DOWBOR…………………………………………… 37 4.1.1 Modelo Autoritário………………………………………………………….37 4.1.2 Modelo Libertador/Democrático…………………………………………38 4.2 ESTAR PRESENTE/AUSENTE…………………………………………………. 39 4.3 ESCUTA E SILÊNCIO - DIÁLOGO……………………………………………... 44 4.4 VIEWPOINTS: UMA EXPERIÊNCIA DE AUTONOMIA CRIATIVA ………….47 4.5 TEATRO COMUNITÁRIO: UM CAMINHO POSSÍVEL PARA A AUTONOMIA……………………………………………………………………………54 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………58 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………...64 9 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho procura discutir sobre a autonomia e o controle presentes no ensino de teatro, a partir de inquietações vindas principalmente das experiências e situações vivenciadas em nossas trajetórias, seja como estudantes de teatro ou já como educadoras. Em nossa escrita, optamos por vezes, pelo uso da primeira pessoa do plural e primeira pessoa do singular. Essa escolha se dá pelo fato de que, ao longo do texto, utilizaremos, como ponto de partida para a reflexão crítica, algumas de nossas experiências pessoais que consideramos relevantes para as discussões temáticas. Além disso, optamos por não seguir estritamente, em alguns trechos do texto, o uso genérico do gênero masculino empregado como estilo mais utilizado e aceito, sobretudo para pronomes e vocativos, na linguagem formal da língua portuguesa, utilizando por vezes o feminino. Em um processo que ainda nos é difícil e infelizmente não abrange uma ruptura com a binaridade da linguagem, mas considerado importante como um primeiro passo para romper com as marcas do patriarcado e machismo presentes no contexto educacional e acadêmico. Embora nós, Gabriela e Kelly Priscila, sejamos duas pessoas completamente diferentes, e podemos até dizer de gerações diferentes devido aos mais de dez anos de diferença de idade, o curso de licenciatura em Arte-Teatro nos uniu, e com a convivência fomos percebendo diversas semelhanças em nossas trajetórias, nas situações ocorridas em nossas formações em teatro e em nossas perspectivas, além de interesses em comum. Durante uma de nossas conversas, Gabriela contou sobre situações que observava com frequência durante seu estágio no ensino formal, com um professor de Arte da educação básica, nas quais ele não incentivava a autonomia dos estudantes e acabava fazendo a atividade no lugar deles quando lhe pediam alguma ajuda, mesmo sendo um professor com uma prática interessante, e muitas vezes progressista, que trazia semestralmente um tema próximo aos estudantes como fio condutor das atividades. Por exemplo, em um semestre com temática relacionada às Iabás1 e a mulher negra, durante uma atividade do conteúdo programático sobre colagens e surrealismo na qual os alunos precisavam fazer colagens de mulheres negras com imagens de revistas, por vezes, quando eles ficavam inseguros com 1 "Mãe Rainha", termo em iorubá dado às orixás femininas, principalmente Yemanjá e Oxum. 10 seus trabalhos era o professor quem fazia os recortes para que eles ficassem “corretos” e analisava a composição antes da colagem para que a estética final o agradasse. Esse depoimento, lembrou Kelly Priscila de algumas experiências que ela teve como oficineira de teatro na Associação Cultural Opereta, na cidade de Poá - SP, onde independentemente dos participantes serem jovens, adultos e até mesmo idosos, tinham muita dificuldade de criar livremente, de realizar as propostas das atividades de forma autônoma, o que muitas vezes fazia com que eles não conseguissem concluir um experimento por medo de estarem errados, já que esperavam que houvesse uma forma certa de realizar as propostas. Além disso, em nossas próprias experiências como estudantes de teatro, dentro de diversos contextos — cursos técnicos, oficinas, cursos livres, graduação — , nos deparamos com algumas professoras/professores e oficineiras/oficineiros que incentivaram nossa autonomia e outras que a podaram. Nessa posição observamos que muitas propostas delimitavam o certo e errado ou o bonito e o feio; incentivaram a competição entre colegas, com excessiva valorização daquele que é entendido como talentoso ou disciplinado, privilegiando-o enquanto se desvaloriza e desmotiva os demais; além das questões sociais (re)produzidas nesses espaços como o sexismo, racismo, capacitismo, padrão estético, gordofobia, ainda sobre as duas últimas citadas, sendo ambas mulheres gordas, também constatamos que pessoas com corpos entendidos como dentro do padrão estético estabelecido na sociedade, sempre acabavam interpretando grandes personagens, eram mais ouvidas e recebiam maior atenção dos educadores nas aulas. E então chegamos a algumas questões: Se o teatro é também lugar pedagógico, tem função pedagógica, porque muitas vezes é usado para controlar as pessoas e não para ensinar elas a se libertarem? Até que ponto ou como a professora/educadora é responsável pela autonomia da estudante? Onde começa ou termina essa responsabilidade da professora em colaborar para a autonomia dos estudantes? Como possibilitar e incentivar a autonomia das estudantes sem nos tornarmos também impositivas nessa ação? Como incentivar que as estudantes se percebam livres e criadoras de sua própria trajetória de aprendizado criativo e artístico no teatro, quando o mundo impõe a educação bancária? Decidimos então mergulhar na pesquisa desses assuntos, escolhendo como recorte a autonomia e o controle no ensino de teatro por perceber que a criação do 11 sujeito em situação de aprendizagem era pautada, majoritariamente, pelo desejo e padrões estipulados pelo educador, diretor ou mestre2, que através de seu ideal estético ou acadêmico deposita suas expectativas na criação do estudante. Ideal este que corrobora com os imaginário sociais de um único padrão estético que define o que é bom e ruim ou certo e errado na arte e é também perpetuado pela máquina escolar há séculos, através da dependência construída pela educação bancária, onde o professor é quem dita o que é certo, belo e cabível ao educando. Partimos de uma pesquisa autobiográfica articulada à pesquisa bibliográfica, refletindo e problematizando nossas experiências em relação a teorias, fundamentos e conceitos encontrados, para melhor compreendermos o tema e pensarmos possíveis caminhos para a autonomia no ensino de teatro. No primeiro capítulo traremos a definição de autonomia através da pesquisa de Vicente Zatti que articula os conceitos desenvolvidos por Immanuel Kant, este conceitua o termo na modernidade, e Paulo Freire, que a discute na contemporaneidade brasileira, chegando por fim nas definições que contemplarão o ensino de teatro. No segundo capítulo refletiremos sobre algumas estruturas de controle e poder. Analisando estruturas hierárquicas presentes nas salas de aula, seja no ensino-formal ou não-formal, e também nas salas de ensaio, ao problematizar as figuras de poder, geralmente incorporadas nos professores e diretores teatrais. Também abordaremos os espaços de poder e suas hierarquias, a partir do pensamento de Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir. Além do pensamento de Fátima Freire Dowbor em Quem educa marca o corpo do outro, refletindo sobre o controle imposto sobre os corpos. O terceiro capítulo propõe metodologias que, a partir de nossas experiências práticas e estudos, inferimos contemplar a autonomia e o protagonismo do estudante/artista da cena no ensino de teatro. Para tal, refletiremos sobre os modelos autoritário democrático/libertador, de acordo com Fátima Freire Dowbor. Em seguida nos aprofundaremos em relações didáticas dialéticas que devem fazer parte das reflexões e da prática da educadora desse segundo modelo, como o estar ausente/presente e a escuta e silêncio, necessárias para a efetivação de diálogo, trazendo também grandes contribuições de Paulo Freire. 2 Pessoa, majoritariamente homens, considerados autoridades no domínio da linguagem teatral, ou criadores de metodologias teatrais, ao longo da história do teatro. 12 Ainda neste capítulo traremos duas modalidades teatrais que podem articular, de forma prática, os conceitos abordados até então, e levar a autonomia, são elas o Viewpoints e o Teatro Comunitário. A primeira é um processo de criação teatral aberto pautado em relações de espaço e tempo. E a segunda trata-se de uma categoria, um jeito de fazer teatro realizado em comunidades de forma comunitária, onde qualquer pessoa pode participar mesmo sem formação profissional em teatro. Entendendo que o conceito de autonomia não é absoluto, buscaremos portanto refletir sobre experiências do sujeito nas relações de ensino-aprendizagem do teatro em que ele não seja anulado por condicionamentos ou seja definido pelas dependências e controles que vivemos. Buscando também definir parte desses controles e dependências para diferenciar práticas que exerçam a autonomia e práticas de subjugação/opressão, podendo assim buscar conscientemente uma vivência e prática teatral autônoma. 13 2. AUTONOMIA: PERSPECTIVAS DE UM CONCEITO A palavra Autonomia, tem origem etimológica de duas palavras do grego: autós, que significa de si mesmo, e nomos, que significa norma ou lei. Segundo o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, Michaelis Online (2023), autonomia é a “capacidade de autogovernar-se, de dirigir-se por suas próprias leis ou vontade própria” ou a “faculdade própria quanto à decisão sobre organização e normas de comportamento, sem se dobrar ou ser influenciadas por imposições externas”. Vicente Zatti (2007), em Autonomia e educação em Immanuel Kant e Paulo Freire, enfatiza definições que apresentam autonomia como uma condição, sendo ela “a condição de quem determina a própria lei”, e seu contrário, a heteronomia, “a condição de quem é determinado por algo estranho a si”. O radical grego “heteros” significa “outro, diferente”, logo heteronomia é a aceitação da lei que não é própria, sendo um conceito kantiano, é explicado por “a vontade não se dá a lei a si mesma, mas é sim um impulso estranho que dá a lei” (KANT, 2002, p. 55 apud BRESOLIN, 2013, p. 04). Portanto, pode-se entender autonomia como designação da ação de estabelecer as próprias leis, o poder de se autodeterminar, enquanto uma pré-determinação externa ao sujeito, é heteronomia. Além de definir autonomia em seu sentido amplo, é necessário entender a evolução do conceito no campo filosófico e educacional para contextualizá-lo dentro deste trabalho. Zatti (2007), teoriza que para entendermos a concepção de autonomia de um autor, é necessário compreender a qual heteronomia este se opõe, além de seu contexto histórico e teórico, ideia que será estendida a este trabalho. Apesar de o conceito de autonomia ter sido definido e adquirido centralidade na modernidade, especialmente com Kant, já no pensamento grego era desenvolvida uma noção de autonomia. Ao longo da história essa noção vai adquirindo significados diferentes e, assim, vai sendo elaborada. Por isso, para entendermos a concepção de autonomia de um autor, precisamos olhar a qual heteronomia ele se opôs e o contexto histórico e teórico que o envolvia. (ZATTI, 2007, p. 12). O autor vai trazer em sua obra uma descrição dos pensamentos filosóficos, ao longo da história ocidental, que contribuíram para a construção do termo autonomia, indo desde a Grécia Antiga, onde se perpetuavam ideias próximas ao conceito, passando por suas primeiras definições até chegar em Immanuel Kant3, que define 3 Filósofo moderno (1724-1804). 14 autonomia na modernidade e cria o conceito de heteronomia, usado aqui associado a outras teorias apenas para elucidar o raciocínio seguido. Algumas definições que precedem a de Kant são as de Martinho Lutero4 e do iluminismo5. A do primeiro estava ligada à liberdade do sujeito da dependência de inclinações humanas para obedecer a Deus, trocando uma dependência determinante por outra. Já a dos iluministas vai se opor à tradição e a religião, relacionando a autonomia à razão da vida física e liberdade de superstições, dogmas metafísicos e ignorância, pautando o termo na experiência da felicidade e na realização dos desejos do indivíduo, concebendo portanto uma visão utilitarista da autonomia, que poderia ser usada como meio para um fim. Kant vai seguir o pensamento de seu tempo ao pautar suas teorias na afirmação de que o homem se difere dos animais por sua racionalidade, mas vai se opor ao iluminismo ao definir a autonomia dentro de conceitos morais relacionados a essa razão, a dignidade humana e a livre vontade, indo contra o utilitarismo e a dependência da experiência. E é através de sua obra que podemos começar a entender a complexidade da palavra aqui discutida. Autonomia não é um conceito absoluto, e não deve ser confundida com poder ilimitado, autocracia, ou um “fazer o que quiser” sem considerações ou restrições. Kant teoriza sobre a autonomia da vontade, da qual o ser se apropria quando “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1974, p. 223 apud ZATTI, 2007, p. 16), ou seja, quando age apenas segundo o que ele chama de imperativo categórico, seu ideal de moralidade. Portanto autonomia em Kant pressupõe a responsabilidade de não impossibilitar a autonomia do outro, ou seja, não impor quaisquer heteronomia ao outro ou a si, libertando a ação autônoma de desejos e condicionamentos para que ela sempre busque o fim em si mesma, ou seja, "agir livremente não é escolher as melhores formas para atingir determinado fim, é escolher o fim em si." (SANDEL, 2008). A responsabilidade que Kant atribui ao sujeito é absoluta, pois ele nega tanto a determinação da natureza e do mundo sensível quanto aos voluntarismos – como por exemplo o teológico descrito como autonomia por Martinho Lutero – ao homem, 5 Movimento filosófico popular na europa durante o século XVIII que valorizava a razão em detrimento da religião. 4 Figura central da reforma protestante, monge católico (1483-1546). 15 classificando ambos como heteronomia. Mais uma vez se opondo aos iluministas, que relacionavam a autonomia à felicidade enquanto ele a relaciona ao dever da razão, estando a primeira relacionada ao “mundo da causalidade, no qual não é possível prever grau de liberdade para um fenômeno físico e, o mundo da liberdade, que é o âmbito da razão prática no qual é possível autonomia.” (ZATTI, 2007, p. 30). Mesmo com contribuições importantes, são questionáveis as ideias de desassociar totalmente o mundo sensível e a universalidade ligadas à autonomia nas teorias de Kant, que se pautam em um mundo que prescinde de igualdade a todos indivíduos, com uma visão etnocêntrica que acaba trazendo diversos reducionismos a sua discussão, pela falta de discorrer sobre diferenças. Um de seus reducionismos é a ideia de natureza racional: A natureza racional é a única coisa que existe como um fim em si mesma. Esse caráter racional confere ao homem dignidade, todas as outras coisas têm um preço, mas o homem possui dignidade. O homem, como ser racional, possui valor absoluto e não pode jamais ser tratado como meio, o que podemos ver em uma das formulações de Kant ao imperativo categórico: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 1974a, 229 apud ZATTI, 2007, p. 25). Por exemplo, ao formular o imperativo categórico, mesmo definindo o seu oposto, o imperativo hipotético, Kant não discute o fato de muitas pessoas acabarem tendo seu valor medido pelo seu trabalho, sendo usados como meio e negligenciados de sua dignidade, mesmo tendo vivido na época da Revolução Industria6l. Quanto à educação, que é o foco dessa pesquisa, o filósofo também já vislumbra a autonomia como seu principal objetivo. Mas mesmo criticando um ensino tradicional, pautado no treinamento, e elencando o respeito à dignidade da pessoa em situação de aprendizagem, ainda opta por uma disciplina da vontade que evita a selvageria ou a animalidade humana. Como Kant pensa o homem enquanto participante do mundo sensível e do inteligível, propõe que a educação deve disciplinar para impedir que a selvageria, a animalidade, prejudique o caráter humano (cf. idem, p. 26). Se nada se opõe na infância e na juventude, o indivíduo conservará uma selvageria a vida toda. Por isso a educação deve ter uma parte negativa que Kant chama de disciplina. A disciplina educa para a obediência. [...] A 6 Período histórico iniciado no século XVIII na Inglaterra, que marca o surgimento e estabelecimento da industrialização e a consolidação do capitalismo. 16 criança sendo habituada a trabalhar por constrangimento na escola está submissa a uma obediência passiva, o que no início da educação é bom, para que ela discipline sua vontade. Aos poucos a disciplina se interioriza e a criança passa a obedecer a si mesma, quando descobre a liberdade. Torna-se então uma obediência voluntária, não fundada na autoridade do outro, mas na obediência à razão, a si mesmo, descobrindo assim a autonomia. Dessa forma a educação moral kantiana conjuga disciplina e liberdade. Por isso para Kant a disciplina não é oposta à autonomia, ao contrário, a disciplina é necessária. (ZATTI, 2007, p. 32). Essa lógica, por mais bem desenvolvida que seja em seu pensamento, se torna contraditória ao afirmar que a disciplina educa para a obediência, pois assim Kant acaba reiterando ideias que levando em conta as pautas de sua teoria e o caráter de imposição externa deveriam ser caracterizadas como heteronomia e não autonomia, ou seja, deveriam ser negadas. Além de ser, trazendo agora conceitos da contemporaneidade, uma visão da branquitude, visão de controle do corpo branco sobre outros corpos. Também é incoerente a ideia de que a criança trabalhará sendo constrangida no começo da educação, para depois interiorizar essa experiência e encontrar a autonomia, pois esse constrangimento gera traumas, já que nossos corpos são marcados por nossas experiências e certamente as de nossa infância são as mais fortes e mais difíceis de serem ressignificadas. E a interiorização dessa obediência, que vem de concepções externas de civilidade e selvageria, não resultaria em autonomia mas sim em uma heteronomia. Após Kant, outros pensadores buscaram pensar o conceito de autonomia, e outros associados a esse, na complexidade dos sujeitos, considerando não apenas o que seria sua razão pura7, mas suas tendências sensíveis e a inter-relação com o outro e seus contextos. Entre estes, optamos por discorrer mais profundamente sobre Paulo Freire8, que traz em pauta o reconhecimento e as implicações da complexidade do ser sócio-histórico-cultural na contemporaneidade brasileira, além de colocar a 8 Patrono da Educação Brasileira, educador e filósofo pernambucano (1921-1997). 7 “Na Crítica da Razão Prática, Kant demonstra que a razão pura é prática por si mesma, ou seja, ela dá a lei que alicerça a moralidade, a razão fornece as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas são princípios práticos objetivos, regras válidas para todo ser racional. Elas se diferenciam das máximas que são princípios práticos subjetivos, regras que o sujeito considera como válidas apenas para sua própria vontade. Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas’ (KANT, sd, p. 31). “ (ZATTI, 2007, p. 27). 17 autonomia como um dos assuntos centrais da educação. A concepção freireana de autonomia está relacionada ao “ser para si” e a presença no mundo. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude. (FREIRE, 2018, p. 20). Quanto às heteronomias a que o educador se opõe, podemos elencar diversas: a relação oprimido-opressor, a massificação, o colonialismo, a concepção bancária de educação, o neoliberalismo, entre outras (ZATTI, 2007). Freire vai então, a partir dessas visões, propor a prática educativo-crítica, ou progressista, onde ao reconhecer o outro e tomar consciência das influências de condições históricas, sociais e culturais, o ser reconhece que pode ser condicionado por elas, mas não determinado, podendo assim “ser para si” (FREIRE, 2018 , p.20), ou seja, ser autônomo. Paulo Freire propõe portanto, como discorre Rita de Cássia de Fraga Machado (2010), no Dicionário Paulo Freire, a discussão da autonomia a partir do paradoxo da autonomia/dependência, no qual o sujeito, ao reconhecer suas dependências inerentes, pode agir livre das barreiras delas. Por sermos seres de cultura, nós, homens e mulheres, somos necessariamente dependentes. Assim, ser autônomo é ter a capacidade de assumir essa dependência radical derivada de nossa finitude, estando assim livres para deixar cair as barreiras que não permitem que os outros sejam outros e não um espelho de nós mesmos. (MACHADO In: Dicionário Paulo Freire, 2010). Com base na complexidade do conceito de autonomia, iniciada em Kant, em seu entendimento de que a autonomia de um sujeito deve ser responsável para que não impeça ou limite a do outro, e no desenvolvimento e aprofundamento dela ligada ao nosso contexto histórico e social através de Paulo Freire, chegamos finalmente às concepções de autonomia e heteronomia ligadas ao ensino de teatro. Combinando então o imperativo categórico de Kant, em que se escolhe o fim em si sem o anseio de melhores meios condicionados para alcançá-lo, e o paradoxo autonomia/dependência de Freire, em que entendemos que esses meios condicionados estarão presentes em nossos caminhos, mas não precisam o determinar, buscaremos uma autonomia no ensino de teatro que possibilite a 18 estudante chegar ao seu objetivo final, que é o aprendizado e a criação no Teatro, sem que seja anulada ou determinada por questões externas estabelecidas, ou seja, heteronomias. Para que isso ocorra, a estudante deve ter protagonismo em seu processo, o que ainda é um desafio por vivermos, segundo Viola Spolin (SPOLIN, 2015, p. 6-7), em uma cultura da aprovação/desaprovação onde constantemente buscamos a validação de uma autoridade estabelecida que julgará se nosso desempenho está certo ou errado/bom ou ruim, extinguindo nossa liberdade e experiência pessoal. O que pode resultar em timidez, egocentrismo, exibicionismo, desistências, constantes dúvidas quanto a si mesmo ou uma autocobrança excessiva. Abandonados aos julgamentos arbitrários dos outros, oscilamos diariamente entre o desejo de ser amado e o medo de rejeição para produzir. Qualificados como “bons” ou “maus” desde o nascimento (um bebe “bom” não chora) nos tornamos tão dependentes da tênue base de julgamento de aprovação/reprovação que ficamos criativamente paralisados. Vemos com os olhos dos outros e sentimos o cheiro com o nariz dos outros. (SPOLIN, 2015, p. 6). Sendo o teatro uma forma artística que reivindica intensa colaboração do estudante/artista da cena, seja com seus colegas de cena/trabalho/aprendizado, professora, diretora, produtoras ou com o público, a ideia de entregar ao outro o que ele espera, deseja ou que o entretenha limita a criação e o potencial de investigação da linguagem, tanto por aquele que a prática quanto para ao que o assiste, pois não há trocas genuínas. Essa relação coloca a estudante em extrema dependência, não apenas de uma autoridade incorporada em uma pessoa, mas também de imposições sociais, principalmente relacionadas a estigmas e estereótipos, o que causa uma descaracterização do sujeito e um esvaziamento de sua contribuição na criação. Então, voltando ao paradoxo da autonomia/dependência no ensino de teatro, entendemos que a autonomia da estudante/artista da cena nesse campo se dá no processo de superação de algumas heteronomias a que nos opomos: a dependência imprescindível da relação de aprovação/desaprovação com uma autoridade; o direcionamento total e excessivo de um professor/orientador/diretor que quer ter o controle; a necessidade de se encaixar em padrões pré estabelecidos como de ser genial, talentoso, amado, perfeito, ou seja, se subordinar a expectativas e disposições externas, como a necessidade de atender a estereótipos e estigmas relacionados aos nossos corpos na construção de personagens, por exemplo, o 19 destaque e poder relacionados a um corpo branco e magro, a subserviência relacionada a um corpo negro ou o humor, a “falta de vaidade”, o “relaxo” e o “jeito atrapalhado” relacionados ao corpo gordo. Percebe-se portanto que um primeiro passo em direção a um ensino de teatro que proporciona maior autonomia esteja no reconhecimento de nossas dependências, sejamos nós educadoras ou estudantes. Ao reconhecer que de certa forma somos dependentes, ou causamos dependência, e que a autonomia não se trata de total abandono ou desligamento daquela que ensina, podemos então, como proposta, encontrar meios nos quais enquanto educadoras criemos condições para um ensino que vise a prática da liberdade; e quanto estudantes também possamos buscar o protagonismo na nossa aprendizagem, minimizando a dependência de nossas educadoras. Para Paulo Freire, autonomia é libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um tempo de possibilidades. É um “ensinar a pensar certo9” com quem fala com a força do testemunho”. É um “ato comunicante, co-participado”. Todo processo de autonomia e de construção de consciência nos sujeitos exige uma reflexão crítica e prática, de modo que o próprio discurso teórico terá de ser alinhado a sua aplicação. (MACHADO In: Dicionário Paulo Freire, 2010). O teatro é um lugar, uma linguagem artística, que nos permite reconhecer que a história é cheia de possibilidades, como verificamos em nossa experiência, e que devemos nos tornar sujeitos críticos e refletir tanto sobre o nosso fazer teatral quanto sobre a sociedade em que vivemos, já que o teatro, tão plural, é também uma representação da realidade, bem como de suas variações, mudanças, distopias e utopias, e nesse sentido Paulo Freire reforça que o trabalho de conquista da autonomia crítica da educadora é construído por ela com os estudantes, e não consigo mesma. Ainda nesse sentido, se quem educa marca o corpo do outro, como nos traz Fátima Freire Dowbor, a educadora teatral, deve sempre lembrar que tem responsabilidade nesse processo, mas também considerar que estamos lidando com pessoas que já estão marcadas por outras experiências, que têm suas próprias 9 “Pensar certo no contexto dos anos 1990, segundo Freire, é continuar fazendo a denúncia de um mundo cada vez mais desumanizado e sem futuro, porque é regido imperiosamente por uma lógica social que nos leva a todos para o abismo e autodestruição. [...] Então, pensar certo na perspectiva de Freire, é cultivar a humildade e o gosto por estar sempre aprendendo em comunhão e solidariedade com os outros.” (ZITKOSKI. In: Dicionário Paulo Freire, 2010). 20 histórias de vida. Essa consciência faz com que entendamos a necessidade de respeitar as singularidades de cada estudante, e nossas próprias. A educadora progressista deve consequentemente, ter a responsabilidade de acreditar que todas as pessoas são capazes de fazer teatro, seja atuando no palco, ou no que mais se proponha. E entender que “talento” é apenas uma possível maior facilidade de experimentar ou intuir, e que a falta desta facilidade pode ser superada através da educação teatral que aspira a autonomia. (SPOLIN, 2015). Educando assim para vida e não para morte, sendo, neste caso, a vida a possibilidade de criar, imaginar, encenar e inventar pela autonomia, e a morte a determinação de outros em nossas criações, imaginações, encenações e invenções. Educação deveria ser sempre vida e nunca morte. Mas para ser vida e não morte temos de acreditar que somos capazes de aprender, de criar, de amar, de sonhar, de desejar, como também de odiar e de se rebelar. Tudo isso tem a ver com a forma como o corpo de cada um foi marcado, com sua história de vida, que deve ser resgatada para poder ser entendida, transformada e enriquecida. (DOWBOR, 2008, p. 47). 21 3. ESTRUTURAS DE CONTROLE E PODER Em um contexto geral, quando observamos o ensino formal e muitas vezes o não-formal, incluindo o ensino do teatro, podemos perceber que em sua maioria, as escolas e os professores, costumam estar mais focados em desenvolver uma metodologia que prepare o estudante para o mercado de trabalho do que em meios que, para além do ensino das técnicas teatrais, os estudantes estejam preparados a transgredir essas regras e normas, poderem criar sobre as técnicas que aprenderam e desenvolverem sua autonomia tanto sobre a expressão artística através da linguagem teatral, como em suas vidas de formas gerais. Esse formato de ensino que, compreendemos como bancário10, apenas se preocupa em depositar conteúdos nos estudantes, sem fomentar neles a reflexão crítica. É um ensino tecnicista, pois visa apenas preparar os estudantes para o mercado de trabalho, fazendo uma manutenção das hierarquias sociais. Isso, infelizmente têm gerado uma massa de reprodutores de fórmulas prontas, que se tornam apenas mão de obra barata para o mercado, e não são formados nem estimulados a pensar, a questionar e, muito menos modificar o mundo e a realidade em que vivem, mais interessante seria: Uma educação que possibilite ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a coragem de lutar, em vez de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio “eu”, submetido às prescrições alheias. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constantes revisões. À análise crítica de seus “achados”. A uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão. Que o identificasse com métodos e processos científicos. (FREIRE, 2021, p. 118-119). Percebemos que ainda pouco do ensino é elaborado para que os estudantes desenvolvam autonomia, se apropriem das bases e conhecimentos técnicos para que possam utilizar desse conhecimento de forma autônoma, não apenas na educação básica, mas sobretudo ao que se refere este trabalho, no ensino do teatro. 3.1 HIERARQUIAS 10 “A educação bancária, nesse sentido, repercute como um anestésico, que inibe o poder de criar próprio dos educandos, camuflando qualquer possibilidade de refletir acerca das contradições e dos conflitos emergentes do cotidiano em que se insere a escola, o aluno.” (SARTORI. In: Dicionário Paulo Freire, 2010). 22 Na maioria das situações e experiências que temos observado, ainda vemos a figura do professor como o grande detentor do saber, como uma figura central de poder, que detém o conhecimento, a técnica teatral, e é essa figura que define os caminhos, as escolhas, temas, peças e personagens a serem estudados, é quem tem na maioria das vezes, o controle. Esta figura centralizadora, é o topo da hierarquia dentro desse contexto de ensino e aprendizagem. Em nossa trajetória, tanto quanto educadoras, educandas e atrizes no teatro, tivemos alguns exemplos desse tipo de postura de professores e diretores de teatro. Em uma delas, o professor dava aula de História do Teatro, apresentava sempre um discurso progressista, político, citava Augusto Boal e seu Teatro do Oprimido11 com certa frequência e também o Teatro de Agitação e Propaganda12, não apenas porque estes faziam parte do conteúdo das aulas, mas porque dizia concordar com as visões e posicionamentos trazidos nestas formas teatrais. Porém, em sua prática, não deixava os estudantes falarem durante as suas aulas, sendo contraditório, pois dizia que queria que os estudantes comentassem, mas quando faziam eram corrigidos e até silenciados. Em uma apresentação de um seminário, fez comentários desnecessários, que expuseram alguns estudantes, fazendo com que se sentissem “burros”. Uma outra experiência, de uma das autoras, ocorreu em um processo artístico, dentro de um grupo de teatro no qual trabalhava na criação de um espetáculo que tratava da relação opressor-oprimido, na história da peça um grande proprietário de terras oprime não apenas seus funcionários, mas a todos que ele possa dominar para conseguir alcançar seus objetivos. O espetáculo circulou pelo interior do estado de São Paulo, e além das apresentações, havia uma roda de compartilhamento de processo, onde as atrizes do grupo trocavam com o público sobre as personagens femininas presentes no espetáculo. O curioso neste caso, é que as personagens femininas da peça ganharam muita força e muita identificação do público, mas o grupo majoritariamente masculino, não conseguia ouvir as mulheres do próprio grupo, que quase sempre eram silenciadas nas discussões e proposições, ou tinham suas ideias roubadas pelos rapazes. Um dia uma atriz fez 12 Modalidade de teatro de partido, um teatro do partido comunista, um teatro elaborado por artistas envolvidos no movimento revolucionário pelo comunismo. (idem, p. 167) 11 Sistema reflexivo e instrumental para o trabalho de criação e de apresentação de espetáculos teatrais, método desenvolvido pelo diretor e pensador brasileiro Augusto Boal (Léxico de pedagogia do teatro, 2015 , p. 175). 23 uma proposta para uma cena, não foi ouvida, mas em seguida, um rapaz do grupo disse o que ela havia acabado de falar, foi ouvido e “sua” ideia experimentada no ensaio. Mas os rapazes tinham certeza de que eram artistas “desconstruídos” e o machismo não fazia parte deles, mas a realidade é que o machismo estrutural está em todos nós, e se não nos atentarmos, seguiremos reproduzindo não só o machismo, mas o racismo e todos os demais comportamentos preconceituosos que são estruturais em nossa sociedade. Esses comportamentos preconceituosos são uma grande questão dentro do teatro, já que existe uma imagem de que “as pessoas do teatro”, são pessoas alegres, felizes, mais abertas, progressistas e desconstruídas, como se entre elas não existisse nenhum tipo de preconceito. Mas antes de qualquer coisa, são e somos seres culturais complexos, com todas as contradições que isso traz, e por vezes produzimos e reproduzimos preconceitos e diversos tipos de opressões sociais, sem refletir ou perceber o que estamos fazendo, já que o sistema em que vivemos nos formatou assim e ainda não conseguimos aproximar o que falamos do que fazemos, seja por não termos alcançado uma posição reflexivo-crítica constante, ou estarmos confortáveis como os privilégios que temos diante desse sistema, como os homens citados anteriormente, que se beneficiam com o legado patriarcal em que vivemos. Ao pensarmos sobre nós enquanto educadoras, temos expectativas de ter uma prática progressista perfeita em sala de aula, ou onde formos ensinar teatro para outras pessoas, e acreditamos que muitas outras pessoas possam ter essa expectativa e objetivo sobre seu trabalho. Mas refletindo, através de nossas experiências e na vivência prática da sociedade e sistema em que estamos inseridas, podemos perceber que também reproduzimos práticas conservadoras que nós mesmas somos contra, como um grito para pedir silêncio, algum tipo de ameaça, como tirar um ponto da nota final, recursos que a rotina docente, o hábito, podem nos trazer. Essa pesquisa nos ajuda não só a pensar em melhores formas de se ensinar, como também a perceber que somos seres complexos e contraditórios e que também precisamos nos libertar dessas amarras. 3.2 ESPAÇOS DE PODER 24 Em seu livro ‘Vigiar e Punir’, Foucault nos apresenta uma hierarquia na sala de aula, onde até os lugares que os estudantes ocupam, são estabelecidos conforme as suas qualificações. Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala…(FOUCAULT, 1999, p. 174). Durante muito tempo esse modelo foi regra dentro das salas de aula, e ainda hoje é utilizado, vemos lugares determinados, talvez não tão explicitamente, estudantes se mantém durante a maior parte do ano letivo ocupando os mesmos lugares, enfileirados, é comum os considerados melhores alunos — aqueles que tiram notas maiores e dão “menos trabalho” se sentarem nas primeiras carteiras e próximos aos professores — e os rebeldes que dão “mais trabalho” e costumam ser considerados bagunceiros se sentarem no fundo das salas e o professor se mantém em sua mesa, para onde está direcionado o olhar de todos os estudantes, é esta figura quem detém o giz e o poder de escrever na lousa, assim como geralmente é o único que tem permissão para ficar de pé pelo tempo que for necessário. Em uma experiência em sala, com uma turma de crianças e adolescentes, durante uma atividade de teatro, todos estavam sentados em roda, em cadeiras, inclusive eu, Kelly Priscila, que estava na função de oficineira nesta atividade. Esta turma é parte de um projeto social em que atuo. Por opção, por acreditar que é possível um ambiente de ensino-aprendizagem mais horizontalizado, costumo me sentar em roda e no mesmo nível que eles, mas já aconteceram dias em que a comunicação estava muito difícil, e acabei ficando o tempo todo de pé, nem sempre com consciência de que estava fazendo isso para ter o controle da situação. Em outras vezes, me sentei no chão, enquanto eles estavam nas cadeiras, para estar abaixo e ver se o grupo manteria o andamento da atividade da mesma forma. Acabei percebendo que muitas vezes, estar um nível abaixo realmente pode dificultar ser ouvida, ou manter alguma ordem na turma, mas também foi possível perceber que eles, as crianças e os adolescentes, se expressam de outras formas, sem uma figura de poder de pé, é como se eles, enfim, pudessem tomar o protagonismo. Evidente que não fizemos experimentos suficientes nesse sentido 25 para chegarmos a conclusões absolutas, o que relatamos aqui são observações que fizemos a partir de nossas experiências. Os espaços físicos que delimitam hierarquias de poder, não são exclusivos dos ambientes escolares, fazem parte da nossa rotina e nem sempre percebemos. Em geral passamos por eles, habituados, sem refletir sobre o impacto que eles causam, estão sempre relacionados ao poder e ao capital. Bairros mais afastados dos centros urbanos, geralmente são habitados por pessoas mais pobres, por exemplo, os preços de bilhetes de embarque para viagens de ônibus e/ou avião variam de acordo com a localização e conforto, e não é diferente em muitos teatros e casas de espetáculos. Optamos por trazer alguns exemplos de valores atuais da localização das poltronas em alguns teatros da cidade de São Paulo, para exemplificar essa questão: Figura 1: Plateia do Teatro Bradesco vista do palco. Fonte: Site do Teatro Bradesco. Disponível em: https://www.teatrobradesco.com.br/imprensa/teatro Acesso em: 06 dez. 2022. https://www.teatrobradesco.com.br/imprensa/teatro 26 Figura 2: Representação da plateia do Teatro Bradesco. Fonte: Site do Teatro Bradesco. Disponível em: https://www.teatrobradesco.com.br/imprensa/teatro Acesso em: 06 dez. 2022. Figuras 3 e 4: Tabela de preços dos setores da plateia do Teatro Bradesco. Fonte: Site de vendas Uhuu. Disponível em: https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/natal-da-turma-da-monica-a-arvore -de-natal-10834#/ Acesso em: 06 dez. 2022. https://www.teatrobradesco.com.br/imprensa/teatro https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/natal-da-turma-da-monica-a-arvore-de-natal-10834#/ https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/natal-da-turma-da-monica-a-arvore-de-natal-10834#/ 27 Nas imagens acima, temos uma consulta de compra de ingressos para o espetáculo “Turma da Mônica em…a árvore de Natal” no Teatro Bradesco, no qual podemos ver as variações de preço conforme os setores selecionados. Neste caso, o preço da plateia baixa, que é o local mais próximo do palco, custa a partir de R$ 60,00 mais taxas, enquanto o balcão nobre, que é longe do palco, custa a partir de R$ 37,50 mais taxas. Talvez para algumas pessoas os valores não sejam altos, mas podemos perceber que o preço quase dobra de um setor para o outro. Também realizamos uma consulta no Teatro Alfa, para o espetáculo “Quebra Nozes”, e também pudemos verificar que há alteração de valores conforme a distância do palco: Figuras 5 e 6: Representação da plateia do Teatro Alfa e preços de ingressos por local. Fonte: Site do Teatro Alfa. Disponível em: https://www.teatroalfa.com.br/espetaculo/o-quebra-nozes-6/ Acesso em: 06 dez. 2022. Na primeira imagem podemos ver um mapa com os lugares disponíveis na plateia e no balcão, e na segunda vemos as diferenças de valores, onde a plateia, mais próxima do palco, custa 60% a mais do que os lugares no balcão. Sabemos que o Theatro Municipal de São Paulo tem se tornado mais acessível para a população, seus valores costumam ser mais populares, mas ainda assim, optamos por verificar se nele também há essa diferença de valores conforme https://www.teatroalfa.com.br/espetaculo/o-quebra-nozes-6/ 28 os lugares escolhidos, e percebemos que sim. Escolhemos a apresentação da Orquestra Experimental de Repertório que se apresentaria em 18 de dezembro de 2022 para a nossa cotação. A seguir um mapa descritivo dos lugares disponíveis no teatro: Figuras 7: Representação da plateia do Theatro Municipal de São Paulo. Fonte: Site do Theatro Municipal de São Paulo. Disponível em: https://theatromunicipal.org.br/pt-br/theatro-municipal/ Acesso em: 06 dez. 2022. Nas imagens a seguir, podemos verificar que os preços no Municipal são mais populares e acessíveis do que nos exemplos anteriores, e que variam de R$5,00 a R$30,00, mas também estão sujeitos à variação conforme localização e proximidade do palco. https://theatromunicipal.org.br/pt-br/theatro-municipal/ 29 Figuras 8, 9,10 e 11: Preços em diferentes setores da plateia do Theatro Municipal de São Paulo Fonte: Site do Theatro Municipal de São Paulo. Disponível em: https://theatromunicipal.org.br/pt-br/theatro-municipal/ Acesso em: 06 dez. 2022. https://theatromunicipal.org.br/pt-br/theatro-municipal/ 30 Figura 12: Plateia do Theatro Municipal de São Paulo vista do palco. Fonte: Site do Theatro Municipal de São Paulo. Disponível em: https://theatromunicipal.org.br/pt-br/theatro-municipal/ Acesso em: 06 dez. 2022. Essa diferença de preços nos setores das plateias não são apenas dos dias atuais, historicamente os grandes teatros da aristocracia ocidental realizavam essas práticas, um bom exemplo é o Teatro Globe, em Londres, o famoso teatro Elizabetano de Shakespeare13, sua estrutura circular, acomoda três galerias de espectadores, a mais alta, reservada na época à nobreza. Os espectadores comuns, pagavam um penny no portão externo, que dava acesso ao pátio interno (BERTHOLD, 2006, p. 319), eles ficavam de pé na frente do palco e não tinham acesso a banheiros, era a área mais barata do teatro. 13 Poeta, dramaturgo e ator inglês (1582-1616). https://theatromunicipal.org.br/pt-br/theatro-municipal/ 31 Figura 13: Imagem atual do interior do Teatro Globe (Shakespeare 's Globe Theatre). Fonte: Site Secret London. Disponível em: https://secretldn.com/the-globe-visitor-guide/ Acesso em: 06 dez. 2022. Em muitos outros teatros e espaços artísticos e culturais não existe essa diferença. Relacionando ao passado, podemos perceber que isso tem diminuído, mas não podemos afirmar que seja por conta de uma transformação social, onde estamos mais próximos de uma equidade social, o que vemos na verdade é que os espaços de arte e cultura tem se democratizado, mas porque em sua maioria conseguem garantir o acesso do público por meio de leis de fomento, editais e patrocínios, o que muitas vezes torna o acesso livre de cobrança de ingresso, já que os custos já foram pagos por esses meios. Outra mudança da atualidade são os formatos de diversos espaços culturais, que tem ajudado nessa democratização, o uso de espaços alternativos como barracões, containers e casarões antigos por exemplo, que se transformam em teatro e espaços para apresentações, são comuns na contemporaneidade, e principalmente a preocupação com a acessibilidade, tanto para as pessoas com mobilidade reduzida quanto o acesso para pessoas marginalizadas pela sociedade, como as pessoas mais pobres, negras e transgênero, por exemplo. https://secretldn.com/the-globe-visitor-guide/ 32 Embora muitas instituições estejam criando programas que valorizam a diversidade e a inclusão de todo tipo de público e também para sua equipe de profissionais e prestadores de serviços, não podemos ser ingênuas e acreditar que a razão da mudança é apenas a preocupação com o acesso e a inclusão dessas pessoas. A principal razão para essas mudanças é o capital, por causa dele, as empresas se preocupam em não serem mal vistas comercialmente, afinal empresas preocupadas com esse tema são mais consumidas e procuradas pelo público atualmente. Ainda que seja por um caminho distorcido, o fato é que estamos vivendo uma mudança e que muitas pessoas que antes não conseguiam acessar determinados lugares, agora conseguem, mas ainda precisamos melhorar muito socialmente, é preciso reparar os danos causados ao longo de centenas de anos. 3.3 CONTROLE DOS CORPOS - BIO-POLÍTICA Se pudéssemos chamar "bio-história" as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos falar de "bio-política" para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhes escapa continuamente. (FOUCAULT, 1988, P. 133) Retornando a nossa discussão para os ambientes de ensino, onde já sabemos da existência de hierarquias de poder nos espaços, foquemos no ensino-formal, principalmente no ensino básico, no ensino de Teatro, podemos perceber que em uma aula, ou atividade que proponha um desmontar das filas de carteiras, um outro uso da sala de aula, ou o uso do pátio como ambiente de aula, pode se transformar num evento com uma boa carga de estranhamento pelos estudantes, professores e toda a gestão da escola. Ao pedir que movam seus corpos, naturalmente poderá surgir uma questão: mas é aula de educação física? (OLIVEIRA; POLIZZELLI; REGA, 2019, p. 1251). Recorremos ao artigo O Circo como Rompimento da Estrutura Educacional Mecanizada, onde os autores refletem sobre a importância do trabalho artístico-corporal como meio de aprendizagem nas salas de aula no ensino-formal, e também relatam a experiência vivenciada por eles, quando realizaram atividades com técnicas circenses neste contexto. O relato mais marcante para nós, e que relacionamos com esta pesquisa, é de quando uma estudante comenta: “Ué, mas 33 não era aula de artes? Está parecendo Educação Física" (OLIVEIRA; POLIZZELLI; REGA, 2019, p. 1251), e os autores então, puderam perceber que era comum, em outros contextos escolares, a dificuldade de se trabalhar o corpo nas aulas de Arte, por este trabalho ser quase sempre restrito às aulas de Educação Física. Além da questão do estranhamento do uso do espaço, o relato e a reflexão citada, nos traz ainda a questão do corpo. Corpo que tem criança interna viva é corpo irrequieto e não parado, é corpo solto e não amarrado, é corpo falante e não mudo. Olhar de quem tem criança interna viva é olhar cheio e não vazio, é olhar brilhante e não opaco, é olhar direto e não evasivo. (DOWBOR, 2008 p. 28). Dowbor nos traz o que é natural da criança, o movimento, a curiosidade, o que também poderia ser natural de qualquer ser humano, independente de idade, mas que infelizmente, em muitos casos, já nos primeiros anos de vida, nos é tolhido e assim o sistema social no qual estamos inseridos começa sua tentativa de controle e opressão, um exercício de poder de alguns corpos sobre outros. Trazendo essa visão ao ensino de teatro, podemos aludir a concepção bancária de educação a uma educação manipulativa do corpo, onde o estudante de teatro é manipulado a criar conforme as regras estéticas definidas pelo educador e/ou diretor, isento de autonomia. Foucault também nos lembra que o corpo é político e que está sujeito à interesses, poder e controle: Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um ‘saber’ do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. Essa tecnologia difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõe-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza um material e processos sem relação entre si. O mais das vezes, apesar da 34 coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso seria impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho do Estado. Estes recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, se situa num nível completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. (FOUCAULT, 1999, p. 29-30). Vemos que no ensino básico, assim como em todos os lugares, instituições e relações de nossa sociedade, existe algum tipo de controle, ainda que seja um micro poder. No caso de nosso tema, observamos que também existe uma hierarquia espacial que permite o controle dos corpos de todos os envolvidos nesse sistema. Todos nós, ou ao menos a maioria de nós, passou por estes ambientes e o viveu, experienciamos em nossos corpos essas vivências, evidente que não fomos marcados apenas por esse tipo de experiência, muita coisa libertadora e emancipatória também nos marcou, e de fato, esse contraste das nossas vivências que nos fortalece para o aprofundamento do tema neste trabalho. Procuramos por alguma experiência em ensino do teatro em que tivéssemos sido marcadas positivamente, onde pudéssemos perceber um ensino para a autonomia. Acabamos nos recordando de várias, mas de uma em especial, que vivemos juntas, foi em nossa graduação em licenciatura em Arte-Teatro, ainda no primeiro ano, quando em aula trabalhávamos com jogos teatrais e estudávamos as peças didáticas de Bertold Brecht14, e surgiu na turma um desejo por montar uma delas. E assim fizemos, a professora nos ajudou muito, nos provocando e propondo jogos e improvisações onde as cenas começavam a aparecer, e utilizamos como base, trechos da Peça Didática de Baden Baden Sobre o Acordo (2009), e também matérias jornalísticas e imagens sobre a crise dos refugiados na Síria e no mundo. A forma com que a professora conduziu os encontros, permitiu que todos participássemos e nos sentíssemos criadores daquela obra, todos eram proponentes de ideias e ouvidos. Foi muito prazeroso e libertador passar por esse tipo de experiência na nossa graduação. Nossos corpos foram marcados por isso e por tudo o que vivenciamos ao longo de nossas vidas. As dores costumam deixar suas marcas mais evidentes e talvez por estarmos acostumados, acreditamos que muitas coisas que fazemos e aceitamos que nos façam sejam entendidas como normais, fomos adestrados para 14 Dramaturgo e encenador alemão do século XX. 35 esse pensamento, tivemos nossos corpos e vontades marcados e domados ao longo de nossas vidas, o que nos faz acabar falando mais do que não foi tão bom do que das experiências libertadoras que tivemos. Infelizmente, mesmo num contexto de ensino de teatro, mesmo que fora do ambiente escolar, no ensino técnico ou no ensino não-formal, onde geralmente não vemos as salas de aula, ou espaços utilizados para as aulas com carteiras como na educação básica, ainda assim, podemos encontrar uma hierarquia estabelecida. Mesmo sentados em círculo, o professor, professora, e/ou diretor ou diretora teatral, costuma se manter como a figura mais poderosa, é quem detém a palavra final, é a maior autoridade presente, mas ainda que não possamos eliminar por completo as hierarquias, a postura do professor, da professora, pode ser mais voltada a uma educação libertadora, ao invés de um modelo repressor. Conceber o educando como objeto, ou como posse, implica desencadear um processo de perda de liberdade da capacidade que todo ser humano possui de querer ser sempre mais e nunca menos! Ou seja, ser cada vez mais gente, ser cada vez mais sujeito desse próprio processo. Dito de outra forma, nunca deixar de ser mais, já que deixar de ser mais significa opção pela morte. (DOWBOR, 2008. p. 72) Michel Foucault, nos traz o conceito de corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (FOUCAULT, 1999, p. 163). Em linhas gerais, as escolas, tendem a nos moldar, a nos ensinar como devemos nos portar no mundo e em sociedade, toda criatividade, tudo aquilo que possa sair do controle é visto como errado e geralmente reprimido. As opressões e repressões que vamos sofrendo ao longo de nossas vidas, vão deixando suas marcas em nós, definindo nossos comportamentos e marcando nossos corpos e existências. Penso que talvez o mais difícil não seja o aprendizado de ressignificar as marcas, mas sim a coragem de reconhecê-las e localizá-las no nosso próprio corpo - já que a descoberta, e portanto, localização delas gera sofrimento, o que, de certa forma, obriga-nos a entrar em contato com nossa sombra, com nosso lado desconhecido e escuro. Sombra essa e escuridão que preferimos que seja do outro e não nossa! (DOWBOR, 2008. p. 51). Ao reconhecer que carregamos essas marcas em nossos corpos e que existe esse controle sobre ele, que não se dá apenas no contexto escolar, mas em muitos lugares e das mais variadas formas em nossa sociedade, como por exemplo a 36 menina que não pode se sentar com as pernas abertas, porque lhe dizem que é “feio”, que “uma mocinha precisa se dar ao respeito”, o menino que é ensinado que não pode chorar, porque “isso não é coisa de menino”, fazendo com que ele reprima seus sentimentos e não aprenda sobre como lidar com eles de forma saudável, e os muitos espaços que frequentamos e que não são, de fato, acessíveis para todos os tipos de corpos e de pessoas com as suas mais variadas características e condições, tanto por razões de estruturas como rampas para pessoas com mobilidade reduzida, como por razões de preconceito com a diversidade e pluralidade de existências. Não conseguimos aprofundar aqui sobre todas as possibilidades de controle e mecanismos de poder, devido ao pouco tempo, mas procuramos apresentar alguns pontos que nos marcaram e o que isso gerou, e também, gostaríamos de lançar alguns apontamentos e reflexões para que possamos nos conscientizar sobre os efeitos que nós, educadoras, podemos ter nas vidas e corpos dos estudantes que passarem por nós, e assim quem sabe, percebermos que existe outras possibilidades de caminhos, mais amorosas, e como nos aponta bell hooks: “Podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora.” (hooks, 2017. p. 63). 37 4. PROPOSTAS METODOLÓGICAS PARA A AUTONOMIA NO ENSINO DE TEATRO Tendo visto o conceito de autonomia a que nos referimos neste trabalho, além da complexidade do termo, e identificado as heteronomias a que nos opomos e os controles a que estamos sujeitos, vamos agora refletir acerca de metodologias pedagógicas que vivenciamos e acreditamos contemplarem a autonomia e o protagonismo do sujeito em seu processo de aprendizagem, as articulando ao ensino de teatro e a reflexões críticas de nossas experiências nesse contexto. 4.1 O MODELO AUTORITÁRIO E O MODELO LIBERTADOR/DEMOCRÁTICO SEGUNDO FÁTIMA FREIRE DOWBOR Em seu livro Quem Educa Marca o Corpo do Outro, Fátima Freire Dowbor discorre sobre a educação, o ensinar e o aprender e como as formas que vivenciamos esses processos marca nossos corpos. Em um de seus capítulos, ela traz sua preocupação com “o que é ser modelo?” dentro deste contexto, mesmo não acreditando que haja um modelo totalmente puro15, ela nos apresenta sua visão de como é um modelo autoritário e como é um modelo libertador/democrático. Segundo ela, podemos assumir posturas autoritárias nas nossas ações pedagógicas sem dar-nos conta de que as estamos assumindo (DOWBOR, 2008, p. 64), isso, como já mencionamos anteriormente, é uma preocupação que temos, a expectativa de sermos educadoras progressistas perfeitas e sabermos de nossos limites e complexidades, então resolvemos trazer neste trabalho esses modelos descritos por ela para que possamos refletir sobre e relacionar com práticas de ensino de teatro. 4.1.1 Modelo Autoritário Fátima chama de modelo autoritário o tipo de modelo que existe para ser unicamente imitado, copiado, seguido como exemplo. Não ousamos recriá-lo ou superá-lo (DOWBOR, 2008, p. 64). 15 Totalmente autoritário ou totalmente libertador/democrático. 38 Para ela, o Modelo Autoritário castra, limita e não delimita, impossibilita que o outro seja ele mesmo; impõe hora marcada para que o outro aprenda, como se houvesse hora para aprender; não permite a curiosidade, o ato de investigar, o ato de perguntar; não assinala para a autonomia, porque não suporta a perda do controle; delega tarefas sem construir com o outro a necessidade de realizá-las; não constrói o conhecimento com o grupo e no grupo, simplesmente o transmite e o dá por dado; não permite nem instiga a reflexão e sim o tarefismo (DOWBOR, 2008, p. 65). Analisando esse modelo, podemos notar semelhanças com alguns depoimentos de experiências que nós duas tivemos e relatamos aqui, de um ensino que reitera as hierarquias, posições e práticas de controle do poder. Modelo esse que não permite a curiosidade, a pergunta, que visa a cópia e não aceita a criação e principalmente, que não constrói coletivamente e nem provoca a reflexão. Se torna portanto incoerente, em nossa análise, sua utilização no ensino de teatro, que é uma linguagem artística a ser utilizada também para expressão dos sentimentos e da criatividade de quem o faz. 4.1.2 Modelo Libertador/Democrático A autora chama de Modelo Libertador/Democrático o tipo de modelo que existe para ser superado, recriado. Que assume “seu saber” não como detentor da verdade, mas sim como possibilidade para que o outro saiba mais. É libertador, transformador, porque assinala a autonomia e acredita na superação. É libertador porque aceita críticas como possibilidades para seu próprio crescimento, assumindo seu não-saber com humildade e sem escondê-lo. (DOWBOR, 2008, P. 65). Para ela o Modelo Liberator não delega tarefas, mas sim fomenta no corpo do outro a necessidade de realizá-las; desvela o oculto, cria a necessidade do ato de reflexão, do pensar a prática para poder teorizá-la; tem coragem de amar e também de odiar, ao mesmo tempo em que acredita no outro e na sua capacidade de vir a ser ele mesmo; dá limites claros e definidos para que o outro possa crescer e, assim, construir conhecimentos com o grupo e no grupo; ousa exercitar a relação dialética do estar presente/ausente faz com o outro e não pelo outro, comprometendo-se, dessa forma, com o processo de formação de ambos, educador e educando; irradia, 39 questiona, posiciona-se e fala, e ao agir assim, aprende a escutar o outro, a estar com o outro e a não ter medo de se reconhecer nele. (DOWBOR, 2008, p. 65). Aqui vemos características que concordamos para a prática do ensino teatral, acreditamos que a superação e a recriação são importantes para a autonomia, que aceitar que não se sabe tudo é algo fundamental na formação de qualquer pessoa, educando ou educador, só assim é possível abrir o espaço necessário para a aprendizagem. A reflexão crítica e a construção de conhecimentos com o grupo e no grupo, para nós, é algo fundamental quando se trata da criação artística, em nosso caso, no ensino do teatro que é uma arte coletiva, e que visa a união de diversos artistas e diversas funções para que a obra teatral se realize. 4.2 ESTAR PRESENTE/AUSENTE “O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão.” (FREIRE, 2020, p. 28). Como é marcado um corpo que ouve repetidamente “eu não vi nada enquanto você estava no palco” ou “não tenho nada para comentar sobre seu trabalho” quando está em cena? Durante a formação como atriz de uma das autoras deste trabalho, dois momentos revelam algo vivido por ela constantemente. No primeiro, em uma montagem de peça teatral que utilizava a técnica de mímesis corpórea16, desenvolvida pelo LUME Teatro17 para a criação de personagens, a atriz ouvia repetidamente em momentos de feedback do diretor que ele não tinha nada para comentar sobre seu trabalho naquele momento, enquanto o mesmo fazia comentários pertinentes que ajudavam os colegas em seus trabalhos. Já no segundo, ao ter uma aula prática sobre máscara neutra18 durante a graduação, onde os estudantes entravam individualmente em cena, vestiam a máscara e interagiam com os objetos e espaço cênicos mediante orientações/provocações do docente, ao sair de cena foi questionada por ele sobre sua experiência para ao final ouvir que ele não havia visto nada ocorrendo em cena, sem nenhuma orientação ou comentário 18 A máscara neutra é um objeto, máscara de referência ou apoio, que propõe um “rosto neutro”, para que a atriz/ator sinta um estado de neutralidade. Comumente usada para o trabalho corporal da atriz/ator. Adaptado de (LECOQ, 2010). 17 Grupo de teatro de Campinas, São Paulo. 16 “A Mímesis Corpórea é uma metodologia que busca a imitação, codificação e teatralização da observação de ações físicas e vocais encontradas no cotidiano.” Adaptado de (HIRSON,1999). 40 que a provocasse a repetir o exercício ou refletir sobre a experiência para prosseguir o aprendizado. Ao relembrar e discutir sobre esses momentos, alguns questionamentos nos permeiam ao percebermos que o diretor e o professor não criaram um ambiente favorável à exploração das práticas específicas utilizadas em cada momento. Será que eles realmente não notaram algo? Ou não fizeram nenhum feedback por acharem que seriam desagradáveis? E mesmo se realmente não tivessem notado nada, não poderiam ter feito algum apontamento ou provocação que fizessem a autora experimentar outras possibilidades? Essas experiências isoladamente talvez não repercutam tanto em um corpo, mas repetidamente marcam a experiência dele e podem até formar a perspectiva que o sujeito terá de si, nesse caso uma ideia de que não tem talento ou capacidade para atuar, gerando a desistência ou desânimo ao invés da curiosidade e autonomia na estudante. Logo entendemos que em um processo de ensino-aprendizagem ou de direção teatral, a figura do professor ou diretor não deve abandonar a estudante/atriz esperando que ela tenha autonomia para resolver questões totalmente sozinha, pois se não dá instrumentos para ela, não é criado potencial de movimento, de curiosidade para que essa autonomia seja buscada de fato. Ou seja, o ato de propor autonomia não deve ser confundido com abandono ou autossuficiência. A educadora ou diretora democrática, que segue o modelo demócratico de educação e portanto tem por objetivo o desenvolvimento da autonomia do educando, precisa praticar uma relação dialética de estar presente/ausente, como propõe Dowbor. “Nunca demasiado presente, para não retirar o espaço do outro; porém nunca demasiado ausente, que não consiga marcar o corpo do outro.” (DOWBOR, 2008, p.65). Portanto nossa função enquanto educadoras, não é determinar o caminho a ser trilhado pelo estudante, mesmo que se intua uma possibilidade ao observar o processo de fora, ou abandonar uma atriz em formação que não atenda suas expectativas, mas sim criar meios em que ela experimente diversas formas, encontrando o seu próprio caminho de aprendizado e desenvolvimento no que se propõe ou no que lhe é proposto. Evidentemente, o mesmo pode ocorrer no sentido inverso. Uma estudante de teatro pode ter uma confiança em seu próprio processo que a faça refutar considerações, conduções e provocações da educadora e nesse sentido, trazendo 41 mais um conceito de Dowbor, é importante que se construa uma relação de “corpos vazios” entre educadora e educanda, ou seja, uma relação em que haja escuta, paciência e curiosidade pela outra. Pois “‘'corpo cheio’ é corpo sem espaço para o outro; o outro sobra, está a mais.” (DOWBOR, 2008, p. 35). Um exemplo de corpo cheio é a experiência acima citada, o professor que não soube instigar a aluna para que ela experimentasse a máscara neutra, entendemos que ele tinha seu “corpo cheio”, uma vez que não havia acolhida para lidar com as dificuldades que a aluna trazia. Um exemplo de “corpo vazio” seria, usando a mesma situação, o professor acolher a dificuldade e o que ele chamou de “nada” como material, para a partir disso provocar a aluna e então ajudá-la a construir e crescer em sua experiência, mas isso só seria realmente efetivo se a aluna também tivesse seu “corpo vazio” para acolher as orientações do professor e experimentar com curiosidade para descobrir possibilidades. Não esperamos que o conceito de corpo vazio trazido aqui seja levado ao pé da letra, que se espere que os sujeitos envolvidos nessas relações não levem em consideração sua trajetória ou concordem plenamente em todas circunstâncias, mas é preciso estar aberto e atento para as trocas que podem e devem ocorrer nessa relação. Falaremos um pouco mais sobre esse assunto quando abordarmos o tema da escuta. Para que essas duas propostas se efetivem é preciso que nos lembremos constantemente que ensinar exige criticidade e curiosidade. É preciso ter curiosidade pela estudante, para poder interferir com criticidade em seu processo, somando forças em seu desenvolvimento. Percebo hoje como a curiosidade faz parte da minha atuação pedagógica como educadora quando estou formando professores. Curiosidade para saber como pensam, como se sentem, do que gostam, do que têm medo, o que conseguem fazer sozinhos e em que ainda necessitam de ajuda. Curiosidade que, quando não existe no corpo daquele que educa, faz com que o corpo do outro, pouco a pouco, murche e fique sem vida. E corpo sem vida é corpo triste, é corpo que está fechado para o desejo e o sonho. (DOWBOR, 2008, p. 28). Quando temos curiosidade pela educanda no processo artístico pedagógico, cultivamos também nela a superação da curiosidade ingênua pela curiosidade epistemológica19, ou seja, da curiosidade ligada ao senso comum ou a experiência despretensiosa pela curiosidade que busca intencionalmente de “forma cada vez 19 Conceitos de Paulo Freire, citados no livro Pedagogia da Autonomia. 42 mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível” (FREIRE, 2019, p. 33). Isso pode ocorrer quando ao fazer ou escrever uma cena em que todos se emocionam ao assisti-la ou lê-la, a estudante busque entender quais foram os recursos aprendidos utilizados naquele exercício ou dramaturgia que possibilitaram aquela reação comum, ou, caso ainda não tenha essa referência, busque uma técnica em que seja possível metodificar esses recursos, práticos ou teóricos. Uma das tarefas “da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil” (FREIRE, 2019, p. 28). Nesse contexto, a educadora também deve ter curiosidade epistemológica não apenas pelo processo de aprendizado da estudante, mas do seu, pois na troca com a anterior ela pode descobrir e aprofundar seus conhecimentos, através de descobertas das estudantes que ela nunca fez ou faria sozinha. A expectativa de julgamento impede um relacionamento livre nos trabalhos de atuação. Além disso, o professor não pode julgar o bom ou o mau pois que não existe uma maneira absolutamente certa ou errada para solucionar um problema: o professor, com um passado rico em experiências, pode conhecer uma centena de maneiras diferentes para solucionar um determinado problema, e o aluno pode aparecer com a forma cento e um, que o professor até então não tinha pensado. (SPOLIN, 2015, p. 7). Para refletir um pouco mais sobre a prática desses conceitos no ensino do teatro vamos refletir sobre algumas outras experiências vividas pelas autoras. Em uma das escolas de teatro mais conhecidas de São Paulo, que oferece cursos técnicos nas mais diversas áreas das artes do palco, profissionalizando artistas e técnicos para o mercado de trabalho, podemos encontrar os dois tipos de práticas mencionadas, uma que acaba pendendo para o abandono e outra para a autonomia, mesmo que o espaço já tenha uma visão que pretende valorizar a emancipação criadora e não replicar hierarquias. Uma das autoras do presente trabalho, se formou nesta escola, no curso de direção, e se sentiu muitas vezes abandonada no curso. A metodologia de núcleos de criação utilizada, onde em certo momento do semestre se formavam grupos com estudantes dos diferentes cursos (direção, atuação, iluminação, dramaturgia, etc) com o objetivo de criarem juntos uma apresentação cênica com os elementos de todas as áreas que compõem uma peça teatral, acabava deixando muita responsabilidade sobre os alunos do curso de direção. Os demais estudantes, dos outros cursos esperavam deles um posicionamento firme e decisivo como se já fossem diretores de fato, mas quando 43 agiam assim, os mesmos estudantes nem sempre aceitavam, pois usavam do fato de a diretora também ser estudante para se rebelarem contra um apontamento mais firme. Por outro lado, ao solicitar ajuda dos formadores da escola, em vários momentos, eles respondiam como se ela já tivesse que saber todas as respostas e agir como diretora. Isso gera uma confusão, até onde ela é estudante e até onde deveria se comportar como diretora, é certo se comportar como diretora se ainda está estudando? Nesse relato podemos ver que ao sentir o abandono e o julgamento dos formadores, a estudante acaba precisando buscar uma auto-suficiência, o que não cabe no processo educativo, pois gera conflito. Conflito que se dá pelo fato de as atividades que remetem à própria prática de uma profissão, dentro de espaços educativos, não poderem se entender como a prática profissional em si. Ao propor uma prática como a citada, não posso, como educadora, intuir que as educandas irão estar prontas para exercer plenamente suas funções profissionais, pois isso descaracteriza totalmente a educação, deve haver espaço para o erro, para a dúvida e principalmente para a partilha de responsabilidade. Ou seja, o ensino que se caracteriza como despretensioso ou assume que a estudante compreenda tudo sozinha, mata a curiosidade epistemológica. Sendo a função da professora instigar essa curiosidade, trazemos um relato de Kelly Priscila durante sua atuação como oficineira de teatro em um serviço social atendendo crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Mesmo o teatro sendo meio neste contexto, pois os participantes não estão ali com a finalidade ou objetivo de aprender a linguagem teatral, ou com a intenção de se tornarem atrizes e atores, mas sim em contexto de assistência social, onde muitos frequentam o local para terem onde se alimentar e não ficar nas ruas. Então, o teatro nesse contexto vira uma possibilidade de expressão e reflexão sobre suas vidas, a sociedade e qualquer outro assunto que possa ser abordado. Considerando isso, Kelly Priscila acabou desenvolvendo um modo de dar aulas em que ensina os elementos da técnica teatral, de forma mais simples para a compreensão de todos participantes, entrando na linguagem deles para isso, muito inspirada pelo método de alfabetização desenvolvido por Paulo Freire, de forma que eles possam experimentar esses elementos. Por exemplo, para que eles aprendam sobre personagens, começa perguntando se eles sabem o que é uma personagem e que citem exemplos, como a maioria deles nunca foi ao teatro, citam as 44 personagens de filmes, séries, novelas e desenhos animados que conhecem, dessa forma tendo de onde partir, num jogo, podem sortear uma personagem para cada participante e assim eles terão que agir como essa personagem agiria, começando a compreender como criar personagens. O mesmo princípio é utilizado para outros elementos como para o cenário, exemplificando para eles que se trata de onde acontece a história que eles querem contar; o figurino é a roupa que as personagens usam e o conflito da cena é o “nó” que precisa ser desatado, é a questão a ser resolvida. Dessa forma, estimula a curiosidade deles em criarem e se divertirem, e essa é a principal ideia que passa para eles, antes deles se preocuparem se está certo ou errado, que eles se lembrem que é uma brincadeira de faz de conta, só que com mais regras. 4.3 ESCUTA E SILÊNCIO - DIÁLOGO Ensinar Quem não compreende precisa, primeiro, ter a sensação de que é compreendido. Quem deve ouvir precisa, primeiro, ter a sensação de que é ouvido. (BRECHT. 2013, p. 112) Ao sugerimos algumas práticas que verificamos colaborarem para a autonomia, talvez a base para qualquer prática nesse sentido seja a Escuta e o Silêncio, mas não se trata de qualquer escuta ou de qualquer silêncio. Ao falarmos sobre escuta, temos em mente que: Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. (FREIRE, 2020, p. 117). A escuta a que nos referimos, que entendemos ser indispensável para quem pretende ensinar está além de apenas ouvir o que é dito com as palavras, é necessário ter sensibilidade para perceber não apenas o aluno, mas o que sua fala de fato expressa, o que seu corpo diz, além de ter escuta de si mesmo. Christian Dunker e Claudio Thebas em seu livro O Palhaço e o Psicanalista vão debater mais profundamente sobre como escutar as pessoas pode ser transformador, nos apontando algo muito importante: 45 Não fomos educados a escutar o outro. Não fomos educados a tentar compreender e lidar com a forma humanamente particular, torta e atabalhoada como cada qual consegue e fracassa ao expressar tudo que sente, pois também, como nós, não foi educado a acolher, cuidar e expressar seus sentimentos. Não fomos educados a tolerar, compor, cooperar. Nos ensinam na escola que ser sociável é perseguir nossos próprios interesses de forma individual, respeitando os outros e obedecendo leis de convívio e educação. Fomos adestrados a cuidar de nós mesmos, a encontrar nossas próprias soluções e caminhos, sem que a escuta do outro e de nós tenha um grande papel nisso. (DUNKER; THEBAS, 2019, p. 118). Não é tarefa fácil aceitar que muitas vezes acreditamos que estamos com a escuta atenta, mas na verdade não estamos, não é tarefa fácil aceitar que não sabemos escutar ou que nossa escuta não é tão sensível quanto pensávamos, mas é importante nos colocarmos a essa reflexão se temos interesse em nos tornarmos educadoras progressistas/democráticas. Para uma boa escuta, é necessário abandonar a arrogância do poder da fala, abandonar essa visão de que o professor é o único que tem o que falar, que tem o que dizer e o estudante apenas ouve passivamente, quem fala não está acima daquele que escuta e quem ouve não é menor do que quem fala, ou seja não há hierarquia nessa relação. Cada pessoa tem sua forma de mostrar-se quando se põe no lugar de falar para outros. A forma como cada um se mostra tem a ver com a história de vida de cada um, com à forma como aprendeu a falar, com o que pode representar para a pessoa o fato de estar em público, com o medo ou a segurança que pode sentir ao viver essa situação... Por isso, toda vez que falamos estamos, de certo modo, anunciando/denunciando como nos sentimos, como pensamos; estamos falando da nossa história de vida. (DOWBOR, 2008, p. 86). Para uma escuta atenta, quem escuta precisa fazer silêncio, mas não se trata de um silêncio passivo, alienado ou de quem está apenas aguardando para poder falar, trata-se de um silêncio de quem observa, de quem acolhe o que está escutando. Também é preciso romper uma visão de que o aluno que faz silêncio está alienado, isso não pode ser visto como regra, bell hooks nos aponta que “é a ausência do sentimento de segurança que, muitas vezes, promove o silêncio prolongado ou a falta de envolvimento dos alunos” (hooks, 2017, p. 56). Com um silêncio acolhedor criamos uma escuta atenta, mas a escuta de quê? Se nossas alunas e alunos podem ter insegurança para falar, como provocar a fala? “É preciso fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir é um objetivo central da pedagogia transformadora.” (hooks, 2017, p. 56). Ao criar um ambiente onde todos se sintam pertencentes, 46 participantes e importantes, certamente a fala acontecerá, e não somente a fala, mas o que sentimos falta em muitos relatos que trouxemos neste trabalho: o diálogo. E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação. (FREIRE, 2021, p. 141) Talvez essa descrição de Paulo Freire sobre o diálogo pareça um pouco romântica, ou talvez sejamos nós que dentro desse sistema que vivemos acabamos por banalizar conceitos como amor, fé e esperança. Não há romantismo algum, a intenção com que o autor nos traz esses conceitos, trata de ação, de movimento e não de passividade nem de romantismo. Ter a humildade e a confiança que Freire nos provoca a ter neste trecho acima citado, juntamente com o amor, a fé e a esperança, certamente nos leva a uma escuta atenta e um lugar para falar com o estudante muito mais horizontal, onde cria-se um ambiente para uma comunicação saudável entre as partes. Ao nos colocarmos com a escuta atenta podemos perceber melhor os anseios, as dificuldades e os quereres daqueles para quem estamos ensinando o teatro, desta forma podemos criar um espaço onde eles também possam confiar em nossa escuta para se abrirem sem medo de exposição, de forma que possam se arriscar mais na pesquisa e descoberta de si e do fazer teatral, desenvolvendo autonomia, criticidade e podendo agir dessa forma na vida, além de se expressarem artisticamente. Enquanto estudava direção teatral em uma formação técnica, uma das autoras teve uma experiência que pode elucidar o que estamos dizendo, quando estudou performatividade dentro das artes cênicas e participou de uma atividade que propunha a criação individual de uma performance a ser apresentada aos formadores, coordenadores e demais colegas de curso. A autora queria usar seu corpo para falar das dores que carregamos, já que uma performance não pode falar apenas de quem a realiza, precisa tocar o espectador, causar identificação, a ideia era que houvesse interatividade. Pensou em estar vestida de preto, e propor que público escrevesse em papéis as suas dores e os prendesse com um alfinete na 47 roupa preta, fazendo com que ela corresse o risco de receber algumas alfinetadas no processo e então reagisse fisicamente a isso. A formadora que orientou a atividade teve o cuidado de ouvir a ideia de cada um em particular, questionando as escolhas individuais e sugerindo caminhos possíveis. A partir de sua escuta atenta, percebeu o que de fato a autora queria fazer e problematizou a complexidade de sua ideia inicial, sugerindo em seguida um outro caminho. Questionou porque ela não ficava nua e as pessoas escreviam suas dores no próprio corpo dela e então ela reagiria a isso. Embora a dificuldade do nu, estava em ambiente seguro e reconheceu que de fato isso expressaria muito melhor o que ela pretendia, além de descobrir mais possibilidades no ensaio enquanto montava a performance para apreciação. O resultado foi uma performance em que o público chegava a uma sala com a porta fechada, onde estava escrita a seguinte mensagem: “Acenda a lanterna do seu celular e me encontre lá dentro”. Ao entrar em uma sala totalmente escura, seguindo a orientação, o público a encontrava no centro dela, nua, com um aviso no chão: “Pegue uma caneta e escreva em mim as suas dores”. Conforme o público ia escrevendo, uma conexão entre ela, eles e suas dores surgia, em alguns momentos ela chegou ao choro, o público também se emocionou, ela permitia que seu corpo fosse afetado pelas dores descritas e depois de um tempo, pegou tinta guache colorida e pintou por cima das dores escritas em seu corpo, de forma a ressignificá-las e libertar-se delas, convidando o público a também participar desta ação. Todo esse processo foi libertador para a autora, principalmente como artista, mostrou que ela não precisa ter medo de acreditar que o que quer criar é potente. O apoio e a escuta da formadora fizeram toda a diferença nesse processo, pois essa não agiu de uma forma em que os estudantes criassem algum tipo de dependência dela, pelo contrário, mostrou que a autora devia confiar em si mesma e apostar em sua criação, mas também não se isentou totalmente do processo, provocando e fazendo trocas com todos os participantes. 4.4 VIEWPOINTS: UMA EXPERIÊNCIA DE AUTONOMIA CRIATIVA “Os Viewpoints aliviam a pressão de ter que inventar tudo por si mesmo, de gerar tudo sozinho, de ser interessante e forçar a criatividade. Permitem que nos entreguemos, que possamos cair em um espaço criativo vazio e confiar 48 que há algo lá, outra coisa além do nosso próprio ego ou imaginação, para nos captar. Os Viewpoints nos ajudam a confiar em deixar algo acontecer no palco, em vez de fazer acontecer. A fonte para a ação e a invenção vem até nós a partir dos outros e a partir do mundo físico ao nosso redor.” (BOGARD, LANDAU, 2017, p. 37). Uma de minhas (Gabriela escrevendo) primeiras sensações ao experienciar a prática de Viewpoints foi a de me sentir aliviada por não precisar ser genial ou escolher o tempo todo. A mesma sensação foi vivida por meus colegas, outros estudantes de Licenciatura em Arte-Teatro, que fizeram comentários parecidos nas discussões que tivemos após as aulas práticas deste tema na graduação. Associo essa sensação ao fato dos Viewpoints tornarem a autonomia e liberdade criativas em processos orgânicos dentro de suas propostas. Sendo que não é fácil, majoritariamente, tomar a atitude de assumir essas posições em cena pois ela nos coloca em risco, de não agradar, de não ser bom o suficiente, de não atender a expectativas, sejam elas do mercado artístico, de um grupo, coletivo, diretora ou professora, ou seja, risco de lidar com uma possível consequência, que não chega a ser concretamente racionalizada, ao romper com o controle a que estamos constantemente submetidas, no qual queremos a todo momento satisfazer o outro. Os Viewpoints20 são primeiro características ou focos de atenção nas relações de espaço e tempo no teatro, e também um sistema21 de prática e utilização dessas relações. Associados principalmente ao treinamento corporal e vocal da atriz/ator, a improvisação e a composição cênica, também podem ser utilizados em relação a interpretação, dramaturgia e direção. Destaco aqui os viewpoints físicos, com os quais tive experiência prática: andamento (velocidade), duração (quantidade de tempo), resposta cinestésica (resposta/reação espontânea a um estímulo dos sentidos), repetição, relação espacial (distância), topografia (desenho/rastro/mapa criado ao ou para se locomover por um espaço), forma (desenho do corpo no espaço), gesto (movimento com começo, meio e fim; comportamental ou expressivo) e arquitetura (relação/diálogo do movimento com o ambiente físico). 21 Irei me referir aos Viewpoints como sistema, por reconhecer que ele ultrapassa o limiar de conceitos ou linguagem, ao estar associado a propostas específicas de exercícios e estruturas de aplicação, ou seja, a uma metodologia própria, por mais aberta que seja. 20 Em O livro dos Viewpoints, de Anne Bogart e Tina Landau (2017, p.33), os Viewpoints são definidos como processo aberto que oferece “uma alternativa para abordagens convencionais de interpretação, direção, dramaturgia e design”, sendo negado que se trate de uma técnica por não ter um formato fechado. As autoras ainda vão os designar como linguagem para falar do que acontece no palco. 49 Essa metodologia foi trazida e organizada para o Teatro por Anne Bogart, Tina Landau – diretoras americanas – e seu grupo SITI Company, após terem contato com os Six Viewpoints, estes ligados ao improviso em dança, criados pela coreógrafa americana Mary Overlie após um movimento de revolução artística ocorrido nos Estados Unidos na década de 1960, quando dançarinos buscavam romper com os processos de criação estabelecidos na época em busca de uma arte não hierárquica e mais democrática, ideais que vão permanecer no trabalho de Anne e Tina (BOGART; LANDAU, 2017, p. 22-23). Esse sistema e experiência pessoal descritos anteriormente, vêm de encontro com o tema proposto neste trabalho pois o próprio Viewpoints abdica de relações hierárquicas: ao negar uma autoridade absoluta (professora, diretora, texto, entre outras), dicotomias como bom/ruim e certo/errado, uma ordem de importância entre os próprios viewpoints, ou uma divisão de mente e corpo, este último ao propor que se “saia um pouco da cabeça” para aprender pelo corpo antes de racionalizar o conhecimento. E mesmo que idealmente demande um ambiente propício que atenda a requisitos de necessidade e segurança como qualquer técnica ou prática convencional de teatro, pode se adaptar a qualquer espaço, além de não exigir muitos recursos e poder ser praticado por qualquer corpo, já que cada um encontra sua própria relação com cada viewpoint, não havendo formas prontas ou esperadas, o que o torna uma prática democrática que pode ser a base na construção de autonomia no ensino de teatro. Voltando a minha primeira sensação ao experienciar o Viewpoints, entendi mais tarde que ela se tratava do cuidado que este têm com o momento prévio à ação, ou o estado atento de um corpo pronto para agir sem influência de pressões externas, ou seja, sua proposta em preparar o performer para uma resposta rápida e espontânea, que é a resposta cinestésica. Ao praticar esse viewpoint, é possível perceber que a necessidade de antecipar a própria ação, a ação do outro e a tentativa forçada de gerar uma relação, na maioria das vezes, não geram algo genuíno que poderá ser explorado posteriormente. A metodologia não foca no resultado, não busca premeditar, controlar ou deixar que o pensamento constante de “o que devo fazer” domine a ação, mas aposta no instinto, na intuição, na escuta 50 extraordinária22, escuta ativa e permanente de todo o corpo, na disponibilidade e na sensação de que qualquer coisa pode acontecer a todo instante (BOGART; LANDAU, 2017 p. 51). Isso faz com que fiquemos à vontade com o despreparo inicial, que saibamos lidar melhor com a ansiedade, o que também é construído pela calma na introdução de cada viewpoint, que acontece separadamente em exercícios nos quais a professora ou diretora propõe improvisos em que são permitidas poucas ações, ou seja requerida a realização de uma tarefa específica relacionada a apenas um dos viewpoints ligado a objetivos gerais de trabalho. Como no trabalho na raia (BOGART, LANDAU, 2017, p. 90), por exemplo, onde um número pequeno de participantes se dispõe em uma linha horizontal e imagina raias de piscina onde cada um pode se movimentar apenas dentro da sua, ou seja, para frente ou para trás em linha reta limitados por opções de movimento dadas pela professora/diretora, indo desde um conjunto de ações simples como “só poder andar, correr, pular, cair e pausar”, ou outras especificamente ligadas ao trabalho do grupo, como no caso de minha experiência, onde após construirmos gestos de uma personagem de uma dramaturgia específica, foram escolhidos apenas três gestos e uma frase desta para explorarmos na raia