UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CARINA TELES DE SOUZA GGGÊÊÊNNNEEERRROOO EEE IIINNNFFFÂÂÂNNNCCCIIIAAA::: possibilidades educativas na relação família e escola ARARAQUARA – S.P. 2021 1 CARINA TELES DE SOUZA GGGÊÊÊNNNEEERRROOO EEE IIINNNFFFÂÂÂNNNCCCIIIAAA::: possibilidades educativas na relação família e escola Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientadora: Profª Drª. Denise Maria Margonari Favaro. ARARAQUARA – S.P. 2021 2 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). S729g Souza, Carina Teles GÊNERO E INFÂNCIA: possibilidades educativas na relação família e escola / Carina Teles Souza. -- Araraquara, 2022 182 p. : il., tabs., fotos Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Denise Maria Margonari Favaro 1. Gênero. 2. Infância. 3. Criança. 4. Família. 5. Práticas educativas. I. Título. 3 CARINA TELES DE SOUZA GGGÊÊÊNNNEEERRROOO EEE IIINNNFFFÂÂÂNNNCCCIIIAAA::: possibilidades educativas na relação família e escola Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientadora: Profª Drª. Denise Maria Margonari Favaro. Data da defesa: 25/02/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profª Drª. Denise Maria Margonari Favaro. Departamento de Educação / Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Membro Titular: Profª Drª. Aline Juliana Oja Persicheto Departamento Pedagogia / Faculdade Orígenes Lessa Membro Titular: Profª Drª. Marcia Cristina Argenti Perez Departamento de Psicologia da Educação / Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Local: via sistemas de videoconferência e outras ferramentas para comunicação a distância. 4 A todos aqueles, adultos e crianças, que acreditaram nessas ideias comigo. 5 AGRADECIMENTOS Pensar em agradecimentos para se declarar o reconhecimento a alguém/algo é uma tarefa difícil, melhor dizendo, complexa. Mais do que revelar a gratidão a outrem, esse momento de escrita, de reflexão, de significação, é um desdobramento a tudo e a todos que garantiram a existência desse agora. Esse momento de ser, de estar e de poder compartilhar tais palavras a todos que fomentaram e possibilitaram esta pesquisa, é para além de todos os adjetivos que poderiam ser empregados, uma maneira de agradecer as formas, diretas e indiretas, que ocasionaram a existência de uma ideia, um estudo, uma experiência, uma história. Para tanto, de modo geral, gostaria de agradecer a todos que participaram da minha história e formação, seja ela tanto profissional e acadêmica, como humana. Todas as escolhas, exemplos, conselhos, ensinamentos, em diferentes momentos da minha vida foram primordiais para as decisões envolvidas nesses dois anos e meio de mestrado. Focando-se nesses anos de estudo, investigação e desenvolvimento da pesquisa, volto meus agradecimentos, mais especificamente, aqueles que estiveram mais próximos nessa jornada. À minha família, em especial aos meus pais, que me apoiaram e compreenderam, pacientemente, as minhas ausências devido à correria do cotidiano de conciliação de distância, trabalho, estudos e pesquisa. Como também, aos meus irmãos, Larissa e Murilo, que desde muito cedo me motivaram, me inspiraram e me (re)construíram enquanto estudante, pesquisadora, professora e irmã. A eles tento, rotineiramente, fazer o possível para que o mundo seja um pouco mais leve, e que as dificuldades que trabalhamos hoje (não só nesse estudo, mas em muitos outros), não sejam para eles um problema tão grande como já vem sendo. Aos meus amigos, de infância, de adolescência e de faculdade, que mesmo longe, me motivaram e me entusiasmaram, com palavras e compreensão de se mostrarem nessa experiência comigo. Às minhas colegas de trabalho, que em meu primeiro ano em sala de aula na Educação Infantil, e mesmo após ele, se mostraram pessoas incríveis, que me apoiaram, acreditaram e estiveram comigo nas inseguranças e dúvidas. Obrigada por todos os conselhos, exemplos, memórias, histórias e aprendizados, todos fomentaram a significância do que já sabemos, mas que é sempre importante ressaltar: a lutar pela educação se faz em conjunto. 6 Nesse contexto também agradeço a toda a equipe escolar responsável, educacionalmente, pelas crianças envolvidas nesse estudo. Obrigada pela confiança e amparo nesta investigação, assim como por todo o auxílio nas resoluções burocráticas da aceitação da pesquisa. Às famílias envolvidas, tanto as crianças como os pais, que juntos fortaleceram e possibilitaram reflexões, experiências e vivências nesse vínculo entre pesquisa, educação e família. À minha orientadora, Denise, que mesmo com as turbulências de prazos, de trabalhos e de agitação do cotidiano, me ensinou a olhar com mais calma para as dificuldades e a ver de novas formas as possibilidades que muitas vezes julgamos como problemas. Me estendendo também ao agradecimento a toda a sua família, que pacientemente passou por tudo isso conosco, em especial, ao Denis que desde muito cedo já participa dessa vida acadêmica agitada. Às professoras membros dessa banca, Aline e Marcia, que desde antes dessa pesquisa foram, e continuam sendo, grandes inspirações, tanto de profissionais, como de mulheres fortes. Obrigada por todas as contribuições, apontamentos e reflexões que se tornaram primordiais para o desenvolvimento deste estudo. A todos os colegas de turma do mestrado, pelas discussões e compartilhamentos de momentos, ideias e histórias. Assim como aos professores e funcionários do contexto acadêmico do programa de pós-graduação em Educação Sexual, pelos ensinamentos e auxílios. Enfim, nem que fossem citados todos os nomes, momentos e contribuições para esse agradecimento conseguiria resumir a influência dos detalhes que fundamentam as escolhas, direcionamentos e reflexões desse estudo. Com uma trajetória que se iniciou muito antes do ingresso neste mestrado, essa pesquisa é um aglomerado de inquietações, movimentações e tentativas de contribuir, positivamente e de modo realista, com um dos inúmeros assuntos que não devem ser calados. Por isso, agradeço a todos que acreditam e se dedicam a esta luta. 7 “Cada tic-tac é um segundo da vida que passa, foge, e não se repete. E há nele tanta intensidade, tanto interesse, que o problema é só saber vivê-lo.” Frida Kahlo 8 RESUMO Dentre as inúmeras discussões e polêmicas que fundamentam o trabalho com as questões de gênero na infância, esta pesquisa desdobrou-se em sua necessidade de compreensão, aprofundamento e desmistificação de olhares, para além dos muros da escola, pautando-se na discussão da articulação entre família e escola. Para tanto, este trabalho possui como cenário de desenvolvimento o contexto online de diálogo, abordando 23 famílias participantes e tendo como sujeitos de pesquisa não só crianças, essas entre 2 e 3 anos de idade, mas, também, seus familiares, os entendendo como indispensáveis no processo de ensino e aprendizagem. Com tal intuito, nesta investigação utilizou-se a abordagem socio-cultural, por meio de uma pesquisa qualitativa, pelo método participante, caracterizando-se, assim, como um estudo empírico, uma vez que a mesma se deu pela relação entre professora-pesquisadora, alunos, pais e equipe gestora. No desenvolvimento desse processo, a coleta de dados, assim como a sua análise e a aplicação das propostas elaboradas pautaram-se nas observações e nos registros da docente, nos compartilhamentos de mídias, informações e vivências pelos familiares e em questionários online aplicados a eles e aos gestores. Todos os instrumentos contribuíram para a construção de um contexto favorável que respeitasse as realidades das famílias envolvidas, sendo assim, as propostas aplicadas abordaram três temas de discussão sobre gênero, com uma linguagem acessível, objetiva e explicativa às famílias, assim como o fornecimento de materiais, direcionamento pedagógico e suporte em caso de dúvidas. Os resultados mostraram-se proveitosos, tanto para a discussão sobre a necessidade de se fortalecer esse vínculo entre família e escola, como, também, as possibilidades que o mesmo pode ofertar. Diante dos alcances da pesquisa, observa-se que a emergência da discussão sobre o tema é evidente para a maioria dos envolvidos e o maior desafio, no entanto, é o tratamento das desigualdades de gênero nas posturas e pensamentos interiorizados, que naturalizam as discriminações e exemplificam a normalidade dos estereótipos de gênero, afetando e limitando as vivências, assim como os pensamentos em ser menino e ser menina, deixando em segundo o plano o ser criança. Finalmente, espera-se que a pesquisa tenha gerado inquietações aos seus envolvidos, possibilitando novas percepções e reflexões para o aprofundamento no assunto e o trabalho com o mesmo, de forma que as reflexões expostas possam ser aproveitadas no desenvolvimento do tema em outros contextos, espaços e perspectivas. Palavras – chave: Gênero, Infância, Criança, Família, Práticas educativas. 9 ABSTRACT Among the countless discussions and controversies that support the work with gender issues in childhood, this research unfolded in its need to understand, deepen and demystify looks, beyond the school walls, based on the discussion of the articulation between family and school. To this end, this work has the online context of dialogue as a development scenario, addressing 23 participating families and having as research subjects not only children, those between 2 and 3 years old, but also their families, understanding them as indispensable in the teaching-learning process. To this end, in this investigation the socio-cultural approach was used, through a qualitative research, by the participant method, thus characterizing itself as an empirical study, since it took place through the relationship between the teacher-researcher, the students, parents and the management team. In the development of this process, the collection of data, as well as its analysis and the application of the elaborated proposals were based on the observations and records of the teacher, in the sharing of media, information and experiences by family members and in online questionnaires applied to them and to managers. All instruments contributed to the construction of a favorable context that respected the realities of the families involved, therefore, the proposals applied addressed three themes of discussion on gender, with an accessible, objective and explanatory language to families, as well as the provision of materials, educational guidance and support in case of doubts. The results proved to be useful, both for the discussion about the need to strengthen this bond between family and school, as well as the possibilities that it can offer. Given the scope of the research, it is observed that the emergence of the discussion on the topic is evident for most of those involved and the biggest challenge, however, is the treatment of gender inequalities in internalized attitudes and thoughts, which naturalize discrimination and exemplify the normality of gender stereotypes, affecting and limiting the experiences, as well as the thoughts of being a boy and being a girl, leaving being a child in the background. Finally, it is expected that the research has generated concerns for its stakeholders, enabling new perceptions and reflections to deepen the subject and work with it, so that the reflections exposed can be used in the development of the theme in other contexts, spaces and prospects. Keywords: Gender, Childhood, Children, Family, Educational practices. 10 LISTA DE IMAGENS Imagem 1 Resumo da proposta para as famílias.................................................... 114 Imagem 2 Convite às famílias................................................................................ 114 Imagem 3 Colorindo a vida: reflexões................................................................... 115 Imagem 4 Colorindo a vida: quem eu sou?........................................................... 116 Imagem 5 Cabelo Maluco: da história “O cabelo da menina”, de Fernanda Takai..................................................................................................... 117 Imagem 6 Cada um com o seu cabelo: Introdução............................................... 118 Imagem 7 Cada um com o seu cabelo: Instruções ................................................ 119 Imagem 8 As roupas que gosto de vestir (combinações) ..................................... 120 Imagem 9 Sugestão: Desenho animado (parte 1) ................................................. 123 Imagem 10 Sugestão: Desenho animado (parte 2) ................................................. 124 Imagem 11 Sugestão: Livros Online........................................................................ 126 Imagem 12 Sugestão: Artigo sobre machismo estrutural........................................ 128 Imagem 13 Imagem 14 Sugestão: Artigo sobre personagens (fictícios e reais) e gênero.......... Devolutivas das famílias....................................................................... 128 140 Imagem 15 Desenho realizado pela criança referente a proposta de atividade 1..... 145 Imagem 16 Criança segurando seu autorretrato, referente a proposta atividade 1.. 146 Imagem 17 Criança segurando o brinquedo criado, referente a proposta de atividade 2............................................................................................. 147 11 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Composição familiar quantitativa.......................................................... 101 Gráfico 2 Responsáveis pelo acompanhamento escolar em tempos de Educação Digital, em 2020..................................................................................... 102 Gráfico 3 Palavras principais nos comentários dos pais sobre os sentimentos das crianças.................................................................................................. 104 Gráfico 4 Principais dificuldades dos pais na aplicação das propostas com as crianças................................................................................................... 105 Gráfico 5 Responsáveis pelo acompanhamento escolar das crianças nos meses de novembro e dezembro, de 2020........................................................ 131 Gráfico 6 Infâncias dos pais: locais onde moraram quando crianças.................... 135 Gráfico 7 Infâncias dos pais: espaços para as brincadeiras.................................... 136 Gráfico 8 Infância dos pais: ano de nascimento..................................................... 137 Gráfico 9 Principais considerações dos pais sobre o que é gênero........................ 150 Gráfico 10 Infância dos pais: limitações e restrições de gênero.............................. 153 Gráfico 11 Opinião dos pais: discussão sobre questões de gênero na infância....... 155 Gráfico 12 Opinião dos pais: interesses em conhecer mais o assunto..................... 155 Gráfico 13 Nível de escolaridade dos pais participantes......................................... 156 12 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Artigos filtrados e selecionados na plataforma SciELO............................. 62 Tabela 2 Artigos por etapas de ensino da educação básica brasileira....................... 63 Tabela 3 Teses e dissertações encontradas e selecionadas no catálogo da Capes..... 67 Tabela 4 Pesquisa da Ipsos com a ONU Mulheres, sobre os impactos da pandemia..................................................................................................... 103 Tabela 5 Parte prática da pesquisa: devolutivas de outubro a dezembro, de 2020... 130 Tabela 6 Brincadeiras favoritas dos adultos participantes........................................ 138 Tabela 7 Preferências dos pais/adultos: Cores de roupas ......................................... 141 Tabela 8 Brincadeiras e brinquedos favoritos das crianças participantes................. 148 Tabela 9 Opinião dos pais: características principais sobre o que é desigualdade de gênero.................................................................................................... 151 Tabela 10 Opinião dos pais: brincadeiras de meninos e meninas............................... 153 Tabela 11 Opinião dos pais: características de meninos e meninas............................ 154 13 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Contextualização da criança e da infância ao longo dos séculos............ 32 Quadro 2 A criança e a infância em diferentes períodos da história brasileira...... 34 Quadro 3 A pesquisa participante e os seus sujeitos............................................... 81 Quadro 4 Execução prática da pesquisa.................................................................. 86 Quadro 5 Relação entre turmas e períodos.............................................................. 88 Quadro 6 Ações e desenvolvimento da Educação Digital na Educação Infantil municipal................................................................................................. 90 Quadro 7 Vivências pessoais da gestão escolar...................................................... 97 Quadro 8 Vivências acadêmicas e profissionais da gestão escolar......................... 97 Quadro 9 O desenvolvimento dos sujeitos de pesquisa (crianças).......................... 99 Quadro 10 Proposta de atividade 1: Gênero e Identidade......................................... 109 Quadro 11 Proposta de atividade 2: Gênero e Penteados......................................... 110 Quadro 12 Proposta de atividade 3: Gênero e Vestuário.......................................... 111 14 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AP Atendimento aos Pais BNCC Base Nacional Comum Curricular CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEP Comitê de Ética em Pesquisa CONADA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente DCNEI Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil DST Doenças Sexualmente Transmissíveis EAD Educação à distância ECA Estatuto da Criança e do Adolescente ECiEA Grupo de estudos e pesquisas sobre formação de professores e práticas pedagógicas em Ensino de Ciências e Educação Ambiental EJA Educação de Jovens e Adultos FEBEM Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor FCLAr Faculdade de Ciências e Letras HL Horário de Leitura HTPC Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo http Hype Text Tranfer Protocol. IC Iniciação Científica IST Infecções Sexualmente Transmissíveis LDB Lei de Diretrizes e Bases M1 Maternal 1 MEC Ministério da Educação ONG Organização Não Governamental ONU Organização das Nações Unidas PAI Programa de Alfabetização Intensiva PBSH Programa Brasil sem Homofobia PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PET Programa de Educação Tutorial PME Plano Municipal de Educação PNE Plano Nacional de Educação PNEDH Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos PPM Planejamento Pedagógico de Materiais 15 RCNEI Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil SARS Severe Acute Respiratory Syndrome (Síndrome Respiratória Aguda Grave) SciELO Scientific Electronic Library Online SESI Serviço Social da Indústria SESu Secretaria de Educação Superior SME Secretaria Municipal de Educação SNA Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TV Televisão UE Unidade Escolar UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNICAMP Universidade de Campinas UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância URL Uniform Resource Locator www World Wide Web 16 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO............................................................................................... 18 2 SER CRIANÇA E TER INFÂNCIA: ENTRE O PASSADO E O PRESENTE.................................................................................................. 2.1 O desenvolvimento do “ser” criança no enredo da família e da sociedade europeia....................................................................................................... 2.2 Da colonização às vivências atuais: a criança presente no Brasil............... 26 26 34 3 EDUCAÇÃO SEXUAL, SEXUALIDADE E GÊNERO: AS NUANCES QUE EMBASAM ESSA DISCUSSÃO AO LONGO DA HISTÓRIA........... 3.1 As realidades brasileiras: a institucionalização dos saberes sexuais e seus reflexos nas vivências atuais..................................................................... 3.2 Os conceitos e percepções que fomentam as questões de gênero............. 40 40 48 4 AS QUESTÕES DE GÊNERO FRENTE A RELAÇÃO FAMÍLIA E ESCOLA NA EDUCAÇÃO INFANTIL 4.1 A estruturação da Educação Infantil no Brasil.......................................... 4.2 O que dizem os estudos sobre Gênero e Infância no repertório de pesquisas científicas brasileiras........................................................................ 4.3 Responsabilidade compartilhada: a família e a escola.............................. 53 54 61 70 5 PERCURSO METODOLÓGICO..................................................................... 5.1 Caracterização e Fundamentos................................................................... 5.1.1 Abordagem teórico-epistemológica.................................................. 5.1.2 Abordagem qualitativa...................................................................... 5.1.3 Pesquisa participante......................................................................... 5.1.4 Instrumentos da pesquisa.................................................................. 5.2 Ética da pesquisa........................................................................................ 5.2.1 Cronograma da pesquisa prática....................................................... 5.3 Contextos da pesquisa............................................................................... 5.3.1 Contexto regional e o sistema de ensino municipal......................... 5.3.2 Contexto de Educação Digital em tempos de pandemia.................. 77 77 77 79 81 82 84 85 86 86 88 17 5.3.3 Contexto da gestão escolar............................................................... 5.3.4 Contextos das crianças participantes................................................ 5.3.5 Contexto das famílias participantes.................................................. 94 98 100 6 PROJETO: “COISAS DE MENINO, DE MENINA E DE CRIANÇA!”....... 6.1 Planos de aula............................................................................................ 6.2 Divulgação das propostas pedagógicas..................................................... 6.3 Sugestões................................................................................................... 6.3.1 Episódios de desenho animado........................................................ 6.3.2 Livros Online................................................................................... 6.3.3 Para saber mais sobre gênero e infância (para adultos)................... 107 108 112 121 121 124 126 7 APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS........... 7.1 Impressões e colaboração dos participantes .......................................... 7.2 Análise dos resultados e contextos ........................................................ 7.2.1 Os pais, os filhos, as infâncias.......................................................... 7.2.2 O meu cabelo, meus brinquedos, minhas preferências, o meu “eu”. 7.2.3 O que a palavra “gênero” representa no ideário dos pais................. 129 129 134 134 143 149 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 158 9 APÊNDICES....................................................................................................... 9.1 Questionários diagnóstico para as famílias........................................... 9.2 Questionário sobre as concepções da gestão escolar............................ 9.3 Questionário sobre as concepções e vivências das famílias................. 9.4 Termo de consentimento livre e esclarecido (famílias)........................ 9.5 Termo de consentimento livre e esclarecido (gestão escolar).............. 9.6 Termo de assentimento (crianças)........................................................ 9.7 Autorização apresentada a secretaria de educação do munícipio......... 9.8 Autorização apresentada a direção da escola........................................ 10 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 163 163 165 169 173 174 175 176 177 178 18 1 INTRODUÇÃO Colocar em palavras todo o enredo que caracteriza e que originou esta pesquisa é uma tarefa árdua, mas, também, prazerosa, uma vez que os interesses que a baseia não se resumem apenas aos aspectos profissionais, científicos e sociais da investigação, mas ao interesse pessoal de vivências e realidades experimentadas pela autora. Adentramos, primeiramente, em uma breve sistematização de aspectos, para justificar as escolhas e os interesses que alimentam essa construção investigativa. Abordando a especificidade de se tratar as questões de gênero desde a infância, o presente estudo gira em torno da articulação entre família e escola, entendendo essa relação para além da formalidade educacional e do ambiente escolar, colocando a reflexão sobre o tema no contexto online de educação. Para tanto, nos pautamos na abordagem teórica- epistemológica socio-cultural, apoiando-se na relação direta entre a pesquisadora e os seus envolvidos, sustentando esse contexto pelo fato da pesquisadora também ser professora e responsável educacional pelos dois grupos de sujeitos envolvidos: (1) crianças-alunos, de 2 a 3 anos de idade; e (2) dos familiares responsáveis por essas crianças-alunos. Desde o planejamento, desenvolvimento as reflexões deste estudo, nos baseamos na articulação entre todos os contextos, sejam eles os familiares, online e educacional, traçando um percurso metodológico de coleta de dados que averiguou as condições, as necessidades e as realidades dos envolvidos, para assim, analisar e disponibilizar um projeto acessível, realista e significativo com propostas educacionais que atendessem as demandas pessoais e a importância do tratamento com o tema nesse contexto, por meio da educação à distância. Para o desenvolvimento do resumo acima, este estudo, que durou dois anos e meio, em sua totalidade, teve as suas múltiplas motivações, como também (re)adequações, reflexões e reformulações. Para entendermos melhor a trajetória que originou esta pesquisa, iniciamos pelos interesses do tema. A motivação para investigar as representações e percepções de gênero empregadas no contexto da infância partiram de situações vivenciadas no decorrer da vida acadêmica, em especial, na formação inicial. A princípio, na Licenciatura em Pedagogia, as primeiras aproximações se deram em 2014, com a participação na organização da 1ª Semana de Sexualidade e Gênero “Heleieth Saffioti”1. Nesse início, outros eventos, como congressos, 1A 1º Semana de Sexualidade e Gênero “Heleieth Saffioti” aconteceu em outubro de 2014, promovida pelo conjunto de centros acadêmicos dos cursos de Ciências Sociais, Letras e Pedagogia, da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP∕Araraquara, englobando, estudantes independentes que eram militantes, pesquisadores e interessados na temática. Em resumo, o evento tinha o intuito de promover reflexões e debates 19 palestras e seminários acadêmicos também fomentaram o despertar de uma postura reflexiva diante do assunto, entretanto, ainda sem um envolvimento mais profundo. Somente em 2017, em uma disciplina obrigatória2 da Graduação, é que surgiram novos e mais enfáticos contatos com o tema, possibilitando a expansão de reflexões, por meio de uma melhor contextualização, embasamento referencial e questionamentos. Nesse enredo, surgiam novas inquietações, não só diante da história e conceituação do tema, mas de como a importância do mesmo é reduzida a estereótipos e senso comum em nossa sociedade, sendo naturalizada como desnecessária de discussão, uma vez que foi interiorizada por um discurso machista, hierárquico e abusivo de poder. Assim refletimos: “Como tantos momentos que vivenciamos diariamente são carregados de ações, palavras e posturas depreciativas e excludentes em relação às questões de gênero?” “Por que a educação é, ainda, uma fonte resistente de propagação de situações de desigualdade de gênero?” Diante de tais inquietações e reflexões no campo acadêmico, temos o desdobramento dessas para a vida profissional, durante e depois da Graduação. Resumidamente, com início em 2015, com os estágios obrigatórios, foi possível notar o funcionamento e o desenvolvimento de diversas etapas de ensino, desde a Educação Infantil ao Ensino Fundamental I, e, ainda, a gestão escolar. Mas, para além disso, tais experiências possibilitaram, também, as vivências reais, mesmo que limitadas aos alcances da posição de estagiária, de como se dão esses contextos, suas dificuldades, suas conquistas e seus enfrentamentos diários. Juntamente com tais momentos, temos as considerações oriundas da Iniciação Científica (IC), que colaborou na significação da arte em minha formação, ao pensá-la no e para o desenvolvimento de práticas escolares saudáveis. Some-se a isso a participação no Programa de Educação Tutorial (PET)3 e no Grupo de estudos e pesquisas sobre formação de professores e práticas pedagógicas em Ensino de Ciências e Educação Ambiental (ECiEA)4, críticos e emergentes sobre sexualidade e gênero, resgatando a vida e o trabalho da intelectual feminista e ex- professora da UNESP∕Araraquara, Heleieth Saffioti. 2 Essa disciplina, intitulada “Formação de Identidade e Escolarização”, é obrigatória e destinada habitualmente aos alunos do último ano do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da Faculdade de Ciências e Letras, da UNESP, campus de Araraquara/SP. 3 O Programa de Educação Tutorial (PET) é vinculado ao Ministério da Educação e Secretaria de Educação Superior (MEC/SESu), constituído pela orientação de um(a) professor(a) tutor(a) e um grupo de estudantes em nível de graduação, a fim de promover e desenvolver atividades acadêmicas que integrem o ensino, a pesquisa e a extensão, em caráter extracurricular, fomentando a formação do estudante. 4 O Grupo de estudos e pesquisas sobre formação de professores e práticas pedagógicas em Ensino de Ciências e Educação Ambiental (ECiEA) iniciou-se em 2012 e se mantém ativo até o momento, contando com a coordenação de duas professoras doutoras e uma equipe multidisciplinar de alunos de graduação, pós graduação 20 contribuindo com a formação docente e com o desejo de aprofundamento no contexto da educação escolar. Mais tarde, em 2018, tive contribuições ainda mais proveitosas estando a frente de uma sala de aula como professora titular. Responsável por turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em um Programa de Alfabetização Intensiva (PAI)5, novas perspectivas puderam ser traçadas, agregando pensamentos, olhares e sensibilizações de como se pensar o processo de ensino e aprendizagem e toda a sua estrutura formativa, desde os seus inúmeros enredos de vida, de suas histórias e sonhos, até os detalhes das particularidades de cada aluno, suas bagagens emocionais, escolares, trabalhistas e familiares. Cada um desses aspectos constrói continuamente cada ser humano e, por isso, descartá-los, na teoria e prática da educação, seria aceitar a ineficiência da mesma. Por meio dessas reflexões iniciaram-se as minhas investigações científicas sobre o contexto escolar. Prosseguindo nesse caminho docente, no ano de 2019 adentrei no universo da Educação Infantil, na rede pública de ensino, como professora de uma turma de maternal, atuação essa que continuo até o momento. Dentre suas possibilidades, contextos e experiências, a atuação na Educação Infantil proporcionou, não só a prática dos estudos desenvolvidos, mas a promoção da sensibilidade e de uma postura mais crítica e realista diante das situações que formam o enredo da infância, da educação e de seus envolvidos. Nesse cenário, muitas inquietações despertaram ainda mais o interesse no aprofundamento das investigações na Educação Infantil, especialmente, no que diz respeito às questões de gênero. Isso porque, era/é comum vivenciar situações e falas discriminatórias e adversas em todo o contexto, mais ainda, no educacional, em que são naturalizadas por funcionários e familiares por meio de discursos machistas e conservadores, expondo as crianças/alunos a predefinições que não se justificam em sua própria concreticidade. Para tornar mais explícito esse sentimento e experiências vivenciadas, listei algumas situações, com breves descrições, em que foi possível notar a emergência de se ter uma Educação Sexual voltada às questões de gênero, desde a infância: Situação 1: Lápis de cor não! Lápis de menino e lápis de menina. e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. É vinculado à Faculdade de Ciências e Letras – FCLAr/UNESP∕Araraquara e à Faculdade de Educação da UNICAMP. 5 O Programa de Alfabetização Intensiva (PAI) se faz pela parceria entre a rede de ensino do Serviço Social da Indústria (SESI) e empresas, associações, comunidades e/ou prefeituras contratantes do programa. Equivalente aos primeiros anos do Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano), nele são trabalhados os componentes curriculares de Língua Portuguesa e Matemática e destina-se a jovens e adultos que não puderam iniciar ou concluir seus estudos na idade apropriada. 21 Durante uma atividade pedagógica de desenho (em que as crianças tinham que representar seus entendimentos sobre uma história que estava sendo discutida nas rodas de leitura), orientei as mesmas sobre a finalidade da proposta, e solicitei às auxiliares para entregarem os materiais para as crianças (no caso, folhas de sulfite e lápis de cor que eles poderiam selecionar as cores que lhes interessassem). Logo percebi que nesse momento de entrega estava ocorrendo uma separação proposital das cores, não pelas crianças, mas pelos adultos que solicitei que dessem liberdade de escolha para os alunos. Antes de interferir, ainda pude presenciar a fala “rosa não, é de menina. Escolha algum desses outros!” (apontando para os lápis com tons de verde, azul e marrom). A criança ficou visivelmente irritada e acabou por não pegar nenhum lápis de cor. Situação 2: Dançar assim é coisa de menina, você é um homem! Durante uma conversa informal com um responsável de um aluno, houve o relato de que o seu filho gostava muito de danças e músicas (o que era também visível nas aulas, em que o menino se expressava pela música de forma frequente, mostrando-se bem contente com isso). Entretanto, o responsável também citou que não gostava dos ritmos que ele acabava ouvindo e dançando (por serem sons frequentes no bairro em que moravam, não tinham um controle sobre isso), e que uma vez o repreendeu por estar dançando “como uma menina”, sendo essa dança julgada pejorativa e degradante para a imagem de um menino, segundo os seus argumentos. Situação 3: Ele é muito sensível, chora por tudo, brinca com boneca. Em outra ocasião, em conversas informais, mas, agora entre funcionários, em que estavam comentando sobre o modo como um aluno estava brincando, foi possível notar os rótulos atribuídos às crianças por apenas quererem se expressar livremente, por terem seus gostos, representarem suas vivências e seus olhares sobre o mundo, por meio das brincadeiras. Melhor dizendo, o fato que estavam comentando era sobre o menino não ter escolhido algum carro ou dinossauro, que estavam disponíveis para brincar, mas, sim, por ter pegado uma boneca, justificando a fala, por características da personalidade da criança (o aluno em questão era muito carinhoso, calmo e sensível, se emocionava facilmente) e por argumentos como: “se ele continuar brincando assim, chorando por tudo sabemos no que vai dar!”. Sabemos que situações como as explicitadas acima se reproduzem diariamente, em outras escolas, em outros níveis de ensino, em outros lugares, e é exatamente essa proliferação rápida, sútil e naturalizada que fomenta a continuidade dessa postura repressora e padronizada, que muitas vezes, segrega as vivências em ser menino e ser menina. Esse 22 enraizamento de posturas e percepções históricas, culturais, políticas e sociais, desfavorece a igualdade de gênero e alimenta um sistema hierárquico discriminatório. Diante dessas circunstâncias, se torna necessário e propício a criticidade do olhar, das palavras e dos conhecimentos sobre o assunto, surgindo, consequentemente, a motivação científica desta pesquisa. Nesse enredo, tanto nacional como internacional, felizmente, muitos estudos e organizações se movem no intuito de investigar, compreender e desenvolver estratégias para o trabalho com a igualdade de gênero na infância. Refletindo assim, não só os aspectos que fomentam a necessidade dessa discussão, mas também, as realidades, os sujeitos e as barreiras que constroem esse cenário. De acordo com a análise de Ana Luiza Basílio (2016) sobre os dados divulgados no relatório da Organização Não Governamental (ONG) Save the Children6, intitulado “Até a última menina. Livres para viver, livres para aprender, livres de perigo”, em 2016, o Brasil ocupava uma das piores posições, em um ranking com 144 países envolvidos, que classificava dos melhores lugares aos piores para ser menina, englobando aspectos como o casamento infantil, a gravidez na adolescência, o acesso e a qualidade da educação, a mortalidade materna e o número de legisladoras mulheres. Segundo a ONG, o Brasil apresenta números elevados de gravidez na adolescência e casamento infantil. Em conjunto, os dados colocam o país como um dos que mais impõem barreiras ao empoderamento feminino, privando as mulheres de oportunidades (Basílio, 2016). Os meninos, por sua vez, são direcionados a enquadramentos de sentimentos e sensibilidades, cobrados para subsidiar a superioridade das relações (trabalhistas, amorosas, familiares, econômicas etc.). Em uma entrevista cedida ao Centro de Referências em Educação Integral7, a gerente técnica de gênero Viviane Santiago, da Plan International 6 A Save the Children é uma organização não-governamental, em exercício desde 1919, fundada em Londres, no Reino Unido. Sendo o primeiro movimento global em prol dos direitos das crianças, a organização defende, hoje, mais de 2,3 bilhões de crianças no mundo, em seus direitos à saúde, educação, segurança, proteção, igualdade de gênero etc. 7 O Centro de Referências em Educação Integral surgiu em 2013, sendo coordenado pela Associação Cidade Escola Aprendiz, em parceria com inúmeras outras fundações, institutos, programas e comunidades. Possui o intuito de disponibilizar e promover pesquisas, desenvolvimento metodológico e aprimoramento de referências, estratégias e instrumentos que contribuem na difusão da agenda de Educação Integral no Brasil. https://lunetas.com.br/casamento-infantil-2/ 23 Brasil8, discorreu sobre as conceituações e empregabilidades dessa distorção das vivências de gênero em nossa sociedade: Desde muito cedo vamos educando os meninos a terem determinados tipos de comportamentos, nós cobramos deles uma força, uma valentia, tolhemos que expressem seus sentimentos e assumam seus medos, o que é extremamente prejudicial ao seu desenvolvimento. Não permitimos a esse menino dançar, pintar, cozinhar ou exercer qualquer outra atividade que destoe do modelo masculino dominante. E, quando isso acontece, dizemos que eles são afeminados, ou seja, que eles têm características femininas, e que isso é ruim. É extremamente perverso. (Basílio, 2016). Dentre esses fatos e dados, observa-se que estamos estruturados em uma sociedade patriarcal, machista e conservadora, apoiada em uma política governamental opressora, que se sustenta por uma cultura de ódio e um histórico de polarização. Nossos meninos e nossas meninas sobrevivem à mercê de uma disputa incansável de poder e autoridade, expostos a estereótipos que são normatizados por narrativas degradantes e, mesmo com iniciativas e defesas sobre a integridade ética e sensível de nossas crianças, as relações de gênero ainda sofrem com as desigualdades. Essa problemática se estende por outros aspectos do campo científico, como o viés acadêmico nacional. Em um breve levantamento de dados9 em estudos brasileiros, por exemplo, notamos a vasta extensão que se atinge a discussão sobre as questões de gênero. Entretanto, temos explicitado também, a dificuldade em se desenvolver propostas e investigações abordando esse tema juntamente com a infância, principalmente o que se refere a crianças bem pequenas. Esses empecilhos que fomentam tanto a desigualdade de gênero, como a necessidade de se posicionar, indignar-se e desenvolver posturas críticas e ativas nessa discussão alcança 8 A Plan International Brasil é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, religiosos ou partidários. Sua chegada ao Brasil se deu em 1997 e, desde então, já foram mais de 20 projetos nas últimas duas décadas. Com o intuito de promover os direitos das crianças e a igualdade para as meninas, a organização engloba crianças, adolescentes e jovens por meio de ações, projetos e programas sociais. defende, hoje, mais de 2,3 bilhões de crianças no mundo, em seus direitos à saúde, educação, segurança, proteção, igualdade de gênero etc. 9 Levantamento de dados especificado na seção 4, subseção 4.2, intitulada “O que dizem os estudos sobre Gênero e Infância no repertório de pesquisas cientificas brasileiras”, nesta dissertação. 24 territórios variados, não se esgotando nos campos citados, mas sendo esses os principais e impulsionadores desta pesquisa. Para tanto, diante das motivações, das inquietações e dos fundamentos que sustentam a necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, esta pesquisa se pauta no problema: “Quais os espaços e possibilidades que temos na relação escola e família sobre as questões de gênero na infância?”. Na tentativa de desenvolver e possibilitar uma resolução coerente, crítica e sensível a esse problema, nos pautamos no objetivo central de desenvolver os alcances da relação escola e família na abordagem sobre as percepções de gênero e infância. Nos desdobrando sobre os seguintes objetivos específicos: apreender e analisar os conhecimentos prévios e as percepções adotadas pelas crianças e famílias sobre gênero e infância; compreender os alcances da relação escola e família no desenvolvimento de práticas educativas no ambiente não escolar, de modo qualitativo; valorizar a intencionalidade docente na elaboração e ampliação do repertório de possibilidades educativas para o trabalho como o tema para além das paredes da escola, e desenvolver e possibilitar a reflexão crítica sobre ser menino, ser menina e ser criança na infância. Nessas pretensões, abordamos o contexto da Educação Infantil, em especial, da modalidade de creche, apoiando-se na relação escola e família em tempos de educação à distância. Entendendo o cenário como meio propício a obtenção dos objetivos estipulados, englobamos 23 famílias voluntárias, com filhos com idade de 2 a 3 anos, matriculados na rede pública de ensino de um município do interior paulista, sob a responsabilidade pedagógica da pesquisadora-professora, trazendo maior proximidade nessa relação, e garantindo ainda, mais oportunidades de promover e alcançar resultados efetivos. Para prosseguir, embasar e articular as características e ideais formativos dessa pesquisa, a estruturamos por seções, apresentando-se da seguinte maneira: Inicialmente seção temos uma breve contextualização histórica e cronológica sobre a conceituação e as vivências das crianças e suas infâncias, da Idade Média à Idade Contemporânea, compreendendo, também, elementos educacionais e políticos que fundamentam essa discussão. Seguindo pela próxima seção, apresentamos os processos históricos, culturais e sociais, da época colonial às nuances dos dias atuais em nosso país, fundamentando a empregabilidade, as definições e a caracterização da Educação Sexual, Sexualidade e Gênero em nossa sociedade. Na articulação desses dois cenários, seguimos tratando ambos os temas no contexto dos sujeitos envolvidos com a Educação Infantil, se estendendo na relação entre escola e 25 família, para além do ambiente de sala de aula. Englobando também, uma breve revisão bibliográfica acerca de artigos, teses e dissertações relacionados ao tema, possibilitando uma explanação sobre a localização e alcances nacionais do assunto. Detalhamos, em seguida, a base metodológica da pesquisa, com sua caracterização teórica e prática, seus instrumentos, seus cronogramas e descrições de contextos participantes. Prosseguindo pelo seu desdobramento em forma de intervenção, temos na sexta seção, o projeto aplicável às crianças e familiares responsáveis, de acordo com as reflexões da coleta de dados, observações docentes e com a perspectiva da educação à distância. Pensando na análise crítica dessa aplicação, a sétima seção é uma articulação da apresentação dos resultados e devolutivas, com a discussão e reflexão dessas. Dividindo-se em subseções temáticas, contamos com o desenrolar em três esferas, compreendendo as considerações à cerca das infâncias dos participantes, os interesses pessoais, e a significação da discussão sobre gênero. Adentramos por fim, nas considerações finais, abrangendo os entrelaçamentos do tema, suas dificuldades, possibilidades, desdobramentos e dimensões de discussão e reflexão no contexto educacional, acadêmico e humano. Finalizando, com as referências e materiais utilizados para subsidiar e possibilitar esta investigação. 26 2 SER CRIANÇA E TER INFÂNCIA: ENTRE O PASSADO E O PRESENTE Nesta seção apresentamos uma contextualização histórica, social e cultural sobre ser criança e ter infância em diferentes contextos temporais. Trataremos, assim, no primeiro subitem, sobre a articulação e empregabilidade dos dois conceitos nos enredos sociais e familiares, por meio de uma perspectiva historiográfica internacional, mais especificamente europeia, tendo em vista que os principais estudos e a base teórica dessas discussões se baseiam no livro do historiador Philippe Ariès, intitulado “História Social da Criança e da Família” (Ariès, 1973). As demais problematizações levantadas na sequência se baseiam na crítica e reflexão sobre essa obra, nos levando a uma trajetória cronológica sobre a criança e suas infâncias, da Idade Média ao fim da Idade Moderna, no século XVIII. Em um direcionamento mais específico, no segundo subitem, tratamos da contextualização da criança e de suas infâncias em uma perspectiva nacional, iniciada no período da colonização portuguesa no Brasil e traçando seus caminhos até as vivências da Idade Contemporânea das últimas décadas. 2.1 O desenvolvimento do “ser” criança no enredo da família e da sociedade europeia Entre o passado e o presente, muitos pensamentos e muitas terminologias se modificaram em um processo constante de ressignificação e adaptação às novas vivências, tornando a infância e a criança dois termos com empregabilidades, características e significados diversificados ao longo dos anos. Para compreender as (re)significações e importância dadas a esses termos em diferentes contextos, partimos do surgimento existencial desse sentimento sobre a infância e o existir da criança, em meados do século XII, tendo seu auge em XIII, por meio de diferentes realidades e contextos. Ariès (1973), historiador que se aprofundou nessa investigação sobre a criança e a infância, sendo um dos principais nomes no assunto, discorre: A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e 27 significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII. (Ariès, 1973, p. 65). Entendida por muito tempo em suas características de dependência, a infância era uma junção entre ser bebê, criança e adolescente (lembrando que estamos utilizando tais termos em suas significações e entendimentos como empregamos atualmente). Essa percepção agrupada da infância se propagava desde os trajes utilizados por elas até o campo artístico em que as mesmas eram representadas. Sem muitas distinções, esse momento da vida se passava de modo rápido e quase imperceptível e, consequentemente, as crianças tornavam-se adultos muito jovens, sem necessariamente terem vivido as suas infâncias e juventudes. Nessa medida, as percepções e os conceitos se entrelaçavam em um emaranhado de incertezas e discriminações, em que o sentimento de infância e suas afetividades eram inexistentes e o crescimento da criança para o mundo do trabalho era interiorizado como natural, precoce e essencial, já que a infância não possuía valor trabalhista para tais fins: “A passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade.” (Ariès, 1973, p. 10). Nessa infância “sem tempo”, nem mesmo tais justificativas trabalhistas encobriam a insignificância da criança no enredo social: “[...] é difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou a falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo.” (Ariès, 1973, p. 50). Esse anonimato se vinculava, também, às questões de calamidade sanitária e condições demográficas da época, que permaneceram sem muitas alterações entre o século XIII ao XVII. Durante esse período, a mortalidade infantil era comum e rotineira, representada pelos números de mortes e não pela sensibilidade que embasava essas perdas. Rotulada como um desperdício necessário, a criança passou por séculos em sua invisibilidade afetiva e sensível, que teve poucas alterações ao longo dos anos e contextos, mas que não supriam esse sentimento inicial, servindo apenas como uma camuflagem superficial. A paparicação da criança pequena é um fiel exemplo dessas modificações superficiais, caracterizada pela atenção dada à criança nessa fase, mas que passava rapidamente, em uma duração de tempo mínimo, pois, logo em seguida, ela era desvinculada da família para seus futuros aprendizados, como expõe Ariès (1973). Nessa trajetória de indiferenças e turbulências, as modificações eram sucintas, mas, aos poucos, ganhavam novos olhares para/com as crianças, principalmente no que se refere aos seus traços no campo das artes. O primeiro indício de sua aparição foi na representação 28 religiosa, com olhares mais harmônicos e leves, temos a figura de um jovem anjo que, posteriormente, tornou-se uma imagem mais frequente nos quadros. O segundo momento se deu com o menino Jesus e, novamente no campo divino, a imagem da criança trazia a relação com a maternidade e todo um significado religioso, assim como sentimental. O terceiro tipo se referia à criança nua, em uma fase gótica, ela era sagrada e entendida como uma personificação da entrada da alma no mundo. Segundo Ariès (1973): Salientemos aqui apenas o fato de que a criança se tornou uma das personagens mais frequentes dessas pinturas anedóticas: a criança com sua família; a criança com seus companheiros de jogos, muitas vezes adultos; a criança na multidão, mas ressaltada no colo de sua mãe ou segura pela mão, ou brincando, ou ainda urinando; a criança no meio do povo assistindo aos milagres ou aos martírios, ouvindo prédicas, acompanhando os ritos litúrgicos, as apresentações ou as circuncisões; a criança aprendiz de um ourives, de um pintor etc.; ou a criança na escola, um tema frequente e antigo, que remontava ao século XIV e que não mais deixaria de inspirar as cenas de gênero até o século XIX. (p. 55). Nesses três entendimentos que a criança adquiria no meio artístico, sua presença foi tomando mais espaços nas pinturas e, assim, retratando um surgimento, ainda que tímido, da criança em meio à sociedade. Todavia, esses não foram os únicos aparecimentos no meio artístico, temos, ainda na Idade Média, a representação da infância por meio do retrato e do putto. O primeiro, o retrato, referia-se a uma transição da representação da criança nas imagens de família. Antes vista como desnecessária, devido a sua possível e esperada morte precoce, passa, nesse momento, por uma ressignificação de sentimentos, e sua perda começa a ser sentida, mesmo que em retratos que remetiam à morte: “O aparecimento do retrato da criança morta no século XVI marcou, portanto, um momento muito importante na história dos sentimentos.” (Ariès, 1973, p. 58). Com essa exposição e adesão popular, que ocorreu lentamente, a criança, mesmo sendo alvo da mortalidade infantil, ganhava, aos poucos, novas posições e sentimentos no seio familiar e social. Essa importância, mesmo sendo em maior parte influência da religiosidade, possibilitava à criança um novo sentido, pois, o que antes era esperado e 29 insignificante, passa, nessa transição, a adquirir um espaço e uma postura de sujeito consciente e com uma alma mortal. O segundo, a representação como putto, surgiu no fim do século XVI e remetia-se à imagem divina da criança, principalmente das bem pequenas, em um contexto nudista. Com grande aceitação populacional, o putto era, muitas vezes, representado pelo menino Jesus, ou outras crianças sagradas, entretanto, não se resumia somente a tais referências: “O gosto pelo putto correspondia a algo mais profundo do que o gosto pela nudez clássica, a algo que deve ser relacionado com um amplo movimento de interesse em favor da infância.” (Ariès, 1973, p.62). Nessas aparições, cada vez mais frequentes em obras individuais e/ou retratos de famílias, a criança, aos poucos, foi se tornando o centro das composições familiares e de importância social, marcando um momento fundamental na história da criança e na descoberta das características da primeira infância. Percorrendo outros contextos, as mudanças também se propagaram no vestuário infantil da época. Anteriormente, as vestimentas das crianças eram apenas projeções em miniaturas dos trajes dos adultos, passando por uma reformulação somente a partir do século XVII e se prologando até o final do XVIII. Aquelas que quando pequenas utilizavam apenas cueiros vão, aos poucos, adentrando as roupas que não se remetiam apenas aos adultos, mas, sim, a trajes mais apropriados para suas idades. Todavia, existiam distinções entre meninos e meninas, em que os primeiros possuíam mais adesão a essa renovação, enquanto elas tiveram uma entrada tardia. Eles, por exemplo, vestiam-se com roupas como saia, vestido e avental, enquanto elas reproduziam uma vestimenta mais adulta. Essa distinção também se estendia aos contextos familiares e escolares, em que não havia diferenciação entre as meninas e as mulheres, mas, somente entre meninos e homens. Essa separação evidente e padronizada da época evidencia o atraso feminino na adoção da visibilidade infantil, persistindo por mais tempo ao modo tradicional de enxergar as crianças como miniaturas de adultos, segundo Ariès. (1973). Outra característica das vestimentas foi a adesão a um adereço singular nas roupas: a utilização de duas fitas largas presas ao vestido dos dois ombros, pendentes nas costas. Esse aspecto, mais tarde, acabou por se tornar um signo importante da infância. Todavia, mesmo com esses detalhes, que caracterizavam uma singela distinção entre o mundo adulto e infantil masculino, ainda se tinha a variável socioeconômica. Melhor dizendo, nem todos os aspectos citados eram empregados a todos os níveis sociais, e a classe popular menos favorecida persistia sem condições a se igualarem as vestimentas da 30 burguesia. Consequentemente, conservavam os costumes tradicionais não só nas roupas, mas, também, no tratamento com as crianças, quer seja pelo trabalho, pelos jogos ou brincadeiras, como destaca Ariès (1973): Concluiremos que a particularização da infância durante muito tempo se restringiu aos meninos. O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As crianças do povo, os filhos dos camponeses e dos artesãos, as crianças que brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos: jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas. Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos, nem através do traje, nem através do trabalho, nem através dos jogos e brincadeiras. (p. 81). Considerando o divertimento das crianças nessa época, temos a continuidade propagada da figura infantil como uma miniatura do adulto, ou seja, a partir de uma certa idade, normalmente por volta dos três ou quatro anos, ela já era considerada apta aos jogos e brincadeiras dos adultos, assim como ao aprendizado das letras e artes. Entretanto, antes de atingir essa idade, as crianças pequenas faziam uso de brinquedos e brincadeiras diversificadas, sem distinções de gênero e que muito se assemelhavam a ações/trabalhos da vida adulta, como o cavalo de pau, o cata-vento, as bonecas etc. Entretanto, isso logo se modificava e elas já passavam a serem vistas como pertencentes ao mundo adulto, como descreve Crociari (2020): As crianças eram precocemente incorporadas às aulas de músicas, canto, danças, as quais favoreciam para que dentre três e quatro anos estas já começavam a ler e a escrever. Aos sete anos abandonavam os trajes da infância, os brinquedos, participavam de jogos de azar e passavam a ser entregues aos cuidados dos homens, adentrando oficialmente na vida adulta. Esta idade foi marcada e fixada, no século XVII, como a idade em que a criança inicia sua trajetória escolar e é introduzida no âmbito trabalhista. (p. 25) Com essa introdução precoce ao mundo adulto, temos a coexistência de duas moralidades: de um lado, em maior número, temos a oferta aberta, sem discriminação, de tais costumes (jogos, brincadeiras e divertimentos) a todas as idades; enquanto, do outro, temos 31 uma minoria culta da elite que denunciava tais ações, justificando como imoral aos olhos infantis e, assim, sujeita à condenação sem exceção. Somente nos séculos XVII e XVIII é que temos uma afirmação de um compromisso com a integridade infantil, esse que ao classificar e distinguir os jogos bons e maus para as crianças demonstrava, também, um novo sentimento para com essas: o de preocupação e de zelo a sua moralidade. Novamente, temos uma reformulação hierárquica no contexto infantil, em que tais mudanças iniciaram-se nas classes dominantes, por meio do abandono de determinados jogos e brincadeiras considerados inapropriados. Entretanto, a existência desses teve continuidade na classe popular, sendo fonte de divertimento e uma evidência de que as relações do sentimento de infância são indissociáveis do sentimento de classe. Outro aspecto a ser observado nessa reestruturação da infância são as características ligadas à sexualidade da criança. Os assuntos sexuais sempre foram tratados no meio social. Porém, ao longo da história, suas restrições e deliberações sofreram mudanças que se perpetuam até os dias atuais, em um contraste entre o despudor, a moralidade e a inocência da infância. Durante muito tempo, a sexualidade foi tratada no senso comum entre adultos e crianças sem muitas limitações e, frequentemente, ressaltada nessas relações, tanto por diálogos e vocabulário, como por gestos e insinuações. Esse cenário se materializou em muitas sociedades, em tons de comédia e naturalidade que serviam aos prazeres dos adultos, em diferentes classes sociais. Essa ausência de reserva diante das crianças, esse hábito de associá-las a brincadeiras que giravam em torno de temas sexuais para nós é surpreendente: é fácil imaginar o que diria um psicanalista moderno sobre essa liberdade de linguagem, e mais ainda, essa audácia de gestos e esses contatos físicos. Esse psicanalista, porém, estaria errado. A atitude diante da sexualidade, e sem dúvida a própria sexualidade, variam de acordo com o meio, e, por conseguinte, segundo as épocas e as mentalidades. (Ariès, 1973, p. 129). A partir do século XVI, algumas adesões de posturas, pensamentos e ações modificaram esse contexto e as crianças passam, assim, a ressignificações que as refletem, para além do divertimento e prazer dos adultos. No final do século temos, oficialmente, uma 32 data para a imposição do respeito à criança e sua moralidade, instaurando, a noção essencial da inocência infantil. Nesse sentimento, caracterizado por seu dualismo, temos a existência da criança em sua infância, mas, também, a disciplina e controle em relação a mesma, como enfatiza Ariès (1973): O sentido da inocência infantil resultou, portanto, numa dupla atitude moral com relação a infância: preservá-la da sujeira da vida, e especialmente da sexualidade tolerada – quando não aprovada – entre adultos; e fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão. (p. 146). Dentre tantas evoluções e contextualizações da(s) infância(s) e das diversas faces da criança na história mundial, temos, a seguir, um breve quadro com características básicas tratadas por Ariès (1973), percorrendo o desenvolvimento do sentimento em relação ao contexto infantil ao longo dos séculos: Quadro 1 – Contextualização da criança e da infância ao longo dos séculos Século Características empregadas referentes à criança e à infância Até o séc. XIII Indiferença ao sentimento de infância, a criança é tratada como banal e dispensável, e a sua morte não carrega o sentimentalismo da perda ou qualquer luto familiar. Séc. XIII Primeiras aparições, tímidas ainda, da criança no enredo social e familiar, retratada como um ser celestial em figura de anjo, mas em uma fisionomia jovem. Séc. XIV No cenário artístico, a criança como anjo jovem ganha mais visibilidade, assim como a representação das crianças pequenas por meio da nudez e materializada pela imagem divina do menino Jesus. Entre essas adesões artísticas, temos, ainda, o florescimento da presença infantil em lendas e contos. Séc. XV Estendendo suas projeções no campo artístico, a criança ganha mais duas representações em obras: o retrato e o putto. Séc. XVI No aparecimento do retrato da criança morta, como uma efígie funerária, temos, também, a representação da criança mais ligada à família, e em suas 33 obras aparece, muitas vezes, em conjunto com os pais. Inicia-se a adesão ao sentimento e respeito à infância das crianças, pelos meios religiosos, escolares e domésticos. Séc. XVII As efígies funerárias de crianças passam a ser isoladas, sem a necessidade dos pais como enredo para o cenário. Elas passam, assim, a ter um aumento no número de retratos, sendo marcadas sozinhas ou como centro da composição familiar, caracterizando uma evolução dos temas da primeira infância. Além disso, temos uma sutil mudança em outros enredos, como o vestuário infantil: o que antes se assemelhava às vestimentas dos adultos, passa a ter características reservadas à própria idade. Tais transformações também se estendem às posturas e aos pensamentos sobre a classificação e distinção entre as fontes de divertimentos apropriadas com/às crianças. Séc. XVIII Marcado pelo término de muitas transformações, foi no século XVIII que tivemos uma oficialização do compromisso com a integridade infantil, e o surgimento de um novo sentimento em relação às crianças: o de preocupação e de zelo a sua moralidade. Fonte: A autora (2020). 2.2 Da colonização às vivências atuais: a criança presente no Brasil Dentre as pluralidades e compreensões que embasam a historiografia da criança e de suas infâncias em enredo mundial, nos desdobramos, nesta subseção, sobre o contexto da história brasileira, que muito se assemelha às contextualizações citadas, mas não se resumem a elas. Nesse sentido, abordamos o período que se inicia durante a colonização portuguesa e que se estende aos entendimentos modernos do período republicano. Em uma breve caracterização das vivências infantis, das posturas adultas empregadas e dos marcos legais que contextualizam esse enredo, trilhamos a sistematização desses tempos, baseando-se em defesas como do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), do documento do Centro de Estudos e Debates Estratégicos, da Câmara dos Deputados, intitulado “Avanços do marco legal da primeira infância” (2016), e ainda, nos estudos de Melo (2020), Azevedo e Sarat (2015). 34 Quadro 2 – A criança e a infância em diferentes períodos da história brasileira Períodos Características empregadas referentes à criança e à infância Período Colonial (1530 – 1822) Foi durante o período de colonização que temos a introdução da escolarização nas vidas das crianças, por meio da catequese. As instituições, lideradas pelos jesuítas, abordavam atividades de escrita, leitura, matemática, canto e música, como meios de converter, civilizar e desenvolver novas aprendizagens nas crianças e, assim, discipliná-las e controlá-las. Período Imperial (1822 – 1889) Com a vinda da corte imperial ao Brasil, as infâncias e as crianças, ainda entendidas como parte integrante da sociedade por serem mais propícias à disseminação dos ideais dominantes passam, também, mais fortemente, pelas características de segregação presente entre classes, etnias e gênero. Período Republicano (1889 – atual) Maior ascensão nas discussões e decisões tomadas, principalmente no que diz respeito às leis, aos direitos e às responsabilidades para e com as crianças, as tornando de importância para o Estado, para as famílias e a sociedade. Fonte: A autora (2020). Marcada fortemente pela religião e ideologia missionária, a história do período colonial do Brasil é caracterizada, principalmente, pela presença dos jesuítas e de suas concepções culturais europeias. Para eles, a criança se remetia a uma fase e imagem de santificação, pertencente a um contexto divino, de inocência e religiosidade (aspectos empregados e expostos no tópico anterior, na Idade Média) e, assim, deveria ser disciplinada e preservada até a idade da puberdade. Surgia, desse modo, a catequese, como dedicação e controle da infância, principalmente a indígena, segundo Melo (2020). Todavia, se no período colonial as crianças eram vistas sob esses olhares religiosos, anteriormente a esse momento os pensamentos não eram exatamente os mesmos. Durante as navegações, que traziam além dos colonizadores também crianças, essas eram submetidas a condições adversas de sobrevivência, com abusos sexuais e morais, escravizadas e violentadas frequentemente. Se a história das primeiras crianças que chegaram ao Brasil no século XVI foi marcada pelo abandono moral e por constantes abusos, durante o período da 35 colonização tivemos uma realidade um tanto diferente, com novos personagens históricos, agora não pajens ou grumetes, mas as crianças autóctones e os missionários jesuítas que, sob a ideologia missionária, evangelizadora, educacional e assistencialista dedicava-se à infância indígena. (Melo, 2020) Nesse contraste de tratamento e posicionamento diante da infância, o período colonial foi marcado por um intenso processo civilizador e, por assim dizer, de escolarização. A catequese, como estratégia de controle e disciplina, principalmente dos povos indígenas, mas atingindo a todos os outros, como os filhos dos portugueses e mestiços é um exemplo. No entanto, o processo de civilização dos nativos, principalmente durante a infância, não aconteceu passivamente, houve resistências, conflitos e muitas tensões decorrentes das tentativas de implantação das crenças, das leis, das novas formas de organização social. No entanto, a sólida organização social dos nativos dificultou o processo de colonização e a educação foi utilizada como parte do conjunto de estratégias. (Azevedo e Sarat, 2015, p. 23). Embasadas por ideais religiosos, as infâncias se remetiam a uma caracterização do sagrado e, consequentemente, estavam sujeitas à preocupação de preservá-las, entretanto, não estavam livres das circunstâncias adversas da vida. Expostas às discriminações de classes, etnias e gênero, as crianças sofreram com o descaso, o abandono e a mortalidade, nesse período e em muitos outros momentos da nossa história. Azevedo e Sarat (2015) discorrem sobre essas tensões, argumentando que as mesmas não ocorreram de forma linear, tampouco, pacífica. Todavia, esse processo civilizador e educativo foi fortemente implementado no seio social e familiar, estendendo-se do período colonial até às transformações e reorganizações de concepção e postura diante das infâncias no século XIX. Nessa relação entre a educação e a infância que fomenta a história da criança em nosso país, as mudanças, as lutas e as reivindicações históricas alimentam essa discussão, assim como o contexto da educação escolar. Nesse enredo, o Brasil, em meados do século XIX e início do XX, apresentava uma estrutura educacional com evidente distinção social entre as crianças, em que o valor econômico empregado à família subsidiava o caráter educativo da instituição a qual a criança se vinculava, como expõe Azevedo e Sarat (2015): 36 O Brasil do século XIX e início do XX apresenta dois tipos de atendimento diferenciados, porém, não dicotômicos: um de caráter mais assistencial para classes populares e outro mais pedagógico para as classes abastadas. O modelo do "jardim- de-infância" era para atender crianças privilegiadas e os "asilos" ou "creches" para as crianças pobres. (p.28). Essa distinção foi um reflexo da superioridade das elites na época, apoiada pelos moldes da corte portuguesa recém-chegada ao Brasil, no período Imperial, com seus costumes e sua estrutura de classes. As divisões discriminatórias entre a elite e os escravos, as meninas e os meninos, o pobre e o rico, eram aspectos estruturais do funcionamento social, materializado no acesso à qualidade da educação, no direcionamento pedagógico ou doméstico da mesma, assim como de recursos e utilização da formação escolar na vida adulta. A educação formal passa, no final do século XIX e durante muito tempo após, em diversos movimentos, pela sua institucionalização e acesso a todas as camadas. Entendida como responsabilidade do Estado, ela ganha uma nova reformulação, no que diz respeito às reivindicações, ganhando adesão e expansão de disponibilidade a mais crianças. Neste sentido, podemos apontar que o processo de institucionalização da infância foi sendo permeado por relações sociais de interdependência envolvendo adultos e crianças em diferentes momentos históricos. Contextos históricos que se caracterizam de maneira não planejada ao longo de processos sociais, especialmente se considerarmos as descontinuidades e as tensões dos diversos processos e modos de organização social. E, finalmente, podemos afirmar que tal processo ainda está em curso e conta com a contribuição do Estado, a partir da monopolização do ensino e da educação formal da infância, realizada em experiências de criação das escolas, das creches e instituições que atendem crianças pequenas. (Azevedo e Sarat, 2015, p. 30). Nesse enredo de mudanças, no que diz respeito às concepções de crianças e suas infâncias, temos também os acontecimentos históricos no Brasil, como o declínio do império e a institucionalização da Primeira República, em 1889, como salienta Melo (2020). Com o golpe militar que ocasionou essa nova tomada de poder em nosso país, tivemos um período 37 caracterizado pela superioridade das elites, o autoritarismo militar e a insatisfação populacional, por cerca de 41 anos. Adentrando nesse contexto, temos no documento elaborado pelo Centro de Estudos e Debates Estratégicos, da Câmara dos Deputados, intitulado “Avanços do marco legal da primeira infância” (2016), em sua subseção, denominada “Traços do panorama brasileiro nos séculos XIX e XX sobre as crianças e os direitos” (p.63), uma breve explanação sobre o assunto. De acordo com o documento, com a entrada em 1930, no Governo Vargas, seguindo pela Quarta República, em 1945, e mais tarde na Ditadura Militar, o Brasil passa por diferentes fases do período Republicano, percorrendo, desde 1889 com a Proclamação da República até os nossos dias atuais, com um governo federativo presidencialista. Nesses momentos citados, as contextualizações da criança no enredo estrutural da sociedade foram tomando direcionamentos em prol do funcionamento do controle e poder vigente, modificando-se em diferentes aspectos, como no caso dos abandonos infantis. O abandono infantil era uma ação corriqueira e antiga, ocasionada por diferentes fatores. Segundo Melo (2020), alguns movimentos e instalações tentavam suprir essa demanda, entretanto, foi somente em 1960 que temos mudanças mais amplas e significativas, por meio de apoios institucionais. Sob responsabilidade do Estado, essas crianças, julgadas como marginalizadas e vândalas nas/das ruas, eram encaminhadas para a Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM). Essas instituições de apoio colaboraram com a diminuição desse problema, mas não o resolveram em si e, ainda hoje, em 2020, temos cerca de 31.000 crianças em instituições de acolhimento e adoção no Brasil, segundo os dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Todavia temos, nessa preocupação com a infância, outros marcos importantes ao longo da história nacional, como a Constituição Cidadã de 1988, pautada nos Direitos Internacionais da Criança e, ainda, a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, de acordo com a linha do tempo traçada pela UNICEF. De acordo com essa trajetória, o ECA discorre, em seus 90 artigos, sobre diferentes áreas essenciais da vida da criança e do adolescente que carecem de proteção, atenção, cuidados e significância, não só do Estado, mas das famílias e da sociedade. Entendida como pessoa até doze anos de idade incompletos, a criança é retratada nesse documento em seus direitos fundamentais, como a garantia à vida; às medidas de proteção e prevenção; às políticas de atendimento e assistencialismo; ao acesso à justiça, educação, saúde e segurança; assim como do respeito e da dignidade para com elas. 38 Em meios aos novos olhares de preocupação com a infância, a mesma ganhava maior proporção nas discussões e decisões tomadas em níveis macro e micro sociais. Nesse percurso, não só a vigência do ECA trouxe contribuições para a área, mas outros momentos marcantes foram responsáveis pela trajetória do tema. Listamos, a seguir, de forma sucinta e objetiva, uma linha do tempo, considerando o século XX e XXI, sobre os principais acontecimentos que marcam as concepções, significações e empregabilidades da criança e das infâncias no enredo da nossa sociedade, apoiando-nos no texto intitulado “História dos direitos das crianças”, divulgado pelo Unicef (2020): - 1927: Consolidação da lei de Assistência e Proteção aos Menores, por meio do Decreto nº 17.943-A, determinando a maioridade penal aos 18 anos de idade. - 1979: Atualização da lei de Assistência e Proteção aos Menores, referindo-se especificamente às crianças e aos jovens em situação irregular, ou seja, autores de crimes ou em situação de vulnerabilidade social. - 1988: Inclusão do artigo 277 na Constituição Federativa, determinando os direitos das crianças. - 1990: Aprovação do ECA e sua entrada em vigor. Ratificação, em território brasileiro, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. - 1992: Primeira Reunião de Cúpula de Governadores pela Criança, organizada pela Unicef e parceiros, assinando o Pacto pela Infância. - 2001: O governo federal toma a responsabilidade pelo Disque 100, criado em 1997 por organizações não-governamentais, com o intuito de ser um canal de denúncia sobre violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. - 2004: Ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a Venda de Crianças, a Prostituição Infantil e a Pornografia Infantil e do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados. - 2009: Criação do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes desaparecidos. - 2015: Eleições Unificadas para Conselho Tutelar em todo o Brasil, assegurada pela lei federal nº 12.696/2012. - 2018: Implantação do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, criado a partir da lei nº 13.431/2017, assegurando a adoção de mecanismos de escuta especializada para vítimas, menores de idade, que sofreram ou testemunharam algum tipo de violência. https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca#protocolo_venda https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca#protocolo_venda https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca#protocolo_conflitos https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca#protocolo_conflitos 39 - 2019: Diminuição do poder de ação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONADA, por meio do decreto nº 10.003/2019. Nessa sistematização de acontecimentos e deliberações, notamos o ganho significativo de espaço e importância que a criança e a infância vêm adquirindo do século XX às nossas vivências atuais, passando por movimentos, iniciativas e novas contextualizações nos meios familiares, escolares, culturais e sociais. Entretanto, essa ascensão nas discussões não se remete prioritariamente a uma conotação positiva, e a criança é, até hoje, alvo das incertezas, do descaso e das escolhas dos adultos. Tomamos como evidência o último dado citado na listagem acima, divulgado no Diário Oficial da União, em setembro de 2019, sob o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, tivemos a diminuição de 56 para 36 representantes participantes do CONADA, alterando, também, suas regras de seleção de membros. Esse e outros momentos das vivências atuais fomentam uma controvérsia que perpassa o nosso sistema governamental, sobre o qual iremos nos aprofundar na próxima seção. 40 3 EDUCAÇÃO SEXUAL, SEXUALIDADE E GÊNERO: AS NUANCES QUE EMBASAM ESSA DISCUSSÃO AO LONGO DA HISTÓRIA Nesta terceira seção traçamos um panorama, em nível nacional e internacional, sobre as conceituações e vivências da Educação Sexual, da Sexualidade e de Gênero, por meio de uma cronologia histórica e cultural. Para tanto, estruturamos esta seção por meio de uma divisão em dois tópicos, em que cada um trata dos seguintes aspectos: (1) O primeiro tópico traz um olhar mais refinado sobre o contexto brasileiro de institucionalização dos saberes sexuais, por meio de um embasamento teórico que engloba as perspectivas culturais, sociais e históricas, além de vivências, experiências e políticas públicas ao longo dos anos sobre tais conceitos, nos levantando até o início do cenário atual. (2) No segundo tópico temos a retratação das questões de gênero em nossa história, trazendo os autores que fomentaram sua discussão, como o movimento feminista do século XIX e o desenrolar das lutas e reivindicações, além das características apoiadas atualmente por um sistema governamental que defende as concepções machistas e patriarcais das questões sexuais e de gênero. Voltando nossos olhares ao passado, compreendemos o presente, por meio de suas nuances de pensamentos, posturas e histórias. Assim, nos desdobramos além dos assuntos mencionados, nos problemas que rotulam e difamam essa discussão. 3.1 As realidades brasileiras: a institucionalização dos saberes sexuais e seus reflexos nas vivências atuais As compreensões sobre os saberes sexuais e a institucionalização desses por meio da Educação Sexual perpassam os contextos sociais e culturais e se estendem às concepções religiosas, morais e emocionais, no individual e coletivo. A história brasileira teve suas controvérsias iniciais sobre a sexualidade humana e sua institucionalização no período colonial, com fundamentação compartilhada aos momentos da historiografia mundial, passando por transformações e caminhos turbulentos, que ainda hoje fomentam discussões. Apoiando-nos em uma revisão literária para a melhor compreensão do desenvolvimento do assunto, nos debruçamos sobre seis momentos históricos brasileiros, 41 definidos nos estudos referenciais de Bueno e Ribeiro (2018). Tais períodos foram marcados, não só por suas datas, mas, também, por suas características culturais dominantes e suas consequências nas diferentes mentalidades atuais, abordagens que iremos tratar de modo sintetizado e ressaltando as relevâncias para a contextualização desta investigação. O primeiro momento, que abrange o período colonial, no ano de 1500, ressalta narrativas variadas, apoiando-se, principalmente, na religiosidade católica. Como já havíamos discutido na seção anterior, esse momento traz consigo os olhares estereotipados de julgamento e inferioridade da cultura indígena, em relação ao estilo de vida e pensamento europeu. (Bueno e Ribeiro, 2013, p.156). Nesse embate temos, de um lado, os povos portugueses, colonizadores religiosos que trouxeram em suas navegações mais do que somente os ideais da Igreja Católica, mas, também, a imposição forçada, repressiva e intimidadora dessa. Fundamentados na consciência de culpa, pecado e repressão, os colonizadores portugueses defendiam a extremidade religiosa do tratamento do sexo, da sexualidade e dos saberes ligados a essa, rotulando de modo patriarcal e autoritário as ações e pensamentos sexuais, julgando como inadequados e, assim, motivos de conversão, toda e qualquer ação e ideais que rompiam com o conservadorismo da época. Do outro lado, temos os povos indígenas, habitantes das terras brasileiras. Possuidores de um estilo de vida já existente e próprio, esses povos possuíam suas estruturações de vida muito antes de qualquer imposição portuguesa, englobando modos de agir, comportamentos, sexualidades, pensamentos, regras e valores, voltados à liberdade e ao prazer humano, sem filiação ou devoção aos ideais católicos de culpa e vergonha, como destacam Bedin, Muzzeti e Ribeiro (2012). Todavia, tais condições foram julgadas e aproveitadas pelos colonizadores como modos de submissão, controle e liberação dos seus desejos sexuais reprimidos por seus próprios princípios religiosos, posturas evidenciadas pelos autores, como apontam Ribeiro e Bedin (2013): “A cultura sexual indígena, livre da culpa cristã e permitindo a liberação da energia sexual do branco, pode ser considerada a primeira condição para o favorecimento das práticas sexuais na Colônia.” (p. 158). Nesse enredo, o período do Brasil Colônia teve sua principal documentação de fatos pela carta de Pero Vaz de Caminha, contextualizando a primeira forma de Educação Sexual em nosso país. Na mesma estão descritos e registrados os costumes sexuais dos índios, presentes e observados pelos colonizadores, assim como as relações estabelecidas entre ambos. 42 Tendo em vista esse cenário, a progressão para o segundo momento da Educação Sexual no Brasil se deu com a vinda da família real portuguesa às terras brasileiras, caracterizando mudanças que originaram a moral médica como principal aspecto daquele momento. Ainda no século XIX, a medicina ganhou espaço nas discussões sobre sexualidade e Educação Sexual, a partir do ângulo patológico da temática, melhor dizendo, lidando com definições, causas, identificações, classificações e tratamentos. Tomando a dianteira da sexualidade em seus contextos de saúde, foi criada a Sexologia, que investigava as práticas sexuais e suas consequências. (Bedin et al., 2012). É nessa dominação pelo campo da saúde que a sexualidade ganha, aos poucos, alguns espaços de discussão, mesmo que negativamente, como pregavam muitos discursos médicos discriminando e negando determinadas práticas que não seguiam as normas já estabelecidas. Entretanto, essa adesão inicial aos debates e estudos foi essencial para a sua evolução ao longo dos anos, sendo esse o caminho de entrada para o terceiro momento da Educação Sexual, a institucionalização da sexualidade. Ribeiro (2004) descreve esse momento como: A institucionalização do conhecimento sexual ocorre quando médicos, psicólogos educadores, antropólogos, cientistas sociais elaboram, desenvolvem ou se apropriam de teorias e ideais que foram consideradas “científicas” e capazes de dar sustentação àquelas instituições que necessitavam de um discurso “oficial” para atingirem seus objetivos de fazer ciência, propor ações educacionais ou práticas pedagógicas, justificar ideologias, exercer o poder. (p. 28). O processo de institucionalização dos saberes sexuais no Brasil ocorreu lentamente, pelos passos iniciais da medicina e foi se disseminando por meio de novos estudos e publicações de livros e artigos na área, como argumentam Bueno e Ribeiro (2018). Todavia, as diferentes abordagens da sexualidade humana se estenderam para além dos limites territoriais brasileiros e muitas contribuições se fizeram em nível internacional. Os novos discursos se propagaram e, consequentemente, geraram incômodos e diferentes interpretações, sobre os quais Bueno e Ribeiro (2018) discorrem sobre. Para alguns estudiosos, os trabalhos de Educação Sexual tinham a finalidade biológica de aprendizado, ou seja, disseminar a postura higienista, a partir do ensino de fisiologia sexual nos moldes europeus, focando-se, assim, nas escolas. Para outros, havia uma 43 preocupação com a saúde das mulheres e o conhecimento sobre as mesmas, como modos de proteção e cuidado. No entanto, a primeira tentativa formal de inserção da Educação Sexual no currículo escolar ocorreu apenas em 1930, em um colégio no Rio de Janeiro, não tendo nenhuma efetivação ou adesão. Esse fato se torna contraditório ao ser comparado com a grande disseminação que os discursos sexuais estavam ganhando em território brasileiro, como exposto anteriormente, porém, também evidencia a ambivalência da época, em que a sexualidade estava ávida nos diálogos, mas não de modo totalmente positivo, demonstrando a influência religiosa que nunca se desfez nesse contexto. (Bueno e Ribeiro, 2018). Felizmente, essa forte ameaça religiosa não foi o bastante para silenciar as vozes que acreditavam na importância e essencialidade de se levar a Educação Sexual ao espaço público e aberto de debates, aprendizados e geração de novos conhecimentos. Marcando assim, os anos entre 1930 a 1950 como de amadurecimento do conhecimento sexual e consolidação de sua institucionalização, além de um embasamento para a fase a seguir, como coloca Bedin et al. (2012): “As obras do período compreendido entre as décadas de 1930-50 com certeza influenciaram educadores e médicos que se formavam, que por sua vez formariam novos professores e novos médicos...” (p.14). Entrando nesse novo período da história, temos o quarto momento da trajetória da Educação Sexual no Brasil que, de acordo com Ribeiro (2018), abrange as nuances da década de 60: “Durante a década de 1960 ocorre a implementação de programas de Educação Sexual em algumas escolas do país, o que só pôde ser possível devido às transformações culturais, políticas e sociais da época” [...]. (Bueno e Ribeiro, 2018, p. 51). Esse novo momento pode ser caracterizado por suas turbulências contextuais, não só no que diz respeito à Educação Sexual, mas, ainda, a todo o cenário que se encontrava nosso país. Melhor dizendo, com o início da nova década, o que se via eram possibilidades de caminhos para a Educação Sexual, por mais que alguns tivessem um alto nível de dificuldade, abrangendo a disseminação de propostas e implementações, tentativas de aplicação em colégios etc. No entanto, a relatividade se instalava mais uma vez nesse enredo e os anos 60 passam pela ambivalência do progresso em diferentes assuntos e suas padronizações tradicionais. A realidade da década se instaurava aos poucos nos bastidores da nossa política e todos os avanços pareciam camuflar o que viria a seguir. As forças armadas logo se infiltraram no sistema governamental e, aos poucos, tomaram uma proporção que ocasionou 44 um grande retrocesso histórico, o Golpe de Estado em 1964, sobre o qual Martin e Guibu (2012), mencionados por (Bedin et al., 2012), evidenciam em sua obra: [...] com o Golpe de Estado de 1964, há o recrudescimento da censura, a moral e os bons costumes passam a fazer parte da ordem do dia, liberdades sexuais são associadas ao comunismo e, como analisam Barroso; Bruschini (192, p.23), “houve um retrocesso em matéria de educação sexual que acompanhou a onda de puritanismo que invadiu o país.”. (p. 16). Bueno e Ribeiro (2018) também nos lembram como a desarmonia entre o contexto cultural e político, anterior ao Golpe de Estado, trazia um clima de que a aceitação não seria a única postura do povo brasileiro frente à nova “ordem” que se formava: De acordo com Pinheiro (1997), o início da década de 1960 foi marcado pela instabilidade política e forte presença das forças armadas nas decisões do governo. No entanto, às vésperas do Golpe de Estado de 1964, havia ainda um clima de liberdade de imprensa e forte representatividade do movimento estudantil e outros movimentos sociais. No campo da cultura a juventude brasileira era influenciada pelo fenômeno do rock’n’roll, movimento de intenso conteúdo crítico. No campo dos movimentos sociais grupos internacionais de feministas e jovens contestavam os padrões sociais vigentes, contribuindo para a liberação sexual no país. (p. 51). O Golpe de Estado, ou também Regime Militar foi um processo e, não apenas um acontecimento, que teve repercussões variadas e temporais. Prolongando-se por anos, a nova ordem pregava a censura e a associação pejorativa e negativa dos assuntos sexuais nas discussões, ocasionando o monitoramento social constante e a repressão da população, em especial, do contexto educacional, em que muitos professores e educadores foram demitidos e/ou perseguidos. Entretanto, mesmo que timidamente, no mesmo período houve poucos, mas profícuos atos em prol da Educação Sexual, configurando um cenário de embates, propício para o período pós-Golpe. A partir de 1978 temos uma mudança real nesse enredo, abrangendo períodos importantes na história da Educação Sexual, como a segunda fase da institucionalização do conhecimento sexual no Brasil, em 1980, além da caracterização do quinto momento da Educação Sexual, conforme seguem os estudos de Bueno e Ribeiro (2018). 45 Os rumos da nossa constituição parecem, novamente, ter uma esperança e o debate público sobre a Educação Sexual reaparece em diferentes meios e espaços, como no I Congresso sobre Educação Sexual nas Escolas, que, consequentemente, desencadeia vários outros. A entrada na década de 90 deu um grande embasamento e fortalecimento para as decisões que viriam no sexto momento da Educação Sexual no Brasil, esse marcado pelos acontecimentos de 1996, mais especificamente pela aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), segundo Bueno e Ribeiro (2018). Com a nova LDB, caracterizada por sua relevância nacional e complexidade de abordagens, temos de modos implícitos citações no texto que fazem referência a essa discussão. Consequentemente, a leitura do documento carece de compreensão e criticidade para/com o tema, sendo o mesmo exposto em artigos que se remetem a tolerância, ao desenvolvimento pleno e solidariedade humana, como meios de tratamento do assunto, por exemplo. Já nos PCNs, que se constituem como um referencial de qualidade para a educação brasileira, em especial para o Ensino Fundamental I e II (do 1º ao 9º ano), temos uma abordagem mais direta e objetiva, por meio da estruturação do documento. Sendo dividido por temas, temos a sexualidade tratada sob a titulação de Orientação Sexual, por meio da vertente dos temas transversais, ou seja, que perpassam todos os campos do conhecimento. O tema da Orientação Sexual contempla à três eixos centrais, sendo discutido sobre sexualidade, gravidez na adolescência, gênero e DST (termo utilizado na época, para se referir à Doenças Sexualmente Transmissíveis, sendo atualmente entendido como IST – Infecções Sexualmente Transmissíveis). Outros documentos semelhantes aos PCNs também foram elaborados alguns anos após, com o direcionamento as outras etapas da Educação Básica e englobando em alguns aspectos essa discussão. Em 1998, por exemplo, temos o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), em três volumes, sendo o segundo com uma abordagem sobre a formação pessoal e social do educando, com questões relacionadas às identidades, valorização da diversidade, conhecimento sobre si, seu corpo e sua sexualidade (BRASIL, 1988). Diante de tais documentos, da formalidade e oficialidade à eles empregada, formaram-se um grande marco na educação básica nacional, em especial, no espaço da Educação Sexual no currículo escolar. 46 De acordo com Figueiró (1998), à oficialização dos PCN soma-se o forte impulso que os meios de comunicação, especialmente a TV, deram à questão da Educação Sexual na escola na década de 1990, com a apresentação de depoimentos de estudantes cujo interesse pelo tema era representativo da grande maioria dos educandos. (Bueno e Ribeiro, 2018, p. 55). Seguindo essa abertura nas discussões e iniciativas públicas sobre as questões sexuais, principalmente nos espaços escolares, temos em 2004, a criação do Programa Brasil sem Homofobia (PBSH), com o objetivo principal de orientar as escolas na implementação de ações e medidas que promovessem o respeito e cidadania, e abordassem medidas contra a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, trabalhando com os alunos e professores (Vianna, 2015). Segundo Vianna (2015), em 2006, temos a criação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), desenvolvendo ações de inclusão, interação e discussão sobre temáticas relativas a gênero, raça, etnia, religião, deficiências, etc. Tais iniciativas marcaram um período de progresso em nossa constituição, mas, por outro lado, nostálgico. Temos a oficialização e introdução dos saberes sexuais nos assuntos públicos de discussão, mesmo que de forma tímida, ganhando importância em seus debates e implementações, mas, também, sendo alvo de inúmeras controvérsias. Esse cenário se materializava em um progresso, mesmo que lento, que trouxe a discussão sobre a Educação Sexual para uma esfera propícia de efetivação, a escola, que aos poucos se (re)formulava e supria suas necessidades de mudanças, inclusões e transformações, trazendo, não só possibilidades de reflexão, mas, também, a inquietação na busca por melhorias. Infelizmente, esse cenário não se propagou efetivamente em nossa história. Nas últimas décadas, a nossa política vem sofrendo com processos internos e externos de (re)e