1 FÁBIO DA SILVA SOUSA OPERÁRIOS E CAMPONESES. A repercussão da Revolução Mexicana na Imprensa Operária Brasileira (1910 – 1920) ASSIS 2010 2 FÁBIO DA SILVA SOUSA OPERÁRIOS E CAMPONESES. A repercussão da Revolução Mexicana na Imprensa Operária Brasileira (1910 – 1920) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em História (Área de conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Carlos Alberto Sampaio Barbosa ASSIS 2010 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sousa, Fábio da Silva S729o Operários e camponeses. a repercussão da Revolução Mexicana na imprensa operária brasileira (1910-1920) / Fábio da Silva Sousa. – 2010. 186 f. : il. Orientador: Carlos Alberto Sampaio Barbosa. Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2010. 1. México – História – Revolução, 1910-1920 2. Movimento operário – Brasil 3. Anarquismo e anarquistas – Periódicos mexicanos 4. Periódicos brasileiros 5. Cultura política I. Título CDD 972.0816 335.83 4 Dedico a Marli Rosa, a verdadeira Revolução da minha vida A minha família, a minha Fortaleza da Solidão E aos meus amigos e amigas que já se foram 5 Agradecimentos (e lembranças) À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, agradeço o apoio e o investimento, que foram fundamentais em diversos aspectos para a concretização desse trabalho. Ao Prof. Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa, “Beto”. Além de professor e orientador, tornou-se um verdadeiro amigo. Sua leitura cuidadosa e crítica dos meus textos, o seu respeito, e, acima de tudo, as suas palavras de incentivo e de confiança no meu potencial como pesquisador foram decisivos para a realização desse trabalho e para a minha formação como historiador. Ao Beto, obrigado por tudo isso (e pelo café sem açúcar “buendiano” presente em nossas reuniões). Agradeço também à Daisy de Camargo, pelas conversas descontraídas e cheias de vida, pelos livros emprestados sobre o anarquismo e pelo auxílio na confecção da ficha catalográfica. Aos professores do departamento de história da UNESP também devo muito: os momentos no interior da sala de aula e também fora dos muros da universidade foram importantes no tempo em que realizei a minha graduação e a pós em Assis. A esses profissionais credito o aumento de minha paixão pela História. Também gostaria de deixar registrada a minha gratidão ao Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired pela sua leitura crítica do trabalho na banca de qualificação. Suas opiniões foram importantes por apontar aspectos da pesquisa, que foram melhorados, e por antever críticas acerca do meu trabalho. Ao Prof. Dr. Sérgio Augusto Queiroz Norte e Silva agradeço pelas verdadeiras aulas de liberdade, pelas indicações de leituras e pela colaboração entusiasmada também em minha banca de qualificação. Aos funcionários dos centros de documentação onde realizei minhas pesquisas: no CEDEM, um agradecimento especial ao Luís, pela atenção, agilidade e profissionalismo com que fui atendido; às funcionárias do CEDAP agradeço por toda ajuda; e aos profissionais do AEL, muito obrigado pela simpatia e pelo auxílio nas diversas etapas da pesquisa. Dedico um agradecimento especial aos participantes do projeto temático Cultura e Política nas Américas: Circulação de Idéias e Configurações de Identidades (Séculos XIX e XX), pelas várias sextas-feiras de discussões e de troca de conhecimentos. 6 À Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato agradeço pelas suas aulas da disciplina que cursei como aluno especial na USP, em 2008, e pelo interesse em participar da banca de defesa desse trabalho. É uma honra. De minha viagem ao México nesse ano de 2010, gostaria de lembrar aqui do Prof. Dr. Álvaro Vázquez Mantecón, pelo curso ministrado em 2008 na UNESP e pelo convite para apresentar, na UAM, uma conferência sobre meu trabalho. Ao Prof. Dr. Guilhermo Palacios agradeço pela atenção recebida em El Colegio de México, pelo interesse no projeto, e por ter me auxiliado nas pesquisas que realizei na biblioteca “Daniel Cósio Villegas”. À Profa. Dra. Regina Crespo, meu muito obrigado pelas orientações fornecidas sobre a hemeroteca da UNAM, e pela indicação de pesquisa na Casa Museo Benita Galeana. Por fim, agradeço a Alejandro de la Torre pelo intercâmbio de materiais e de informações sobre a trajetória do anarquismo no México. A todos vocês, muchas gracias! Aos meus amigos e amigas: da época do cursinho (Roger); de minha época de graduação (André “Mestre”, Gunther, Camila, Ximiti, Potira, Bira, Suellen, Dilsão, James, Cássia, Thamiris, entre outros); e aos que conheci no período da pós (Valdir, Igor, Padreco, Itamar, Mirian, Barthon e “Carioca”). Ao “Seu” Luiz, pelos momentos “bukowskianos” no Extensão Universitário. À Natally Vieira, pelas conversas entusiasmadas sobre os nossos projetos. À Marli Rosa, não há palavras para descrever como foi importante a sua presença na minha vida e na etapa de finalização da escrita dessa dissertação. Amiga, companheira, uma verdadeira rosa que nasceu em meu planeta, agradeço pelo amor, pela compreensão e por sua leitura atenciosa das diversas versões desse trabalho. A minha família: minha mãe, Dona Eva, que lutou junto comigo em minha estadia em Assis, sua força é uma inspiração para mim; ao meu pai, “Seu” Sousa, pela alegria de viver e pela visão positiva da vida; às minhas irmãs Camila, a quem eu espero ter transmitido todos os meus acertos, e Kelly, que, mesmo distante, sempre está comigo; enfim, a todos, espero que perdoem os meus erros e que saibam que amo todos vocês, do fundo do meu coração. A todos, muito obrigado! 7 “O fantasma que se chama passado é muito dado a falsificar o seu passaporte. O passado tem um rosto, que é a superstição; e uma máscara, que é a hipocrisia. Denunciemo-lhes o rosto, e arranquemo-lhes a máscara”. Victor Hugo, Os Miseráveis 8 Sumário Lista de Figuras ....................................................................................................................09 Resumo .................................................................................................................................10 Abstract ................................................................................................................................11 Introdução .............................................................................................................................12 1. Anarquismo e imprensa libertária no movimento operário da Primeira República Brasileira ..............................................................................................................................33 1.1. A luta dentro dos sindicatos: anarco-sindicalismo ou sindicalismo revolucionário? ....46 1.2. A flor exótica no Brasil: construção de um mito de repressão ......................................54 1.3. Idéias à prova de balas: a imprensa dos e para os operários .........................................58 2. “Ecos das carabinas”: A Revolução Mexicana nas páginas da Imprensa Operária Brasileira de 1910 a 1920 .....................................................................................................65 2.1. Rede anarquista: revolução, solidariedade intercontinental e circulação de idéias .......67 2.2. “Devemos seguir a Revolução!”: representações da Revolução Mexicana no imaginário político do movimento operário da Primeira República ....................................97 2.3. Desenhos e palavras: imagens libertárias da Revolução Mexicana ............................126 3. O outro lado do Atlântico: impactos mundiais na leitura operária da Revolução Mexicana.............................................................................................................................147 Considerações finais ...........................................................................................................166 Fontes e Referências Bibliográficas ...................................................................................170 Anexos ................................................................................................................................181 9 Lista de figuras Figura 1 – Fotos ilustrativas da matéria referente à Revolução Mexicana publicada em A Guerra Social, n° 01, de 29/06/1911, p.02.......................................................................... 68 Figura 2 – Capa de A Guerra Social, n° 01, de 29/06/1911, p.01.....................................101 Figura 3 – Página n° 04 da 122a edição do Regeneración, de 13 de janeiro de 1913........129 Figura 4 – Página n° 05 da 122a edição do Regeneración, de 13 de janeiro de 1913........131 Figura 5 – À esquerda temos o desenho original de Regeneración; à direita a versão alterada de A Lanterna........................................................................................................134 Figura 6 – À esquerda, a ilustração de Regeneración; à direita, de A Lanterna..............................................................................................................................136 Figura 7 – Ilustração da 1a página da 122a edição de Regeneración, publicada também em O Paiz..................................................................................................................................138 Figura 8 – Charge da capa do Regeneración, nº 130 de 01/03/1913.................................144 10 SOUSA, Fábio da Silva. OPERÁRIOS E CAMPONESES. A repercussão da Revolução Mexicana na imprensa operária brasileira (1910 – 1920). 2010. 186 f. Dissertação (em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Assis – SP. Resumo Essa dissertação tem como objetivo central analisar de que forma a Revolução Mexicana, eclodida no início do século XX, foi acompanhada pela Imprensa do Movimento Operário Brasileiro de orientação anarquista, no período de 1910 a 1920. Esse evento histórico foi o primeiro de apelo social acompanhado pelos trabalhadores operários da Primeira República do Brasil. Como fonte de pesquisa, utilizamos os periódicos La Battaglia, A Guerra Social, A Vanguarda, A Voz do Trabalhador, Germinal!, Na Barricada e O Cosmopolita. Descobrimos, por meio de uma leitura crítica das matérias publicadas nessas folhas, que o periódico Regeneración, folha oficial do Partido Liberal Mexicano, foi largamente utilizado pelos operários gráficos como fonte de informações acerca dos desdobramentos do processo revolucionário mexicano. Ao circular por uma rede de contatos intercontinental, o Regeneración foi bastante lido pelos círculos anarquistas da Europa e das Américas, e divulgou uma leitura radical e libertária da Revolução em curso no México. Ao trabalhar com esse processo de circulação de idéias e com tais folhas da imprensa operária, visamos compreender como a Revolução Mexicana foi interpretada pelo movimento operário, qual foi o seu impacto no imaginário político desse segmento social, e como se configurou essa rede de contato e de solidariedade intercontinental entre os anarquistas da Primeira República do Brasil para com os insurgentes do México revolucionário. Palavras-chaves: México – História – Revolução, 1910-1920, Movimento operário – Brasil, Anarquismo e anarquistas – Periódicos mexicanos, Periódicos brasileiros, Cultura política. 11 Abstract This thesis consists, mainly, of an analysis of how the Mexican Revolution, occurred in the beginning of the XXth Century, was followed, from 1910 to 1920, by the Brazilian Workers’ Press, which had an anarchist orientation. This historical event was the first one with social appealing that was followed by the factory workers of the First Republic of Brazil. As research sources, it was selected the journals La Battaglia, A Guerra Social, A Vanguarda, A Voz do Trabalhador, Germinal!, Na Barricada and O Cosmopolita. It was concluded, based on a critical reading of the texts published on these periodicals, that the journal Regeneración, the official publication of the Mexican Liberal Party, was widely used by the press workers in Brazil as a source for new information on the Mexican revolutionary process. By circulating around an intercontinental network, the Regeneración was widely read by the anarchist circles in Europe and in the Americas, and it has also spread a radical and libertarian interpretation of the revolution that was taking place in Mexico. By working with this process of circulation of ideas and the periodicals of the Workers’ Press, it was aimed to comprehend how the Mexican Revolution was interpreted by the factory workers’ movement, what was its impact on the political imaginary of this social segment, and how this intercontinental network was built up and used by the anarchists of the First Republic of Brazil in order to help the rebels of the Revolutionary Mexican. Key words: Mexico – History – Revolution, 1910-1920, Movement of Workers – Brazil, Anarchism and Anarchists – Mexican Journals, Brazilian Journals, Political Culture. 12 Introdução Todo livro de história digno desse nome deveria comportar um capítulo ou [,caso se prefira], inserida nos pontos de inflexão da exposição, uma série de parágrafos que se intitulariam algo como: “Como posso saber o que vou lhes dizer?” Estou convencido de que, ao tornar o conhecimento dessas confissões, inclusive os leitores que não são do ofício experimentariam um verdadeiro prazer intelectual. É o tudo pronto que espalha o gelo e o tédio. (Marc Bloch, Apologia da História, ou, O ofício de Historiador) Escrever História é uma atividade árdua e, até certo momento, solitária. O tempo dedicado à leitura de livros, à pesquisa em arquivos e ao esforço em sintetizar toda essa atividade laborial em palavras requerem dedicação, vigor e, acima de tudo, afetividade por esse ofício. Uma pesquisa histórica não se origina do nada. Antes mesmo de entrarmos em bibliotecas ou em arquivos, devemos encontrar alguma problemática no campo historiográfico, ou seja, elaborar questões que mereçam ser respondidas. E somente na busca por tais respostas, por esse conhecimento, uma obra histórica pode ser efetivamente desenvolvida. Longe de recuperar momentos de eras passadas, nós, historiadores, escrevemos e reescrevemos continuamente a História, guiados por questões que o presente levanta. Nessa atividade de pesquisa, as fontes acabam se tornando essenciais em nossas buscas por respostas do passado; contudo, como demonstrado por Carlo Ginzburg, devemos ser cuidadosos quando nos deparamos com elas, evitando, ao máximo, uma sedução fetichista pelo documento: “As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes” 1. Para o historiador italiano, o documento de uma pesquisa histórica não apresenta respostas fáceis; contudo, também não são barreiras intransponíveis. O questionamento do documento, em nosso caso específico, 1 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.192. 13 os jornais pertencentes à categoria de imprensa operária, tornou-se uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento de nossa pesquisa histórica. A partir desses pressupostos teóricos, a presente dissertação objetiva investigar a repercussão da Revolução Mexicana na imprensa operária brasileira, tendo como baliza temporal o decênio de 1910 a 1920. Essa década selecionada corresponde ao período de início da Revolução do México, em novembro de 1910, até a Revolução Constitucionalista Liberal, em 20, que teve como fatos importantes a morte de Venustiano Carranza e a consolidação de uma classe dirigente advinda do Estado de Sonora, por meio da posse de Álvaro Obregón, em primeiro de dezembro do mesmo ano. A década de 1920 também representou o período de reconstrução nacional e marcou o fim dos combates armados das diversas facções mexicanas, resultados da morte da morte de Emiliano Zapata em 1919 e da rendição de Francisco “Pancho” Villa. Esses eventos estabilizaram o Estado e definiram as características do México moderno 2. Em contraste com a historiografia tradicional, que, guiada por uma perspectiva eurocêntrica defende o término do século XIX em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial 3, para alguns intelectuais, o México possui uma cronologia distinta 4. Desta perspectiva, o século XX no México se iniciou quatro anos antes da eclosão do conflito bélico europeu, com a Revolução Mexicana: No México, contudo, a mudança de século se dá em 1910. A belle époque mexicana termina com uma revolta contra um ditador decrépito, Porfírio Díaz, que aos olhos das classes médias modernizadoras e de alguns setores da pujante 2 Cf. CAMÍN, Héctor Aguilar & MEYER, Lorenzo. À Sombra da Revolução Mexicana: História Mexicana Contemporânea. 1910-1989. Trad. Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. 3 Essa perspectiva temporal foi bastante utilizada pelos historiadores René Remond e Eric J. Hobsbawm. Para mais detalhes consultar: RÉMOND, René. O Século XX: de 1914 aos nossos dias. Trad. Octavio Mendes Cajado. 15ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997; HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. Trad. Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Contudo, o próprio Hobsbawm realizou uma autocrítica dessa linha demarcatória no livro: ____________. O novo século: entrevista a Antonio Polito. Trad. Allan Cameron & Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 4 Cf. CAMÍN, Héctor Aguilar & MEYER, Lorenzo. À Sombra da Revolução Mexicana... 14 América do Norte, já era um personagem obsoleto que se perpetuava no poder desde 1877. 5 Dito isso, algumas características particulares da Revolução do México se manifestam no seu forte papel presente na sociedade mexicana, na sua mistificação, na disputa pela sua memória e história, e na sua forte herança mítica e discursiva. Essa delimitação temporal também é relevante na história operária do Brasil. Os anos de 1910 a 20 correspondem à época de intensa circulação de periódicos e folhetins libertários, de organização e orientação política do movimento operário, que teve como ápice em nível nacional, a Greve Geral de 1917. Em concordância a esses fatos, Maria Nazareth Ferreira, em sua pesquisa, dividiu a história do movimento operário da Primeira República em cinco fases. A nossa periodização de investigação se encaixa na fase em que a estudiosa dos jornais operários denominou de Resistência, que abrange os anos de 1888 a 1919 6. Selecionados os jornais operários como fonte privilegiada de pesquisa, tem-se como determinante sondar a maneira pela qual o processo revolucionário mexicano foi registrado e interpretado pelo movimento operário brasileiro. Ressaltamos como relevante o fato de que a Revolução Mexicana foi o primeiro processo revolucionário de apelo social do século XX 7 que o operariado brasileiro acompanhou no calor do momento, sendo que o segundo levante mais significativo, a Revolução Russa, ocorreu sete anos após a explosão revolucionária no México. Apresentado esse quadro, algumas questões inicialmente guiaram a presente dissertação: Qual foi a postura do movimento operário brasileiro diante da Revolução Mexicana? Qual foi o seu impacto? Houve uma identificação entre os operários da 5 CURZIO, Leonardo. O México no século XX: da revolução à democratização. In: AGGIO, Alberto & LAHUERTA, Milton (Org). Pensar o Século XX: Problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p.291. 6 FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil. 1880 – 1920. Petrópolis: Vozes, 1978. p.33. 7 Essa marca social e pioneira da Revolução Mexicana foi destacada por Eric J. Hobsbawm “como um levante social importante, a primeira do gênero num país agrário do Terceiro Mundo [...]”. In: HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios. 1875-1914. Trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.396. 15 República do Brasil com os revolucionários do México? Existiu um apoio internacionalista à insurgência armada mexicana por parte dos indivíduos pertencentes ao operariado nacional? Não obstante, no desenvolvimento da pesquisa, algumas dessas interrogações foram elucidadas e, ao mesmo tempo, outras perguntas começaram a ser formuladas. A relação entre a Revolução Mexicana e a imprensa gerou alguns estudos no Brasil. Importante autor do movimento anarquista brasileiro e português, Edgar Rodrigues 8, em dois textos, realizou uma breve referência sobre à Revolução Mexicana em uma breve leitura do periódico libertário brasileiro A Guerra Social e publicações ácratas de Portugal, como A Aurora e A Sementeira. Rodrigues defende, nesses estudos, que a Revolução do México foi uma experiência que “qualquer que seja o cunho que lhe queiram dar os historiadores, jamais poderão apagar essa feição popular e libertária da revolução social mexicana [...]” 9. Essa edição de A Guerra Social citada por Rodrigues, nº 20, de 10 de abril de 1912, também aparece na obra pioneira de Maria Nazareth Ferreira sobre a origem e a trajetória da imprensa operária no Brasil. No espaço dedicado aos anexos de seu livro, a imagem do exemplar que a autora escolheu do periódico possui a seguinte matéria de capa: “A Revolução no México, Ela apenas começa – A terra para todos! --- Tal é o grito do povo revoltado” 10. Apesar desse importante espaço dedicado pelo periódico à Revolução Mexicana, ao estampá-la como matéria de capa, julgamos relevante citar que, em seu trabalho, Ferreira realizou uma análise da atuação dos jornais operários diante da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, sem enfocar, no entanto, qualquer comentário sobre o processo revolucionário mexicano. No campo historiográfico, temos o trabalho de Carlos Alberto Sampaio Barbosa. A partir de análise de diversos textos escritos pelo diplomata Manoel de Oliveira Lima acerca da Revolução do México, publicados no jornal O Estado de S. Paulo, OESP, bem como de 8 Recentemente falecido, Edgar Rodrigues, estudioso autodidata, produziu uma das mais extensas bibliografias sobre o movimento anarquista brasileiro. Mesmo que pese uma leitura crítica de seus escritos, é inquestionável a grande importância de suas obras como fonte documental para a história do anarquismo em língua portuguesa, tanto no Brasil como em Portugal. 9 RODRIGUES, Edgar. Universo Ácrata. Volume 2. Florianópolis: Insular, 1999. p.124. 10 FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil. 1880 – 1920... 16 algumas matérias do periódico operário A Voz do Trabalhador, Barbosa enfatiza a diferença de enfoque produzida por essas folhas impressas. Segundo o autor, A Voz do Trabalhador criticou a cobertura do México Revolucionário realizado pelo OESP e rotulou-a de “burguesa” 11. Uma contribuição recente foi realizada por Natally Vieira Dias, que, em sua dissertação, pesquisou jornais da grande imprensa 12 brasileira e argentina. A autora trabalhou com a repercussão da questão do Pan-Americanismo e da conjuntura diplomática do Pacto ABC no momento mais delicado da Revolução Mexicana, frente à crise decorrente da intervenção dos Estados Unidos no México em 1914 13. Por meio desse panorâmico itinerário bibliográfico, afirmamos que a problemática entre Revolução Mexicana e imprensa gerou diversas pesquisas. Contudo, ao delimitarmos essa relação do objeto (Revolução) e da fonte (periódicos operários) ao nosso tema de pesquisa, sustentamos que há uma lacuna de estudos a ser preenchida. A análise de Edgar Rodrigues referente à leitura da imprensa e à postura do movimento operário brasileiro perante a Revolução Mexicana foi formulada a partir de apenas uma matéria publicada em A Guerra Social. Mesmo citando um breve trecho dessa matéria, ficamos com as seguintes questões: houve uma regularidade na publicação de matérias sobre a Revolução do México em números posteriores ao do exemplar citado? Caso tal questão tenha uma resposta afirmativa, essa postura de denominar a Revolução como um levante social se manteve ao longo dos outros números? Como os operários 11 BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. A repercussão da Revolução Mexicana na Imprensa Brasileira. In: Patrimônio e Memória - Cedap, v.2, n.1, 2006. Disponível em <>. Acesso em: 12 jan. 2009. 12 Nelson Werneck Sodré foi pioneiro em definir o conceito de Grande Imprensa como a de relações entre capitalismo e meios de comunicação. Recentemente, esse conceito foi atualizado e discutido por Tania Regina de Luca. Para mais detalhes, consultar: SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4a ed. Rio de Janeiro: Maud, 1999; LUCA, Tania Regina de. A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX. In: MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de (Org). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.149-175. 13 Cf. DIAS, Natally Vieira. O MÉXICO COMO “LIÇÃO”. A Revolução Mexicana nos grandes jornais brasileiros e argentinos (1910-1915). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais: Minas Gerais, 2009. 17 responsáveis pela edição de tal publicação conseguiram as informações sobre o cotidiano da Revolução? Em seu artigo, Barbosa afirmou que A Voz do Trabalhador procurou realizar uma cobertura da Revolução Mexicana contrária ao material publicado pela grande imprensa, em especial o OESP. A diferença entre as duas publicações não se restringia apenas ao enfoque do que era publicado sobre o mesmo assunto, pois “O jornal Voz do Trabalhador, ao contrário do OESP, não utilizou a rede de agências de notícias internacionais. Procurou estabelecer outras conexões alternativas como o intercâmbio entre publicações anarquistas” 14. Como se constituíam essas conexões alternativas de informações utilizadas em A Voz do Trabalhador? A sua fonte de informação era a mesma de A Guerra Social? Além dessas duas publicações, outros periódicos operários do período compartilharam opiniões semelhantes sobre a Revolução do México? Concomitante às questões expostas, Barbosa também enfatizou que “A repercussão da Revolução Mexicana no Brasil é tema pouco estudado entre nós” 15. Dito isto, com o presente estudo, pretendemos preencher uma parte da lacuna dos estudos sobre tal tema em nosso campo historiográfico. Em outra perspectiva, além das referências que apresentamos dos trabalhos de Rodrigues e de Barbosa, há uma ausência de estudos sobre como os operários brasileiros da Primeira República sentiram e avaliaram o processo revolucionário do México. Tal questão se torna mais perene, uma vez que encontramos estudos alusivos ao impacto da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa nos círculos do operariado brasileiro 16. Reforça essa afirmação de ausência, o texto de Maria Luiza Tucci Carneiro. 14 BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. A repercussão da Revolução Mexicana na Imprensa Brasileira... p.08 15 Ibidem. p.01. 16 Sustentamos tal afirmação por meio da consulta de 400 resumos publicados na 3ª edição do Catálogo de Resumos e Dissertações de Pesquisas no Acervo do Arquivo Edgard Leuenroth, de 2007. Principal acervo de pesquisa do país nos estudos de temas envolvendo a classe operária brasileira, o Arquivo Edgard Leuenroth (Centro de Pesquisa e Documentação Social), localizado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), reúne, no catálogo consultado, todas as produções acadêmicas que, em grande ou pouca medida, utilizaram a documentação reunida no acervo. Esse grande centro de pesquisa leva o nome de Edgard Frederico Leuenroth (1881 – 1968), um dos principais militantes operários brasileiros do início do século XX. Leuenroth fundou diversas publicações operárias, como A Terra Livre, A Folha do Povo, A Plebe, etc., participou ativamente na grande greve de 1917, sempre se preocupou em preservar e divulgar a memória da classe operária e, assim, reuniu ao longo de sua vida diversas documentações, como jornais, panfletos, cartas, etc. Para mais detalhes sobre o acervo e a trajetória de Leuenroth, consultar o site: http://www.ifch.unicamp.br/ael/ e a tese KHOURY, Yara Maria Aun. Edgard Leuenroth: uma voz libertária 18 Ao discorrer sobre os jornais anarquistas e comunistas no Brasil, a autora afirma que tais folhas operárias foram importantes por trazer notícias sobre os acontecimentos mundiais para esses indivíduos. Ao listar os fatos políticos internacionais acompanhados pelo movimento operário, a autora inicia com a Revolução Russa, porém deixa ausente qualquer referência ao México revolucionário 17. Contudo, quando esses dois fatos ímpares explodiram no velho mundo, a Revolução Mexicana já estava acontecendo, e entender como esse importante evento, no limiar de comemorar o seu centenário, foi registrado e lido pelos operários brasileiros da Primeira República é um desafio de pesquisa cuja justificativa de elucidação se faz necessária. Antes de entrarmos em questões referentes à nossa fonte de pesquisa, os jornais operários, algumas considerações sobre o operariado nacional devem ser formuladas. Primeiramente, gostaríamos de esclarecer que nossa dissertação trabalhará com o impacto da Revolução Mexicana no Movimento Operário Brasileiro, sem empregar, no entanto, o sentido de Classe Operária. Existe uma dicotomia importante sobre esses dois conceitos que merece ser esclarecida. O conceito de Classe Social, que somente deve ser utilizado em questões posteriores às revoluções democráticas burguesas do século XIX e à consolidação da sociedade capitalista, pode ser descrito como um agrupamento humano emergido das desigualdades existentes na sociedade industrial. Nesse sentido, podemos considerar a burguesia, que surgiu como uma força revolucionária, a primeira Classe Social histórica que, ao fixar-se no poder, foi revolucionária, mas que, posteriormente, tornou-se parte do status quo. Por esse seu papel dominante e pela desigualdade promovida pelo capitalismo, sobretudo após a consolidação da Revolução Industrial, temos o surgimento e a formação da antítese social da burguesia, que se configura na Classe Operária. A sua importância política foi detectada por Karl Marx e Friedrich Engels no mais significativo documento político de todos os – imprensa, memória e militância anarco-sindicalistas. Tese (Doutorado em História Social). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1989. 17 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O lugar do impresso revolucionário: dos porões aos arquivos policiais. In: DUTRA, Eliana de Freitas & MOLLIER, Jean-Yves (Org). Política, Nação e Edição: o lugar dos impressos na construção da vida política no Brasil, Europa e Américas nos Séculos XVIII – XX. São Paulo: Annablume, 2006. p.160. 19 tempos: o Manifesto do Partido Comunista, escrito entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848. Logo em seu início, esse manifesto já afirmava que: A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito. 18 Nesse documento, Marx e Engels evidenciaram aqueles que seriam os principais sustentáculos teóricos (que geraram, posteriormente, diversas interpretações do Marxismo): que a história se desenvolve pelo embate entre as classes sociais e que, como resultado desse choque, a sociedade estaria se dividindo “[...] cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente opostas: a burguesia e o proletariado” 19. A literatura marxista sobre o conceito de Classe é bastante extensa, uma vez que este foi explorado a partir de uma variedade de enfoques por diversos intelectuais, dentre eles Max Weber, György Lukács, Rosa Luxemburgo, entre outros. De maneira sucinta, o Marxismo possui uma filosofia histórica, na qual a Classe Social Proletária deixaria o Reino da Necessidade para o advento da era da Liberdade. Para Marx, a história humana estaria dividida em três estágios: o primeiro, de uma sociedade de pré-classe; seguida de uma sociedade de classe, representada pelo confronto entre a burguesia e o proletariado; e, com a vitória deste, chegaríamos à terceira fase, da sociedade sem classe, ou seja, o Comunismo. Nessa teoria, os indivíduos pertencentes a uma Classe Social, mais especificamente a Classe Operária, compartilhariam objetivos em comum, seriam homogêneos e, por meio dessa forte identificação, desenvolveriam uma consciência em comum que lhes permitiria lutar pela sua libertação social. 18 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: _______________/ COUTINHO, Carlos Nelson (et al.) REIS FILHO, Daniel Aarão (Org). O Manifesto do Partido Comunista. 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. p.08. 19 Ibidem. 20 Essa interpretação una e materialista do operariado se manteve firme até meados de 1960, quando mudanças no campo historiográfico impulsionaram releituras que acabaram redefinindo o conceito de Classe. É relevante citar que essa revisão histórica da base do Marxismo foi realizada principalmente por intelectuais militantes ingleses, entre eles, Eric J. Hobsbawm, E. P. Thompson e Raymond Williams, como uma reação às revelações realizadas pelo então dirigente soviético, Nikita Kruchev, no XX Congresso do Partido Comunista Soviético, em 1956, após a morte do seu antecessor, Joseph Stalin. Nesse polêmico congresso, Kruchev expôs ao mundo a existência dos campos de concentrações soviéticos, os Gulag`s, além de outras atividades repressoras do regime stalinista, o que abalou diversos militantes e intelectuais marxistas que tinham uma visão idealizada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, e de tudo que o regime comunista soviético representava 20. Em seu estudo clássico sobre o operariado inglês, Thompson, já no prefácio da obra, definiu que: Por classe, entendo um fenômeno histórico que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre definitivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. 21 Essa interpretação, para além da estrutura materialista no estudo da Classe Operária, também ecoou nos trabalhos de Raymond Williams. Para este autor, classe é um termo indefinido, e sua significação social foi construída a partir do século XVIII, e, a partir desse momento, foi dividido em classes superiores, inferiores, altas, intermediárias, entre outros, sendo que, de acordo com suas conclusões, o conceito de classe trabalhadora surge aproximadamente em 1815. Como modelo ilustrativo, Williams utiliza-se das divisões e da 20 Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão. Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997; HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos... p.447-482. 21 THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. I – A árvore da liberdade. Trad. Denise Bottmann. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.09. 21 estrutura social da Inglaterra do século XIX 22. Deixando de lado o papel dominante da economia nos estudos sociais, Williams enfatizou a importância de uma análise cultural em questões antes dominadas pelo materialismo histórico marxista, como a luta de classes e as relações de trabalho na sociedade: O progresso da cultura depende do progresso das condições materiais para seu desenvolvimento; e, em particular, a organização social de qualquer período da história põe limites às possibilidades culturais desse período. Há, ao logo da história, entretanto, uma constante interação entre cultura e organização social. 23 A historiografia brasileira não ficou alheia a essas altercações, de forma que a pluralidade da pesquisa histórica operária também emergiu em nossos meios acadêmicos, como demonstram Cláudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes: [...] Tendências atuais da historiografia têm-se voltado cada vez mais para a diversidade, a divisão e os conflitos internos à classe operária. Ao mesmo tempo, o espaço antes ocupado pela luta de classes passa a ser pontilhado pela estabilidade e pelo consenso sociais; no lugar das mudanças, teríamos as continuidades históricas; à consciência de classe, os resultados das pesquisas contrapõem despolitização e imersão na “mentalidade dominante”. A classe vem cedendo terreno para estudos lingüísticos, étnicos e culturais, entre outros, abrindo a história para trocas conceituais e abordagens transdisciplinares. O resultado é a ampliação do leque temático da história do trabalho, compondo um quadro multifacetado da vida dos trabalhadores. 24 Elegida essa escala de análise, o movimento operário da Primeira República do Brasil, no decênio de 1910 a 20, teve sua orientação política guiada pelo anarquismo e pelo anarco-sindicalismo. Após a Revolução Russa de 1917 e a expansão do comunismo soviético, o anarquismo deixou de ser predominante como pensamento de ação entre os 22 WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade (1780-1950). Trad. Leônidas H. B. Hegenberg (et al.). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p.17. 23 Ibidem. p.281. 24 BATALHA, Cláudio H. M. (et al.). Culturas de Classe. Identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. p.13. 22 operários militantes, o que acarretou uma cisão ideológica, inclusive com casos de violência física entre anarquistas e comunistas no movimento operário 25. No entanto, não nos dedicaremos a essa questão, pois a baliza temporal de nossa pesquisa não contempla tal período. Uma grande parcela da classe operária foi formada por militantes ácratas, que produziram jornais, organizaram greves, manifestações, entre outras atividades de contestação social. Por esse comprometimento político e pela sua organização, enquadramos a parcela militante no conceito de movimento operário, como definido por Gian Mario Bravo: A concepção do Movimento operário, tal como se foi desenvolvendo, no curso de quase dois séculos, nos países economicamente avançados de todo o mundo, se foi paulatinamente identificando como os conceitos de proletariado e de classe operária e hoje o Movimento operário pode ser definido como a expressão de todo o proletariado (de um determinado país, de uma região, etc.), numa certa época ou como a expressão atuante e combativa, isto é, como o momento dinâmico da classe operária (também, de um certo país, de uma região, etc.). 26 Caracterizada como uma expressão combativa no interior da classe social, encontramos uma unidade ideológica entre os indivíduos pertencentes à categoria de movimento operário. O operariado militante de orientação anarquista tem um papel bastante significativo em nossa dissertação, pois, empenhados em divulgar seus ideais políticos, foram responsáveis pela confecção de um dos mais significativos produtos culturais do operariado nacional: os jornais operários. Na definição de Cláudio Batalha: Sem dúvida, a expressão mais visível da cultura operária nesse período foi a Imprensa Operária. Ela foi o principal instrumento de propaganda e debate, 25 Cf. DULLES, John W. Foster. Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935). Trad. César Parreiras Horta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. 26 BRAVO Apud. BOBBIO, Norberto (et al.). Dicionário de Política. Trad. Carmen C. Varriale (et al.). 3a ed. Brasília: Editora de Brasília. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1991. Vol. 2 (L – Z). p.781 – Grifo nosso. 23 assumindo formas diversas: periódicos de correntes político-ideológicas [...]; jornais sindicais; publicações destinadas à classe operária em geral. 27 Segundo John W. Foster Dulles, a imprensa operária teve um enorme papel de propaganda na divulgação rápida e ágil de ideologia e informações entre o operariado 28. Isso a torna uma fonte documental essencial em estudos sobre a classe e o movimento operário, seja em suas expressões culturais, como foi trabalhado por Francisco Foot Hardman 29; seja na discussão sobre o conceito de gênero e a figura da mulher operária, como explorado por Margareth Rago e Hadassa Grossman 30; ou no imaginário das representações iconográficas, esmiuçadas por Daisy de Camargo em seu estudo sobre o periódico A Plebe 31; entre outras temáticas. Quando as palavras começaram a ser registradas em papel com o advento do impresso, o saber se tornou uma forma de poder. O ponto inicial dessa evolução deve-se em grande medida a Johannes Gutenberg, que, em meados de 1430 a 1440, criou o processo de impressão em estruturas móveis, a tipografia. Considerado o patriarca da imprensa, a invenção de Gutenberg estimulou, no continente europeu, uma grande circulação de livros, panfletos, folhas volantes, entre outros produtos impressos. Ler se tornou uma importante distinção social e as bibliotecas se consolidaram como símbolos de prestígio de seus proprietários 32. Nessa sociedade moderna do conhecimento, com a consolidação progressiva do capitalismo, Walter Benjamin coloca o jornal como um instrumento fundamental no processo de ascensão da classe burguesa: “[...] verificamos que, com o 27 BATALHA, Cláudio. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p.64. 28 DULLES, John W. Foster. Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935)... p.23. 29 Cf. HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, Nem Patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. 3a ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Unesp, 2002. 30 Cf. RAGO, Margareth. Do Cabaré ao lar. A Utopia da Cidade Disciplinar. Brasil: 1890 – 1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997; GROSSMAN, Hadassa. A imagem da mulher na imprensa de esquerda no Brasil, 1889 – 1922: uma exposição sumária. In: Cadernos AEL. Anarquismo e Anarquistas. Campinas: UNICAMP/IFCH, v. 8/9, 1998. p.69-86. 31 Cf. CAMARGO, Daisy de. O teatro do medo: a encenação de um pesadelo nas imagens do periódico anarquista A Plebe. Dissertação (Mestrado em História). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1998. 32 C.f. CHARTIER, Roger. Textos, Impressão e Leitura. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. Trad. Jefferson Luís Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.211-238. 24 domínio da burguesia que, na ascensão do capitalismo, vai ter a imprensa como um dos seus instrumentos importantes...” 33. Com o acirramento das divisões sociais entre a burguesia e o proletariado, o conhecimento, a leitura e a informação também estavam em disputa e a criação de uma imprensa dos e para os operários representou uma reação contra esse domínio capitalista do saber. Uma problemática bastante relevante caracteriza-se pela relação da imprensa operária com a opinião pública, um conceito essencial nas pesquisas com fontes impressas. Jean-Jacques Becker, ao definir e criar uma metodologia de trabalho sobre o tema, mostra a importância da opinião pública nos estudos históricos. De início, o autor afirma que o estudo da opinião pública gira em torno de duas direções ambíguas e quem se propõe a trabalhar com o referido conceito terá como questionamento principal perceber “[...] a maneira como os acontecimentos agem sobre a opinião pública, e a maneira como esta influi nos acontecimentos” 34. Continuando a caracterização, Becker apresenta ao leitor as duas formas de opinião pública teorizadas no início do século XX pelo intelectual alemão Wilhelm Bauer: a Estática e a Dinâmica. Resumidamente, a opinião pública estática está circunscrita no tempo de longa duração e basicamente é construída pelos costumes, hábitos, tradições, etc. Já a opinião pública dinâmica trabalha na temporalidade curta e como exemplos temos os acontecimentos de guerra ou revolução 35. Becker, por meio do trabalho de Pierre Milza, também questiona se a opinião pública realmente existe ou se é apenas fabricada, e contrapõe o debate entre sociólogos, que recusam a pluralidade de opiniões, e dos historiadores, citando Jacques Ozouf, o qual defende “um fervilhamento de opiniões particulares”. Sendo “fabricada”, a opinião pública seria manipulada e condicionada. A manipulação caracteriza-se pela “tentativa de provocar de maneira artificial uma reação da opinião pública, divulgando uma notícia falsa, organizando um atentado” 36. Já o condicionamento seria dividido em dois níveis: o de curto prazo, que exemplificamos com o uso de propaganda, e Becker, com os regimes 33 BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita (et al.). Lisboa: Relógio d’Água, 1992. p.33. 34 BECKER, Jean-Jacques. A Opinião Pública. In: REMOND, René (Org). Por uma História Política. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. p.185. 35 Ibidem. p.188. 36 Ibidem. p.192. 25 totalitários; e o de longo prazo, definido como as convicções ideológicas determinadas de maneira tão profundas em certas sociedades que não são mais alteradas. Como ilustrativo dessa afirmação, o autor francês apresenta o estudo de Paul Bois sobre os camponeses da região de Sarthe, cuja vivência ideológica foi determinada na época da Revolução Francesa e continua presente em seus habitantes desde então. Ao tratar das fontes, Becker demonstra como os jornais impressos foram os principais meios de pesquisa sobre a opinião pública e afirma que “Durante muito tempo, estudar opinião pública consistia em ler jornais” 37. Nesse ponto, ele também enfatiza a dificuldade de se trabalhar com jornais censurados e a necessidade de se recorrer a outras fontes de pesquisa, e, como exemplo, cita os “testemunhos de época”. Por fim, o autor conclui demonstrando a multiplicidade da opinião pública e afirma a sua importância no processo histórico, contudo, salienta também a dificuldade de mostrá-la nas pesquisas históricas. Mesmo com todas as dificuldades metodológicas apresentadas pelo texto de Becker, consideramos relevante reafirmar que a opinião pública é uma questão essencial em todas as investigações que recorrem aos impressos como fonte de pesquisa, afinal, muitos jornais se colocam como defensores e formadores daquela. Maria Helena Rolim Capelato evidencia a contradição da concepção liberal de imprensa, a qual, representando o Quarto Poder, se afirma imparcial. A autora demonstra como os jornais da grande imprensa transformaram-se em instrumentos de poder político, ao vigiar os abusos dos governos e, ao mesmo tempo, tentar impedir uma formação de consciência advinda do próprio povo: “Os representantes dos jornais se definiam como orientadores, formadores e modeladores de opinião pública para controlar a capacidade de pressão da mesma” 38. Nesse sentido, a imprensa operária diferencia-se da grande imprensa. Ao contrário das folhas que se afirmavam orientadas por uma postura liberal de informação, os jornais operários brasileiros do começo do século XX eram claramente políticos, sendo a grande 37 Ibidem. p.195. 38 CAPELATO, Maria Helena Rolim. O Controle da Opinião e os Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920 – 1945). In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol 12, nº 23/24, setembro 91 / agosto 92. p.64. 26 maioria de tendência anarquista, e faziam questão de expressar tal orientação ideológica em suas páginas. Essas folhas impressas também não possuíam interesses econômicos, o que era uma preocupação latente dos jornais enquadrados na categoria de grande imprensa. Apesar de interesses distintos, há uma aproximação entre essas duas formas de imprensa, uma vez que os jornais operários, mesmo sem assumir tal postura, formavam opiniões entre o operariado. Esses periódicos seduziam os seus leitores, ao denunciar a exploração capitalista da sociedade e defender uma alternativa de organização social, que no caso seria a implantação da sociedade anarquista. Além dos estudos de Becker e Capelato, utilizamos como metodologia de trabalho os instrumentos de análise propostos por José Luiz Braga, referentes à leitura de jornais, e de Tania Regina de Luca e Reneé Barata Zicman, sobre os métodos a que o historiador deve recorrer no trabalho de pesquisa em periódicos 39. Em seu artigo, José Luiz Braga orienta que os pesquisadores de jornais devem realizar uma abordagem sociológica de suas fontes, para favorecer uma leitura mais aguda das matérias publicadas. A disposição espacial dentro dos jornais também deve ser levada em conta, pois o peso e a importância de uma notícia ou acontecimento podem ser medidos pelo local ocupado no impresso, tais como manchete, seções, colunas, etc. Braga também aponta como importante para o pesquisador a análise cuidadosa de dois conceitos presentes no jornal: o discurso e o campo estratégico. O discurso jornalístico é voltado ao público, porém é dirigido a uma pluralidade de leitores (aliados e adversários) e possibilita uma gama de leituras. Dito isto, o pesquisador deve dedicar especial atenção às estruturas dos textos publicados e ao espaço por eles ocupado. O campo estratégico é definido por Braga como as representações que o jornal constrói de si mesmo e como se configura a sua relação com os leitores. No caso da imprensa operária, essa análise é bastante importante, pois seus periódicos assumiram explicitamente posições políticas e ideológicas 40. 39 Cf. ZICMAN, Reneé Barata. História através da imprensa – algumas considerações metodológicas. In: Projeto História, nº 4 (História e Historiografia). São Paulo: PUC, 1981.p.89-102; LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2003. p.111-153. 40 Cf. BRAGA, José Luiz. Questões metodológicas na leitura de um jornal. In: PORTO, Sérgio Dayrell (Org). O Jornal: da forma ao sentido. Trad. Sérgio Grossi Porto. 2a ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p.321-333. 27 Tania Regina de Luca e Reneé Zicman, em seus respectivos trabalhos, apresentam outras abordagens metodológicas. Primeiramente, ambas definem os conceitos de História da Imprensa e História através da imprensa. O primeiro caso é recorrente a quem objetiva realizar o percurso histórico de determinada publicação, elegendo-a como objeto de pesquisa. Já o segundo deve ser utilizado nas pesquisas que ambicionam explorar o registro ou a evolução de algum acontecimento no interior das páginas impressas. Pela proposta de nossa dissertação, trabalharemos com o conceito de História através da imprensa. Ao comentar o trabalho de Maria Nazareth Ferreira, já citado nessa introdução, de Luca também destacou o papel privilegiado dos jornais operários nas pesquisas referentes à História do Movimento Operário e definiu algumas características de sua materialidade, as quais julgamos relevantes expor: [...] manejar folhas sem periodicidade ou número de páginas definidas, feitas não por profissionais, mas por militantes abnegados, por vezes redigidas em língua estrangeira, sobretudo italiano e espanhol, impressas em pequenas oficinas, no formato permitido pelo papel e máquinas disponíveis, sem receita publicitária e que, no mais das vezes, contava com subscrição dos próprios leitores para sobreviver. 41 Essas peculiaridades apresentadas pela autora são importantes para demonstrar as diferenças na confecção e produção das folhas operárias em comparação com as publicações da grande imprensa. Zicman, em outra passagem de seu texto, por meio das palavras de Pierre Albert, define três conceitos importantes na metodologia do uso da imprensa: o pesquisador deve trabalhar com o “atrás”, que equivale a tudo o que contribui na realização de cada notícia publicada e intervém no seu controle; o “dentro”, que são as características formais e internas de cada folha; e a “frente” do jornal, que se caracteriza pelo seu público leitor 42. Todas essas ferramentas metodológicas apresentadas foram importantes para conceituar as características distintas e elucidar os desafios apresentados pelos jornais operários trabalhados em nossa pesquisa. 41 LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos... p.119. 42 ZICMAN, Reneé Barata. História através da imprensa... p.92. 28 Enfrentadas as dificuldades de pesquisa com periódicos, selecionamos as publicações pelo seu papel na história da imprensa operária e pela sua disponibilidade de acesso em centros de pesquisas. Esse segundo critério foi bastante significativo na escolha das fontes, pois, como já discorreu Michel de Certeau no clássico A Operação Historiográfica, o lugar social de uma obra histórica, definido como a sua instituição de origem e os locais de pesquisa, é essencial por guiar diversas etapas de uma investigação historiográfica 43. A pesquisa dos periódicos foi realizada nos seguintes locais: Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista, CEDEM, localizado na cidade de São Paulo; Acervo do Centro de Apoio à Documentação e Pesquisa, CEDAP, localizado na Universidade Estadual Paulista, UNESP, Faculdade de Ciências e Letras, campus de Assis; e o Arquivo Edgar Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social, AEL, pertencente à Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Nos primeiros passos do projeto, inicialmente selecionamos sete periódicos operários a serem pesquisados: La Battaglia, A Plebe e A Lanterna, de São Paulo; A Guerra Social e A Voz do trabalhador, do Rio de Janeiro; A Semana Social, publicada em Maceió, Alagoas; e, finalizando a lista, o mexicano Regeneración. Dessas folhas, de antemão já sabíamos que poderíamos encontrar matérias sobre a Revolução Mexicana em A Guerra Social, A Voz do Trabalhador e, obviamente, no Regeneración. No decorrer da pesquisa, selecionamos outros periódicos que não apareceram inicialmente em nossa lista inicial, a saber: do Rio de Janeiro, A Vanguarda; de São Paulo, o Germinal!, Na Barricada, O Cosmopolita e Alba Rossa; do Rio Grande do Sul, A Luta; e, de Recife, outra publicação denominada A Vanguarda. Dessa lista levantada, algumas publicações ficaram de fora de nossa pesquisa, pois não encontramos em suas páginas nenhuma matéria ou referência sobre a Revolução Mexicana. Da relação inicial de nosso projeto, saíram A Plebe e A Semana Social. Das publicações listadas posteriormente para a pesquisa, não foi possível trabalhar com o Alba Rossa, A Luta e A Vanguarda de Recife, já que também não encontramos matérias sobre o nosso tema em suas páginas. Por fim, encontramos material sobre o México Revolucionário 43 Cf. CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: ________. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.p.65-119. 29 nos seguintes periódicos operários: La Battaglia, A Lanterna, A Guerra Social, A Voz do trabalhador, A Vanguarda (do Rio de Janeiro), Germinal!, Na Barricada, O Cosmopolita e Regeneración. Apesar de nosso foco ser os jornais operários publicados na Primeira República do Brasil, a inclusão do Regeneración 44 contribuiu em muito para com nessa pesquisa. Como será demonstrado ao longo dessa dissertação, muitos jornais operários do Brasil, entre o período de 1911 a 13, utilizaram o Regeneración como fonte de informações sobre a Revolução Mexicana. Ao comparar as matérias originais oriundas dessa publicação com as suas respectivas traduções e adaptações publicadas nos periódicos brasileiros estudados, tivemos a oportunidade de ter acesso ao material originalmente lido pelos editores militantes e, assim, analisar como eles repassaram as informações e como construíram sua leitura da Revolução Mexicana em suas respectivas publicações libertárias. Além disso, a leitura tornou-se uma questão bastante latente ao longo dessa pesquisa, sendo que os conceitos de apropriação, prática e representação, formulados por Roger Chartier ao definir algumas características da História Cultural, e seus métodos de pesquisa das práticas de leituras foram bastante úteis ao tentarmos entender em profundidade como os informes e as notícias sobre o México revolucionário foram lidos e publicados pelos operários em suas folhas no Brasil republicano 45. Com isso, ao investigarmos a prática de uma leitura apropriada pelo movimento operário brasileiro, foi possível entender como a prática da Revolução Mexicana foi representada entre esses trabalhadores militantes. Antes de encerrarmos essa introdução, mais uma questão merece ser esclarecida. Os jornais operários que investigamos foram publicados no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, o que pode suscitar algumas críticas à nomenclatura “Imprensa Operária Brasileira”, utilizada nessa dissertação. Estamos cientes de novos campos de estudos sobre a imprensa, o movimento e a classe operária em outras regiões, e, como exemplo, citamos os trabalhos de 44 Tivemos acesso a todos os números publicados do Regeneración, através do Archivo Electrónico Ricardo Flores Magón. Além do periódico do Partido Liberal Mexicano, esse site também disponibiliza as correspondências, as poesias e as obras literárias do revolucionário mexicano: http://www.archivomagon.net/Inicio.html. 45 Cf. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre prática e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988; _______________ (Org). Práticas da Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 2a ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. 30 Adelaide Gonçalves sobre a imprensa operária no Ceará 46. Concordamos com esses novos estudos e defendemos que a história operária brasileira seja mais abrangente, nacional, descentralizada, e que não se limite ao eixo Rio-São Paulo. Porém, pesquisamos jornais de outras regiões, como de Alagoas, Rio Grande do Sul e Pernambuco, e, como já expusemos, eles não foram trabalhados em nossa pesquisa, porque não trouxeram em seus textos nenhuma referência à Revolução Mexicana. A nossa escolha de fontes foi guiada pelo próprio objetivo da pesquisa e por informações fornecidas pelos periódicos consultados, tendo em conta que o nosso trabalho está centrado no discurso dos jornais operários. Uma análise do discurso dos textos tipográficos é bastante relevante, pois a partir dela torna-se “possível reconstruir os modos de racionalidade que regulam práticas e ações, os códigos que regem as relações sociais no bairro, na oficina, no botequim, as relações entre homens e mulheres” 47. Esse campo de estudo é bastante relevante no caso de pesquisas que utilizam os periódicos como fonte de pesquisa, uma vez que o sentido de suas palavras ultrapassa as páginas em que estas foram impressas, como demonstra Bethania Sampaio Corrêa Mariani: A análise do discurso jornalístico se faz importante e necessária já que este, enquanto prática social, funciona em várias dimensões temporais simultaneamente: capta, transforma e divulga acontecimentos, opiniões e idéias da atualidade – ou seja, lê o presente – ao mesmo tempo em que organiza um futuro – as possíveis conseqüências desses fatos do presente – e, assim, legitima, enquanto passado – memória – a leitura desses mesmos fatos do presente, no futuro. 48 Ademais, no contato com as fontes, percebemos que, imbuídos pelo internacionalismo do pensamento anarquista, esses militantes não se viam como paulistas, 46 Cf. GONÇALVES, Adelaide. & SILVA, Jorge E. A imprensa libertária no Ceará, 1908-1922. São Paulo, Imaginário, 2000. 47 BOUTIER, Jean & JULIA, Dominique (Org). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Trad. Marcella Montana e Anamaria Skiner. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FGV, 1998. p.49. 48 MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. Os primórdios da imprensa no Brasil (ou: de como o discurso jornalístico constrói memória). In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org). Discurso Fundador: A formação do país e a construção da identidade nacional. 2a ed. Campinas: Pontes, 2001. p.33. 31 cariocas ou cearenses. Não houve um discurso de divisões regionais em sua identificação com o outro. Esses operários se consideravam irmãos, companheiros e defendiam a visão de uma sociedade sem fronteiras em seus textos escritos. Por essas características, ressaltamos que as fontes que pesquisamos, mesmo provenientes dos dois pólos industriais mais desenvolvidos da Primeira República, na década de 1910 a 20, possuem um discurso homogêneo, com o qual o operariado engajado nacional se identificou, sendo que essa identificação ultrapassou até as fronteiras do Estado nacional. Com base no quadro metodológico e de análise exposto nas páginas anteriores, essa dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, apresentamos uma breve trajetória do anarquismo no Brasil, desde o período monárquico até a Primeira República. Além do desenvolvimento da doutrina ácrata, realizamos uma reflexão sobre a questão do anarquismo e do anarco-sindicalismo na República, discorremos sobre a concepção de flor exótica, teoria muito utilizada nos estudos historiográficos clássicos sobre os militantes anarquistas, e sobre algumas características dos títulos operários investigados nessa dissertação. O segundo capítulo é dedicado à análise das matérias sobre a Revolução Mexicana publicadas nas folhas operárias. Para a confecção desse capítulo, distribuímos as matérias pesquisadas em três tópicos: no primeiro, trabalhamos com a rede de contato anarquista intercontinental, e mostramos como a idéia de uma Revolução libertária no México circulou entre as Américas e a Europa, bem como de que maneira os militantes operários da Primeira República do Brasil, imbuídos da solidariedade internacional anarquista, apoiaram os revolucionários mexicanos. Na sequência, discorremos sobre a representação da Revolução Mexicana no universo operário e anarquista no segundo decênio do século XX. Muitas questões do período estiveram presentes na leitura realizada por esses militantes sobre o processo revolucionário mexicano, a qual acabou representando um processo de reflexão sobre a sua unidade e a sua resistência à oligarquia republicana. No terceiro e último tópico, analisaremos como as imagens da Revolução do México, originárias de uma edição especial do Regeneración circularam e foram recebidas pela imprensa operária. Política e cultura se fundem nesse tópico. Na descrição do material das fontes, algumas palavras e sentenças aparecerão com a grafia da época ou com alguns erros gramaticais. 32 Não alteramos tais palavras, pois resolvemos ser fidedignos ao máximo à maneira pela qual elas estão registradas nos periódicos pesquisados. No terceiro e último capítulo, analisamos de que modo a percepção e a recepção da Revolução Mexicana sofreram influências de diversos eventos internacionais do período, tais como o debate realizado por anarquistas franceses acerca do processo revolucionário mexicano, a Primeira Grande Guerra e a Revolução Russa. Nesse mundo de transformações, mostraremos como o movimento operário da Primeira República se posicionou e como foi a sua leitura sobre o México revolucionário. 33 1. Anarquismo e imprensa libertária no movimento operário da Primeira República Brasileira A rebelião revelava-se num olhar, numa inflexão da voz; no máximo, num cochicho ocasional. Mas os proles, se de algum modo adquirissem consciência de seu poderio, não precisariam conspirar. Bastava-lhes levantarem-se e sacudir-se, como um cavalo sacode as moscas. Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem. (George Orwell, 1984) Quando as carabinas soaram no México, por meio de uma dramática revolução que no decênio de 1910 a 20 vitimou cerca de 1 milhão de pessoas 49, no Brasil, nesse mesmo período, as doutrinas anarquistas, representadas pela sua vertente anarco-sindicalista, estiveram presentes na organização do movimento operário e foram determinantes na orientação ideológica dos periódicos produzidos por esse seguimento combativo do interior da classe operária nos primeiros anos do século XX. Nesse contexto, os informes sobre a Revolução Mexicana na imprensa operária brasileira foram publicados por indivíduos envolvidos no ideal ácrata e que tinham nas folhas libertárias o seu principal veículo de informação, engajamento, orientação cultural e questionamento da sociedade republicana brasileira e da burguesia em escala mundial. No interior das páginas de tais periódicos, tanto as informações políticas quanto as culturais foram publicadas sob a perspectiva do anarquismo, que guiou e orientou o sentido de leitura de tais textos. Sendo a Anarquia peremptória na leitura que o movimento operário brasileiro realizou sobre a Revolução do 49 Esse número referente à totalidade das vítimas da Revolução Mexicana foi apresentado por Pablo González Casanova e Marco Antonio Villa nos respectivos textos: GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. México: la dinámica de una revolución agrária y “semicapitalista”. In: PETRAS, James & ZEITLIN, Maurice. América Latina: ¿reforma o revolución?. Buenos Aires: Editorial Tiempo Contemporáneo, 1970. p.416; VILLA, Marco Antonio. A Revolução Mexicana (1910-1940). São Paulo: Editora Ática S.A, 1993. p.08. 34 México, torna-se relevante elucidar como foi constituída essa ideologia adversária do Estado burguês, sua formação e seu desenvolvimento na sociedade brasileira. O anarquismo no Brasil se desenvolveu nos primeiros anos do governo republicano, instaurado em 1889. Contudo, no período monárquico já encontramos algumas referências sobre ao conceito anárquico. Palco de diversas revoltas populares, o período regencial foi repleto de tentativas insurgentes, que José Murilo de Carvalho equacionou em dois blocos. O primeiro compreende o período da abdicação de D. Pedro I, ocorrida em 1831, e da promulgação do Ato adicional, quatro anos depois de tal acontecimento. O segundo bloco abarcaria o ano de 1835 até o período do Segundo Reinado, em 1849 50. Mesmo sem objetivos libertários, algumas dessas revoltas foram descritas pela imprensa monárquica do período como atividades encabeçadas por indivíduos anarquistas que visavam instaurar o caos no Reino, o que, obviamente, eclipsou as reivindicações sociais presentes em muitas dessas rebeliões. Essa conotação negativa da palavra e do significado de ser anarquista foi explorada pela imprensa monárquica como uma estratégia discursiva de deslegitimar tais revoltadas perante a opinião pública. Vale ressaltar que em meados do século XX, quando o anarquismo brasileiro estava em seu período de formação, algumas dessas revoltas foram reivindicadas pelos militantes anarquistas como antecessoras do movimento ácrata. Essa prática de reivindicação foi importante na construção de um passado de revolta e de insatisfação do povo brasileiro, pois foi possível criar uma tradição e uma memória de lutas que, até o contemporâneo, podem ser encontradas em publicações libertárias atuais 51. 50 O Ato Adicional de 1834, aprovado pela Lei nº 16 de 12 de agosto, em seus 32 artigos, estabeleceu algumas mudanças significativas no Império, principalmente no que se referia ao Capítulo V da Constituição de 1824, ao definir as atribuições dos Conselhos Gerais de Província. Esse ato extinguiu os Conselhos Gerais das províncias e criou, em seu lugar, as assembléias legislativas provinciais com poderes para legislar sobre economia, justiça, educação, entre outros. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro foi transformada em Município Neutro, desmembrado da Província do Rio de Janeiro, que passou a ter a sede do governo em Niterói. Desse grupo inicial de revoltas populares, destacamos: a Setembrizada e a Novembrizada, ocorridas em Recife no ano de 1831 e protagonizadas pela Tropa; e a Revolta dos Malês, insurgida por escravos islâmicos em Salvador, no ano de 1835. O segundo bloco de revoltas se iniciou um ano depois da instituição do Ato adicional e perdurou até o Segundo Reinado, em 1849. Desse período, destacamos: a Cabanagem, ocorrida na região do Pará por camponeses, índios e escravos, com duração de cinco anos, de 1835 até 40; a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, protagonizada por estancieiros e charqueadores, de 1835 até 45; a Sabinada, em Salvador, de 1837 até 38, com a participação de Tropa e do povo; e a Balaiada, ocorrida em Maranhão, de 1838 até 41, protagonizada por proprietários, camponeses e escravos. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem e Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume- Dumará, 1996. p.231. 51 Para Hobsbawm, a tradição pode ser “inventada”, sendo regulada por regras, que constituem um conjunto de práticas simbólicas. Nesse sentido, por meio de diversas práticas discursivas e simbólicas, os anarquistas 35 Como exemplo, Edgar Rodrigues cita que o geógrafo anarquista francês Éliseé Reclus, em sua passagem ao Brasil no ano de 1893, descreveu os eventos da Cabanagem como uma “Guerra Social de Escravos contra senhores, de pobres contra ricos” 52. Além dessas tentativas insurrecionais, a palavra anarquia também foi empregada pejorativamente na descrição dos opositores da ordem imperial. Segundo Emília Viotti da Costa, essa denominação foi utilizada em diversas ocasiões por José Bonifácio em suas críticas contra os “democratas”, as “sedições demagógicas”, as “sociedades secretas regidas por princípios carbonários” e sobre qualquer oposição à Monarquia 53, sendo que é significativo ressaltar que os abolicionistas foram acusados de serem adeptos do anarquismo. Essa representação negativa e de caos utilizada em relação ao termo anarquia pela imprensa monárquica e por personalidades importantes do regime imperial esteve associada à radicalização que o ideal libertário sofreu na Europa em meados do século XIX. Nesse período, o pensamento anarquista foi retomado, discutido e reestruturado por Pierre–Joseph Proudhon 54. Em seus estudos, a Anarquia recebeu uma interpretação moderna e se adequou às novas questões sociais resultantes da Revolução Industrial. Encontramos em sua obra mais conhecida, O que é a propriedade?, publicada em 1840, um vilipêndio à propriedade privada, sustentado no argumento de que a exploração da força de trabalho de um semelhante era um roubo e que cada pessoa deveria gerir os seus próprios meios de produção, conforme suas necessidades. Os ideais de Proudhon influenciaram diversas organizações de trabalhadores em todo o mundo industrial e contribuíram para a formação dos movimentos sindicais mais expressivos da Europa, situados em países como Espanha, França, Itália e Rússia. Seus escritos atraíram diversos teóricos revolucionários europeus, construíram uma tradição de revolta na história do povo brasileiro. In: HOBSBAWM, Eric J. Introdução: A invenção das tradições. In: _________ & RANGER, Terence (Org). A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p.09. 52 RECLUS Apud RODRIGUES, Edgar. Socialismo e Sindicalismo no Brasil. 1675-1913. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969. p.25. Sobre a Cabanagem, ver: FREITAS, Décio. A Miserável Revolução das Classes Infames. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005. 53 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia a República. Momentos decisivos. 8ª ed. ver. ampl. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p.81-82. 54 Nascido em 1809 e falecido em 1865, Proudhon, tipógrafo e autodidata, é considerado o primeiro indivíduo a se autoproclamar anarquista e que propôs uma sociedade libertária fundamentada no mutualismo e na cooperação em associações de a influência do Estado. Cf. TRINDADE, Francisco. O Essencial Proudhon. São Paulo: Imaginário, 2001. 36 dentre eles, Karl Marx e Mikhail Bakunin, sendo que este último acabou se tornando uma espécie de discípulo. Proudhon participou dos primeiros debates realizados pela Associação Internacional dos Trabalhadores, AIT, organização fundada em 1864, na qual expôs e fortaleceu as suas convicções. Com as contradições do mundo industrial e o início da organização do proletariado, o ideal anarquista cresceu e, de um pensamento filosófico, tornou-se uma doutrina de ação revolucionária que teve como principal opositor ideológico entre os trabalhadores industriais, a filosofia elaborada por Karl Marx. Nesse contexto, uma análise densa dos debates entre o comunismo de Marx e o anarquismo de Proudhon e Bakunin revela duas concepções de combate e negação da ordem capitalista que tinha na força humana das fábricas, ou seja, no proletariado, o seu principal protagonista. De maneira bastante sucinta, ambos almejavam uma Revolução das classes subalternas que resultaria na destruição do Estado, no entanto sua principal diferença estava em como atingir tal objetivo. Para Marx, esse fim seria alcançado por etapas, primeiramente, com uma ditadura do proletariado, que aos poucos substituiria o Estado por uma organização de bases comunais. Ao passo que para a doutrina anarquista de Proudhon e Bakunin não existiria essa fase intermediária e o Estado já deveria ser eliminado no processo revolucionário. Enquanto debatiam sobre essas alternativas revolucionárias, esses três defensores do proletariado industrial foram surpreendidos pelas barricadas que se ergueram em Paris, que colocaram as suas teorias em prática e cuja repercussão foi importante para o imaginário do movimento anarquista e comunista em escala mundial. A experiência proletária da Comuna de Paris produziu diversas imagens – dentre elas podemos destacar as alegorias do povo unido, marchando, e as barricadas erguidas em várias ruas – que foram incorporadas na literatura de cunho revolucionário e utilizadas como exemplo tanto para anarquistas como para socialistas e comunistas ao redor do mundo. Pela primeira vez, a classe operária idealizada no Manifesto do Partido Comunista havia tomado o controle do seu destino e tentava colocar em prática o que antes eram apenas palavras e teorias. 37 A repercussão das notícias da Comuna de Paris 55 na Monarquia lusitana do Novo Mundo também foi significativa para o desenvolvimento da interpretação negativa sobre o conceito de anarquia. Como demonstrado por Alexandre Samis, mesmo sem nenhum registro oficial do desembarque de communard’s no Brasil, houve na imprensa oficial e na corte um intenso temor sobre uma eventual chegada desses revolucionários: No Brasil, os ecos do movimento popular francês não se circunscreveram à imprensa; no parlamento, as notícias sobre o possível desembarque de communards justificaram as mais diversas especulações sobre o fato. Os políticos mais conservadores chegaram mesmo a proferir discursos com ornatos barrocos sobre o tema, e a necessidade de repatriação dos implicados nos acontecimentos de Paris, caso estes realmente ousassem pisar em território brasileiro. 56 Nesse contexto, mesmo antes da formação de indivíduos que se intitulassem libertários, a idéia do que seria um anarquista e o seu significado deturpado, associado ao caos e à baderna, já estavam presentes no Brasil desde seu período monárquico. Uma característica importante dos primórdios do pensamento libertário brasileiro foi o desenvolvimento de diversas colônias agrícolas. Apesar da imagem negativa que a palavra anarquia exerceu sobre o período monárquico, como já demonstrado acima, uma 55 Com duração de 72 dias, de 18 de março a 28 de maio de 1871, a Comuna que se ergueu em Paris foi uma reação aos desdobramentos da Guerra Franco-Prussiana (1870 – 71), cuja vitória da Prússia comandada por Otto Von Bismarck sobre a França de Napoleão III, impôs a este uma série de medidas polêmicas, como a cessão de parte de seu território, o pagamento de enormes indenizações e a ocupação do território francês por tropas prussianas. A repercussão dessas medidas resultou em um colapso político da França, acirrou o conflito entre os grupos sociais e políticos e que resultou na proclamação de um governo autônomo na capital, Paris, em março de 1871. Era o nascimento da Comuna. Tomado o controle da capital francesa, os communard’s – denominação utilizada para descrever os membros e apoiadores da Comuna – colocaram em prática, diversas diretrizes da AIT, como a extinção do trabalho noturno, a redução de jornada laborial, e tentaram implantar a autogestão nas fábricas, experiência que não alcançou os resultados desejados. A reação à Comuna não se fez por esperar e foi extremamente violenta. Louis Adolphe Thiers, presidente da República francesa instaurada após a Guerra Franco-Prussiana, uniu forças com Bismarck e deflagrou uma ofensiva bélica contra os communard’s que durou sete dias, no que ficou conhecido como semana trágica. O saldo de mortes e execuções chegou à quantidade de 20 mil pessoas; além disso, muitos sobreviventes acabaram sendo deportados para a região da Guiana. Para mais detalhes, ver: COSTA, Sílvio. Comuna de Paris: o proletariado toma o céu de assalto. São Paulo: Anita Garibaldi; Goiânia: Editora UCG, 1998; GONZALES, Horácio. A Comuna de Paris. São Paulo: Brasiliense, 1981. 56 SAMIS, Alexandre. Pavilhão Negro sobre Pátria Oliva: Sindicalismo e Anarquismo no Brasil. In: COLOMBO, Eduardo (et al.). História do movimento operário revolucionário. Trad. Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário; São Caetano do Sul: IMES, Observatório de Políticas Sociais, 2004. p.128. 38 das últimas ações de D. Pedro II foi conceder terras que mais tarde se tornariam colônias libertárias. Essa postura do então Imperador perante os anarquistas foi comentada por Edgar Rodrigues, que vai além em suas conclusões: D. Pedro II, durante seu reinado, jamais perseguiu ou ordenou a prisão de anarquistas, não temia as suas idéias, lia os seus livros e doou terras aos libertários que quiseram lançar-se ao cultivo das mesmas, por meios coletivos e anárquicos. Suas doações isentas de quaisquer impostos, a grupos anarquistas, são por demais conhecidas. A fundação da Colônia Cecília, entre outras atestam o seu alto nível liberal. 57 No entanto, afirmar uma eventual postura simpática do antigo Imperador aos anarquistas torna-se uma questão discutível. Apesar de Dom Pedro II ter a sua imagem associada à Ilustração e em alguns momentos ser considerado um homem à frente de seu tempo, sua a Monarquia foi sustentada pela escravidão africana, o que demonstra o limite social e a contradição de seu regime. Contudo, fica evidente que a relação dos adeptos das doutrinas ácratas com a República foi muito mais conturbada e violenta em comparação com o regime monárquico. Talvez, um dos fatores que possam explicar essa diferenciação esteja na estruturação do próprio movimento revolucionário operário, que se desenvolveu com mais intensidade no regime republicano, quando representou um perigo real à ordem estabelecida, do que propriamente como resultado de numa atitude “liberal” de D. Pedro II. Não obstante, essas colônias agrícolas foram importantes na experiência do anarquismo brasileiro. Entre elas, podemos citar a de Guararema - fundada por Artur Campagnoli no ano de 1888 em São Paulo - e a Colônia Cecília - idealizada pelo engenheiro agrônomo e ex-militante da AIT, Giovani Rossi, na região do Paraná -, que resistiu de 1890 até 94 58. Antes da proclamação da República, o mundo do trabalho no Brasil já estava em processo de alteração em sua estrutura. Verena Stolcke demonstra que o trabalhador imigrante já havia se tornado uma opção rentável antes da abolição da escravidão, ocorrida 57 RODRIGUES, Edgar. Socialismo e Sindicalismo no Brasil... p.36. 58 Para mais detalhes sobre a trajetória de Giovanni Rossi e da Colônia Cecília, ver: MELLO NETO, Candido de. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi (de pogio al mare a Colônia Cecília). Ponta Grossa: Editora da UEPG, 1997. 39 em 1888, e que o trabalhador livre chegou a coexistir com os escravos 59. Encontramos nessa nova estruturação social e econômica a constituição de um mercado de trabalho livre, a introdução de mão-de-obra assalariada e o acirramento das diferenças sociais, que foram importantes na constituição da classe e do movimento operário na Primeira República. A República de 1889 trazia em sua proclamação a promessa de uma nova era para a sociedade brasileira. Ângela Marquez da Costa e Lilia Moritz Schwarcz demonstram que nesse período “o Brasil entrava no século XX tão confiante como as demais nações”, e a República representava a modernidade que deixava de lado a “letargia da monarquia” e a “barbárie da escravidão”. Todavia, apesar dessa imagem de otimismo e progresso, esse período também foi repleto de contradições e conflitos sociais. O massacre do movimento de Canudos (1893 – 1897) - liderado por Antonio Conselheiro -, a Revolta da Vacina (1904) e a política do “Bota Abaixo” - realizada pelo então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos (1902-1906) - são alguns exemplos de que a modernidade e a belle époque não foram vivenciadas por toda a população brasileira 60. O processo de industrialização foi significativo em acirrar essas contradições. O Rio de Janeiro, então capital federal, foi palco de diversas crises políticas e econômicas. A especulação financeira e o aumento da inflação resultante do encilhamento – a malfadada política de incentivo industrial criada por Rui Barbosa – atingiram a população de baixa renda, com a elevação exorbitante do custo de vida. Ao descrever esse quadro social, Nicolau Sevcenko relata que o recém–formado operariado da capital federal se encontrava desprotegido diante da opressão e da precariedade social, sendo que o seu labor prolongado e a sua remuneração exígua incentivaram sua organização face a essa realidade: Situação que significaria um acréscimo intolerável ao regime já por demais opressivo que pesava sobre os grupos operários: “Não há cidade no mundo em que o trabalho dos operários seja mais prolongado e árduo que no Rio de Janeiro”, afirmaria um jornalista condoído. [...] Surgiram daí os primeiros estímulos para as organizações populares e 59 STOLCKE, Verena. Cafeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986. p.18. 60 COSTA, Ângela Marquez da & SCHWARCZ, Lilia Mortiz. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.12-27. 40 operárias, que se dedicavam a pressionar o governo central, através de meetings (sempre no Largo de São Francisco) e comissões, e os industriais, através de greves. Surgiram os primeiros Centros e Associações de Resistência, preconizando a ação sindical, formando-se paralelamente os primeiros partidos operários. 61 Contrastando com o Rio de Janeiro, que teve na sua formação operária a participação de mulatos, negros, portugueses e imigrantes, em São Paulo, foram os trabalhadores estrangeiros que engrossaram a classe social fabril. Utilizados como mão-de- obra nos cafezais e posteriormente nas nascentes indústrias, os imigrantes italianos foram predominantes na formação da classe e do movimento operário de São Paulo. O incentivo do governo paulista foi tão intenso à chegada desses trabalhadores que Thomas Holloway relata, em seu estudo sobre a imigração italiana, que o governo brasileiro forneceu até intérpretes aos trabalhadores que desembarcavam com a esperança de melhorar suas condições de vida 62. Contudo, antes que essas contradições ficassem evidentes, a classe operária compartilhou do otimismo e do discurso de uma vida melhor, simbolizado pelo regime republicano: O jornal A Voz do Povo, também do Rio de Janeiro, cuja publicação foi iniciada menos de dois meses após a proclamação da República, referiu-se a uma nova era para o operário brasileiro trazida pelo novo regime, comparável à que foi aberta pela Revolução de 1789. 63 A classe operária da Primeira República brasileira se formou entre diversos conceitos, os quais, pela sua diversidade, Cláudio Batalha classifica como “constelações” de correntes ideológicas 64. Dentre essa pluralidade, apontamos o Socialismo, o Positivismo e o Anarquismo como as ideologias que mais circularam entre o operariado. Todavia, 61 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.74. 62 HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.86-87. 63 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.12. 64 BATALHA, Cláudio. O movimento operário na Primeira República... p.08. 41 apesar dessas ramificações doutrinárias, existe um consenso na historiografia do tema em considerar o anarquismo peremptório na formação ideológica do movimento operário da Primeira República. Podemos considerar as duas primeiras décadas do século XX o período de auge do pensamento ácrata nos círculos operários brasileiros, conforme caracterizado por Ângela de Castro Gomes: [...] é inegável que de 1906 a 1919/20 foram os anarquistas os maiores responsáveis pelo novo tom que caracterizou o perfil e a atuação dos setores organizados do movimento operário [...] quer em termos de formulações doutrinárias, quer em termos de influência nas associações operárias 65. Antes desse período apontado por Gomes, a corrente Socialista, até a primeira década do século XX, obteve uma grande recepção por parte dos operários do Brasil republicano. Desde os anos de 1890, houve várias tentativas de organização de um partido operário, e tais esforços resultaram na organização do Primeiro Congresso Socialista Brasileiro, sediado no Rio de Janeiro, em 1892. Nesse mesmo ano, foi fundada no Rio Grande do Sul a União do Trabalho, e, em Santos, o médico socialista Silvério Fontes criou, em 1889, um círculo de estudos socialistas que desenvolveu uma intensa atividade de propaganda entre os trabalhadores do porto. Em 1895, essa agremiação passou a se denominar Centro Socialista de Santos e editou, durante o período de um ano, o jornal A Questão Social, que, em seu número de inauguração, já expunha as necessidades de organização e contestação que deveriam ser empregadas pelo movimento operário: Apresenta-se na arena jornalística A Questão Social, defendendo uma causa justa – a reivindicação dos direitos do proletariado. [...] Entre nós, as condições atuais não nos permitem encarar o socialismo como medida que se imponha por uma agitação revolucionária. Desfraldando a bandeira do coletivismo reformista, A Questão Social, sem paixões, que considera antagônicas à idéia de progresso, a lutar tenazmente pra que sejam mais rápidos os efeitos do movimento evolucionista científico, que deve dar em resultado a nova organização da 65 GOMES, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. 2a ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p.65. 42 Sociedade. Pro maiores que sejam as preocupações dos excessivamente tímidos e as apreensões dos privilegiados, a repercussão no Brasil das idéias que agitam no velho mundo há de ser fatal, a bem dos interesses gerais da coletividade. 66 Além do título sugestivo, esse editorial considera as contradições sociais da República para com os operários como um problema a ser resolvido mediante a organização da classe trabalhadora. A idéia de progresso, tão alusivo ao discurso de consolidação do regime republicano, mostra-se, para esse segmento social, incompatível com a crença de evolução científica e de melhoria da qualidade de vida, que deveriam ser resultantes do processo de consolidação da modernidade. Essa adesão inicial dos operários ao conceito de progresso não foi uma característica sumariamente da República brasileira. Guiado pelo discurso da racionalidade, socialistas e anarquistas acreditavam que o domínio da ciência e as mudanças nas técnicas de trabalho, entre outros fatores, seriam essenciais para que os indivíduos convivessem com mais liberdade em seu meio social. A Questão Social também formulou em suas páginas os limites de atuação dos socialistas na seguinte passagem: “Entre nós, as condições atuais não nos permitem encarar o socialismo como medida que se imponha por uma agitação revolucionária”. Sendo contrários a um embate radical contra o Estado, os socialistas acreditavam no reformismo social, nas reivindicações por meio da luta parlamentar e na negociação entre operários e patrões no interior das fábricas para atingir os seus objetivos. Alguns partidos foram formados, imbuídos nessa corrente reformista, contudo, essas associações políticas não tiveram uma longa duração em sua trajetória na vida política da Primeira República. Desses partidos, situados em sua maioria na capital federal, podemos citar os criados por Gustavo de Lacerda e Luiz França e Silva como os mais atuantes do período. Lacerda, além do partido, também editou o jornal A Voz do Povo, e França e Silva foi o responsável pelo periódico Eco Popular 67. Ambos os periódicos foram porta-vozes de seus idealizadores e de seus partidos. 66 A Questão Social, “Editorial”. n° 01. 15/09/1895, pág.01. 67 MORAES FILHO, Evaristo de. O socialismo brasileiro. Brasília: Câmara dos Deputados/UNB, 1981.p.17. 43 Como esses partidos e suas respectivas folhas oficiais tiveram uma curta duração, não dispomos de material para medir a sua atuação no meio operário, porém rastreamos o impacto do pensamento socialista na organização de dois congressos: o primeiro foi realizado em 1892, no Rio de Janeiro, com pequena repercussão, e o segundo, com sede em São Paulo, ocorreu em 1902 e contou com a participação de 50 delegados. Ao contrário do seu antecessor, o Segundo Congresso Socialista Brasileiro repercutiu com mais intensidade, tanto que os seus cinco dias de realização – de 28 de maio a 01 de junho – foram acompanhados pelo jornal OESP, que nesse momento dedicava uma atenção especial à classe trabalhadora 68. Tal encontro ocorreu no final do governo de Campos Sales, quando a questão social da era republicana já havia se tornado um problema latente na sociedade. O governo de Campos Sales substituiu a política dos militares “jacobinos”, que haviam derrocado a monarquia, e inaugurou a “política dos governadores”, que se resumiu em apoios aos grupos dominantes aliados ao governo federal de cada Estado. A oligarquia cafeeira paulista obteve diversos privilégios baseados nessa estrutura política e com a elite de Minas-Gerais comandaram a política da Primeira República. Nesse acordo, a cadeira presidencial foi ocupada alternadamente por representantes de São Paulo, do Partido Republicano Paulista, PRP, e do Partido Republicano Mineiro, PRM. Tal hegemonia findou-se em 1930 com o golpe de estado orquestrado por Getúlio Vargas. Nesse extenso período, tal dominação política teve um intervalo no governo de Hermes Rodrigues da Fonseca, que durou de novembro de 1910 até 14 e ficou marcado pela aliança entre o Rio Grande do Sul e os militares. O controle bipolar entre o PRP e o PRM voltou à cena com o seu sucessor, Wenceslau Brás, que governou de 1914 a 18. Nessa sociedade oligárquica, excludente e de grande concentração latifundiária, o movimento operário radicalizou as suas propostas de resistência, e o anarco-sindicalismo – que trabalharemos com mais densidade adiante – foi ganhando adesão entre os trabalhadores politizados. Se a pluralidade ideológica continuava presente no interior da classe operária, quando focamos a nossa visão para o interior do movimento articulado e militante da classe, percebemos que o anarquismo e sua vertente sindicalista, ambos 68 CAPELATO, Maria Helena & PRADO, Maria Ligia. O Bravo Matutino (imprensa e ideologia no jornal “O Estado de S. Paulo”). São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. p.XV. 44 sustentados em um discurso de alternativa política e violenta de transformação do Estado, foram ganhando mais adeptos nas fábricas, nas assembléias e nas agremiações formadas pelos operários industriais. Os limites de consolidação do Socialismo na Primeira República já foram detectados em 1908 por Antônio Piccarolo, reformista e fundador do importante jornal socialista Avanti!: Indivíduos vindos da Europa, especialmente da Itália, trazendo consigo a convicção e o ideal socialista, procuraram transplantá-los no Brasil, fundando um partido socialista brasileiro. Parece perfeitamente ocioso dizer que estas tentativas encontraram sorte por completo negativa, tendo a semente caído em terreno impreparado e contrário a todo desenvolvimento socialista. 69 Com a exclusão social oriunda da política oligárquica paulista e mineira, a crença de uma reforma política com a participação dos trabalhadores e de sua representação enquanto força política e legal, anseios esses defendidos pelo Socialismo, foi caindo em descrédito pelos trabalhadores engajados que encontraram, no discurso anarquista e nas suas propostas radicais de reivindicações, novos mecanismos de resistência. Assim, a formação de uma nova identidade estabelecida com anarquistas nas Américas e na Europa, constituiu uma Cultura Política de orientação libertária. Definido por Serge Bernstein como um fenômeno de múltiplos parâmetros que auxilia na compreensão da complexidade do comportamento social humano, o conceito de Cultura Política é importante para a compreensão de como as pessoas, no seu individual ou no coletivo, compartilham e assumem decisões políticas. Apesar de conceituar sempre no singular, Bernstein afirma que há diversas formas de Cultura Política. É nesse sentido plural que utilizaremos aqui o conceito de Cultura Política Libertária. Na presente dissertação, afirmamos que a ideologia anarquista, mesmo com suas diferenças, foi compartilhada por diversos indivíduos e coletivos nas Américas e na Europa, o que a torna uma Cultura Política de afinidade entre os militantes que não aceitaram e que lutaram contra a sociedade capitalista em seus respectivos países. Para Bernstein, alguns elementos 69 PICCAROLO Apud MORAES FILHO, Evaristo de. O socialismo brasileiro... p.17. 45 comuns, que formariam um conjunto homogêneo, são essenciais na definição de uma Cultura Política: “[...] um discurso codificado em que o vocabulário utilizado, as palavras- chaves, as fórmulas repetitivas são portadoras de significação, enquanto ritos e símbolos desempenham ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante”. 70 Críticos ao sentimento nacionalista, considerado como um artifício utilizado pelos governantes para controlar os indivíduos na sociedade, no anarquismo existe uma leitura intensa de uma pátria libertária onde as diferenças culturais, religiosas, e sociais seriam anuladas em uma sociedade de relações horizontais 71. No interior desse imaginário social, os anarquistas criaram um calendário político comum. Ao celebrar alguns desses marcos, como a Comuna de Paris, o Primeiro de Maio ou o fuzilamento do educador espanhol