UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes - Campus São Paulo Gustavo Arima Referencialidade extrínseca como parâmetro composicional na música acusmática São Paulo 2024 Gustavo Arima Referencialidade extrínseca como parâmetro composicional na música acusmática Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Linha de pesquisa: Composição, Cognição e Estruturação Musical Orientador responsável: Professor Doutor Florivaldo Menezes Filho São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. A699r Arima, Gustavo, 1997- Referencialidade extrínseca como parâmetro composicional na música acusmática / Gustavo Arima. -- São Paulo, 2024. 334 f. : anexos Orientador: Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Teoria musical. 2. Música - Análise, apreciação. 3. Composição (Música). 4. Eletroacústica. 5. Paisagens sonoras (Música). I. Menezes Filho, Florivaldo, 1962-. II.Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 786.7 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 GUSTAVO ARIMA REFERENCIALIDADE EXTRÍNSECA COMO PARÂMETRO COMPOSICIONAL NA MÚSICA ACUSMÁTICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, do Instituto de Artes da Unesp, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Dissertação aprovada em: 10/09/2024 Banca Examinadora _____________________________________________ Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho Instituto de Artes - Unesp _____________________________________________ Prof. Dr. Maurício Funcia de Bonis Instituto de Artes - Unesp _____________________________________________ Prof. Dr. Leonardo Martinelli Instituto de Artes - Unesp In memoriam: Maria Nogueira da Cunha e Mônica Nogueira da Cunha Salvoni. Agradecimentos À FAPESP (processo nº 2022/02741-7) e à CAPES (código de financiamento 001), pelo financiamento a esta pesquisa. Ao Prof. Dr. Flo Menezes, pela confiança e interlocução, mas sobretudo pelo exemplo de dedicação integral à arte e à pesquisa. À Bia, pela paciência, apoio, carinho e companheirismo, mesmo nos momentos mais desafiadores. À minha família. Ao Vinícius, pela amizade e pelos conselhos, que ajudaram a resolver dificuldades enfrentadas no processo de pesquisa. Ao Studio PANaroma e à UNESP, pelo apoio institucional. Ao Prof. Dr. Arthur Rinaldi e ao Prof. Dr. Maurício de Bonis, pelos relevantes apontamentos realizados no exame de qualificação. Resumo Esta pesquisa busca investigar modos de articulação musical da referencialidade extrínseca na música acusmática. O conceito de referencialidade extrínseca denota a capacidade que sons acusmáticos possuem de referenciar objetos, ações e espaços através da similaridade espectral, da imitação de comportamentos sonoros e da simulação espacial. Nossa pesquisa buscará responder se, e em que medida, a referencialidade extrínseca pode ser tratada como um parâmetro composicional, sujeito, deste modo, a gradações e estratégias composicionais que visem a articulação destas no tempo. Partiremos de reflexões filosóficas, fazendo uma revisão crítica do conceito de escuta reduzida de Pierre Schaeffer (1966), apoiando-nos epistemologicamente na fenomenologia de Edmund Husserl. Em seguida, trataremos da referencialidade extrínseca a partir de Roman Jakobson (1963; 1973) e Jean-Jacques Nattiez (1990). Tal etapa da pesquisa busca realizar uma consolidação conceitual, permitindo-nos, ao analisar textos de autores voltados para a composição musical, depreender aspectos analíticos e composicionais relevantes. Tal investigação teórica servirá como base, tanto para os três estudos de caso – que consistirão na análise de Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), de Jonathan Harvey, Koan nº3 (2020), de Alex Buck, e Distance Liquide (2007), de Hans Tutschku – quanto para a composição de três peças acusmáticas, que articulam, de maneira e com enfoques distintos, aspectos da referencialidade extrínseca. Palavras-chave: referencialidade extrínseca; referencialidade; música acusmática; análise musical; aúsica eletroacústica. Abstract This research aims to investigate different ways in which extrinsic referentiality can be articulated musically. The concept of extrinsic referentiality denotes the capacity of acousmatic sounds to refer to objects, actions and spaces through spectral similarity, sound behaviour imitation and spatial simulation. Our research will seek to answer if, and to what degree, extrinsic referentiality can be treated as a compositional parameter, being therefore subject to compositional strategies which would articulate them in time. Beginning a philosophical investigation, we will critically review Pierre Schaeffer’s (1966) concept of reduced listening, based epistemologically upon Edmund Husserl’s phenomenology. Afterwards, we will deal with extrinsic referentiality from the point of view of Roman Jakobson (1963; 1973) and Jean-Jacques Nattiez (1990). This phase of the research intents to serve as groundwork for both the three case studies – which will consist of analysis of Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), by Jonathan Harvey, Koan nº3 (2020), by Alex Buck, and Distance Liquide (2007), by Hans Tutschku – and for the composition of three acousmatic pieces, which articulate with different approaches aspects of extrinsic referentiality. Key words: extrinsic referentiality; referentiality; acousmatic music; musical analysis; electroacoustic music. Lista de ilustrações Esquema 1 - Categorias de espaço em Smalley............................................. 93 Tabela 1 - Grade de Linguagem de Emmerson.......................................... 96 Tabela 2 - Grade de Linguagem de Emmerson modificada........................96 Esquema 2 - Continuum de referencialidade...................................................98 Esquema 3 - Disposição dos alto-falantes em Mortuos Plango, Vivos Voco. 114 Esquema 4 - Representação da simetria formal de Mortuos Plango, Vivos Voco..........................................................................................121 Imagem 1 - Espectrograma do som vocal de 6’50”, isolado por meio do software Izotope RX7............................................................... 124 Tabela 3 - Tipos de predominância de gestos e texturas em Mortuos plango, vivos voco.................................................................................126 Partitura 1 - Notação das notas principais de cada seção de Mortuos plango, vivos voco.................................................................................127 Partitura 2 - Transcrição de fragmento melódico, com início aos 0’25”472, de Koan nº3...................................................................................135 Gráfico 1 - Análise espectral da média de frequências entre 6’28” e 6’32” em Distance Liquide................................................................. 142 Partitura 3 - Transcrição harmônica de Distance Liquide entre 8’04” e 9’27”..........................................................................................143 Partitura 4 - Transcrição de Distance Liquide entre 1’27” e 1’28”............... 147 Partitura 5 - Transcrição de Distance Liquide entre 0’03” e 0’05”............... 148 Partitura 6 - Transcrição de Distance Liquide entre 0’46” e 0’50”............... 149 Partitura 7 - Transcrição de trecho de Distance Liquide.............................. 150 Partitura 8 - Transcrição de trecho de Distance Liquide.............................. 151 Esquema 4 - Disposição dos altofalantes em Distance liquide......................152 Partitura 9 - Entidade harmônica “B” de moimoirai e sua origem a partir de duas entidades simétricas........................................................ 157 Gráfico 2 - Perfil das notas mais graves e mais agudas das projeções proporcionais realizadas em Peri Moiron................................. 159 Partitura 10 - Entidades harmônicas entre 4’27” e 4’45” Peri Moiron............ 161 Imagem 2 - Disposição em duas dimensões de samples de piano usados em Peri Moiron............................................................................... 163 Imagem 3 - Trecho de código de SuperCollider utilizado para gerar materiais para Peri Moiron....................................................................... 164 Imagem 4 - Trecho de código com SynthDefs utilizados na geração de material para Natureza Morta...................................................166 Partitura 11 - Transcrição da harmonia de Natureza Morta, entre 5’22” e 8’02”..........................................................................................168 Partitura 12 - Transcrição da harmonia de Natureza Morta, entre 8’03” e 9’33”..........................................................................................169 Partitura 13 - Transcrição da harmonia de Natureza Morta, a partir de 9’33”..........................................................................................170 Gráfico 3 - Uma das transições harmônicas de Natureza morta............... 171 Gráfico 4 - Uma das transições harmônicas de Natureza morta................172 Gráfico 5 - Uma das transições harmônicas de Natureza morta................173 Partitura 14 - Transcrição de uma das entidades harmônicas de Escombros…............................................................................ 179 Imagem 5 - Trecho de código de SuperCollider utilizado para a geração de material para Escombros..........................................................180 Partitura 15 - Transcrição de uma das entidades harmônicas de Escombros…............................................................................ 181 Imagem 6 - Trecho de código de SuperCollider utilizado em Escombros... 183 Partitura 16 - Transcrição de uma das entidades harmônicas de Escombros…............................................................................ 184 Imagem 7 - Trecho de código de SuperCollider utilizado em Escombros... 185 Partitura 17 - Transcrição de algumas entidades harmônicas de Escombros…............................................................................ 187 Imagem 8 - Trecho de código com os parâmetros do objeto FluidBufTransientSlice utilizados para a segmentação de um improviso vocal.........................................................................188 Sumário 1 Introdução...............................................................................................12 2 Aspectos teóricos da referencialidade na música acusmática. Uma reflexão crítica de terminologias propostas.......................................25 2.1 Por uma expansão da escuta reduzida....................................................30 2.2 Objeto sonoro: uma revisão..................................................................... 45 2.2.1 Multiplicidade epistemológica.................................................................. 46 2.2.2 Objeto sonoro como ser-para-a-obra.......................................................47 2.3 Análise crítica de definições conceituais e metodológicas propostas......49 2.3.1 Referencialidade intrínseca e referencialidade extrínseca...................... 49 2.3.2 Source bonding (ligação com a fonte)..................................................... 64 2.3.3 Sobre a proposta de Emmerson.............................................................. 67 2.3.4 Paisagem e soundscape..........................................................................71 2.3.5 Modelos perceptivos................................................................................ 74 2.3.6 Espaço, tempo e referencialidade extrínseca.......................................... 78 2.3.7 Elementos relevantes para a análise de aspectos da referencialidade extrínseca................................................................................................95 2.3.7.1 Calibração................................................................................................ 95 2.3.7.2 Classificação geral da obra a partir de Emmerson e consequências para a análise. Continuum de referencialidade............................................... 96 2.3.7.3 Análise da referencialidade extrínseca em termos quantitativos............. 98 2.3.7.4 Análise da referencialidade extrínseca em termos qualitativos............. 101 2.3.8 Componentes da referencialidade extrínseca e possibilidades de manipulação.......................................................................................... 102 2.3.8.1 Manipulação do registro.........................................................................103 2.3.8.2 Espacialidade.........................................................................................105 2.3.8.3 Gesto......................................................................................................107 2.3.9 Considerações acerca dos aspectos teóricos da referencialidade extrínseca.............................................................................................. 112 3 Análises de obras.................................................................................114 3.1 Análise de Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), de Jonathan Harvey... 114 3.2 Análise de Koan nº3 (2020), de Alex Buck.............................................131 3.3 Análise de Distance Liquide (2007), de Hans Tutschku..........................138 4 Descrição do processo composicional de três obras acusmáticas 156 4.1 Peri moiron..............................................................................................156 4.2 Natureza morta....................................................................................... 165 4.3 Escombros.............................................................................................. 177 5 Considerações finais............................................................................ 193 Referências............................................................................................196 APÊNDICE A – Descrição da metodologia utilizada na análise de Mortuos Plango, vivos voco (1980), de Jonathan Harvey.....................................203 APÊNDICE B – Análise de Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), de Jonathan Harvey, segundo a metodologia descrita no primeiro apêndice.... 219 APÊNDICE C – Transcrição e análise do nível neutro de Mortuos Plango, vivos voco (1980), de Jonathan Harvey.................................................. 294 APÊNDICE D – Link para as obras acusmáticas autorais...................... 346 12 1 Introdução A música ocidental se desenvolveu, até meados do século XX, como uma linguagem autorreferencial. Tal fato pode ser comprovado ao observar o tratamento dado à música por diversos filósofos ao longo da história. Eles, grosso modo, se dividem historicamente entre os que consideram a música como uma linguagem privilegiada, por ter um objeto metafísico – como o ethos, o divino, a Vontade ou o Absoluto –, e os que consideram a música como uma linguagem que só pode expressar a si própria e suas técnicas. Arthur Schopenhauer, por exemplo, está no primeiro grupo. Para ele, a música “ultrapassa as Ideias e também é completamente independente do mundo aparente, ignorando-o por inteiro” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 298), ao contrário das outras artes. Para este filósofo, a música mimetiza a própria Vontade e é percebida “única e exclusivamente por meio do tempo, com total exclusão do espaço [...], sem influência do conhecimento da causalidade, portanto do entendimento” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 308). A música, portanto, impossibilitada de expressar a Ideia, pode expressar diretamente a Vontade, esta que é tornada objetiva também através das ideias. Assim, a música ocupa um lugar privilegiado, por não ter a dupla objetivação implicada nas outras artes, que podem apenas exprimir ideias que são elas próprias expressões da Vontade. Do outro lado, temos autores como Eduard Hanslick, para quem “o conteúdo da música são formas sonoras em movimento”1 (HANSLICK, 1947, p. 48, tradução nossa), essas formas, para ele, “não são vazias, mas cheias, não são mera delimitação linear de um vazio, mas espírito que se cria a partir de dentro”2 (HANSLICK, 1947, p. 50, tradução nossa). O belo musical, para Hanslick, não depende de qualquer representação externa, nem mesmo de coisas intangíveis, como a Vontade schopenhaueriana ou o Absoluto hegeliano. Ambos os grupos, assim delimitados, partem do mesmo pressuposto de que a música, ao contrário das demais linguagens artísticas, não pode representar objetos do mundo físico. 2 No original: “no son vacías, sino llenas, no son mera delimitación lineal de un vacío, sino espíritu que se crea desde adentro.” 1 No original: “El contenido de la música son formas sonoras en movimiento.” 13 A dificuldade para representar objetos deve-se ao fato de que a música, até o desenvolvimento das tecnologias de gravação sonora, não podia reproduzir precisamente elementos extrínsecos, sendo frequentemente considerada como a linguagem artística menos imitativa – ao menos dos objetos mundanos3. Suas relações extrínsecas tinham como base a tentativa de mimetizar sentimentos – como é o caso da doutrina dos afetos barroca –, o reforço de elementos textuais, no caso da música cantada – como o word painting renascentista4 –, a imitação de sons relativamente possíveis de serem imitados, como cantos de pássaros, ou ainda, no romantismo, a música programática, que, no entanto, dependia de elementos extra-musicais5 para a compreensão narrativa. Os meios tecnológicos de produção e reprodução sonora produziram diversas revoluções no âmbito da música. Por um lado, possibilitaram a reprodução e comercialização em massa de commodities, servindo de instrumento fundamental para a indústria cultural, por outro, forneceu aos compositores duas possibilidades inéditas até então: a composição do som – não mais apenas com o som – a partir de seu nível atômico, garantindo um nível de controle quase absoluto sobre os parâmetros do timbre, da altura, das durações e das intensidades; e o uso de qualquer som retirado do mundo. Surgiram, então, entre o final da década de 1940 e o início da década de 1950, dois grupos antagônicos: a chamada Escola de Colônia ou Escola Senoidal, liderada por nomes como Eimert, Mayer-Eppler e Stockhausen, e o grupo de música concreta, encabeçada por Schaeffer. Apesar de suas diferenças quanto aos procedimentos técnicos e posições estéticas6, ambos os grupos tinham em comum a recusa da reconhecibilidade de aspectos extrínsecos do som, o primeiro pelos próprios meios empregados – já que prezavam pela composição do som, inicialmente a partir da síntese aditiva – e, o segundo, pela defesa da escuta reduzida, da qual trataremos posteriormente. 6 Uma das mais relevantes distinções entre o grupo de música concreta e a escola de Colônia era o uso de materiais retirados do mundo: a primeira os utilizava exclusivamente, enquanto a outra não o fazia, elegendo os sons sintéticos como material. 5 Como o título ou notas de programa. 4 No madrigal Io pur respiro in così gran dolore, do Sexto livro de madrigais, de Carlo Gesualdo, por exemplo, há uma breve pausa entre a sílaba “res” e o resto da palavra “respiro”, para reforçar a ideia de respiração. 3 Em Hegel, por exemplo, a música “funda-se, como a arquitetura, em relações racionais e, para a definir de um modo abstrato, ela é em geral a arte que exprime a interioridade abstrata e espiritual do sentimento” (HEGEL, 2009, p. 112). 14 Esta oposição, de curta duração, começa a se desfazer com a utilização, por compositores de Colônia, de sons ditos concretos, especialmente sons vocais (MENEZES, 2009, p. 39-40). Paralelamente, compositores filiados à escola parisiense, como Luc Ferrari, passam a questionar o conceito de escuta reduzida, fundamental para a música concreta, propondo obras de caráter narrativo, nas quais o som é utilizado, não por suas características espectromorfológicas, mas por seu caráter referencial. Sumariamente, então, podemos dizer que, enquanto os dois grupos antagônicos visavam manter certa continuidade histórica, dispondo dos novos meios técnicos para radicalizar uma prática musical já existente, decorrente da história da linguagem – ou ao menos da história de seu colapso7 –, como era o caso da escola de Colônia, com relação ao serialismo integral, ou buscando construir uma nova teoria que permitisse abarcar as possibilidades entendidas como propriamente musicais, fornecidas pelos novos meios, caso de toda a teoria de Schaeffer, compositores como Ferrari abdicaram, de certa forma, do arcabouço histórico, tendo em vistas uma prática cujos fins representativos se aproximavam de outras linguagens artísticas, nas quais, historicamente, a referência extrínseca tinha maior importância. De um ponto de vista histórico, então, com o advento das tecnologias de registro sonoro, sons originalmente alheios à linguagem musical passaram a poder ser articulados por esta. Uma das tentativas de articular musicalmente esse tipo de material, conforme mencionamos, foi realizada por Pierre Schaeffer. Sua proposta, que discutiremos no capítulo 2 deste trabalho, consistia em ignorar os elementos extrínsecos do material, considerando-os, a partir do que ele chamou de escuta reduzida, por suas qualidades intrínsecas. Destarte, Schaeffer criou classificações para os objetos sonoros – o som, quando percebido pela escuta reduzida –, que foram abarcadas em sua tipo-morfologia. Para Leonardo Aldrovandi – que entende a mimese como um processo de instalação e desinstalação de correspondências –, a escuta reduzida schaefferiana é “uma forma de desinstalação mimética, desistência de alguma relação considerada 7 Nos referimos ao fato de que a história da prática composicional, após o romantismo, passa a se dissociar de uma prática socialmente compartilhada. Segundo Maurício De Bonis, tal processo gera uma situação metalinguística na qual “a impossibilidade da definição clara do campo de trabalho a partir de uma prática atrofiada (até o limite mínimo de seu reconhecimento como tal) torna esse trabalho definível apenas em sua relação com a experiência histórica, em reflexão isolada sobre o processo de criação” (DE BONIS, 2015, p. 11). 15 verdadeira, a da correspondência indicial entre som e fonte, que abre caminho para outras tantas instalações miméticas conceituais” (ALDROVANDI, 2019, p. 195). O que propomos neste trabalho incorpora esta noção de mimese, indo além das propriedades intrínsecas da música8, uma vez que propomos, por um lado, graus de desinstalações de correspondência entre som e fonte, o que permite correspondências no nível da articulação desses graus, e, por outro lado, não investigamos as funções narrativas ou semânticas da referencialidade extrínseca, ignorando-as, ao modo de Schaeffer, mas, ao contrário do autor francês, tomamos o grau de referencialidade extrínseca como um dado passível de estruturações no interior das obras. A proposta de Schaeffer não conseguiu abarcar o uso que foi feito desse material, utilizado, por exemplo, em estruturas narrativas – por compositores como Ferrari – ou articulando-o, juntamente com sons sintetizados, por seus parâmetros intrínsecos, mas também simbólicos – como em Gesang der Jünglinge (1955 - 1956), de Karlheinz Stockhausen, ou Visage (1961), de Luciano Berio. Propomos que, mesmo com a curta duração da oposição restritiva à natureza dos materiais utilizados na composição, o tipo de pensamento com relação aos materiais extrinsecamente referenciais, de um ponto de vista teórico, permaneceu, em grande parte, dividido, desta vez, entre a sobrevalorização dos aspectos narrativos e semânticos e a subvalorização de suas possibilidades estruturantes. Pretendemos demonstrar que a possibilidade de estruturação, não semântica e narrativa, mas de graus de referencialidade extrínseca é, em alguns casos, relevante para a estrutura musical, de um ponto de vista da própria escritura, mais do que da semântica. Neste trabalho, criticamos os conceitos de escuta reduzida e objeto sonoro, de Schaeffer, argumentando que a relação dos sons acusmáticos com o mundo é um aspecto indissociável do objeto sonoro; investigamos o conceito de referencialidade extrínseca, a partir de autores como Roman Jakobson e Jean-Jacques Nattiez; distinguimos três elementos que o compõem – quais sejam, a proveniência e o grau de transformação do material, a espacialidade e a 8 Para Aldrovandi “[a arte] é indissociável do comum e, por isso, não podemos tratá-la apenas por suas supostas propriedades imanentes; antes, por suas propriedades singulares, nunca independes do comum, da despossessão e da sujeição ou re-apropriação múltipla” (ALDROVANDI, 2019, p. 140) 16 gestualidade –; propomos que a referencialidade extrínseca se dá como um continuum, dentro do qual é possível ordenar elementos distintos e que, consequentemente, a referencialidade extrínseca é um parâmetro analisável; e analisamos três obras acusmáticas – Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), de Jonathan Harvey, Koan N3 (2020), de Alex Buck e Distance Liquide (2007), de Hans Tutschku –, visando, a partir dos resultados deste processo, a composição de três obras, que, de maneiras diferentes, elaboraram, de forma prática, os conceitos trabalhados neste trabalho. É fundamental que digamos, ainda nesta introdução, que os apontamentos feitos ao longo deste trabalho partem do pressuposto de que os aspectos sonoros do mundo são compartilhados, o que não quer dizer que o ouvinte necessariamente perceba as estruturações da referencialidade extrínseca da maneira proposta. Este trabalho trata de uma possibilidade de escuta, de análise e de composição, que não obsta outras possibilidades, mas pode, ao contrário, contribuir para o enriquecimento da escuta, da análise e da composição musicais. Como afirmou Andrew Hill, ao discutir a noção de composição baseada em contexto (context-based composition): o ‘mundo real’ que possibilita a composição baseada em contexto não pode existir em uma forma puramente intramusical. Por definição, o contexto depende de que o ouvinte traga ideias ou associações de fora da obra em suas interpretações. Portanto, não há uma natureza contextual interna que uma obra ou um som do ‘mundo real’ podem possuir.”9 (HILL, 2017, p. 11, tradução nossa) Concordamos com a premissa de Hill, de que a relação entre obra e ouvinte é fundamental para a referencialidade extrínseca. Para nós, a relação entre sons e mundo se dá na interação entre aspectos que concernem ao ouvinte – como sua memória, o tipo e o grau de atenção de sua escuta e suas particularidades sociais – e aspectos intrínsecos do som – sua morfologia, seu espectro, sua espacialidade e sua articulação gestual. Há uma diferença significativa, contudo, entre uma instalação de correspondências que parte de uma relação direta entre som e memória (que poderia levar um ouvinte a afirmar, por exemplo, que determinado som é o som de um trem) e uma instalação de 9 No original: “The ‘real-world’ context that drives context-based composition cannot exist in a solely intramusical form. By definition, context is dependent upon the listener bringing ideas or associations from outside the work into their interpretations. Therefore, there is no internal contextual nature that a work or ‘real-world’ sound can possess.” 17 correspondência que parte de uma desinstalação prévia, como a famosa associação entre o motivo do primeiro movimento da Quinta sinfonia de Beethoven e a imagem do destino batendo à porta. Divergimos parcialmente de Hill, contudo, quando ele afirma que “todos os sons são interpretados dentro de um quadro mimético (mimetic framework). Portanto, não há diferença absoluta entre o ‘mundo real’ e sons abstratos.” (HILL, 2017, p. 16, tradução nossa). Consideramos verdadeira a afirmação segundo a qual todos os sons são interpretados dentro de um quadro mimético – não obstante o fato de que esse autor considera a mimese apenas como imitação –, mas há uma marcante diferença, ainda que em um plano puramente ideal, entre sons do ‘mundo real’ e sons ditos abstratos. Os primeiros são os sons percebidos imediatamente na vivência no mundo, enquanto sons abstratos seriam aqueles que se relacionam negativamente com todos os aspectos acústicos, espaciais e espectromorfológicos dos sons do ‘mundo real’. Ambas as categorias, conforme demonstraremos, não podem existir dentro de uma obra acusmática, o que significa que, no lugar de uma oposição absoluta, as obras eletroacústicas funcionam dentro de um continuum, cujos extremos são inalcançáveis. Deste modo, buscamos, com este trabalho, investigar as possibilidades de estruturação, como parâmetro, dos diferentes tipos e níveis de relações entre som e mundo, entendendo que a música acusmática, por ser, como o cinema, uma linguagem artística baseada no registro, permite a estruturação, alteração e deformação de elementos retirados do mundo, o que não era possível antes do desenvolvimento das tecnologias de gravação. Defendemos que o grau de reconhecibilidade desses materiais é passível de ser estruturado e pensado de um modo condizente com o desenvolvimento da tradição musical ocidental, para além de suas propriedades narrativas, semânticas e contextuais. Em suma, partimos da premissa geral de que há diferenças entre, por exemplo, um mesmo registro proveniente do mundo: sem qualquer tratamento sonoro, com pouco tratamento sonoro, tratado ao ponto de ser quase irreconhecível10; e que estas diferenças não são plenamente explicáveis através 10 Tais possibilidades de ordenação foram investigadas de maneira prática nas três peças compostas no decorrer desta pesquisa: em Peri Moiron, os sons provenientes de piano apresentam distintos graus de referencialidade, que são articulados ao longo da peça, em Natureza Morta, sons de insetos e ruídos naturais entram em disputa com sons sintéticos, gerando híbridos, que também são articulados formalmente, em Escombros, sons de metal percutido, água e vozes marcam quatro seções bastante distintas, enquanto certa unidade é garantida pela homogeneidade dos 18 de parâmetros espectromorfológicos. De tal premissa decorre que há um elemento a mais que pode ser considerado para distinguir esses sons. A escuta e a escritura das variações deste elemento são, portanto, possibilidade válidas. Trataremos, deste modo, de verificar, em três obras do repertório acusmático, a articulação deste parâmetro, as estratégias composicionais empregadas e a função formal que estes objetos assumem. Visamos, com isto, o uso estruturalmente responsável de sons extrinsecamente referenciais na composição musical. Temos três classes de problemas, impossíveis de serem abarcadas a contento com uma única pesquisa. Visamos, portanto, discutí-los de modo a criar possibilidades de caminhos, tendo em vista primeiramente a composição. O primeiro problema diz respeito à natureza disto que chamamos de referencialidade extrínseca, de suas consequências estéticas, de suas relações com a linguagem musical, de sua ontologia e sua epistemologia. O próximo capítulo está voltado, não a responder, mas pelo menos apresentar essas questões e propor, ainda que incipientemente, possíveis caminhos. O segundo problema diz respeito à análise musical: algumas metodologias analíticas, como a análise do nível neutro, proposta por Roy (2003), não levam em consideração este aspecto, ou o consideram de maneira binária, outras levam em consideração apenas aspectos da referencialidade, como é o caso de Monty Adkins (1999), ou da análise tópica. Trataremos de propor uma terceira via que não ignore o problema analítico e composicional provocado por sons com diferentes graus de referencialidade e tampouco o trate de um ponto de vista semântico. Este terceiro caminho, ligado às inquietações artísticas pessoais deste autor, concerne também à prática composicional. Buscamos investigar, portanto, de maneira prática, apoiando-nos em estudos de caso e na discussão estética que levamos a cabo, a articulação dos graus de referencialidade extrínseca como um parâmetro composicional. Resultaram deste processo três peças acusmáticas a respeito das quais discutiremos no último capítulo. Fica desde já evidente que o problema, em seus diversos aspectos, é bem maior do que o que se pode levar a cabo com este trabalho. Assim, não processos de granulação, a partir dos quais é possível, manipulando a duração dos grãos, manipular a possibilidade da reconhecibilidade dos materiais. 19 propomos respostas definitivas, mas possibilidades, com a esperança de abrir caminhos para desenvolvimentos futuros. Salientamos que a constatação da possibilidade de escuta de níveis de referencialidade extrínseca não implica em uma sobrevalorização desta característica, cuja relevância para a estruturação e escritura musicais deve ser analisada a cada caso. Argumentamos apenas que, dentre os parâmetros analisáveis em uma obra acusmática, este é provavelmente o que menos foi objeto de propostas analíticas. O problema ora discutido tem como correlato na música instrumental a questão da intertextualidade e, particularmente, da metalinguagem – trataremos, posteriormente, também da intertextualidade e da metalinguagem e de como estes conceitos se relacionam com a referencialidade extrínseca. É, em um sentido geral, o mesmo tipo de crítica que pode ser aplicado tanto ao uso da metalinguagem na música instrumental, quanto ao uso da referencialidade extrínseca na música acusmática. Em seu texto “Composer (avec) des identités culturelles” – ‘Compor (com) identidades culturais’, em tradução livre – Henri Pousseur nos apresenta um argumento, atribuído a Pierre Boulez, que gerou em Pousseur o questionamento acerca das dificuldades com relação aos “elementos fortemente caracterizados, em particular os elementos sintáticos e estilísticos historicamente reconhecíveis, sobre os quais a audição imediatamente coloca um rótulo, os isolando de seu contexto e impedindo sua abertura sobre (sua submissão comunicativa a) ele”.11 (POUSSEUR, 2009, p. 315, tradução nossa). A possibilidade de que a escuta se prenda em tais rótulos é, com efeito, bastante plausível, no entanto, o compositor belga apresenta algumas de suas estratégias composicionais que visam evitar isto, dentre as quais: A abundância, a frequência dessas suturas terá um papel essencial para a produção de uma textura que disponha de uma plausibilidade suficiente. Assim, não apenas poderemos multiplicar os momentos de surpresa, lhes dando, por exemplo, uma importância informativa ao menos igual àquela dos momentos de reconhecimento e de familiaridade, e trabalhar com esta dicotomia [...]. Mas poderemos também, devido à sua brevidade, reduzir, sem obliterar totalmente, a taxa de reconhecibilidade de certos elementos [...] lhes controlar até certo 11 No original: “des éléments trop fortement caractérisés, en particulier des éléments syntaxiques et stylistiques sur lesquels l’audition va immédiatement mettre une étiquette, les isolant de leur contexte et empêchant leur ouverture sur (leur soumission communicative à) celui-ci” 20 ponto e lhes modular de uma maneira musicalmente significativa12 (POUSSEUR, 2009, p. 316, tradução nossa) Ou ainda: A dissolução, maior ou menor, da identidade reconhecível pode ser obtida e controlada, não apenas pela duração dos elementos [...] e pelas lacerações às quais estes elementos podem ser submetidos, mas também por outras transformações de seus parâmetros constitutivos13 (POUSSEUR, 2009, p. 316, tradução nossa) Assim, as técnicas de colagem, transição entre elementos reconhecíveis e o controle da reconhecibilidade através da manipulação de parâmetros fazem parte do rol de estratégias sugeridas por Pousseur para trabalhar com o que ele denomina de identidades culturais, entendidas como “associações históricas ou geográficas, socio- ou ideológicas”14 (POUSSEUR, 2009, p. 314, tradução nossa). Procedimentos deste tipo se dão com frequência na música acusmática, já que por um dado da própria linguagem da música sobre suporte, sons retirados do mundo, por meio de registro, frequentemente são empregados como materiais. Temos como objetivo, reunir alguns procedimentos possíveis no trabalho com a reconhecibilidade desses materiais, de seus espaços, de sua gestualidade, visando uma escritura de graus de lacerações, como as denomina Pousseur. Podemos traçar um paralelo entre a brevidade destes elementos, com as técnicas de granulação por meio de processos computacionais. O compositor Bruno Ruviaro, em sua peça Cleaner (2009)15, faz uso de diversos fragmentos de obras gravadas, que são, no entanto, irreconhecíveis devido à brevidade dos grãos. Estas técnicas são bastante específicas das linguagens musicais que envolvem registro ou síntese por meio de computador. É possível remontar sua história ao sillon fermé, de Schaeffer, que consiste em romper fisicamente um 15 A obra está disponível no site da Santa Clara University, universidade na qual o compositor é professor associado: https://scholarcommons.scu.edu/music/33/. Acessado em 16 de maio de 2024. 14 No original: “Les associations historiques ou géographiques, socio- ou idéologiques”. 13 No original: “La dissolution plus ou moins grande de l’identité reconnaissable pourra être obtenue et contrôlée, non seulement par la longueur des éléments [...] et par les lacérations que ces éléments pourront avoir subies, mais aussi par d’autres transformations de leurs paramètres constitutifs”. 12 No original: “L’abondance, la fréquence de ces sutures jouera donc un rôle essentiel pour la production d’une texture disposant d’une suffisante plausibilité. Non seulement on pourra ainsi multiplier les moments de surprise, leur accorder par exemple une importance informative au moins égale à celle des moments de reconnaissance et de familiarité, et travailler dès lors avec cette dichotomie [...]. Mais on pourra aussi, du fait de leur brièveté, réduire, sans totalement l’oblitérer, le taux de reconnaissabilité de certains éléments [...], le contrôler jusqu’à un certain point et le moduler d’une manière musicalement significative” https://scholarcommons.scu.edu/music/33/ 21 sulco de um disco, de forma que a agulha retorne ad infinitum ao mesmo local, criando um loop. Outros precursores incluem o próprio Pousseur, com sua obra Scambi (1957), construída a partir de impulsos filtrados e cuja forma permite a reordenação de seções – daí seu título, que pode ser traduzido como ‘trocas’ –, Stockhausen, com sua peça Kontakte (1958-1960) – baseada em sua ideia de unidade do tempo musical (STOCKHAUSEN apud MENEZES, 2009, p. 141-150), que parte da constatação prática de que impulsos acima de uma certa taxa (por volta dos 20 Hz), geram frequências, levando o compositor a concluir que as alturas não são senão impulsos rápidos e os ritmos, senão alturas lentas, o que é acusticamente incorreto16, Xenakis, com Analogique B (1959) e Concret PH (1962) e John Cage, com obras como William’s Mix (1951-1953). Parte destas origens, são ligadas, por Phil Thomson (2004, p. 208), à poética de Anton Webern, no sentido da atomização do material musical. De um ponto de vista técnico, esta ideia – certamente relacionada, mas de algum modo oposto, à premissa inicial da escola de Colônia, de compor tendo como átomo, não as senoides, átomos espectrais, mas microsons, ou impulsos, átomos temporais – foi facilitada pelos programas computacionais mencionados por Thomson (2004) – o SAWDUST de Herbert Brün, desenvolvido em 1970, e o SSP, de Gottfried Michael Koenig, desenvolvido ao longo da década de 1970 e os programas desenvolvidos por Curtis Roads a partir da mesma década: Synthulate, Granulate e, talvez de maneira mais influente, o Cloud Generator17. Faz-se necessário ressaltar que há uma clara diferença entre dois processos de composição com microsons: por um lado, a síntese de microsons – a partir de processos estocásticos, da síntese prévia de formas de onda (wavetable synthesis), cuja história remonta aos impulsos de Kontakte, às ideias de Xenakis e aos softwares de Brün e Koenig – e, por outro lado, a granulação o trabalho com amostras (samples) de sons gravados, compostos previamente ou até mesmo pirateados (plunderphonics18), remontando a Cage e ao sillon fermé. Tal distinção é apontada ao longo do influente livro de Roads, Microsound 18 Termo cunhado por John Oswald (1985), que consiste na pirataria como premissa estética. 17 O Cloud Generator ainda está disponível no website de Roads, embora funcione apenas no obsoleto sistema operacional MAC OS 9, desenvolvido até 2002: https://www.curtisroads.net/software. Acesso em: 16 de maio de 2024. 16 De fato, impulsos, se acelerados acima de uma certa taxa, deixam de ser discerníveis discretamente, fazendo soar a altura correspondente a taxa de emissão dos impulsos, mas esta concepção não corresponde com a realidade da natureza acústica das ondas sonoras. https://www.curtisroads.net/software 22 (ROADS, 2001), que dedica capítulos diferentes para a transformação de sons a partir da granulação (ROADS, 2001, p. 179 - 234) e para a síntese granular (ROADS, 2001, 85-118). Tanto um processo com outro pode envolver a referencialidade extrínseca. Riverrun (1986) de Barry Truax, faz uso de síntese granular, referenciando o fluxo de rios – para além da referência joyceana do título –, enquanto a peça mista, Tongues of angels (1998), do mesmo compositor, utiliza a técnica de granulação a partir de sons instrumentais. Segundo Thomson, “a granulação se faz presente proeminentemente na abordagem do que Truax chama de ‘soundscape composition’19” (THOMSON, 2004, p. 210, tradução nossa), conceito a respeito do qual trataremos posteriormente neste trabalho. Por ora, nos interessa apontar as possibilidades composicionais envolvidas na manipulação da reconhecibilidade de uma fonte sonora pela duração de sua segmentação, processo que foi realizado direcionalmente em Mesmo que depois (2013) de Bruno Ruviaro, cuja primeira parte progressivamente estende suficientemente a duração dos grãos, de modo a se perceber, primeiramente, algo que remete à voz humana, depois, a certeza de que é a voz humana e, em seguida, de que é uma voz cantada, com instrumentos e, finalmente, que se trata de uma canção de João Gilberto. Nos interessa, nesta pesquisa, este tipo de processo de estruturação dos níveis de clareza e turbidez da reconhecibilidade do som, mais do que a escolha do som-fonte, propriamente dito. O mesmo tipo de procedimento foi empregado na peça acusmática Escombros (2024), composta durante a realização desta pesquisa e sobre a qual trataremos posteriormente. Ao tratar de suas obras Sorties (1995), Hot Air (1995) e Unsound Objects (1995), o compositor Jonty Harrison afirma que estas três obras de 1995 se caracterizam por um ‘flerte’ com a realidade. Sons reconhecíveis estão lado a lado com sons cujas origens são bem menos claras ou que foram sujeitas a altos níveis de processamento; a ambiguidade de sentido é multiplicada pelo aproveitamento do potencial de reconhecimento pelos ouvintes. [...] O modo como estas três obras entram e saem de um tipo de ‘foco da realidade’ e repetitivamente dependem do reconhecimento por parte do ouvinte das origens no mundo real das fontes sonoras [...] implicam uma crítica de 19 No original: “granulation came to figure prominently in Truax’s approach to what he calls ‘soundscape composition’“ 23 Schaeffer e da escuta reduzida, enquanto simultaneamente funcionam no nível da conexão espectromorfológica 20 (HARRISON, 2016, p. 20, tradução nossa). Assim, o compositor apresenta uma das possibilidades de trabalho com materiais extrinsecamente referenciais: sua associação com sons de fontes dificilmente reconhecíveis, por meio de um discurso espectromorfológico. Tal proposta se aproxima do que buscamos com esta pesquisa, mas, em nosso caso, propomos que entre estes dois tipos de materiais, há uma miríade de possibilidades, que podem ser estruturadas especificamente de acordo com o quão reconhecível são. Faz-se necessário reconhecer, como afirmou François Bayle, as relações entre os i-sons21 “jamais são apenas abstratas ou apenas concretas, mas, como em toda morfologia, um conjunto articulado de lembranças e devires”22 (BAYLE, 1993, p.103, tradução nossa). Nossa pesquisa partirá da investigação de aspectos teóricos e filosóficos da referencialidade extrínseca, termo que adotamos para diferenciar este conceito da intertextualidade, entendida como referência de um objeto à própria linguagem, e da metalinguagem, caso específico de intertextualidade no qual a referencialidade à linguagem se dá através da incorporação de elementos provenientes de outras obras. Em seguida, analisaremos três obras acusmáticas, visando compreender se, e de que maneira, a referencialidade extrínseca contribui para a estrutura musical. Na primeira análise, a de Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), de Jonathan Harvey, ensaiamos desenvolver uma metodologia analítica ampla e replicável. Os resultados assim obtidos, apesar de relevantes, decorreram de um longo e sistemático processo analítico. Julgamos que, futuramente, tal metodologia poderá ser reduzida a seus componentes mais essenciais, 22 No original: “Ne sont jamais seulement abstraites ou seulement concrètes, mais comme en toute morphologie, un ensemble articulé de souvenirs et de devenirs”. 21 Este conceito de Bayle visa, de certa forma, substituir o de objeto sonoro. As ‘imagens de som’ ou i-sons são constituídas por uma “dupla disjunção, uma – física – proveniente de uma substituição do espaço de causas e outra – psicolológica – de um deslocamento do ar de efeitos: consciência de um simulacro, de uma interpretação, de um signo.” (BAYLE, 1993, p. 186, tradução nossa). 20 No original: “these three 1995 works are characterised by this sense of ‘flirtation’ with reality. Recognisable sounds rub shoulders with sounds whose origin is much less clear or which have been subjected to high levels of processing; ambiguity of meaning is compounded by harnessing the potential for recognition by listeners. [...] The way these three works move in and out of a kind of ‘reality focus’ and repeatedly rely on recognition on the part of the listener of the sound sources’ real world origins and context [...] implies a critique of Schaeffer and reduced listening, whilst simultaneously functioning at the level of spectromorphological connection”. 24 tornando-se mais efetiva. Esta possibilidade futura nos levou a apresentar a descrição da metodologia e sua aplicação na obra de Harvey nos dois primeiros apêndices desta dissertação, respectivamente, enquanto os pontos mais relevantes obtidos através desta análise foram relatados no corpo do texto. Tendo em vista estas dificuldades, optamos por adotar, nas outras duas análises, uma metodologia guiada mais pela resolução dos problemas apresentados pela escuta e menos por um modelo metodológico prévio. Os resultados obtidos a partir das análises e das reflexões teóricas ensejaram a composição de três obras acusmáticas que tratam de maneiras distintas da referencialidade extrínseca. O problema composicional posto diz respeito ao modo de utilização dos fatores extrínsecos, da investigação de suas potencialidades estruturantes, para além do possível caráter narrativo e semântico. Buscou-se, assim, a adoção de diferentes estratégias, visando a realização de uma escritura destes aspectos, que discutiremos no capítulo 4 deste trabalho. Conforme veremos ao longo deste trabalho, diferenciamos três aspectos da referencialidade extrínseca: aspectos do registro e de suas transformações morfológicas e espectrais, aspectos da espacialidade e aspectos gestuais. Estas facetas, com efeito, estão interligadas, mas considerá-las individualmente permite estratégias composicionais e analíticas distintas para cada uma delas, expandindo o leque de possibilidades de trabalho. 25 2 Aspectos teóricos da referencialidade na música acusmática. Uma reflexão crítica de terminologias propostas Nestas poucas páginas que introduzem este capítulo, falaremos de modo geral a respeito do conceito de referencialidade extrínseca, mencionando, de passagem, autores de bases epistemológicas díspares. Faz-se necessário que assim seja, uma vez que a temática discutida neste trabalho passa obrigatoriamente por diversas correntes de pensamento. Em um primeiro momento, trataremos da fenomenologia husserliana, por ser esta a base epistemológica mais adequada para discutir o tratamento dado à referencialidade extrínseca por Pierre Schaeffer em seu histórico Traité des objets musicaux (SCHAEFFER, 1966), obra que revisitaremos devido ao fato de que ela condicionou muito do pensamento a respeito da referencialidade extrínseca ao longo da história da música acusmática. O termo que empregamos neste trabalho, referencialidade extrínseca, é, contudo, estranho à fenomenologia, ele tem origem na semiologia, que discutiremos mais adiante. Parece-nos mais adequado discutir primeiro o Traité e, depois, o restante da bibliografia essencial a esta pesquisa, não apenas pela cronologia, mas também por evitarmos assim uma discussão relativamente longa, que terá como base a fenomenologia de Husserl, entre discussões pautadas principalmente por um viés semiológico. Desta maneira, teremos de nos servir de uma definição provisória do termo “referencialidade extrínseca”, qual seja: a qualidade daquilo que referencia ou aponta para algo que está fora de si e que seja de uma natureza diferente. Assim, por exemplo, o som de uma bola rolando, presente em Points de fuite (1982), de Francis Dhomont, possui essa característica, enquanto qualquer som de Diamorphoses (1957), de Iannis Xenakis, ou de Glissandi (1957), de György Ligeti, não possui. Podemos afirmar, ainda que como premissa a ser confirmada, que a referencialidade extrínseca está presente em todo e qualquer som, ao menos de maneira potencial, uma vez que o ato de relacionar um som com uma causa, objeto ou material depende de um ato intencional – entendido no sentido fenomenológico23. 23 O conceito de intencionalidade diz respeito à interpretação segundo a qual toda consciência é consciência de algo, dependendo, portanto, de atos, ou noesis. Segundo Husserl: “Na própria essência do vivido não está contido apenas que ele é consciência, mas também do que é consciência, e em que sentido determinado ou indeterminado ela o é.” (HUSSERL, 2006, p. 89). 26 Parece-nos também que qualquer obra acusmática24 põe em jogo uma dialética permanente entre uma escuta que se volta para os aspectos espectromorfológicos25 e outra que se volta para os aspectos da referencialidade extrínseca, uma vez que, por um lado, todo som possui características intrínsecas – mesmo o silêncio que, conforme afirmou John Cage, possui sua duração como parâmetro intrínseco26 – e, por outro, a busca por uma origem sonora é constante – dado que “a escuta é vigilância”27 (BAYLE, 1993, p. 101, tradução nossa) e que “cada ouvinte se incumbirá, por instinto, de reconstituir uma possível proveniência física do sonoro, por mais indefinível que esta seja” (MENEZES, 2018, p. 158). Julgamos, portanto, ser inconcebível a existência de um som sem propriedades ditas abstratas ou de um som que não possa ser ligado a uma fonte, por irreal e subjetiva que seja28. A 28 Podemos relacionar esta afirmação às três categorias lógicas propostas por Charles Sanders Peirce, quais sejam, a primeiridade, a secundidade e a terceiridade, que, segundo Lúcia Santaella, “dizem respeito às modalidades peculiares com que os pensamentos são enformados e entretecidos. Enfim: camadas interpenetráveis e, na maior parte das vezes, simultâneas, se bem que qualitativamente distintas” (SANTAELLA, 1983, p. 42). Trata-se, sumariamente, de “três modalidades possíveis de apreensão de todo e qualquer fenômeno” (SANTAELLA, 1983, p. 42). A primeiridade diz respeito à pura qualidade, à consciência imediata: “o primeiro (primeiridade) é presente e imediato, de modo a não ser segundo para uma representação [...] ele é iniciante, original, espontâneo e livre, porque senão seria um segundo em relação a uma causa. Ele precede toda síntese e toda diferenciação; ele não tem unidade nem partes” (SANTAELLA, 1983, p. 45). A secundidade, por sua vez, em oposição à imediaticidade da primeiridade, diz respeito à sensação, que, segundo Santaella, é já uma relação diádica, por ser constituída de duas partes: “1) o sentimento e 2) a força da inerência desse sentimento num sujeito” (SANTAELLA, 1983, p. 48). Esta categoria diz respeito à “binariedade pura” (SANTAELLA, 1983, p. 51). Finalmente, a terceiridade diz respeito ao signo ou à representação (SANTAELLA, 1983, p. 51). Assim, a noção de fonte e causa se mantém enquanto uma possibilidade relacionada à secundidade em qualquer objeto sonoro e, de igual modo, sua leitura enquanto portador de propriedades ditas abstratas, como altura, intensidade, morfologia, timbre ou espacialidade, que permitem sua decomposição em aspectos específicos, possibilitando sua relação com outros objetos, de um ponto de vista mais ligado à linguagem musical, em oposição à identificação de causas e fontes – demarcando sua possibilidade de leitura enquanto terceiridade, uma vez que se relaciona com outros elementos da linguagem enquanto signo –, também permanece como possibilidade. Não obstante esta categorização, as relações entre estes aspectos, além de serem interrelacionáveis, nunca estão inteiramente ausentes. Portanto, o paralelo que traçamos identifica a percepção sonora pura, pré-judicativa, à primeiridade, a relação causal, ainda fora do âmbito da linguagem, à secundidade, enquanto à terceiridade correspondem as relações signícas, 27 No original: “l’écoute est vigilance”. 26 Cage afirma que “de todos os aspectos do som, incluindo frequência, amplitude e timbre, a duração, apenas, também era uma característica do silêncio.” (CAGE, 1961, p. 19) 25 O termo espectromorfologia foi cunhado por Denis Smalley para se referir a um modo de descrever “materiais sonoros e estruturas musicais, que se concentra no espectro de alturas disponíveis e sua formação (shaping) no tempo” (SMALLEY, 1986, p. 61, tradução nossa). Trata-se de uma “ferramenta descritiva baseada na percepção aural” (SMALLEY, 1997, p. 107, tradução nossa) que é “herdeira da tradição musical ocidental, mas que, ao mesmo tempo, muda os critérios musicais e demanda novas percepções” (SMALLEY, 1986, p. 61, tradução nossa). Esse termo será utilizado, ao longo deste trabalho, para se referir não apenas à ferramenta desenvolvida por Smalley, mas também para caracterizar os aspectos intrínsecos do som, de maneira ampla, compreendendo os âmbitos de altura, duração, dinâmica e morfologia. 24 Algo semelhante poderá ser dito de obras instrumentais ou mistas, estas, no entanto, não são parte do escopo desta pesquisa. 27 relação entre esses dois aspectos se dá devido ao fato de que a associação particular que se fará entre o que é escutado e as supostas fontes do som está intimamente ligada às características espectromorfológicas deste. No entanto, as discussões a respeito da articulação de referencialidades extrínsecas na música acusmática, do frequente jogo entre sons ditos abstratos e referenciais29, da evocação narrativa ou causal30 gerada pelo material sonoro no ato da escuta, ocupam frequentemente um espaço marginal em grande parte da literatura disponível. As discussões a respeito desse tema na música acusmática são geralmente restritas a discussões de práticas composicionais – entendidas, segundo a tripartição de Jean Molino (1990) que foi desenvolvida por Jean-Jacques Nattiez (1990), como pertencentes ao nível poiético –, ou entram como elemento da percepção – pertencente ao nível estésico da tripartição proposta por esses autores31. Em outras ocasiões, ambos os âmbitos são tomados sem muitas distinções. Uma relevante discussão a respeito da referencialidade extrínseca está presente no texto de Simon Emmerson intitulado The Relation of Language to Materials (1986), na qual o autor define nove tipos de obras de acordo com a intersecção de um eixo que trata da sintaxe da obra – indo de uma sintaxe abstrata a uma sintaxe abstraída dos materiais – com um eixo que trata do discurso, indo do discurso aural ao discurso mimético. Ambos os eixos contém um meio-termo caracterizado como combinação dos dois tipos nos extremos. A tipificação de Emmerson, sobre a qual trataremos em mais detalhe posteriormente, certamente poderá nos servir como ponto de partida. Contudo, a experiência com o repertório demonstra que tal categorização abrangente e voltada à macroestrutura não basta para a análise de obras, em especial, aquelas que transitam entre os extremos por procedimentos diversos. Parece-nos também que o texto de Emmerson parte de uma oposição binária entre materiais extrinsecamente 31 Essa tripartição será detalhada posteriormente nesta dissertação. 30 Entendemos “evocação narrativa” como uma evocação de uma situação ou contexto de onde provém determinado som ou conjunto de sons e “evocação causal”, como o correlato objetivo da ligação com a fonte, conforme entendida por Smalley (1997). É dizer, o ouvinte liga o som a determinada fonte, o som evoca uma causalidade. 29 Conforme veremos, ao longo deste trabalho, não adotamos o termo “referencial” sem um qualificativo, como é costumeiro, uma vez que a referencialidade pode se dar intrínseca ou extrinsecamente. linguísticas e estruturais, seja com relação às propriedades intrínsecas, seja, como propomos neste trabalho, as relações entre graus de referencialidade extrínseca. 28 referenciais e “abstratos”, ao entender que os materiais são ou “aurais” ou “miméticos”, ainda que ele afirme que há um continuum. Nós, por outro lado, defendemos que o continuum entre estes dois polos dificilmente pode ser dividido em duas categorias, percepção esta que se avizinha da afirmação de Denis Smalley, segundo a qual há uma diferença no nível de identificação entre uma afirmação que diz de uma textura, ‘são pedras caindo’, uma segunda que diz, ‘soa como pedras caindo’, e uma terceira que diz, ‘soa como se estivesse se comportando como pedras caindo’. Todas as três afirmações são conexões extrínsecas, mas com patamares crescentes de incerteza e distância da realidade32 (SMALLEY, 1997, p. 110, tradução nossa). Cabe ressaltar que nosso objetivo com esta pesquisa não consiste na investigação de elementos semânticos decorrentes da presença de sons extrinsecamente referenciais – muito embora, frequentemente, estes sons se articulem semântica ou narrativamente –, mas nas relações que estes sons engendram, na capacidade que possuem de evocar paisagens, ações e objetos, em como estas evocações são apresentadas, desaparecem e se transformam. Interessa-nos o continuum que vai do mais fiel realismo – embora concordemos com a afirmação de Atkinson (2007, p. 120), segundo a qual as gravações de sons ambientais não são tecnologicamente transparentes33 – ao completamente abstrato, com os diversos tipos de representação que se situam entre estes dois extremos. Assim, temos como objetivo o enfoque composicional e analítico desses aspectos, tratando os graus de referencialidade como gradações de um parâmetro, avaliando, caso a caso, a pertinência deste parâmetro para a escuta e para a composição. Faz-se necessário ressaltar que raramente este aspecto será o mais relevante da obra, uma vez que, dado um som extrinsecamente referencial qualquer, alterações em seu grau de referencialidade, por meio de tratamento sonoro, resultarão, 33 Mesmo na gravação de melhor definição ainda existem, no caso de uma gravação digital, erros de quantização e dither – ruído que tem a função de mascarar os ruídos periódicos provocados pela erros de quantização –, e, no caso de uma gravação analógica, o ruído da fita magnética ou do disco. Para além disso, as diferenças na resposta espectral dos aparelhos utilizados para gravação e reprodução interferem no espectro do som e a locomoção ou a movimentação do ouvinte, que acarretaria alterações espectromorfológicas em um som natural, não tem o mesmo efeito no som gravado. 32 No original: “There is quite a difference in identification level between a statement which says of a texture, ‘It is stones falling’, a second which says, ‘It sounds like stones falling’, and a third which says, ‘It sounds as if it’s behaving like falling stones’. All three statements are extrinsic connections but in increasing stages of uncertainty and remoteness from reality”. 29 naturalmente, em alterações espectromorfológicas e vice-versa, ainda que nem sempre a estruturação de ambos os tipos de parâmetros sigam uma mesma direção. Há, contudo, conforme pretendemos demonstrar, frequentemente uma correlação entre a reconhecibilidade do material, proporcionada pela referencialidade extrínseca e a possibilidade de sua variação, sem prejuízo para as relações internas de equivalência. É dizer, um material extrinsecamente referencial suporta mais facilmente transformações espectrais, espaciais e temporais, sem que a conexão entre duas instâncias – uma mais e outra menos transformada – se perca. Esperamos que tal empreitada possa elucidar uma pequena parte da fundamental questão a respeito das relações entre o mundo de uma obra e o mundo exterior, contribuindo com uma discussão em grande parte retomada por autores como Simon Atkinson (2007) e Barry Truax (2008) em relação à música acusmática, a saber, de quais maneiras tais relações podem se dar mediante o uso de sons extrinsecamente referenciais. Grosso modo, todo e qualquer som se relaciona com o mundo exterior de diversas maneiras, como por aspectos acústicos ou por relações históricas. O som extrinsecamente referencial, quando considerado por essa característica, se relaciona com o mundo pela sua semelhança espectromorfológica, espacial ou gestual e pode vir a se afastar ou aproximar do mundo de diversas formas, as quais pretendemos investigar com este trabalho. O registro sonoro tem sido investigado mais recentemente por um viés da chamada arte sonora, zona fronteiriça entre a música e as artes visuais, viés este que é fortemente pautado pelos ditos media studies (estudos de mídias)34. Apesar de obtermos algumas contribuições provenientes destas discussões, como veremos a respeito da noção crítica de som-em-si, apresentada por Seth Kim-Cohen (2009, p. 126). Faz-se, no entanto, necessário que ressaltemos que este tipo de abordagem geralmente abdica dos conceitos de música e de análise musical – entendidos em seus sentidos plenos –, de forma que, através dos media studies, os objetivos que desta pesquisa dificilmente seriam alcançados. 34 Citamos, como exemplos dessa abordagem, as obras de Seth Kim-Cohen (2009) e Kittler (1999). 30 2.1 Por uma expansão da escuta reduzida Trataremos, aqui, de um dos conceitos mais fundamentais para a música acusmática, que exerceu grande influência no tratamento dado à referencialidade extrínseca por uma vasta gama de autores e compositores. A escuta reduzida (écoute réduite), proposta por Schaeffer, consiste em ignorar propositadamente qualquer relação extrínseca do som, focando a percepção, portanto, em aspectos intrínsecos do mesmo. No parágrafo 4 do capítulo XV do Traité des objets musicaux35 (SCHAEFFER, 1966), Schaeffer nos apresenta alguns pontos do pensamento de Edmund Husserl, como a transcendência do objeto, a tese ingênua do mundo natural e a ἐποχή (epoquê), culminando em sua definição de objeto sonoro36: Há objeto sonoro uma vez que eu tenha realizado, ao mesmo tempo material e espiritualmente, uma redução ainda mais rigorosa que a redução acusmática: não apenas eu me mantenho somente com as informações fornecidas por meu ouvido […]; mas essas informações não concernem senão ao acontecimento sonoro ele mesmo […]. É o som ele mesmo que eu viso, ele que eu identifico.37 (SCHAEFFER, 1966, p. 268, tradução nossa) Anteriormente, o compositor francês afirmara que, ao escutar um ruído de galope ou um discurso no toca-disco, visando, respectivamente, o cavalo galopando e os conceitos presentes no discurso, “não há objeto sonoro: há uma percepção, uma experiência auditiva, através da qual eu viso um outro objeto”38 (SCHAEFFER, 1966, p. 268, tradução nossa, grifo do autor). 38 No original: “il n’y a pas d’objet sonore: il y a une perception, une expérience auditive, à travers laquelle je vise un autre objet.” 37 No original: “Il y a objet sonore lorsque j’ai accompli, à la fois matériellement et spirituellement, une réduction plus rigoureuse encore que la réduction acousmatique: non seulement, je m’en tiens aux renseignements fournis par mon oreille […]; mais ces renseignements ne concernent plus que l’événement sonore lui-même […]. C’est le son même que je vise, lui que j’identifie” 36 Cabe ressaltar, que o termo faz-se presente também em Pierre Boulez, com sentido, no entanto, distinto. Em No limite do país fértil (Paul Klee), texto de 1955, ele chama de objeto sonoro o resultado das sínteses aditiva e subtrativa: “precisemos que, para levar a bom termo o trabalho de composição com estes “objetos sonoros”, é necessário alargar a noção de série à interação do desenrolamento temporal primário nas diferenças de organização que intervêm entre tais objetos – ou no seio de uma mesma família de objetos deduzidos uns dos outros.” (BOULEZ, 2013, p. 128). Em textos posteriores, usa o termo para se referir ao material harmônico pré-composicional: “Eis três exemplos por meio dos quais é possível ver que o objeto sonoro matriz, verticalmente concebido, se pode utilizar ou descrever mediante a escrita para melhor ser percebido e ter prolongamentos mais ricos” (BOULEZ, 2013, p. 367). Anteriormente, como em Eventualmente…, de 1952, havia usado o termo para referir-se a sons complexos, como o som de gongo e o piano preparado de John Cage (BOULEZ, 2013, p. 86) 35 Doravante esta obra será referenciada apenas como Traité ou TOM. 31 O objeto sonoro é, portanto, na concepção de Schaeffer, algo que é dado apenas pela escuta reduzida, que ele iguala à epoquê: “podemos, nos livrando do banal, ‘cassando o natural’, bem como o cultural, encontrar um outro nível, um autêntico objeto sonoro, fruto da epoquê, que será, se possível, acessível a todo homem que escuta?”39 (SCHAEFFER, 1966, p. 271, tradução nossa, grifos do autor). A escuta reduzida, essa redução mais rigorosa, é precedida da redução acusmática, que consiste na retirada de aspectos visuais da escuta: “a situação acusmática, de modo geral, nos proíbe simbolicamente qualquer relação com aquilo que é visível, tocável, mensurável”40 (SCHAEFFER, 1966, p. 93, tradução nossa). Em suma, para o autor, há, em primeiro lugar, a redução acusmática, na qual o som é apartado de suas causas visíveis. A partir dessa redução, é possível uma segunda, mais profunda, a escuta reduzida, que Schaeffer equipara à epoquê. Esta redução busca ignorar qualquer aspecto extrínseco, ou mesmo cultural, da percepção acusmática. Faz-se necessário examinar a interpretação do músico francês a respeito do conceito fenomenológico de epoquê, uma vez que ela pode ser tida como um dos elementos fundantes de toda a discussão a respeito da referencialidade extrínseca na música acusmática. Para tanto, trataremos inicialmente desse conceito, bem como a função que ele exerce na fenomenologia husserliana e, em seguida, voltaremos criticamente nossa atenção ao Traité para verificar a pertinência de sua aplicação. Marilena Chauí define a epoquê, brevemente, na introdução à sexta das Investigações lógicas de Husserl, da seguinte maneira: A redução ou epoquê é a operação pela qual a existência efetiva do mundo exterior é “posta entre parênteses”, para que a investigação se ocupe apenas com as operações realizadas pela consciência, sem que se pergunte se as coisas visadas por ela existem ou não realmente (CHAUÍ apud HUSSERL, 2000, p. 10) Em Ideias I41, o filósofo apresenta o chamado caminho cartesiano para a redução transcendental, que Schaeffer leva em consideração no Traité. Esse 41 A obra Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (2006) de Edmund Husserl será referenciada como Ideias I neste trabalho. 40 No original: “la situation acousmatique, d’une façon générale, nous interdit symboliquement tout rapport avec ce qui est visible, touchable , mesurable.” 39 No original: “pouvons-nous, nous délivrant du banal, “chassant le naturel” aussi bien que le culturel, trouver un autre niveau, un authentique objet sonore, fruit de l’époché, qui serait si possible accessible à tout homme écoutant?” 32 caminho começa com o ensaio da dúvida universal cartesiana, diferindo dela por não duvidar efetivamente da existência, mas apenas colocar entre parênteses tudo o que é por ela abrangido [pela tese geral inerente à essência da orientação natural] no aspecto ôntico: isto é, todo este mundo natural que está constantemente “para nós aí”, “a nosso dispor”, e que continuará sempre aí como “efetividade” para a consciência, mesmo quando nos aprouver colocá-la entre parênteses. Se assim procedo, como é de minha plena liberdade, então não nego este “mundo”, como se eu fosse sofista, não duvido de sua existência, como se fosse cético, mas efetuo a ἐποχή “fenomenológica”, que me impede totalmente de fazer qualquer juízo sobre existência espaço-temporal. (HUSSERL, 2006, p. 81, grifos do autor) Em outras palavras, não se nega a existência espaço-temporal, apenas não se realiza qualquer tipo de juízo a respeito dela no âmbito da facticidade42, ela é “posta fora de circuito”. Desse modo, os atos da consciência que constituem43 o objeto e o próprio objeto – após ter sofrido essa modificação, com fins metodológicos – tornam-se objetos de análise. Assim, Husserl pode iniciar o que ele considera uma ciência fundada na evidência [Evidenz], já que o conhecimento, para ele, consiste no preenchimento da intuição, desde que fundado na evidência44. Mantendo-nos nas Ideias I — uma vez que os conceitos de Husserl são desenvolvidos nas obras e manuscritos posteriores, por vezes negando ou alterando significativamente o que fora desenvolvido em obras anteriores —, o autor define a fenomenologia como uma “doutrina eidética descritiva dos vividos transcendentais puros em orientação fenomenológica”45 (HUSSERL, 2006, p. 161), que busca descrever e determinar “em conceitos rigorosos a essência genérica da percepção 45 A fenomenologia como uma ciência descritiva estática é típica do pensamento de Husserl nos anos entre as Investigações lógicas e Ideias I. (ZAHAVI, 2015, p. 134-135) 44 Este conceito se sujeita, na filosofia husserliana, segundo Tourinho (2020), a duas teses, interrelacionadas. A primeira postula que a evidência é o acréscimo à intuição provocado pela dação do objeto: “a atribuição do ser (em sentido predicativo) à coisa percebida sensivelmente, denuncia-nos um ‘acréscimo’ de significação concernente a um ‘estado’ da coisa visada e que não poderia encontrar, no ato simples da percepção sensível, um correspondente objetivo que pudesse confirmá-lo intuitivamente. Tal atribuição obriga-nos, conforme vimos, a um deslocamento para a esfera judicativa, na qual relacionamos, num juízo, os termos da proposição, permitindo-nos, enfim, pensar, como um ‘novo objeto’, um estado-de-coisa.” (TOURINHO, 2020, p. 218). Assim, a evidência da segunda tese, do juízo, implica uma evidência pré-predicativa, sobre a qual se funda. Deste modo, a fenomenologia husserliana, ao realizar a epoquê, visa, entre outros aspectos, verificar os limites da evidência. 43 Trataremos, mais adiante, a respeito do que significa, para o fundador da fenomenologia, a constituição do objeto pelo sujeito. 42 A facticidade, para o autor das Ideias I, é contingente: é “de antemão inerente à essência dos objetos da experiência possível, que, considerados em si mesmos, esses objetos por elas [pelas regulamentações fáticas expressas por leis naturais] regulamentados são contingentes.” (HUSSERL, 2006, p. 35, grifo do autor) 33 em geral ou de suas espécies subordinadas, como a percepção da coisa física, dos seres animais etc.” e, de igual modo, “a essência genérica da recordação, da empatia, da volição em geral etc.” (HUSSERL, 2006, p. 162). Essa doutrina descritiva trata precisamente da consideração, em certa generalidade, de aspectos particulares daquilo que é dado à consciência — se é uma coisa física, um conceito, um ser animado —, bem como da maneira segundo a qual isso é dado — se é algo recordado, percebido, imaginado. Esses aspectos dizem respeito ao que o filósofo chama de matéria e qualidade do ato, respectivamente. A epoquê tem a função, portanto, de suspender a orientação natural, evitando o que o autor classifica como preconceitos metafísicos, e de fundamentar a filosofia como um todo a partir de uma consciência apodítica – o que justifica a afirmação de Husserl segundo a qual a fenomenologia seria uma filosofia primeira, e o “anseio secreto de toda a filosofia moderna” (HUSSERL, 2006, p. 141) –, ela o faz colocando entre parênteses “todos os juízos sobre [a esfera do mundo natural e as esferas eidéticas]” (HUSSERL, 2006, p. 140). No entanto, conforme demonstra o filósofo dinamarquês Dan Zahavi, “a fenomenologia integra e contém justamente tudo aquilo que, por razões metodológicas, tinha sido colocado de início entre parênteses” (ZAHAVI, 2015, p. 90), uma vez que para examinar os atos da consciência é necessário que se observe aquilo que é dado na consciência em orientação natural, mas sem que a orientação natural sirva de justificativa para a aceitação fática daquilo que é dado.46 Tendo brevemente apresentado o conceito de epoquê, devemos retornar ao Traité, expondo o que julgamos ser interpretações equivocadas deste conceito central para a fenomenologia. Ponderamos que são três os principais equívocos na interpretação de Schaeffer: o primeiro diz respeito à abrangência da redução; o segundo é sua concepção de objeto e, portanto, de objeto sonoro; por fim, interpretamos que ele 46 Cabe ressaltar que toda a problemática ora discutida tem origem em uma contradição entre consciência e mundo transcendente, conforme aponta o jovem Theodor Adorno: “à consciência, cujos dados, para Husserl, são as únicas fontes de legitimidade do conhecimento, ele contrasta, desde o início, um mundo transcendente, que na verdade só pode ser legitimado epistemologicamente por se referir à consciência, mas cuja existência não seria constituída através do complexo da consciência. […] A colocação de um mundo transcendente, no entanto, contradiz o pressuposto da consciência como ‘esfera do ser de origens absolutas’. Ela contradiz o princípio fundamental do idealismo transcendental.” (ADORNO, 2007, p. 50). Essa discussão, apesar de não interferir no que propomos realizar neste capítulo, pode nos ajudar a compreender as causas do que julgamos como uma interpretação equivocada da teoria husserliana por parte de Schaeffer. 34 considera a redução como um tipo de exclusão definitiva, contradizendo a função metodológica que tem a epoquê para Husserl. No que diz respeito ao primeiro item elencado, Schaeffer busca colocar entre parênteses apenas aspectos que dizem respeito à cultura ou ao caráter de imagem47 que um determinado som pode possuir, mas em momento algum o autor coloca fora de circuito aspectos concernentes à espectromorfologia do som, aspectos estes que pertencem também à consciência em orientação natural, de maneira equivalente à percepção visual de cor, forma e tamanho. A redução portanto não é tão abrangente quanto necessária para ser considerada uma redução fenomenológica, podendo ser caracterizada como um tipo específico de redução, particular, limitado, apresentado no §31 das Ideias I, no qual uma tese específica é tirada de circuito: “temos plena liberdade de praticar, em relação a toda e qualquer tese, essa ἐποχή peculiar, certa suspensão de juízo que é compatível com a convicção da verdade.” (HUSSERL, 2006, p. 80). Isso não pode ser confundido com a redução fenomenológica, ou transcendental, na qual a tese geral da orientação natural é inteiramente posta entre parênteses. No mesmo sentido da interpretação de Schaeffer, uma redução parcial poderia ser realizada com relação aos dados espectromorfológicos do som, ou qualquer tese atribuída a ele. O segundo aspecto de nossa crítica à interpretação de Schaeffer, diz respeito à concepção de objeto. Fica evidente pela citação apresentada no começo deste sub-capítulo — segundo a qual, quando se visa aquilo que é dado por meio de imagem ou de signos (em oposição ao visar o som como ente imanente), não há objeto sonoro —, que o autor interpreta que o objeto se constitui exclusivamente em uma consciência solipsista, ignorando aspectos de alto nível de relevância para Husserl, como a intersubjetividade e a existência do objeto independente de sua situação enquanto objeto visado48. Dizer que um objeto é constituído pela consciência, como o faz Husserl, não é dizer que a consciência o faz existir. O objeto 48 De fato, Husserl afirma que “[a coisa] pertence a esse mundo, mesmo sem ser percebida, portanto mesmo então ela está aqui para o eu” (HUSSERL, 2006, p. 107) e que “a coisa percebida pode existir sem que seja percebida, sem que nem mesmo se tenha potencialmente consciência dela” (HUSSERL, 2006, p.98) 47 O caráter de imagem diz respeito à propriedade que um objeto tem de referenciar um outro através da semelhança (HUSSERL, 2005, p. 38-39) — muito embora, como apontado acertadamente por Sokolowski, a semelhança não seja o único pré-requisito para a formação de imagens: “Uma imagem pode se assemelhar ao que ela representa, mas não é feita para ser uma imagem pela virtude da semelhança; uma irmã gêmea assemelha-se a outra, mas ela não é uma imagem da outra. Ser uma imagem não é apenas ser como algo outro, é ser a presentificação do que é pintado.” (SOKOLOWSKI, 2014, p. 94) 35 da consciência é constituído pelas suas infinitas maneiras de dação, como unidade ideal de todos os seus lados49, incluindo-se as maneiras pelas quais o objeto se dá para terceiros, às quais posso ter acesso através da consciência empática e da comunicação. O objeto é constituído pelo sujeito que percebe, certamente, mas o termo ‘constituir’ não indica que o sujeito é responsável pela existência do objeto, ao invés disso, o objeto é dado ele próprio para a percepção, em conformidade com sua própria existência ôntica: “esta conexão [entre os conceitos de percepção – um supra sensível, erigido sobre a sensibilidade ou conceito categorial; e outro, sensível] abrange uma vasta classe de atos, peculiares porque neles algo aparece como ‘efetivo’ e como ‘dado ele próprio’.” (HUSSERL, 2000, p. 134). Faz parte da natureza de objetos que possuem caráter de imagem que eles tenham certo caráter intencional duplo: “a formação de imagens envolve a percepção de um substrato ou veículo (o painel de madeira, o papel colorido) e uma intenção do objeto pintado.” (SOKOLOWSKI, 2014, p. 93). Quando Schaeffer afirma que não há objeto sonoro nos casos mencionados, ele distingue entre intencionar o som de maneira imaginativa50 e fazê-lo perceptivamente, o que está de acordo com o pensamento do filósofo austríaco, mas disso não decorre que são objetos diferentes. Por entender que é na experiência puramente individual que a transcendência do objeto se constitui, o compositor francês contradiz a própria concepção da transcendência do objeto, uma vez que a transcendência da coisa é precisamente transcendência “em relação a sua percepção, e, por conseguinte, em relação a toda consciência que a ela se refira” (HUSSERL, 2006, p. 100). Disso resulta a distinção fundamental entre ser como vivido e ser como coisa: quer eu intencione o objeto “gravação do som do cavalo” de maneira imaginativa — isto é, vendo-o puramente como imagem, fazendo abstração do substrato —, quer de maneira puramente perceptiva, intenciono o mesmo objeto – um objeto que é a imagem (auditiva) de um cavalo e simultaneamente é som pura e simplesmente. A noção de objeto sonoro51, embora útil para a música, parte de um erro de princípio 51 O conceito de objeto sonoro será revisto em seguida. 50 Ou seja, enquanto imagem. 49 “Da consciência empírica de uma mesma coisa, que abrange “todos os aspectos” desta e se confirma em si mesma numa unidade contínua, faz parte […] um sistema multifacetado de contínuas diversidades de aparências e perfis […]. toda determinidade tem seu sistema de perfis e, de cada uma delas , assim como da coisa inteira, é lícito dizer que está ali como a mesma para a consciência que a apreende e que unifica sinteticamente recordação e nova percepção” (HUSSERL, 2006, p. 98). A consciência, segundo Husserl, sintetiza essas multiplicidades na unidade do objeto – processo de adumbramento –, que se dá a si mesmo “em carne e osso” para a consciência. 36 em relação à fenomenologia, resumidamente, considerar o objeto como sendo constituído pela consciência individual, quando, em realidade, ele é apreendido subjetivamente como unidade através da síntese52, realizada por um sujeito, das diversas maneiras pelas quais um objeto pode se dar à consciência e com as quais ele pode preencher certa intuição vazia53 que dele tenho. A diferença de um som, ou um objeto qualquer, que possua um caráter de imagem, para outro que não o tenha, é que naqueles, conforme sintetizado pelo filósofo estadunidense Robert Sokolowski, posso ver um “algo mais” (SOKOLOWSKI, 2014, p. 70), que permite trazer à intuição aquilo que é representado em imagem, como re-presentação. De modo a ilustrar melhor nosso ponto, faz-se necessário destacar uma distinção mais tardia, presente em um texto de 1912, cuja publicação deu-se postumamente, apenas em 1980, no volume 23 da Husserliana. Falamos aqui da distinção entre a coisa da imagem física, o objeto de imagem e o sujeito de imagem: [o sujeito de imagem] não precisa aparecer; e se de fato aparece, temos uma fantasia ou memória. Quando temos uma imagem perceptiva (não uma presentação de imagem na fantasia), a aparição da coisa da imagem física é a aparição de uma coisa física, uma aparição perceptiva. E é uma percepção preenchida: a coisa está ali como algo presente “em carne e osso”. Mas a aparição da coisa não é normal em todos os aspectos. Ela está envolvida em “conflito” com uma outra aparição que parcialmente a inibe: a aparição do objeto-imagem. A aparição do objeto-imagem é perceptiva [perzeptiv]: na medida em que ela tem a sensualidade da sensação, que sofre apreensão. Ela não é, contudo, uma aparição perceptiva [Wahrnehmungserscheinung]: a “crença” lhe falta; Falta-lhe a característica de realidade. […] O objeto de imagem é uma ficção, mas não uma ficção ilusória, uma vez que não é – como no caso de uma ilusão – algo harmônico em si que é anulado pela realidade circundante54 (HUSSERL, 2005, p. 584-585, tradução nossa, grifos do autor) 54 No original: need not appear; and if it does appear, we have a phantasy or memory. When we have a perceptual image (not an image presentation in phantasy), the appearance of the physical image thing is the appearance of a physical thing, a perceptual appearance. And it is a filled perception: The thing is there as something present “in person.” But the thing appearance is not normal in every respect. It is involved in “conflict” with another appearance that partially inhibits it: the image-object appearance. The image-object appearance is perceptual [perzeptiv]: insofar as it has the sensation’s sensuousness, which undergoes apprehension. It is not, however, a perceptual appearance [wahrnehmungserscheinung]: It lacks “belief”; it lacks the characteristic of reality. […]. The image object is a figment, but not an illusory figment, since it is not — as in the case of an illusion — something harmonious in itself that is annulled by the surrounding reality” 53 O termo fenomenológico “intuição vazia” diz respeito à intuição que não é preenchida pela percepção: se falo de um objeto ausente, ou intenciono uma parte ausente do objeto presente, por exemplo, a raiz de uma árvore, ou o outro lado de uma parede, tenho uma intenção vazia. 52 Para evitar qualquer equívoco, tendo em vista o assunto geral que tratamos neste trabalho, é prudente advertir que não se trata aqui de síntese sonora, mas da síntese efetuada pela consciência dos diferentes dados fornecidos pelo adumbramento de um determinado objeto. O adumbramento consiste no fato de que o objeto se dá como sendo o mesmo, ainda que os dados percebidos pela consciência sejam sempre diferentes. 37 A coisa da imagem física é o substrato da imagem, aquilo sobre a qual ela aparece. No caso de uma fotografia, o papel fotográfico e a tinta da impressão, no caso de uma pintura, a tela e a tinta e, no caso de um som extrinsecamente referencial, o substrato é o som enquanto veículo. O objeto de imagem é aquilo que a imagem é: um retrato, uma fotografia de paisagem ou uma gravação de um trem. O sujeito de imagem, que, segundo Husserl, aparece apenas enquanto fantasia e memória, é aquilo que a imagem representa: a pessoa retratada, a paisagem em si e o trem em si. A coisa da imagem física e o objeto de imagem são atributos próprios da imagem física, que é simultaneamente o substrato e a imagem. Para diferenciá-los, traremos ainda outra citação do volume 23 da Husserliana: Se eu viro uma imagem de sua “posição normal” para seu lado direito ou esquerdo, uma multiplicidade de aparições se dá; especificamente: 1) a multiplicidade de aparições da coisa física emoldurada, do cartão, da coisa da imagem física; e 2) uma multiplicidade de aparições do objeto-imagem. […] Enquanto a multiplicidade 1) é constitutiva do objeto: “coisa da imagem física”, que se mostra na multiplicidade como um objeto idêntico de diferentes lados, em orientações diferentes, a multiplicidade 2) é de um tipo inteiramente diferente: a fotografia como coisa física tem uma “posição normal” na qual o objeto de imagem que pertence a ela se mostra. Isto é, a coisa da imagem tem uma função, é a titular de uma obrigação: deve ser segurada de tal e tal maneira, percebida nesta orientação, e assim uma aparição de objeto-imagem, que é a aparência normal, pertence a ela. […] A coisa física tem uma “significação”, e essa significação está na “imagem”; especificamente, naquele objeto de imagem que aparece em uma orientação específica da coisa da imagem física.55 (HUSSERL, 2005, p. 586, tradução nossa, grifo do autor) Assim, a fotografia quando virada de lado, para Husserl, não deixa de ter um objeto, mas este torna-se anômalo, uma distorção ou uma fase de transição em relação à posição normal da imagem: “sua unidade contínua em seu decorrer faz de fato com que um objeto apareça, mas é um objeto de imagem mutante na maneira 55 No original: “If I turn a photograph from its “normal position” onto its right or left side, a manifold of appearances arises; specifically: 1) the manifold of appearances of the framed physical thing, of the cardboard, of the physical image thing; 2) a manifold of image-object appearances. […] While manifold 1) is constitutive of the object: “physical image thing,” which shows itself in the manifold as an identical object from different sides, in different orientations, manifold 2) is of an entirely different sort: The photograph as a physical thing has a “normal position” in which the image object that belongs to it shows itself. That is, the image thing has a function, is the bearer of an obligation: it is supposed to be held in such and such a way, perceived in this orientation, and then an image-object appearance that is the normal appearance belongs to it. […] The physical thing has a “signification,” and this signification lies in the “image”; namely, in that one image object that appears in a specific orientation of the physical image thing. ” 38 segundo a qual uma distorção contínua normalmente faz com que um mutante objeto de distorção apareça”56 (HUSSERL, 2005, p. 587, tradução nossa). O duplo modo de aparecer do objeto que possui caráter de imagem, no entanto, já estava presente na obra de Husserl desde as Investigações lógicas, na qual lemos: a imagem, um busto de mármore, por exemplo, é também uma coisa como como qualquer outra; é só o novo modo de apreender que faz dessa coisa uma imagem; agora, não é somente a coisa de mármore que aparece, mas ao mesmo tempo e sobre o fundamento dessa aparição, uma pessoa é visada por imagem. As intenções que se prendem aos dois casos não são afixadas ao teor de aparição como rótulos externos; pelo contrário, elas se fundamentam essencialmente nele, de tal maneira, portanto, que o caráter da intenção fica por ele determinado (HUSSERL, 2000, p. 65) Dessa forma, o pensamento de Husserl se serve à objeção que fazemos aqui: que o objeto não tem garantida sua existência apenas com determinado tipo de intencionalidade. Os elementos do pensamento do filósofo, abordados neste ponto de contestação da interpretação de Schaeffer, também nos servirão para compreender a questão central deste trabalho, que é a referencialdiade extrínseca na música acusmática. A distorção, que fora apontada por Husserl no volume 23 da Husserliana, nos permite pensar em sua articulação temporal e artística, em uma escritura da distorção, que sempre aponta para a ‘posição normal’. A partir destas considerações, subentende-se que há, também para Husserl, um continuum entre os diferentes graus de anomalia – sendo o mais extremo aquele no qual já não há imagem para além do substrato – e a posição normal. Em relação com esse segundo ponto de objeção, mencionemos uma contradição da parte de Schaeffer apontado pelo musicólogo Makis Solomos: Schaeffer entende por “coisas” a natureza em seu sentido mais comum […] enquanto que, precisamente, a epoquê husserliana e seu “retorno às coisas” começam por “colocar entre parênteses” o mundo natural. […] paradoxalmente, enquanto ele admite a existência de uma “linguagem das coisas” – é dizer, da “natureza” no sentido trivial do termo – e parece validar o realismo clássico, o TOM havia anteriormente […] recusado esse último e, ao mesmo tempo, o psicologismo. (SOLOMOS, 1999, p. 58-59, tradução nossa)57 57 No original: “Schaeffer entend par "choses" la nature dans son sens le plus commun […] alors que, précisément, l'épochè husserlienne et son "retour aux choses" commencent par “mettre entre parenthèses" le monde naturel. 56 No original: “Their continuous unity in their running off does indeed make an object appear, but it is an image object changing in the way in which a continuous distortion usually makes a changing object of distortion appear” 39 Para Schaeffer, o objeto sonoro é uma coisa natural, no sentido mencionado por Solomos, mas, ao mesmo tempo, para a escuta reduzida, que dá origem ao objeto sonoro, é necessário que se coloque entre parênteses – ainda que em termos não idênticos aos propostos pela epoquê husserliana – o mundo natural. Ainda mais contraditório, segundo nossa visão, é o fato de que o objeto sonoro seja tido como uma coisa natural e, simultaneamente, exista apenas quando o escuto de uma determinada maneira.58 A saída, para nós, será de não considerar o objeto sonoro como uma coisa natural, o que, no nosso entender, engendra uma série de outros problemas, mesmo fora da fenomenologia, mas de considerá-lo como traço, no sentido de Nattiez (1990, pp. 16-17), conforme explicitaremos em outra parte deste trabalho. Como decorrência disso, é permitido ao objeto sonoro ser descrito, seja como uma série de dados acústicos, seja através da tipo-morfologia schaefferiana ou ainda por seus conteúdos extrinsecamente referenciais, sem jamais deixar de ser o que ele é, não sendo, no entanto, em si mesmo, nada além de um traço, um em-si inacessível. O terceiro ponto de discordância que temos em relação à interpretação de Pierre Schaeffer a respeito da fenomenologia husserliana diz respeito à função que a redução tem para o filósofo. Para este, como já demonstramos, o que é colocado entre parênteses não é em absoluto excluído de qualquer consideração, mas analisado segundo essa modificação decorrente dos parênteses. Logo, quando o autor francês coloca fora de circuito de maneira definitiva aspectos extrinsecamente referenciais, ele falha em levar a termo esta redução – ainda que parcial. A transposição realizada por Schaeffer do conceito husserliano de epoquê evidencia-se, então, mais como inspiração do que como aplicação do método fenomenológico: a identificação da fonte toma o lugar da orientação natural, sendo colocada entre parênteses, para que se escute o som em si, ao invés de, como seria com a epoquê, analisarem-se os atos da consciência e os objetos modificados pela redução. O foco do método de Schaeffer está voltado absolutamente para o objeto59, 59 Ainda que a escuta seja um ponto fundamental no pensamento de Schaeffer – e que ele, acertadamente, distingua a percepção auditiva do sinal físico que a provoca –, a escuta reduzida é 58 Tal contradição talvez tenha relação com aquela, do pensamento de Husserl, que fora abordada por Adorno e da qual tratamos na nota 44 deste trabalho. […] paradoxalement, alors qu'il admet l'existence d'un "langage des choses" — c'est-à-dire de la "nature" au sens trivial du terme — et semble donc valider le réalisme classique, le TOM avait auparavant […] récusé ce dernier et, du même coup, le psychologisme.” 40 enquanto a epoquê volta-se para a relação entre entre o objeto visado, que é dado nele mesmo – doação esta que, portanto, não é puramente um construto de uma consciência solipsista, mas tampouco algo imanente ao objeto –, e a consciência. Em suma, a escuta reduzida não compartilha a metodologia da redução fenomenológica. Esta última suspende a atitude natural para analisá-la, observa a relação entre o eu – ego transcendental – e o objeto intencionado, não para alterar os atos da consciência em relação ao objeto, mas para trazer à consciência, de maneira distanciada, os próprios atos da consciência e os objetos que esses atos intencionam60. O que propõe Schaeffer – e que segue sendo absolutamente fundamental para a disciplina da música – é uma análise rigorosa, profunda e metódica de aspectos intrínsecos do som, através da suspensão da identificação da fonte e demais relações extrínsecas61. Se tomamos o caminho da escuta reduzida, que está contida na orientação natural, temos por objeto alguns aspectos do som como fenômeno físico-empírico62. Se, por outro lado, tomamos o caminho da fenomenologia, neutralizamos nossas crenças no som para analisá-las, temos como objeto nossa escuta, nossas intencionalidades, como noesis, e o som, como noema. Prosseguindo dessa maneira, não nos contentamos em escutar cientificamente o som, passamos a habitá-lo, lhe indagamos sobre para onde ele nos leva, tanto em relação ao mundo no qual vivemos, agora posto entre parênteses, quanto em relação a seu conteúdo morfológico e contextual, tanto em relação ao passado, quanto ao futuro, e descobrimos, a partir dos diversos atos da consciência, a identidade desse som, que se constitui a partir da multiplicidade de maneiras nas quais ele se doa, percebemos 62 Com isso não nos referimos meramente a dados acústicos, ao sinal, que Schaeffer adverte, com razão, não ser idêntico àquilo que se apresenta para a escuta reduzida. Referimo-nos, ao contrário, ao som despido de suas potencialidades extrínsecas. 61 Embora possamos argumentar que mesmo levando em conta apenas elementos intrínsecos, elementos extrínsecos estão sempre presentes. Como demonstração disso, basta termos em mente a grande quantidade de termos metafóricos utilizados amplamente na descrição musical (como cor, altura, pulso), e também aqueles introduzidos pelo próprio Schaeffer (como grão, massa e nodo). 60 A dificuldade da epoquê, no entanto, conforme observado por Merleau-Ponty, é que “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa” (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 10), uma vez que o sujeito está sempre no mundo. carregada de um tal grau de normatividade, que chega ao ponto de excluir a individualidade da escuta, voltando-se inteiramente para uma série de dados objetivos. A diferença subsistente entre o escopo da filosofia de Husserl, voltada para o mundo enquanto fenômeno, e o da teoria de Schaeffer, voltada para a música, objetivando a transformação do objet sonore em objet musical, e portanto, a expansão das possibilidades da linguagem musical, não obsta a constatação que fazemos aqui: que a utilização da fenomenologia husserliana consiste inspiração e não em uma aplicação. 41 – seja atentando-nos para sua espectromorfologia, seja permitindo que ele referencie a memória que temos de nossas vivências, ou ainda, analisando-o com o auxilio visual de um espectrograma, ou mirando-o a partir das imagens mentais que ele nos sugere – que se trata do mesmo som. Em relação à questão da escuta reduzida, julgamos que a consciência realiza atos que percebem a forma, alturas, durações, calibres de massa, entre outros aspectos visados pela escuta reduzida schaefferiana, mas também realiza atos que levam o som para fora dele mesmo, de seus dados espectral e temporalmente empíricos. Parece-nos, sobretudo, que a escuta reduzida e a escuta extrinsecamente referencial estão profundamente conectadas e que não se pode alterar os dados empíricos do som sem alterar o modo como o sujeito ouvinte o conecta com o mundo. Trata-se, segundo nosso ponto de vista, de uma questão semelhante à da figuração nas artes visuais, sobre a qual comenta Merleau-Ponty: “o dilema da figuração e da não-figuração está mal posto: é a um tempo verdadeiro e sem contradição que nenhuma uva foi jamais o que ela é, na pintura mais figurativa, e que nenhuma pintura, mesmo abstrata, pode eludir o Ser.” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 109). Defendemos, ainda sob a égide da fenomenologia husserliana, que a proposta de Schaeffer centra-se no eidos formal do objeto analisado, negligenciando-o em sua condição de singularidade eidética. O eidos formal pode ser expresso por categorias. Assim, “‘categorias’ como estado de coisa, multiplicidade etc., exprimem o eidos formal ‘estado de coisas em geral’, ‘multiplicidade em geral’ etc.” (HUSSERL, 2006, p. 48), da mesma maneira, as categorias de “massa” e “grão” exprimem a essência formal de “massa em geral” e “grão em geral”. A singularidade eidética diz respeito, na escala de generalidade e especialidade proposta por Husserl, ao extremo da especialidade. É dizer, uma essência que não tem sob si qualquer particularização possível, em oposição ao gênero supremo, no outro extremo da escala, que não possui sobre si nenhum gênero que o ab