1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS CÂMPUS DE RIO CLARO ___________________________________________________________________________ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ___________________________________________________________________________ FEIRAS VIRTUAIS: UM ESTUDO SOBRE NOVAS ESTRATÉGIAS DE COMÉRCIO E CONSUMO NA ERA DAS REDES DIGITAIS PATRÍCIA DA CRUZ OLIVEIRA Rio Claro – SP 2022 1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro Programa de Pós-Graduação em Geografia PATRÍCIA DA CRUZ OLIVEIRA FEIRAS VIRTUAIS: UM ESTUDO SOBRE NOVAS ESTRATÉGIAS DE COMÉRCIO E CONSUMO NA ERA DAS REDES DIGITAIS Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Geografia. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza Coorientador: Prof. Dr. Sidney Gonçalves Vieira Rio Claro – SP 2022 2 3 Patrícia da Cruz Oliveira Feiras Virtuais: um estudo sobre novas estratégias de comércio e consumo na era das redes digitais Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Geografia. Comissão Examinadora _______________________________ Prof.ª Dr.ª Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/Rio Claro (SP) (Orientadora) ________________________________ Prof. Dr. Auro Aparecido Mendes – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/Rio Claro (SP) __________________________________ Prof. Dr. Carlos Henrique Costa da Silva – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba (SP) _________________________________ Prof.ª Dr.ª Judite Azevedo do Carmo – Universidade do Estado do Mato Grosso/Sinop (MT) __________________________________ Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia da Conceição Gomes – Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Natal (RN) Conceito final: APROVADA. Rio Claro – SP, 27 de maio de 2022. 4 À minha família e a todos aqueles que pensam e acreditam em um outro Brasil, mais justo e solidário. 5 AGRADECIMENTOS São muitas as pessoas que deveriam estar aqui nos agradecimentos. Ao longo do tempo tive conversas, ajuda, acolhimento, parceria, carinho e amor de muitas pessoas que contribuíram para eu me tornar o que sou e chegar aonde cheguei. Algumas das relações que estabeleci foram rápidas, instantes que ficaram na memória, outras permaneceram e se renovam de tempos e tempos. Sou grata por todos esses encontros que tive até aqui. Relacionado mais diretamente ao período em que esta pesquisa foi idealizada e realizada, agradeço primeiramente à minha família, especialmente aos meus pais Solange e Valério e ao meu irmão Rodrigo. Ao fim do mestrado, quando precisei voltar para a casa dos meus pais, com muitas dúvidas sobre o que faria nos próximos anos, tive um acolhimento que nunca será esquecido. A família é grande, tios(as), avós, primos(as), todos eles contribuíram de alguma maneira ao longo da vida. Este porto seguro sempre me impulsionou na conquista dos meus sonhos, o incentivo e o amor sempre estiveram presentes. É preciso também destacar o papel do Gabriel nesse período. Companheiro de todas as horas, compartilhou e compartilha comigo um lar, afeto, sonhos, bons e maus momentos, conquistas e desafios, cuidou e cuida de mim de todas as formas. Obrigada por toda segurança, respeito, liberdade, amor e sorrisos diários, discussões, reflexões e aprendizados compartilhados. Também sua família, por todos os bons momentos, pelo acolhimento, incentivo e carinho que sempre senti. Serei sempre grata. Aos amigos que, perto ou longe, se fizeram presentes – especialmente quando perdoavam meus sumiços de semanas ou até mesmo meses. Dentre eles, a Juliana, o Rogério e Maurício, a Sibeli, a Bruna, o Pedro, a Elaine, o Marcelo, o Felipe, o Abbul, a Vanesa e o Miguel, a Francielly, a Fran, a Raiane, o Zé Renato, o Éder, o Luciano, o Gustavo, o Tocantins... Sei que devo ter esquecido alguém, mas fica aqui meu agradecimento por todas as experiências, aprendizado, amizade e apoio compartilhados – tanto o mestrado quanto o doutorado não teriam sido tão especiais quanto foram sem a presença de vocês. Sem contar aqueles que há tempos não vejo, mas que são muito importantes nesta trajetória: Tati, Nath, Marina, Maria Inês, Angelita, Guilherme, Paula, Gil, Fran, Bina, Mara, Vinícius, Marta... Impossível lembrar de todos neste momento, mas fica aqui o meu muito obrigada! Agradeço também à minha orientadora Silvia e ao meu coorientador Sidney – com vocês aprendi tanto que nem consigo expressar. Além do aprendizado acadêmico e do profissionalismo, a humildade, a liberdade, o respeito, a honestidade, a segurança, a parceria e 6 a amizade estiveram presentes em nossas relações. Obrigada por tudo e por toda paciência e apoio destes últimos anos, não esquecerei. Não poderia deixar de agradecer também aos funcionários da Unesp Rio Claro que de uma maneira ou de outra contribuíram para minha trajetória nesses últimos anos. Gil, Maíca, Hias, Bete, Rose, Rita... pessoas maravilhosas que são fundamentais não só para o andamento das atividades na universidade, mas também no apoio aos estudantes. Foram conversas e auxílios, além de amizade e carinho, justamente em momentos de grande vulnerabilidade quando nós estudantes nos encontramos distantes dos familiares e do lar. Por fim, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Unesp Rio Claro, e à CAPES pela bolsa concedida para a realização desta pesquisa – o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. São essas bolsas que tornam o trabalho do pesquisador minimamente viável em um país que ainda investe tão pouco em pesquisa e em educação. Obrigada pela oportunidade. 7 RESUMO Iniciamos a terceira década do século XXI com a acentuada inserção das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) nas relações sociais e, também, nas dinâmicas relacionadas ao comércio e ao consumo. Nesse sentido, esta pesquisa evidencia uma das estratégias comerciais mais recentes no campo de estudos do comércio e do consumo, o comércio eletrônico e, mais especificamente, as chamadas feiras virtuais. Estratégias vinculadas ao comércio eletrônico podem ser utilizadas de diversas maneiras e em diferentes ramos, tanto pelas grandes empresas, quanto pelas micro e pequenas empresas, ou mesmo por profissionais autônomos e cooperativas, por exemplo. No caso das feiras virtuais, estas podem ser identificadas como experiências similares àquelas apresentadas pelas feiras livres, porém inseridas no espaço virtual, a partir de uma plataforma própria ou mesmo se utilizando de alguma já disponível. Nas feiras virtuais, grupos de pequenos produtores, provenientes da agricultura familiar e/ou da Economia Solidária, produtores de alimentos agroecológicos, dentre outros, comercializam seus produtos, em âmbito local ou regional, potencializando o escoamento de sua produção e proporcionando uma outra dinâmica do comércio e do consumo. Assim, o objetivo central desta pesquisa consiste em analisar a estratégia comercial feira virtual, o seu funcionamento e seus desdobramentos sociais e espaciais no contexto atual, marcados pelo uso crescente das TICs nas relações de comércio e consumo. Para atingir esse objetivo a tese foi construída em três momentos principais, que são apresentados em três capítulos, a partir do método regressivo-progressivo de Henri Lefebvre. Por fim, verificamos que as feiras virtuais podem trazer em suas dinâmicas a potencialidade de aproximar consumidores e produtores, fortalecer as relações cidade-campo, promover um desenvolvimento sócio-espacial e uma relação de comércio e consumo mais justa econômica e socialmente entre produtores e consumidores. Palavras-chave: Comércio Eletrônico. Consumo. Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Feiras Virtuais. 8 ABSTRACT The third decade of the 21st century began with the marked insertion of Information and Communication Technologies (ICTs) in social relations. Also, the ICTs are inserted in the dynamics related to trade and consumption. In this sense, this research highlights one of the most recent commercial strategies in the field of Commerce and Consumption studies, E- Commerce and, more specifically, the so-called Virtual Fairs. Strategies linked to E-commerce can be used in different ways and in different fields, both by large companies, micro and small companies, or even by autonomous professionals and cooperatives, for example. The case of virtual fairs, these can be identified as experiences similar to those presented by free fairs, but inserted in the virtual space, are interesting for presenting their own online platforms or even using one already available. At Virtual Fairs, groups of small producers from family farming and/or Solidarity Economy, agroecological food producers, among others, sell their products, locally or regionally, enhancing the flow of their production and providing another dynamic of the trade and consumption. Thus, the main objective of this research is to analyze the commercial strategy of the Virtual Fair, its functioning and its social and spatial consequences in the present context, marked by the increasing use of ICTs in trade and consumption relations. To reach this objective, the thesis was built in three main moments, which are presented in three chapters, based on the regressive-progressive method of Henri Lefebvre. Finally, it was verified that virtual fairs can bring in their dynamics the potential to bring consumers and producers together, strengthen city-country relations, promote socio-spatial development and a more economically and socially fair trade and consumption relationship between producers and consumers. Keywords: E-commerce. Consumption. Information and Communication Technologies (ICTs). Virtual Fairs. 9 LISTA DE FIGURAS Figura 1. Imagem da página inicial do site da Feira do Largo de Curitiba-PR...........................33 Figura 2. Pessoas que utilizaram a Internet por grandes regiões do Brasil nos anos de 2017 e 2018...........................................................................................................................................42 Figura 3. Domicílios em que havia utilização de Internet, por situação do domicílio, por grandes regiões do Brasil...........................................................................................................43 Figura 4. Distribuição dos motivos para a não utilização da Internet entre domicílios de áreas urbanas e rurais..........................................................................................................................44 Figura 5. Rendimento médio per capita dos domicílios com acesso à internet no ano de 2018, no Brasil e nas grandes regiões brasileiras.................................................................................45 Figuras 6 e 7. Exemplos de anúncio patrocinado no Instagram.................................................54 Figuras 8 e 9. A funcionalidade “Loja” presente no Instagram.................................................55 Figura 10. Imagem da página inicial do site da “Junta Local” do Rio de Janeiro-RJ.................65 Figura 11. Informações sobre o funcionamento da Sacola Virtual da Junta Local....................66 Figura 12. Mercadorias agrupadas por categoria ou produtores na “Sacola Virtual”................67 Figura 13. Descrição das formas de arrecadação que custeiam o funcionamento da Junta Local..........................................................................................................................................67 Figura 14. Seção “Quem Faz” do site da Junta Local que apresenta os produtores participantes..............................................................................................................................68 Figura 15. Imagem da página inicial do site do Projecto PROVE de Portugal.........................70 Figura 16. Funcionamento da metodologia do Projecto PROVE para os produtores................70 Figura 17. Funcionamento da metodologia do Projecto PROVE para os consumidores...........71 Figura 18. Representação dos distritos administrativos de Portugal onde existem os núcleos de atuação do Projecto PROVE e descrição das relações possibilitadas pelo projeto entre consumidores e produtores e destes com o território.................................................................72 Figura 19. Ficha do consumidor do Projecto PROVE...............................................................74 Figura 20. Exemplo de lista de alimentos do Projecto PROVE em que o consumidor pode indicar quais não deseja receber.................................................................................................75 Figura 21. Página da Plataforma Cirandas com ciclo de comercialização da Feira Virtual Bem da Terra em aberto.....................................................................................................................79 Figura 22. Descrição da mercadoria da Feira Virtual Bem da Terra na Plataforma Cirandas....80 Figura 23. Página inicial da Feira Virtual Bem da Terra no Facebook......................................82 10 Figura 24. Página inicial da Feira Virtual Bem da Terra no Instagram......................................83 Figura 25. Página inicial da Rede Bem da Terra no YouTube...................................................83 Figura 26. Municípios com empreendimentos integrantes da Feira Virtual Bem da Terra.......86 Figura 27. Descrição da missão da Junta Local.......................................................................130 Figura 28. Página inicial do site do Trocas Verdes, de Campinas-SP.....................................134 Figura 29. Página inicial do site do Rede Ecológica Rio, do Rio de Janeiro-RJ......................135 Figura 30. Página inicial do site e da descrição de funcionamento da Feira Virtual Bem da Terra, de Pelotas-RS................................................................................................................137 Figura 31. Descrição da filosofia e do funcionamento da “Sacola Virtual” da Junta Local do Rio de Janeiro-RJ.....................................................................................................................169 Figura 32. Descrição do Projecto PROVE apresentada na página inicial do seu site..............171 11 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Exemplos de modelos de negócios on-line mais relevantes segundo Catalani et al. (2004)........................................................................................................................................51 Quadro 2. Principais marcos temporais relacionados ao comércio abordados e sua descrição..................................................................................................................................110 Quadro 3. Principais marcos temporais relacionados aos movimentos de resistência abordados e sua descrição.........................................................................................................................128 Quadro 4. Grupos de Trabalho (GT) da “Feira Virtual Bem da Terra” de Pelotas-RS............138 12 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS B2B – Business-to-business B2C – Business-to-consumer B2E – Business-to-employee B2G – Business-to-government Cnumad – Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPF – Cadastro de Pessoa Física C2C – Consumer-to-consumer C2G – Consumer-to-government DVD – Digital Versatile Disc FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária FVBDT – Feira Virtual Bem da Terra G2B – Government-to-business G2C – Government-to-consumer GCR – Grupos de Consumo Responsável IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFSul – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-riograndense MIT – Massachussets Institute of Technology (Instituto Tecnológico de Massachussets) MTE – Ministério do Trabalho e Emprego ONU – Organização das Nações Unidas SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária SRS – Site de Rede Social SVD – Sistema de Vendas Diretas TICs – Tecnologias da Informação e Comunicação UCPel – Universidade Católica de Pelotas UFPel – Universidade Federal de Pelotas VHS – Video Home System 13 LISTA DE ANEXOS ANEXO A. Exemplos de imagens e informações publicadas na página da Feira Virtual Bem da Terra no Facebook..............................................................................................................205 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............……..........................................................................................….....15 MÉTODO E METODOLOGIA DA PESQUISA........................….........................………21 1 O COMÉRCIO, O CONSUMO E OS SERVIÇOS NA ERA DAS REDES DIGITAIS..27 1.1 Produtos e serviços: outras tecnologias, outras economias, outros comércios...................36 1.2 As feiras virtuais.................................................................................……...…....………59 1.2.1 Experiências nacional e internacional de feiras virtuais..............................................64 1.2.2 A Feira Virtual Bem da Terra em Pelotas-RS..............................................................76 2 A CONSTITUIÇÃO DAS TICS, DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A FORMAÇÃO DAS FEIRAS VIRTUAIS...................………….…...............................................................88 2.1 Primeiros passos: economias colaborativas e de compartilhamento................................111 2.2 Comércio Justo e Consumo Ético como movimentos de resistência................................118 2.3 Criação, estratégias e adaptações da Feira Virtual Bem da Terra....................................129 3 RELAÇÕES ESPACIAIS E SOCIAIS A PARTIR DO COMÉRCIO ELETRÔNICO: AS POTENCIALIDADES DAS FEIRAS VIRTUAIS.......................................................140 3.1 As relações comerciais e as TICs: a exploração capitalista e o ciberespaço.....................154 3.2 As feiras virtuais e suas potencialidades nas relações espaciais e sociais…….................164 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................191 REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………195 ANEXOS................................................................................................................................205 15 INTRODUÇÃO Iniciamos a terceira década do século XXI com a acentuada inserção das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) nas relações sociais e, também, nas dinâmicas relacionadas ao comércio e ao consumo. Ao longo do tempo presenciamos o aperfeiçoamento de estratégias comerciais que levam os consumidores a comprar sem precisar sair de casa, e um dos mais recentes nos remete ao processo que vem ocorrendo especialmente desde a última década do século XX, a partir do uso das TICs nas relações comerciais: trata-se do desenvolvimento do comércio eletrônico (ou e-commerce 1 ). A partir do surgimento do comércio eletrônico foram desenvolvidas diversas estratégias comerciais desse tipo, desde as utilizadas por empresas já consolidadas com plataformas online próprias, os sites, ou mesmo a possibilidade de iniciar um negócio através de sites de redes sociais (SRSs) como o Facebook, por exemplo. Essas estratégias ligadas ao comércio eletrônico são aperfeiçoadas de acordo com as tecnologias disponíveis e atualizadas e modernizadas também a partir das mudanças em curso relacionadas aos usos sociais dessas tecnologias, de modo que podem ser compreendidas de diferentes maneiras no decorrer do tempo. O comércio eletrônico não é exclusividade de nenhum ramo ou porte específico de empreendimento, ele pode ser utilizado tanto pelas grandes empresas quanto pelas micro e pequenas empresas, ou mesmo por profissionais autônomos e cooperativas, por exemplo. As estratégias de comércio eletrônico podem, nesse sentido, ser adotadas com um mesmo objetivo, possibilitar as trocas, mas apresentarem dinâmicas diferenciadas a depender dos sujeitos envolvidos. Desse modo, atualmente encontramos diferentes estratégias de comércio eletrônico, tendo em vista que as mais atuais não anulam as mais antigas, elas se somam e conferem uma grande diversidade desse tipo de estratégias. Com a crescente utilização dos smartphones, o desenvolvimento de aplicativos faz parte das atualizações mais recentes, que potencializam a proliferação de experiências comerciais no espaço virtual, garantindo mobilidade e flexibilização temporal para sua efetivação, ao passo que também modificam as dinâmicas no espaço concreto. Ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, a materialidade do espaço é fundamentada para existência e funcionamento do espaço virtual. É condição para os aparatos tecnológicos existirem, do 1 Nesta pesquisa comércio eletrônico e e-commerce são entendidos e utilizados como sinônimos, podendo ser apresentados de uma ou outra maneira no decorrer do texto. 16 mesmo modo que também é condição para que as dinâmicas realizadas no espaço virtual se concretizem. Nesse sentido, as relações estabelecidas no espaço virtual se concretizam nos territórios, influenciando-os, ao mesmo tempo em que os territórios constituem a base material para a sustentação do espaço virtual e das dinâmicas nele presentes. Mesmo considerando que as TICs não estejam presentes com a mesma intensidade em todos os lugares, é notável o seu papel especialmente nos centros urbanos, nas metrópoles, sendo utilizadas de diversas maneiras e promovendo mudanças no cotidiano urbano. Na mobilidade urbana, nos sistemas de comunicações, nas relações sociais, no setor de serviços, as TICs têm desempenhado várias funções e, recentemente, no ramo da alimentação formas e estratégias comerciais têm utilizado as TICs em suas dinâmicas. Exemplos podem ser encontrados nos supermercados virtuais e no delivery de refeições, através de aplicativos que concentram opções de cardápios e restaurantes de um determinado lugar, como é o caso do Ifood ou Uber Eats, por exemplo. No entanto, existem também experiências comerciais ligadas à alimentação, desenvolvidas a partir de uma articulação mais direta de produtores e consumidores, e é sobre elas que esta pesquisa trata. Referem-se às feiras virtuais, identificadas como experiências similares àquelas apresentadas pelas feiras livres, porém inseridas no espaço virtual, a partir de uma plataforma própria ou mesmo se utilizando de alguma já disponível. Grupos de pequenos produtores, provenientes da agricultura familiar e/ou da Economia Solidária, produtores de alimentos agroecológicos, dentre outros, comercializam seus produtos nestas plataformas, em âmbito local ou regional, potencializando o escoamento de sua produção e proporcionando uma outra dinâmica do comércio e do consumo. Essa estratégia comercial pode ter um papel de destaque para os produtores, ao mesmo tempo em que viabiliza o alcance de um número maior de consumidores, conectando-os diretamente sem a presença de intermediários, promovendo uma maior circulação de seus produtos com preços mais justos para quem produz e para quem compra. Existem, também, outros elementos de grande importância nessa estratégia: a possibilidade de aproximação dos sujeitos e da relação cidade-campo, além da possibilidade de um desenvolvimento sócio- espacial. A aproximação de que tratamos nesta tese diz respeito não somente às distâncias físicas, mas também às relações estabelecidas entre os sujeitos, produtores e consumidores, que podem se tornar mais diretas. Da mesma forma, a relação cidade-campo merece destaque, tendo em 17 vista que as feiras virtuais podem suscitar uma conexão mais efetiva entre esses espaços. Nesse sentido, é importante pensarmos nas potencialidades de desenvolvimento sócio-espacial advindas de experiências como as feiras virtuais. Quando nos remetemos ao desenvolvimento sócio-espacial nos distanciamos da ideia de um desenvolvimento baseado na acumulação econômica, de cunho puramente capitalista. Ao contrário, partimos da premissa de que o desenvolvimento deva ser “entendido como uma mudança social positiva”, conforme defende Souza (2003, p. 60). Segundo o referido autor, essa mudança social positiva, no entanto, não diz respeito apenas às relações sociais, mas contempla igualmente a espacialidade. No caso das feiras virtuais, em que prevalecem circuitos curtos de produção e consumo, as relações sociais e a espacialidade são elementos intimamente ligados que se destacam. Mesmo que cada experiência de feira virtual possua características próprias, ela surge e se desenvolve a partir de alguns fatores mais gerais, no contexto do qual parte: a condição técnica, marcada pela presença das TICs; e o tempo rápido, elemento ímpar no cotidiano acelerado vivenciado nos centros urbanos, que decorre em parte das condições técnicas atuais. Os objetivos almejados são, principalmente: o escoamento da produção com a diminuição de custos e a busca pela aproximação dos sujeitos a partir da eliminação de intermediários. O tempo acelerado, especialmente traduzido no cotidiano dos centros urbanos, marca esse período histórico que tem, no uso das tecnologias mediadas pela Internet, a capacidade de promover mudanças nas dinâmicas urbanas. Tais mudanças dizem respeito às formas tradicionais de comércio, ao surgimento de novas estratégias comerciais, a novas relações com os consumidores, aos deslocamentos nas cidades, à constituição de novas redes etc, observadas especialmente nas grandes e médias cidades, mas também existentes nas pequenas cidades. Nas dinâmicas relacionadas à produção e à comercialização de alimentos, encontramos processos históricos de má distribuição de terras, a concentração de terras nas mãos de poucos, o que confere a presença de grandes latifúndios. Uma grande parte da produção de alimentos, sobretudo nessas grandes propriedades, é destinada às exportações. Por outro lado, encontramos pequenos produtores, os agricultores familiares, que, mesmo sendo os principais fornecedores de alimentos à população brasileira, muitas vezes enfrentam dificuldades de se manterem no campo e comercializarem os seus alimentos. Dentre as dificuldades podemos citar os baixos investimentos em infraestrutura no campo, que acabam impactando na decisão de permanência das famílias, especialmente dos mais jovens. Os investimentos na produção também podem ser um desafio, bem como o 18 processo de escoamento da produção, especialmente quando os espaços rurais estão mais distantes das cidades. Mesmo que haja um acelerado desenvolvimento tecnológico atualmente, este não atende a todos, nem a todos os lugares e nem na mesma intensidade. Quando se fala em produção e comercialização de alimentos do campo devemos lembrar que existem espaços altamente desiguais, com alto ou baixo investimento tecnológico. Nesse sentido, as feiras virtuais, objeto central dessa pesquisa, entendidas como estratégias comerciais, podem trazer em suas dinâmicas a potencialidade de aproximar os grupos de consumidores, os grupos de produtores e esses dois grupos conjuntamente. Tal aproximação pode se dar através da formação de grupos ou núcleos de consumo, encontros presenciais entre produtores e consumidores e a própria organização de produtores para a realização da feira virtual. Pode haver, nesses casos, uma diminuição das distâncias, espaciais e sociais, e a consequente eliminação de intermediários. Tais fatores constituem a problemática sobre a qual esta pesquisa é desenvolvida. Há uma reorganização social, econômica e espacial a partir da crescente inserção das TICs, que se observa principalmente nos espaços urbanos. No entanto, essa reorganização não se limita apenas ao urbano e nem aos sujeitos de maior poder econômico e político, pois pode ser observada também nos espaços rurais, com a possibilidade de inserção de pequenos produtores, agricultores familiares e demais sujeitos do campo. Presenciamos um contexto marcado pelos ditames capitalistas na produção e comercialização de alimentos no Brasil, com relações fragilizadas entre a cidade e o campo, e pelo cotidiano acelerado marcado pelo uso das TICs, que distancia cada vez mais as pessoas. Desse modo, a questão que se apresenta é: experiências como as feiras virtuais podem se constituir como instrumentos de desenvolvimento sócio-espacial e de aproximação entre produtores e consumidores, fortalecendo as relações cidade-campo? Essa pergunta pode ser desmembrada, para melhor entendimento, em outras duas: a primeira delas consiste em questionar se é possível estabelecer relações de proximidade entre produtores, entre consumidores, entre produtores e consumidores, num período histórico marcado pelo uso das TICs nas relações de comércio e consumo que, em linhas gerais, tendem a distanciar esses sujeitos, de modo que as relações se deem principalmente através das telas conectadas (dos smartphones, computadores e tablets). A segunda questão trata-se de indagar se é possível que as dinâmicas presentes nas feiras virtuais, cujo funcionamento se dá através de circuitos curtos de produção e consumo e por meio dos aparatos tecnológicos (enquanto ferramenta), via de regra utilizados para relações 19 capitalistas fortemente exploratórias, podem ser utilizadas em dinâmicas para o desenvolvimento dos “de baixo” e fortalecimento das relações cidade-campo. A partir dessas questões, elaborou-se a hipótese que embasou esta tese, de que na era das redes digitais é possível uma relação de comércio e consumo mais justa, econômica e socialmente, entre produtores e consumidores, que possa promover um desenvolvimento sócio- espacial e relações de proximidade entre os sujeitos, a cidade e o campo, a partir da utilização das TICs como ferramenta organizativa. Dessa forma, defendemos a tese de que as feiras virtuais se constituem numa nova estratégia comercial, com grande possibilidade de crescimento, que surgem a partir da atualização das relações de consumo no contexto atual, marcado pela aceleração do desenvolvimento das TICs. Os grupos e sujeitos envolvidos também podem constituir movimentos de resistência, tanto de produtores quanto de consumidores, ao participarem e se vincularem a estratégias que busquem alternativas ao consumo normativo, que objetivem outro tipo de desenvolvimento para além do estritamente econômico. Assim, movimentos organizados, utilizando aparatos tecnológicos do sistema hegemônico como ferramenta, a partir de sua apropriação, podem construir relações de consumo mais justas, colaborativas e que proporcionem um desenvolvimento sócio-espacial. Para responder tais questões serão investigadas experiências de feiras virtuais, sobretudo no contexto brasileiro, mas não restrito ao nosso país. Trazemos três diferentes experiências que identificamos como feiras virtuais, que possuem características diversas: a Sacola Virtual da Junta Local do Rio de Janeiro-RJ, o Projeto “PROVE” – Promover e Vender, de Portugal, e a Feira Virtual Bem da Terra do grupo Bem da Terra de Pelotas-RS. Cada uma delas traz contextos diferentes e muito interessantes, seja pelo território que ocupam ou pelas práticas que exercem e/ou grupos que as compõem. A Feira Virtual Bem da Terra (FVBDT), por exemplo, apresenta dinâmicas singulares, especialmente por ser constituída por empreendimentos da Economia Solidária. Trata-se de uma experiência que se destaca na região sul do estado do Rio Grande do Sul e é sobre ela que recai o foco das pesquisas realizadas nesta tese. Foi a primeira feira virtual que tivemos conhecimento e contato, motivo que nos levou a procurar aprofundar a pesquisa nas feiras virtuais em geral, e especificamente na história, trajetória e objetivos desta. As demais experiências de feiras virtuais trazidas nesta pesquisa surgem na perspectiva de conhecer outras estratégias desse tipo, enriquecer o estudo realizado e trazer outras possibilidades dessa natureza. 20 Nesse sentido, o objetivo central dessa pesquisa consiste em analisar a estratégia comercial feira virtual, o seu funcionamento e seus desdobramentos sociais e espaciais no contexto atual, marcados pelo uso crescente das TICs nas relações de comércio e consumo. Para atingir esse objetivo a tese foi construída em três momentos principais, que são apresentados em três capítulos, a partir do método regressivo-progressivo lefebvriano, que será melhor descrito e desenvolvido em seção específica a seguir. Assim, no primeiro capítulo são apresentadas e descritas as relações de comércio e consumo no contexto atual, relacionadas especialmente ao uso das TICs, com ênfase no comércio eletrônico e, mais especificamente, nas feiras virtuais. No segundo capítulo a realidade apresentada e descrita anteriormente é decomposta, e as relações sociais e os elementos que a constituem são identificados e datados. Neste capítulo buscamos identificar os marcos históricos relacionados ao surgimento e consolidação do comércio eletrônico e das feiras virtuais, bem como as relações e materialidades que permitiram o seu surgimento, como as TICs, por exemplo. Por fim, no terceiro capítulo é realizada a análise a partir do reencontro dos momentos anteriores: o presente elucidado pelas relações históricas dos elementos que o constituem. Além do aprofundamento das explicações sobre o contexto atual e do nosso objeto de estudo, nesse momento também são realizadas, especialmente, as análises acerca das possibilidades e potencialidades das feiras virtuais. 21 MÉTODO E METODOLOGIA Esta pesquisa evidencia uma das estratégias comerciais mais recentes no campo de estudos do comércio e consumo, o comércio eletrônico. Mesmo que parte de suas dinâmicas não seja necessariamente uma invenção atual, visto que comprar sem sair de casa faz parte de outras estratégias mais antigas, o comércio eletrônico traz elementos que se desenvolveram nas últimas décadas. Especialmente vinculado aos avanços das TICs e ao espaço urbano, essa estratégia comercial nos remete a um tempo rápido, um cotidiano acelerado e marcado pela generalização da mercadoria. A existência do comércio eletrônico é possibilitada por todo um desenvolvimento tecnológico, estatal e privado, mas que também contou com a sociedade civil em determinados momentos de sua concepção, e que se materializou de diferentes maneiras no espaço físico, ao longo do tempo. Toda estrutura necessária para a sua existência está localizada em pontos específicos dos territórios, bem como a sua concretização pressupõe a relação entre os espaços virtual e físico. Afinal, as dinâmicas de funcionamento do comércio eletrônico englobam desde a transmissão de dados via cabos de fibra ótica e antenas, até as logísticas de entregas das mercadorias. As relações sociais e espaciais estabelecidas a partir do século XX, nesse sentido, nos trazem importantes elementos para a análise do contexto atual. Desde o século passado presenciamos o avanço do mundo da mercadoria a passos largos, invadindo e mercantilizando os espaços e a vida. Os espaços, nesse sentido, são rodeados de mercadorias, e eles próprios tornados mercadoria na sociedade capitalista (LEFEBVRE, 2006). Mesmo quando tratamos do desenvolvimento do ciberespaço (LÉVY, 1999) e da formação das redes digitais (CASTELLS, 1999) percebemos que o espaço virtual, assim como o espaço físico, torna-se também mercadoria. E hoje, mais do que nunca, a relação entre esses dois espaços, o virtual e o físico, se impõe no cotidiano sobretudo a partir das relações de trocas. O cotidiano, assim, configura-se como um importante elemento nas investigações das relações de trocas atuais. Lefebvre (1991), ao tratar da sociedade burocrática de consumo dirigido, destaca a importância da categoria cotidiano para entendermos as relações sociais e de (re)produção estabelecidas a partir da Modernidade. O cotidiano não é um espaço-tempo abandonado, não é mais o campo deixado à liberdade e à razão ou à bisbilhotice individuais. Não é mais o lugar em que se confrontavam a miséria e a grandeza da condição humana. Não é mais apenas um setor colonizado, racionalmente explorado, da vida social, porque não é mais um “setor” e porque a exploração racional inventou formas mais sutis que as de outrora. O cotidiano torna-se objeto de todos os cuidados: domínio da organização, espaço-tempo da auto-regulação voluntária e 22 planificada. Bem cuidado, ele tende a constituir um sistema com um bloqueio próprio (produção-consumo-produção). Ao se delinear as necessidades, procura-se prevê-las; encurrala-se o desejo. Isso substituiria as auto- regulações espontâneas e cegas do período da concorrência. A cotidianidade se tornaria assim, a curto prazo, o sistema único, o sistema perfeito, dissimulado sob os outros que o pensamento sistemático e a ação estruturante visam. Nesse sentido, a cotidianidade seria o principal produto da sociedade dita organizada, ou de consumo dirigido, assim como a sua moldura, a Modernidade (LEFEBVRE, 1991, p. 81-82). Nesse sentido, ao buscarmos compreender as relações sociais estabelecidas nos espaços e entre os espaços (virtual e físico) encontramos em Lefebvre (1991; 2006) importantes contribuições. Este autor, ao nos fornecer caminhos teóricos que partem da análise crítica da vida cotidiana e do processo de reprodução das relações sociais de produção, possibilita o entendimento da indissociabilidade entre tempo e espaço, na medida em que o espaço envolve o tempo, em que o espaço não é estático, mas permeado de movimentos e contradições. Mais do que isso, Lefebvre (2006) traz para a discussão a produção do espaço, intimamente ligada à reprodução do modo de produção capitalista. Lefebvre (2006), ao tratar da (re)produção do espaço, nos fala do espaço social enquanto produto social, espaço que “implica, contém e dissimula relações sociais” (LEFEBVRE, 2006, p. 125). No entanto, o processo de (re)produção do espaço está também associado ao capitalismo. Desse modo, Lefebvre (2006) nos traz a perspectiva do espaço abstrato, que é formal, quantificado, homogêneo, fragmentado e hierarquizado, (re)produzido pela lógica capitalista que se instala mundialmente. É neste espaço abstrato que a concepção de tempo “perde seus conteúdos ao tornar-se velocidade” (CARLOS, 2011, p. 14), velocidade essa que caracteriza o modo de vida urbano desde a segunda metade do século XX, e que se expressa no cotidiano. Carlos (2011), ao destacar o processo de abstração do espaço, nos diz que hoje ele ganha nova dimensão. A reprodução social se realiza coordenada por fenômenos globais, sinalizando para uma totalidade nova (em formação) caracterizada pela constituição de uma sociedade urbana e pela criação de um espaço mundial. Tal processo aponta a constituição da produção amnésica do espaço. As marcas do rápido processo de transformação que vivemos hoje, em meio à constituição da mundialização da sociedade, estão impressas tanto na paisagem quanto na consciência do habitante. A produção do espaço abre-se, portanto, como possibilidade de compreensão do mundo contemporâneo, que, sob a égide da globalização, vai impondo novos padrões (assentados no desenvolvimento da sociedade de consumo e submetidos ao desenvolvimento do mundo da mercadoria) a partir dos quais vão se redefinindo as relações entre as pessoas numa sociedade fundada na necessidade de ampliação constante das formas de valorização do capital (CARLOS, 2011, p. 14-15). 23 Ao analisarmos as relações atuais de comércio e consumo, com ênfase no comércio eletrônico e, mais especificamente, nas feiras virtuais, buscamos compreender como se dá a (re)produção do espaço. Ao investigarmos as feiras virtuais percebemos que elas podem constituir movimentos de resistência às relações normativas de trocas. Elas são, nesse sentido, importantes para compreendermos as relações que se estabelecem entre o global e o local, bem como, no processo de (re)produção do espaço, marcado pela lógica capitalista, dinâmicas diferenciadas de trocas podem suscitar relações também diferenciadas com os espaços e entre as pessoas e, assim, possibilitar outro tipo de (re)produção do espaço. Nosso objeto de estudo, desse modo, nos remete à análise do tempo veloz, da vida cotidiana permeada pelas TICs, pelo auge do meio técnico-científico-informacional (SANTOS, 2002), e impresso especialmente nos centros urbanos. Mas também se relaciona aos sujeitos e espaços do campo e aos movimentos de resistência. Esta pesquisa, assim, compreende um esforço de pensar o processo de reprodução das relações de produção no contexto atual. Para a geografia urbana torna-se muito importante desvendar o processo de reprodução das relações de produção, pois nele a própria constituição da sociedade urbana está em jogo. O modo de vida urbano, seus valores, seus novos signos acabam facilitando a normatização dos espaços sob a lógica global da produção. Observa-se que os espaços globalizados, que são os espaços mais centrais que contêm os signos da modernidade, do global, interferem no processo de especificidade do lugar. Para entender a especificidade do lugar ou mesmo o poder do global no lugar, devemos observar sua manifestação na cultura, no tipo de trabalho, no modo como as pessoas se relacionam no comércio, no consumo, e isso só ocorre no cotidiano (ORTIGOZA, 2001, p. 153). Nesse sentido, para a construção dessa pesquisa entendemos que seria necessário não somente compreender os movimentos que caracterizam o contexto que temos hoje, mas também investigar como ele se desenvolveu ao longo do tempo, quais elementos foram importantes para sua realização. Ao observarmos o momento atual este nos aparece, primeiramente, como uma sucessão linear de acontecimentos. O que observamos agora parece ter sido desenvolvido em movimentos precisos, combinatórios e consecutivos, como um desenrolar inevitável de ações ao longo do tempo. O comércio eletrônico, nesse sentido, num primeiro olhar seria o resultado direto do advento das TICs e da Internet, que teria sido apresentado e introduzido às empresas e aos consumidores como uma nova maneira de vender e comprar mercadorias. O que observamos nesse momento atual, no entanto, é uma horizontalidade em que coexistem diferentes espaços (físico e virtual), relações (comerciais e sociais) e suas materialidades (dispositivos eletrônicos, estruturas físicas e mercadorias). Ao investigarmos mais atentamente esses espaços, relações e suas materialidades, percebemos que é preciso 24 identificar determinados elementos que foram fundamentais para o seu surgimento, para a sua existência, organização ou estruturação. Na busca por essas identificações nos deparamos com temporalidades diversas, marcos importantes que não se apresentam necessariamente de modo consecutivo ou combinatório. A partir de então, podemos compreender os movimentos, contraditórios muitas vezes, que propiciaram aquilo que observamos no momento atual. Assim, partindo do pressuposto de que o momento histórico atual é resultado de inúmeras relações estabelecidas ao longo do tempo e do espaço, de maneira ora combinatória e ora contraditória, consideramos importante optar por um método que pudesse proporcionar um olhar mais atento no tocante ao acúmulo das relações históricas estabelecidas até o momento atual e uma análise crítica do objeto estudado. Dessa forma, esta pesquisa está centrada no método regressivo-progressivo sistematizado a partir da dialética de Henri Lefebvre. Martins (1996, p. 21), ao expor a construção do método regressivo-progressivo, aponta o reconhecimento de Lefebvre “de uma dupla complexidade da realidade social: horizontal e vertical”, que desdobrar-se-á em três momentos distintos e complementares em si: 1) o descritivo; 2) o analítico-regressivo; e, 3) o histórico-genético. De acordo com Martins (1996, p. 21-22), Essa dupla complexidade desdobra-se em procedimentos metodológicos que identificam e recuperam temporalidades desencontradas e coexistentes. A complexidade horizontal da vida social pode e deve ser reconhecida na descrição do visível. Cabe ao pesquisador reconstituir, a partir de um olhar teoricamente informado, a diversidade das relações sociais identificando e descrevendo o que vê. Esse é o momento descritivo do método. Nele, o tempo de cada relação social ainda não está identificado. [...] O segundo momento é analítico-regressivo. Por meio dele mergulhamos na complexidade vertical da vida social, a da coexistência de relações sociais que têm datas desiguais. Nele, a realidade é analisada, decomposta. É quando o pesquisador deve fazer um esforço para datá-la exatamente. Cada relação social tem sua idade e sua data, cada elemento da cultura material e espiritual também tem a sua data. [...] O terceiro momento do método da dialética de Lefebvre é histórico- genético. Nele, deve o pesquisador procurar o reencontro do presente, ‘mas elucidado, compreendido, explicado’. A volta à superfície fenomênica da realidade social elucida o percebido pelo concebido teoricamente e define as condições e possibilidades do vivido. Desse modo, buscou-se construir a presente pesquisa a partir de três momentos distintos, elencados em três capítulos, de acordo com o método regressivo-progressivo lefebvriano. No primeiro deles, o descritivo, procurou-se apresentar a problemática que baseia a pesquisa. Neste momento, o objeto de análise é descrito, bem como os demais elementos vinculados a ele: além das feiras virtuais e demais experiências que se aproximam dessa forma/estratégia comercial 25 no contexto atual, são abordadas outras estratégias de comércio eletrônico e o contexto tecnológico atual, a era das redes digitais. No segundo momento, que constitui o analítico-regressivo, tais elementos serão identificados historicamente, para que possamos ter elementos suficientes para chegar à análise e, mais à frente, elucidar o presente. Desse modo, nesta etapa da pesquisa buscaremos identificar os marcos históricos que possam auxiliar na explicação do que encontramos hoje. Nesse momento, tratamos não somente das condições para o desenvolvimento do comércio eletrônico e, também, das feiras virtuais, mas dos movimentos de resistência relacionados à produção e ao consumo de mercadorias, que se relacionam mais especificamente à FVBDT. É sobre esta feira virtual que a maior parte da análise recai nesta tese, incluindo o seu recorte histórico. Por fim, no terceiro momento da pesquisa buscaremos analisar o contexto atual, apresentado no primeiro capítulo, sob a luz do seu contexto histórico, presente no segundo capítulo. O presente iluminado por seu passado permitirá, não somente buscar a explicação do presente, mas também encontrar indícios de perspectivas futuras. Este é o momento histórico- genético. No que se refere aos instrumentos metodológicos utilizados, foi realizada a pesquisa bibliográfica e pesquisa na Internet (das e nas feiras virtuais e demais experiências semelhantes às feiras virtuais). Também utilizamos como metodologia a história oral 2 a partir da realização de entrevistas semiestruturadas com um dos integrantes da organização da FVBDT, o Prof. Dr. Antônio Cruz. As entrevistas foram realizadas nos meses de junho de 2019 e setembro de 2020, através da plataforma virtual Hangouts 3 . Estavam previstos trabalhos de campo na cidade de Pelotas-RS, onde seriam realizadas visitas às propriedades dos produtores e aos demais espaços relacionados à FVBDT. No entanto, devido à pandemia da Covid-19 justamente no período em que estavam programadas 2 De acordo com o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), “A história oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea. Começou a ser utilizada nos anos 1950, após a invenção do gravador, nos Estados Unidos, na Europa e no México, e desde então difundiu-se bastante. [...] No Brasil, a metodologia foi introduzida na década de 1970, quando foi criado o Programa de História Oral do CPDOC. A partir dos anos 1990, o movimento em torno da história oral cresceu muito. [...] As entrevistas de história oral são tomadas como fontes para a compreensão do passado, ao lado de documentos escritos, imagens e outros tipos de registro. Caracterizam-se por serem produzidas a partir de um estímulo, pois o pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas, geralmente depois de consumado o fato ou a conjuntura que se quer investigar.” (CPDOC, 2022). 3 Plataforma de comunicação, desenvolvida pela Google, que inclui mensagens instantâneas e chat de vídeo. 26 essas atividades, optamos por reordenar a pesquisa que gerou esta tese a partir de nova entrevista concedida pelo Prof. Dr. Antônio Cruz e da coleta de informações a partir dos canais de comunicação da FVBDT, especialmente seus SRSs. Esse reordenamento contribuiu para pensar justamente o papel das TICs no contexto atual. O tema central desta pesquisa ficou em evidência nesse período marcado pela Covid-19 e trouxe a oportunidade de investigar as novas dinâmicas de trocas em tempo real, observando as estratégias adotadas por empresas, produtores, comerciantes e consumidores. Comprar sem sair de casa, e a própria realização de parte desta pesquisa sem sair de casa, foram atividades muito interessantes, sobretudo considerando o tema desta tese. 27 1 O COMÉRCIO, O CONSUMO E OS SERVIÇOS NA ERA DAS REDES DIGITAIS Ao observamos as cidades, percebemos que um dos elementos que se destaca é o comércio, visto que ele representa um importante instrumento de abastecimento, de suprimento de necessidades de toda ordem. Existem no espaço urbano diferentes formas e estratégias comerciais, de variados ramos, que podem conferir uma grande diversidade às cidades. Como exemplos encontramos os shoppings centers, supermercados, lojas de departamento, mercearias, feiras etc. Além das formas e estratégias comerciais que são mais comumente observáveis no espaço urbano, como as citadas anteriormente, existem as que não estão necessariamente presentes no espaço concreto ao alcance imediato dos consumidores, como é o caso do comércio eletrônico. Podemos encontrar diferentes estratégias de comércio eletrônico nos dias de hoje, e nesta tese trataremos de algumas delas, com destaque para as que entendemos como feiras virtuais. Nesse sentido, primeiramente é necessário entendermos nosso objeto de estudo e o contexto em que está inserido atualmente. Assim, este primeiro capítulo foi escrito com o intuito de fazer um detalhamento na descrição das formas, estratégias e tecnologias que são importantes para a análise do nosso objeto de estudo, as feiras virtuais. É o primeiro momento do método adotado, que busca descrever as relações atuais, o que é visível, mas sem o resgate histórico ou o aprofundar analítico, que serão retomados nos segundo e terceiro capítulos, respectivamente. Essa, no entanto, não é uma descrição pura e simples, pois é realizada partir de um olhar teoricamente informado, um olhar crítico. Trata-se de um ponto de partida fundamental ao método escolhido, que está embasado na interpretação dialética, e que nos leva a valorizar as contradições que inicialmente são descritas, depois datadas e, por fim, analisadas à luz dos movimentos anteriores. Desse modo, este capítulo tem como objetivo apresentar o cenário atual ligado ao comércio eletrônico, seu funcionamento e suas estratégias, com ênfase nas experiências de feiras virtuais e, especialmente, na “Feira Virtual Bem da Terra” de Pelotas-RS. Além desta, a título de exemplo serão apresentadas também a “Sacola Virtual” da “Junta Local” no Rio de Janeiro-RJ, e o “Projeto PROVE” de Portugal. Tais experiências representam a união de dois importantes pontos ligados ao comércio e consumo atual: a emergência e consolidação do comércio eletrônico e as novas estratégias utilizadas por formas comerciais tradicionais como as feiras livres, por exemplo. Assim, o capítulo foi organizado em três momentos principais. 28 No primeiro deles o foco recai sobre as novas economias possibilitadas a partir das TICs, nas quais não somente as mercadorias são comercializadas, mas também (e cada vez mais) os serviços. Além disso, buscamos identificar as diversas estratégias utilizadas no comércio eletrônico, desde os casos de empresas que utilizam o comércio eletrônico como complementar para as suas atividades, até aquelas que o têm como única estratégia de comercialização. Outro ponto de interesse discutido neste capítulo será o caso dos dados, considerado um tema importante especialmente no que diz respeito ao comércio eletrônico, pois, afinal, tornaram-se mercadorias valiosas na era das redes digitais. Num segundo momento direcionamos nossa atenção às feiras virtuais. Experiências que nos remetem em parte às dinâmicas encontradas nas feiras livres, mas que utilizam as TICs em sua organização. São apresentadas as características dessas experiências e como elas se diferenciam de outras estratégias de comércio eletrônico. Temos como exemplo duas experiências de feiras virtuais, uma nacional e outra internacional: a “Sacola Virtual” da “Junta Local” do Rio de Janeiro-RJ, e o “Projeto PROVE” de Portugal. Por fim, no terceiro momento deste capítulo o destaque se dá para a “Feira Virtual Bem da Terra” de Pelotas-RS. Assim como nos casos da Sacola Virtual e do Projecto PROVE, é descrito o funcionamento da FVBDT. No entanto, há um detalhamento maior sobre suas dinâmicas, que envolvem tanto a logística, os preços e os fluxos de pedidos quanto a relação dos consumidores e empreendimentos participantes. Também destacamos a articulação da FVBDT em outra rede que segue os mesmos princípios, formada em conjunto com experiências similares nas cidades de Jaguarão, São Lourenço do Sul e Rio Grande: o “Rizoma Bem da Terra”. Juntos, esses três momentos apresentados no primeiro capítulo constituem o princípio do nosso estudo sobre as novas estratégias de comércio e consumo na era das redes digitais. Essas novas estratégias, especialmente ligadas ao comércio eletrônico, assumiram um papel muito importante nos dias de hoje, principalmente sob o contexto da pandemia da Covid-19, não só no Brasil como também em outras partes do mundo. A pandemia da Covid-19, que vem assolando o mundo desde o ano de 2020, ocasionou grandes mudanças nas relações sociais nas mais diversas instâncias do cotidiano, especialmente a partir de medidas como o isolamento e o distanciamento social, a quarentena e o lockdown, tomadas por diferentes chefes de Estados e demais lideranças em momentos diversos, a depender da situação em que se encontravam os níveis de contágio do vírus e a disponibilidade de tratamento nos hospitais. No âmbito familiar, a preocupação com aqueles pertencentes ao 29 grupo de risco (portadores de doenças crônicas e idosos, por exemplo) fez com que pessoas de uma mesma família restringissem o contato entre si, e a prática do distanciamento social foi posta mesmo dentro de casa. Reuniões entre amigos e todo o tipo de confraternização ou de atividade coletiva foram desaconselhadas ou proibidas, nos espaços públicos e mesmo nos espaços privados. As relações estabelecidas com o espaço público foram alteradas e este passou a ser visto como uma potencialidade de contágio de um vírus ainda pouco conhecido. No trabalho, quando a função desempenhada permitia, o home office tornou-se uma solução corriqueira. Nos casos em que o trabalho remoto (feito a distância, em casa) não era possível, outras estratégias foram tomadas: uso de materiais de proteção (máscaras, álcool em gel etc.), jornadas de trabalho reduzidas, restrições ao número de pessoas em um mesmo local, horários de funcionamento restritos, e várias outras normas e regulamentos a depender do município, estado e mesmo país. Por algum tempo as diversas atividades comerciais foram suspensas ou limitadas, com exceção daquelas tidas como essenciais, ligadas à alimentação e à saúde, por exemplo. Isso no caso das atividades presenciais, porque no espaço virtual tais atividades não só não pararam, como se potencializaram e se proliferaram. É certo que o que temos visto no último ano não é algo estritamente novo, inédito, tendo em vista que tais atividades já são uma realidade no universo do comércio e do consumo, mas destaca-se a importância que assumiram nesse período de isolamento e medo. Muitas pessoas trabalhando em casa, fazendo suas refeições também em casa, abandonando os hábitos das visitas aos amigos e parentes, deixando de frequentar academias, evitando as compras no supermercado e shopping centers, essas são novas rotinas impostas à vida privada que fizeram os consumidores escolherem, cada vez mais, alternativas de consumo sem sair de casa. Todas essas alterações, na vida privada, provocadas pelo medo de adoecer e pela insegurança em manter às atividades externas fizeram com que os consumidores deixassem de ir até os produtos e criassem condições de sanarem suas necessidades fazendo com que os produtos chegassem até eles (ORTIGOZA, 2021, p. 115). O uso das TICs, nesse sentido, tem sido central para a continuidade das relações sociais e das atividades econômicas. O acesso à internet, possibilitado pela proliferação dos smartphones, presentes massivamente na sociedade, tem garantido a extensão das mais variadas práticas sociais ao espaço virtual. Plataformas como o Google Meet possibilitam reuniões de trabalho e entre amigos, ao vivo e a cores. Aplicativos como o WhatsApp garantem a 30 comunicação instantânea e a criação de grupos específicos para cada necessidade profissional ou pessoal. Serviços de streaming 4 como a Netflix trazem a sétima arte para dentro de casa. No comércio e no consumo vimos surgir, recentemente, variadas transformações, especialmente ligadas às TICs. Observamos que muitas formas comerciais tradicionais têm adaptado ou estendido as suas relações de trocas para o espaço virtual, através de sites específicos, aplicativos e SRSs, por exemplo (OLIVEIRA, 2016). Algumas mantêm um site como uma estratégia comercial, para além de sua loja física, ampliando o alcance de sua marca e atividades. Outras, no entanto, têm no virtual a sua única forma de comércio, pois não dispõem de loja física, como é o caso das empresas Netshoes e Submarino. No ramo da alimentação, existem desde supermercados virtuais (ZANCHETA, 2016) até empresas que atuam no ramo de entrega de comida, o delivery de comida, como é o caso do Ifood e do Uber Eats. Outro exemplo consiste nas empresas de fast-food que dispõem de sites e/ou aplicativos, próprios ou não, com os seus cardápios e as suas mercadorias disponíveis aos seus clientes, em que se pode comprar e pagar a mercadoria on-line, e inserir endereço para entrega domiciliar. E o que dizer então do papel do comércio eletrônico na atualidade, considerando o caso da pandemia da Covid-19 que, até certo ponto, desacelerou o mundo em 2020? No momento em que esta tese é escrita a pandemia da Covid-19 traz mudanças nas dinâmicas sociais em todos os continentes. Quando as medidas de isolamento social e de quarentena se tornaram frequentes em diferentes países do mundo, o comércio eletrônico se tornou uma alternativa e possibilidade tanto para as empresas quanto para os consumidores. Conforme nos diz Ortigoza (2021, p. 117), [...] estão sendo incorporadas diversas e consecutivas inovações que vêm provocando profundas mudanças nas formas e estratégias do comércio e serviços, transformando o consumo, durante a pandemia, de forma mais específica. Como é o caso do e-commerce, dos serviços on-line, dos serviços e vendas por aplicativos, mídias sociais; influenciadores digitais etc. e que se acentuaram nesse momento de pandemia. Nesse sentido, Ortigoza (2021), ao apresentar um importante panorama das rupturas, permanências e possibilidades do consumo durante a pandemia do novo coronavírus, nos traz dois diferentes cenários relacionados ao comércio: enquanto muitas lojas tiveram de encerrar 4 Tecnologia de transmissão de dados pela internet, especialmente áudio e vídeo, disponibilizadas por plataformas digitais. O arquivo é acessado pelo usuário (assinante) on-line. O detentor do conteúdo transmite a música ou filme pela internet, e como não são realizados downloads, o espaço no computador ou smartphone não é ocupado (embora algumas plataformas ofereçam a possibilidade de download para assinantes). 31 suas atividades, outras introduziram ou ampliaram estratégias vinculadas ao comércio eletrônico. A introdução e a ampliação de tais estratégias possibilitaram, inclusive, uma intensificação do consumo em alguns setores. Como sabemos, com o crescimento dos impactos da pandemia, o isolamento social e o lockdown passaram a ser as principais recomendações de prevenção ao risco da contaminação, como resultado, em algumas cidades e regiões, foram observados o encerramento definitivo das atividades de muitas lojas que, devido ao longo período, precisaram ficar com as portas fechadas. Parte do comércio conseguiu, rapidamente, se moldar a nova realidade e o desenvolvimento do e-commerce e do delivery vieram com força total para não deixarem os consumidores sem as condições necessárias para o consumo. Com todas essas alterações na vida das pessoas, muitas delas, logo se adaptaram e ampliaram seu universo de compras. Com um novo planejamento dos negócios alguns comércios incorporaram inovações tecnológicas e introduziram as vendas on-line. Dessa forma, acelera-se também, durante a pandemia, as vendas de vestuário, eletrodomésticos entre outros (ORTIGOZA, 2021, p. 118). Notícias sobre o crescimento do comércio eletrônico e os novos hábitos dos consumidores têm sido recorrentes desde o princípio da pandemia da Covid-19 no Brasil: “Pandemia do coronavírus faz e-commerce explodir no Brasil” 5 ; “Hábito de consumo adquirido na pandemia deve permanecer após covid-19” 6 ; “Pandemia cria novas formas de consumo a longo prazo para 67% dos brasileiros” 7 ; “Crescimento do comércio eletrônico durante a pandemia: Disparada das vendas em sites e plataformas virtuais no Brasil é sentida durante a quarentena” 8 ; “Vagas no comércio eletrônico crescem até 162% durante a pandemia” 9 ; “Comércio eletrônico paulista cresce seis anos em seis meses em meio à pandemia” 10 ; 5 Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-do-coronavirus-faz-e-commerce-explodir-no- brasil/. 6 Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/18/habito-de-consumo-adquirido-na- pandemia-deve-permanecer-apos-covid-19.htm. 7 Disponível em https://mercadoeconsumo.com.br/2020/07/02/pandemia-cria-novas-formas-de-consumo-a- longo-prazo-para-67-dos-brasileiros/. 8 Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/dino/crescimento-do-comercio-eletronico-durante-a- pandemia,f253ad7083452d8bc1b3756445273d83k9g0xyhv.html. 9 Disponível em https://mercadoeconsumo.com.br/2020/09/22/vagas-no-comercio-eletronico-crescem-ate-162- durante-a-pandemia/. 10 Disponível em https://www.fecomercio.com.br/noticia/comercio-eletronico-paulista-cresce-seis-anos-em-seis- meses-em-meio-a-pandemia. https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-do-coronavirus-faz-e-commerce-explodir-no-brasil/ https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-do-coronavirus-faz-e-commerce-explodir-no-brasil/ https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/18/habito-de-consumo-adquirido-na-pandemia-deve-permanecer-apos-covid-19.htm https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/18/habito-de-consumo-adquirido-na-pandemia-deve-permanecer-apos-covid-19.htm https://mercadoeconsumo.com.br/2020/07/02/pandemia-cria-novas-formas-de-consumo-a-longo-prazo-para-67-dos-brasileiros/ https://mercadoeconsumo.com.br/2020/07/02/pandemia-cria-novas-formas-de-consumo-a-longo-prazo-para-67-dos-brasileiros/ https://www.terra.com.br/noticias/dino/crescimento-do-comercio-eletronico-durante-a-pandemia,f253ad7083452d8bc1b3756445273d83k9g0xyhv.html https://www.terra.com.br/noticias/dino/crescimento-do-comercio-eletronico-durante-a-pandemia,f253ad7083452d8bc1b3756445273d83k9g0xyhv.html https://mercadoeconsumo.com.br/2020/09/22/vagas-no-comercio-eletronico-crescem-ate-162-durante-a-pandemia/ https://mercadoeconsumo.com.br/2020/09/22/vagas-no-comercio-eletronico-crescem-ate-162-durante-a-pandemia/ https://www.fecomercio.com.br/noticia/comercio-eletronico-paulista-cresce-seis-anos-em-seis-meses-em-meio-a-pandemia https://www.fecomercio.com.br/noticia/comercio-eletronico-paulista-cresce-seis-anos-em-seis-meses-em-meio-a-pandemia 32 “Pandemia acelera crescimento no setor de comércio eletrônico” 11 ; “46% dos consumidores usam mais e-commerce por causa da pandemia” 12 ; “E-commerce tem alta de 55,88% em setembro, revela índice MCC-ENET” 13 ; “35% dos brasileiros começaram a comprar online depois da pandemia, aponta pesquisa” 14 ; entre outras. Empresas que já trabalhavam com comércio eletrônico, como mais uma estratégia comercial, ao terem as suas lojas físicas fechadas como medida preventiva à propagação do vírus, passaram a operar somente através da internet. Outras, introduziram pela primeira vez esta estratégia como meio de manter as suas atividades e garantir o seu funcionamento. No entanto, um dos casos mais delicados foi o dos autônomos e, também, daqueles que trabalham na informalidade, muitas vezes sem a possibilidade ou habilidade de manter relações comerciais através da internet, seja pelo tipo de profissão que exercem ou pela mercadoria de que dispõem. Outras atividades também encontraram dificuldades ou tiveram de ser interrompidas num primeiro momento. As feiras livres, por exemplo, mesmo que tenham sido mantidas em partes do Brasil durante o período de isolamento, com restrições, apresentaram dificuldades no funcionamento: menos consumidores nas ruas e feirantes com receio do contágio também deixaram de participar das feiras. Nesse sentido, um caso interessante ocorreu em Curitiba-PR: uma feira tradicional da cidade passou a ter uma versão on-line 15 como medida para que seus artesãos pudessem continuar suas vendas durante o período de isolamento social. Uma das atrações mais conhecidas de Curitiba, a feira de domingo do Largo da Ordem ganhou uma versão online durante a pandemia da Covid-19. Desde o início do isolamento social, a feira migrou para a internet para que os artesãos não fiquem sem poder trabalhar enquanto a medida do isolamento social não for revogada. Mais de 150 feirantes já estão cadastrados na plataforma, que foi desenvolvida em apenas cinco dias pelo Instituto das Cidades Inteligentes (ICI), organização criada em 1998, com atuação em todo o território nacional. A iniciativa contou com participação do Instituto Municipal de Turismo e outros órgãos municipais. O site www.feiradolargo.curitiba.pr.gov.br/ traz 11 Disponível em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/30/pandemia-acelera-crescimento-no- setor-de-comercio-eletronico.ghtml. 12 Disponível em https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/consumidores-usam-ecommerce-pandemia- coronavirus/. 13 Disponível em https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/e-commerce-alta-vendas-setembro/. 14 Disponível em https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/pesquisa-compras-online-brasileiros- coronavirus/. 15 Site da Feira do Largo de Curitiba-PR: https://feiradolargo.curitiba.pr.gov.br/. https://feiradolargo.curitiba.pr.gov.br/ https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/30/pandemia-acelera-crescimento-no-setor-de-comercio-eletronico.ghtml https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/30/pandemia-acelera-crescimento-no-setor-de-comercio-eletronico.ghtml https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/consumidores-usam-ecommerce-pandemia-coronavirus/ https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/consumidores-usam-ecommerce-pandemia-coronavirus/ https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/e-commerce-alta-vendas-setembro/ https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/pesquisa-compras-online-brasileiros-coronavirus/ https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/pesquisa-compras-online-brasileiros-coronavirus/ https://feiradolargo.curitiba.pr.gov.br/ 33 informações dos produtos e os contatos dos feirantes. “Criamos uma vitrine que contempla, além de informações dos produtos, os contatos, as redes sociais e plataformas para venda online de feirantes com alvará da Prefeitura de Curitiba”, explica Luciano Cardoso, coordenador de Portais do ICI e responsável pelo projeto. (BESSA, 2020). E, se no dia 13 de abril de 2020 a feira on-line contabilizava mais de 150 feirantes (BESSA, 2020), quatro dias depois, no dia 17 de abril, o número chegava a 301. No site cada feirante tem um espaço individual onde dispõe de informações e de fotografias de suas mercadorias e os seus contatos: telefone, número de WhatsApp, endereço de web, site próprio e/ou outro tipo de contato disponível. Figura 1: Imagem da página inicial do site da Feira do Largo de Curitiba-PR Fonte: Site da Feira do Largo de Curitiba-PR Data: 17 abr. 2020. Ao entrar no site da Feira do Largo é possível encontrar artesãos que já possuem algum tipo de estratégia de comércio eletrônico, para além deste espaço da feira on-line. Muitos desses, por exemplo, possuem um site próprio e/ou um espaço na página do Elo7 16 . Esta última trata-se de uma plataforma que “funciona como um shopping center online, provendo espaço e marketing aos produtores em troca de uma comissão. Não há custo fixo para abrir uma loja, e sim uma cobrança baseada nas vendas” (FONSECA, 2018). No entanto, trata-se de um 16 Site do Elo7: https://www.elo7.com.br/. https://www.elo7.com.br/ 34 marketplace 17 de um nicho específico: o de artesãos. Na sessão “Sobre” do site da Elo7 (2020) encontra-se a seguinte descrição: Um sapatinho de bebê, um topo de bolo e uma pulseira: o que estes produtos têm em comum? Aparentemente nada. Mas no Elo7 eles não são apenas produtos, pois são únicos, autorais. Foram criados por uma pessoa que se preocupou com cada detalhe, desde concepção da ideia até a chegada nas mãos do comprador. Muito mais que um site, o Elo7 nasceu em 2008 com a missão de transformar a vida das pessoas através de um ambiente humanizado de compra e venda que conecta e inspira, conferindo significado a cada transação realizada. Trabalhamos para desenvolver as melhores tecnologias e oferecer aos vendedores soluções simples e práticas para o gerenciamento de suas vendas e para os compradores, uma experiência de compra fora de série. Segundo Fonseca (2018), no ano de 2018 a plataforma contava com 30 milhões de visitas por mês e concentrava 90 mil vendedores, atingindo a marca de “4,8 milhões de produtos cadastrados em categorias como ‘Acessórios e vestuário’, ‘Bebê’, ‘Celebrações’, ‘Decoração e Utensílios para Casa’. Em 2017 foram 1,7 milhão de compradores, que movimentaram 550 milhões de reais”. E se o caso da Feira do Largo de Curitiba-PR é um exemplo de adaptação dos artesãos às circunstâncias excepcionais ocasionadas pela propagação do Covid-19, as grandes empresas que têm no comércio eletrônico sua única estratégia comercial potencializaram suas vendas neste período. É o caso da Amazon. Em tempos de confinamento, como obter tapete de ginástica, halteres, cortador de grama, espreguiçadeiras, churrasqueira ou massinha para manter as crianças ocupadas? Para milhões de pessoas obrigadas a ficar em casa, a resposta está em seis letras: Amazon. No auge da pandemia, como um gênio saído de sua lâmpada mágica, apesar das instruções das autoridades, o número um do mundo em vendas on-line está atendendo aos mais variados desejos. A situação é paradoxal. No mundo inteiro, fábricas estão fechando. Livrarias, lojas de esportes e outros estabelecimentos especializados cerraram as portas, e alguns infratores receberam multas pesadas. Mas, nos arredores das grandes cidades, há lugares onde se amontoam mais de mil: os armazéns logísticos. No final de março de 2020, plataformas de distribuição em massa, centros de triagem postal e hangares de vendas on-line estavam a pleno vapor. (MALET, 2020, p. 12). Malet (2020) traz alguns dos relatos de aumento das atividades durante o período de isolamento social/quarentena dos grandes armazéns da Amazon localizados nos arredores das 17 Trata-se de uma plataforma on-line, mediada por uma empresa que é sua proprietária, em que vários fornecedores (outras empresas) se inscrevem e vendem os seus produtos, “também é conhecido como uma espécie de shopping center virtual. É considerado vantajoso para o consumidor, visto que reúne diversas marcas e lojas em um só lugar, facilita a procura pelo melhor produto e melhor preço. Diversas empresas mundialmente conhecidas participam desse mercado: Americanas, Shoptime, Walmart, Mercado Livre, OLX e Bom Negócio, por exemplo” (ZACHO, 2017). 35 grandes cidades. Com o fechamento das lojas físicas, era de se esperar que o fluxo de consumo diminuísse, no entanto, nesse cenário de impossibilidade de visitar o espaço físico, o comércio eletrônico se destacou. E sobre o tipo de mercadorias comercializadas na Amazon, os relatos são de poucos itens considerados essenciais. “É simples, nunca vi tanta atividade no meu armazém Amazon”, resume Giampaolo Meloni, da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL), na região de Castel San Giovanni (Emília-Romanha). Na França, durante a semana de 2 a 8 de março, o crescimento das vendas on-line foi quatro vezes maior que o das lojas físicas, no entanto tomadas de assalto. Desde então, a tendência se acentuou, e a Amazon, que geralmente capta 20% das compras on-line feitas pelos franceses, teve forte impulso. “Desde o início da crise, o que observo em meu armazém milanês é obsceno”, confessa Antonio Bandini, da CGIL na Lombardia. “Ao contrário do que a propaganda da Amazon diz, entregamos poucas coisas realmente essenciais para os italianos. O que vejo nos carrinhos? Esmaltes de unha, bolas de espuma, brinquedos sexuais.” “Meu armazém não é um depósito de alimentos, vendemos menos de 5% desse tipo de produto”, anuncia Fouzia Benmalek, delegada sindical da Confederação Geral do Trabalho (CGT) do armazém da Amazon em Montélimar (Drôme). “Rodas de carro, videogames, discos... Em uma dúzia de carrinhos que inspecionei aleatoriamente ontem, não havia nenhum produto de primeira necessidade.” Na região de Sevrey (Saône-et-Loire), “somos especializados em sapatos e roupas!”, afirma Antoine Delorme, delegado da CGT. “É o mesmo comigo na Alemanha, em Bad Hersfeld”, observa Christian Kraehling, do Ver.di – o sindicato unificado dos serviços. “Meu armazém envia principalmente roupas, sapatos e garrafas de bebidas alcoólicas.” (MALET, 2020, p. 12). Com o maior fluxo de vendas nesse setor, outro ponto de destaque foi a mão-de-obra necessária para dar conta das atividades: recrutamento de trabalhadores e aumento de horas de trabalho semanais. Ao contrário do que se esperava, que as pessoas ficassem reclusas em suas casas para evitar o contágio do vírus, o que vimos foi uma demanda crescente por trabalhadores que aceitassem o risco do contágio em troca de contratos temporários e um acúmulo de horas trabalhadas. Para responder a esse pico de atividade sem precedentes, são necessários braços. Em 16 de março, a Amazon anunciou o recrutamento de 100 mil trabalhadores temporários apenas nos Estados Unidos. Acrescentados aos 800 mil funcionários regulares, além do uso maciço de trabalhadores temporários em outros continentes, a empresa lidera um exército industrial de pouco menos de 1 milhão de trabalhadores em todo o mundo. “No Reino Unido”, constata Mick Rix, coordenador nacional responsável pela Amazon no sindicato GMB, “agora a maioria dos funcionários trabalha 50 horas por semana e não é incomum que alguns façam jornadas de 13 horas. O recurso às horas extras é intenso.” (MALET, 2020, p. 12). E se o comércio eletrônico se multiplicou nesse período, também devemos considerar os fluxos e os sujeitos necessários para a entrega das mercadorias. Os sistemas de logística não puderam parar, os sistemas de transportes permaneceram funcionando, os trabalhadores 36 continuaram as suas jornadas mesmo com todos os riscos envolvidos, fosse para abastecer hospitais com itens de primeira necessidade ou mesmo entregar mercadorias talvez não tão necessárias a consumidores em suas casas. Percebemos, desse modo, que no período de isolamento, distanciamento social, quarentena e lockdown não houve necessariamente uma diminuição do comércio ou uma retração do consumo, esses foram apenas deslocados para uma outra estratégia: o comércio eletrônico. As necessidades, sejam elas quais forem, precisam ser supridas e, em razão dos riscos relacionados aos ambientes presenciais, essa estratégia comercial apresenta-se como uma importante alternativa. 1.1 PRODUTOS E SERVIÇOS: OUTRAS TECNOLOGIAS, OUTRAS ECONOMIAS, OUTROS COMÉRCIOS Atualmente, as TICs encontram-se cada vez mais presentes em nosso cotidiano, especialmente a partir das telas que podem, inclusive, oferecer a possibilidade de interação com seus softwares. Podemos contar hoje, por exemplo, com a companhia das tão populares Alexa ou Siri, além da possibilidade de trocar algumas palavras a partir de um “Ok Google”. Evidentemente, não podemos comparar as interações humanas com as que ocorrem com estes modernos softwares. No entanto, esses assistentes virtuais inteligentes presentes em smartphones ou outros dispositivos de som têm se tornado de uso comum e causam até um espanto inicial quanto a sua refinada programação. Algumas vezes até esquecemos de sua existência, mas grande parte dos dispositivos eletrônicos atuais já conta com softwares inteligentes, inclusive com funções que podem nos passar despercebidas. Hoje podemos conversar com nossos dispositivos eletrônicos sem estranheza, realizar pesquisas a partir de perguntas simples, ligar e desligar aparelhos conectados sem precisar tocar neles. Controles por voz são comuns nas casas inteligentes em que os sistemas são altamente tecnológicos e conectados; a temperatura, a iluminação e mesmo as trancas de portas e janelas e a irrigação do jardim podem ser programados previamente. E mesmo nas casas que não possuem tais sistemas integrados as tecnologias inteligentes já estão presentes. O que num primeiro momento pode parecer uma brincadeira, imaginação ou coisa de cinema, na verdade é uma realidade presente cada vez mais em situações e lares. Programas como a Siri da Apple oferecem um vislumbre da capacidade de uma subárea da IA que está em rápido avanço: os sistemas inteligentes. [...] Atualmente, o reconhecimento de voz e a inteligência artificial progridem em uma velocidade tão rápida que falar com computadores se tornará, em breve, 37 a norma, criando algo que os tecnólogos chamam de computação ambiental; nela, os assistentes pessoais robotizados estão sempre disponíveis para tomar notas e responder às consultas do usuário. Cada vez mais, nossos dispositivos se tornarão parte de nosso ecossistema pessoal, nos ouvindo, antecipando nossas necessidades e nos ajudando quando necessário – mesmo que não tenhamos pedido. (SCHWAB, 2016, p. 20-21). As possibilidades de que dispomos atualmente em termos tecnológicos são imensas e têm adentrado no cotidiano de maneira muito fluida. Os smartphones, os smartwatches e as smart TVs já são objetos de uso corriqueiro, dispositivos inteligentes considerados facilitadores das atividades diárias. Têm em comum mais do que o acúmulo dos recentes avanços tecnológicos em cada setor, pois são pequenos exemplos da aplicabilidade da chamada Internet das Coisas (ou IoT: internet of things), que sinteticamente “pode ser descrita como a relação entre as coisas (produtos, serviços, lugares etc.) e as pessoas que se torna possível por meio de diversas plataformas e tecnologias conectadas” (SCHWAB, 2016, p. 26). De acordo com Magrani (2018, p. 19-20), Sistemas automatizados que acendem as luzes e aquecem o jantar ao perceber que você está retornando do trabalho para casa, pulseiras e palmilhas inteligentes que compartilham com seus amigos o quanto você andou a pé ou de bicicleta durante o dia na cidade ou sensores que avisam automaticamente aos fazendeiros quando um animal está doente ou prenhe. Todos esses exemplos são manifestações consideradas tecnologias inovadoras associadas ao conceito que vem sendo construído de internet das coisas (internet of things, IoT). [...] De maneira geral, pode ser entendido como um ambiente de objetos físicos interconectados com a internet por meio de sensores pequenos e embutidos, criando um ecossistema de computação onipresente (ubíqua), voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas, introduzindo soluções funcionais nos processos do dia a dia. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em como computadores, sensores e objetos interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade. Esses conjuntos de objetos e de sistemas estão sendo projetados com o que há de mais sofisticado tecnologicamente, apresentando e possibilitando aos usuários experiências com um alto grau de conectividade. Tais conectividades são tão essenciais que não dizem respeito apenas à possibilidade de comunicação instantânea entre as pessoas ou entre as pessoas e as máquinas, mas correspondem também à comunicação entre as próprias máquinas. A hiperconectividade contida nesses objetos possibilita, a partir de seus sistemas integrados, uma ampla comunicação e fluxo de informações, assim como gera uma quantidade imensa de dados. Como já dizia uma professora ao discorrer acerca das relações atuais das TICs com os objetos do cotidiano: “Cuidado com a sua TV, ela pode estar te observando”, e coletando os seus dados. O termo hiperconectividade está hoje atrelado às comunicações entre indivíduos (person-to-person, P2P), indivíduos e máquina (human-to- 38 machine, H2M) e entre máquinas (machine-to-machine, M2M) valendo-se, para tanto, de diferentes meios de comunicação. Há, nesse contexto, um fluxo contínuo de informações e massiva produção de dados. Por isso, o avanço da hiperconexão depende do aumento de dispositivos que enviam e recebem essas informações (MAGRANI, 2018, p. 21). Esses dados são considerados uma das mais valiosas mercadorias na era das redes, conforme será apresentado ao longo deste capítulo. Seu valor está diretamente relacionado às informações extraídas dessas grandes quantidades de dados e sua utilização comercial – o big data (que em português pode ser entendido como “grandes dados” ou megadados), juntamente dos algoritmos, apresenta-se hoje como uma valiosa ferramenta de volume de dados e um importante mecanismo estratégico de análise desses dados utilizados pelas empresas de diversas maneiras. Dessa maneira, percebe-se uma estreita relação entre a intencionalidade de reprodução das tecnologias voltadas à hiperconectividade e a potencialidade de retorno financeiro para além da venda do objeto em si, pois afinal tal objeto gerará dados que serão também comercializados. Em linhas gerais, pagamos pelo objeto e ainda fornecemos dados pessoais que gerarão mais lucro para as empresas que, assim, ganham duas vezes. Há, também, a necessidade de desenvolvimento de cada vez mais dispositivos que possam se manter conectados uns aos outros e, claro, coletar mais dados. Smart TVs que se conectam a smartphones já conectados a fones sem fio, que também estão conectados a smartwatches: escolhemos o que assistir na Netflix ou Amazon Prime, ou o que ouvir no Spotify, ao mesmo tempo que conferimos quantas horas dormimos na noite anterior e o caminho e a distância percorridos na última caminhada matinal. Os dispositivos eletrônicos podem não ser da mesma marca/empresa, mas possuem tecnologias compatíveis que os tornam integráveis entre si. Evidente que existem grandes benesses relacionadas à coleta de dados e aos seus usos, que podem trazer inúmeros impactos positivos à humanidade e que não devem ser esquecidas. Exemplo disso são os progressos referentes à inteligência artificial. A inteligência artificial (IA) está em nosso entorno, em carros que pilotam sozinhos, drones, assistentes virtuais e softwares de traduções. Isso está transformando nossas vidas. A IA fez progressos impressionantes, impulsionada pelo aumento exponencial da capacidade de processamento e pela disponibilidade de grandes quantidades de dados, desde softwares usados para descobrir novos medicamentos até algoritmos que preveem nossos interesses culturais. Muitos desses algoritmos aprendem a partir das “migalhas” de dados que deixamos no mundo digital. Isso resulta em novos tipos de “aprendizagem automática” e detecção automatizada que possibilitam robôs “inteligentes” e computadores a se autoprogramar e encontrar as melhores soluções a partir de princípios iniciais. (SCHWAB, 2016, p. 19). 39 Nesse sentido, e para entendermos o contexto pelo qual o comércio eletrônico tem se consolidado atualmente, é necessário termos em mente o papel que as TICs e os demais avanços tecnológicos têm desempenhado no mundo dos negócios e no sistema produtivo de hoje. A Internet das Coisas não é algo isolado, uma face única e especial dos avanços tecnológicos atuais. Ela se encontra dentro de algo muito maior e se junta a outros avanços essenciais deste momento: a chamada Quarta Revolução Industrial, ou Indústria 4.0. A Indústria 4.0, termo cunhado pelo governo alemão, ou a Quarta Revolução Industrial, expressão utilizada pelos participantes do último Fórum Econômico Mundial de Davos, constitui um conjunto de tecnologias inovadoras, como a nanotecnologia, as plataformas digitais, a inteligência artificial (IA), a robótica, a internet das coisas, entre outras, que representam um salto de qualidade na capacidade de organizar e de controlar o trabalho. (GONSALES, 2020, p. 125). Podemos complementar a citação anterior destacando que o salto de qualidade na capacidade de organizar não se restringe ao trabalho, mas se estende também ao comércio, diretamente ao comércio eletrônico. É impossível pensarmos em comércio eletrônico sem relacioná-lo às diversas plataformas digitais existentes e disponíveis, seja como consumidor ou mesmo como trabalhador, já que essa área tem se destacado muito atualmente. Mas a Quarta Revolução Industrial ainda é muito mais. Imagine as possibilidades ilimitadas de bilhões de pessoas conectadas por dispositivos móveis, dando origem a um poder de processamento, recursos de armazenamento e acesso ao conhecimento sem precedentes. Ou imagine a assombrosa profusão de novidades tecnológicas que abrangem numerosas áreas: inteligência artificial (IA), robótica, a internet das coisas (IoT, na sigla em inglês), veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica, para citar apenas algumas. Muitas dessas inovações estão apenas no início, mas já estão chegando a um ponto de inflexão de seu desenvolvimento, pois elas constroem e amplificam umas às outras, fundindo tecnologias dos mundos físico, digital e biológico. (SCHWAB, 2016, p. 11). Talvez o que mais impressione no contexto da Quarta Revolução Industrial são os níveis de aprofundamento do uso das tecnologias nos mais diversos âmbitos da vida, e a velocidade com que ocorrem. Essa revolução não se restringe apenas ao mundo das máquinas e à inserção marcante do universo virtual, mas também ao viés biológico: a nanotecnologia tem sido aplicada em inovações no agronegócio, por exemplo, na produção de sementes geneticamente modificadas que estão chegando às nossas mesas. A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inteligentes e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial 40 fundamentalmente diferente das anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos. (SCHWAB, 2016, p. 16). É importante atentarmos para o que tem diferenciado a Quarta Revolução Industrial de sua antecessora, a chamada revolução digital ou do computador. Enquanto a Terceira Revolução Industrial marca a ascensão e consolidação da era das redes, com ápice no uso da internet, a Quarta Revolução Industrial traz a relação do universo digital à aplicação física. As relações e os desdobramentos da revolução digital deixam o mundo do ciberespaço (LÉVY, 1999) e são aplicadas às coisas, ou embutidas nas dinâmicas dos serviços. Trata-se do aprimoramento ou junção das tecnologias digitais ao cotidiano de uma maneira mais radical do que vinha acontecendo até então. Ciente das várias definições e argumentos acadêmicos utilizados para descrever as três primeiras revoluções industriais, acredito que hoje estamos no início de uma quarta revolução industrial. Ela teve início na virada do século e baseia-se na revolução digital. É caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (aprendizado de máquina). As tecnologias digitais, fundamentadas no computador, software e redes, não são novas, mas estão causando rupturas à terceira revolução industrial; estão se tornando mais sofisticadas e integradas e, consequentemente, transformando a sociedade e a economia global. (SCHWAB, 2016, p. 16). Além disso, a Quarta Revolução tem também como característica a velocidade em que tem se desenvolvido, sido aplicada e utilizada. O que parece ter sido copiado de um (ou mais) episódio da distópica série britânica de ficção científica Black Mirror, que tem como foco a relação do indivíduo e da sociedade com a tecnologia, na verdade é realidade e envolve diferentes áreas. As inovações tangíveis que resultam da interdependência entre tecnologias distintas não são mais ficção científica. Hoje, por exemplo, as tecnologias de fabricação digital podem interagir com o mundo biológico. Alguns designers e arquitetos já estão misturando o design computacional, a fabricação aditiva, a engenharia de materiais e a biologia sintética para criar sistemas pioneiros que envolvem a interação entre microrganismos, nossos corpos, os produtos que consumimos e até mesmo os edifícios onde moramos. Ao fazê-lo, eles estão construindo (e até mesmo “cultivando”) objetos que são continuamente mutáveis e adaptáveis (as principais características dos reinos animal e vegetal). (SCHWAB, 2016, p. 19). Dentre os grandes beneficiados pela Quarta Revolução Industrial, Schwab (2016, p. 21) destaca “os provedores de capital intelectual ou físico – os inovadores, os investidores e os acionistas”. Além destes, segundo Schwab (2016, p. 20), os consumidores também têm seu 41 lugar, a partir da “existência de novos produtos e serviços que aumentam, sem praticamente nenhum custo, a eficiência de nossas vidas como consumidores”. Pedir um táxi, encontrar um voo, comprar um produto, fazer pagamentos, ouvir música ou assistir a um filme – qualquer uma dessas tarefas pode, agora, ser realizada remotamente. Os benefícios da tecnologia para os consumidores são irrefutáveis. A internet, o smartphone e milhares de aplicativos estão deixando nossas vidas mais fáceis e – em geral – mais produtivas. Um dispositivo simples como um tablet, que usamos para ler, navegar e nos comunicar, possui a capacidade de processamento equivalente a 5 mil computadores desktop de 30 anos atrás, enquanto o custo de armazenamento das informações está se aproximando de zero (Armazenar 1 GB custa, em média, menos de US$ 0,03 por ano atualmente, há 20 anos o valor era US$ 10 mil). (SCHWAB, 2016, p. 19). E nesse panorama encontramos também as chamadas criptomoedas, ou moedas virtuais, como o Bitcoin, por exemplo. Além da circulação do dinheiro em seu formato imaterial, sem sua presença física, através de transferências e pagamentos on-line, temos essa moeda diferenciada e vinculada à tecnologia, que circula única e exclusivamente no ciberespaço e sem a regulação de nenhum Estado ou instituição financeira centralizada. Embora esse tipo de moeda não seja usual em transações comerciais do cotidiano, algumas empresas visualizam essa possibilidade se houver demanda, como a Uber, e outras já inseriram as criptomoedas como formas de pagamento, como a PayPal e o Mercado Livre (SILVEIRA, 2021). No entanto, é preciso destacar que nem todas as pessoas têm o mesmo acesso aos avanços tecnológicos que presenciamos atualmente, assim como também existem diferenças no uso dessas tecnologias entre os territórios. Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir da coleta de dados realizada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), nos anos de 2017 e 2018, divulgou resultados sobre o uso das TICs no Brasil. Segundo o IBGE (2020b), “em 2018, a Internet era utilizada em 79,1% dos domicílios brasileiros. Um crescimento considerável, se comparado ao ano de 2017 (74,9%). A maior parte desses domicílios fica concentrada nas áreas urbanas das Grandes Regiões do país”. Nas Figuras 2 e 3 podemos constatar o percentual de pessoas que utilizaram a Internet e a diferença de utilização da Internet, por situação do domicílio, por grandes regiões do Brasil. 42 Figura 2. Pessoas que utilizaram a Internet por grandes regiões do Brasil nos anos de 2017 e 2018 Fonte: IBGE (2020b). 43 Figura 3. Domicílios em que havia utilização de Internet, por situação do domicílio, por grandes regiões do Brasil Fonte: IBGE (2020b). Na Figura 2 percebemos que houve aumento no número de pessoas que utilizaram a Internet em todas as grandes regiões do país, de 2017 para 2018, com destaque para as regiões Sudeste e Centro-Oeste, que passaram da marca dos 80% no ano de 2018 e para a região Sul que se aproxima desse número. Já na Figura 3, essas três grandes regiões mantêm números próximos quando considerado o acesso nas áreas urbanas e rurais, com destaque para a região Sul, que ultrapassa os 60% de domicílios na área rural, e para as regiões Sudeste e Centro-Oeste nas áreas urbanas. Nesse sentido, na Figura 4 é possível constatar os motivos apontados para a não utilização da Internet entre domicílios de áreas urbanas e rurais no Brasil. Nota-se uma diferença muito acentuada, especialmente no caso do serviço de acesso à Internet não estar disponível na área de domicílio: enquanto nas áreas urbanas é de 1%, nas áreas rurais o número chega a quase 21%. Também chamam atenção os percentuais relacionados ao preço dos equipamentos eletrônicos necessários para acessar a Internet e ao serviço de acesso: somados variam de 30% nas áreas urbanas e 30,1% nas áreas rurais. 44 Figura 4. Distribuição dos motivos para a não utilização da Internet entre domicílios de áreas urbanas e rurais Fonte: IBGE (2020b). Além disso, pesquisas apontam que o meio de acesso à internet está ligado aos rendimentos domiciliares: de acordo com o IBGE (2020a), “entre os lares que utilizaram tablet e televisão para acessar a internet, os ganhos eram de R$ 3.538 (tablet) e R$ de 3.111 (TV), enquanto naqueles que usaram microcomputador e celular os rendimentos eram de, r