Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil? Larissa Pelúcio* RESUMO: Desde que aportou no Brasil no início deste século, sobretudo via obra da filósofa Judith Butler, a teoria queer tem sido seguida, criticada, contestada e pouco problematizada em suas implicações epistemológicas mais profundas. Ainda que se tenha, nacionalmente, empreendido significativos e consistentes debates sobre os aportes que esta vertente dos saberes subalternizados tem suscitado, ainda são poucas as discussões que procuram pensar nessas contribuições no contexto específico brasileiro, no qual as categorias de gênero, sexualidade, raça/etnia, se interconectam de maneira singular, configurando experiências muito distintas daquelas discutidas por autoras e autores estrangeiros filiados a esta corrente. A provocação aqui é de pensar antropofagicamente, buscando nessa reflexão diálogos frutíferos com os feminismos, as leituras pós-coloniais, com ênfase naquelas pensadas a partir da realidade latino- americana, na tentativa de tencionar nossas produções – pensadas a partir de realidades locais – diante de questões que também são transnacionais. Mais que traduções do “queer”, a ideia aqui é pensar em uma teoria informada por essas produções, mas que ouse se inventar a partir de questões próprias de nossa experiência marginal. Nesta apresentação, tomo a curta, mas intensa, produção do antropólogo argentino Néstor Perlongher como um dos marcos para a elaboração de uma “teoria cu” latino-americana, mas, sobretudo brasileira, aquela produzida fora dos regimes falogocêntricos e heteronormativos da ciência canônica. PALAVRAS-CHAVE: teoria queer; teoria cu; epistemologias do Sul, Néstor Perlongher ABSTRACT: Since its arrival in Brazil at the beginning of the new century, queer theory – and particularly that variant of it linked to the works of Judith Butler – has been followed, criticized, contested and yet hardly problematicized in its deeper epistemological implications. Although Brazilian scholars have employed meanings and consistent debates regarding the changes that this axis of subaltern knowledge has provoked, there are still few discussions which seek to think about these contributions in the specific Brazilian context, in which categories of gender, sexuality, race and ethnicity link and cross in unique ways, creating experiences that are quite different from those generally discussed by foreign queer theorists. In the present article, I am trying to provoke an anthropophagic reflection, seeking fruitful dialogues with feminisms and post-colonial texts, emphasizing those that focus upon Latin-American reality, in an attempt create tension in our productions – thought in terms of local realities – as these face questions and issues that are also transnational. The idea here is to go beyond translating “queer”, towards thinking of a theory informed by these productions, but which also dares to invent itself through questioning our own marginalized experience. In the present article, I look at the short but intense production of Argentine anthropologist Néstor Perlongher, taking it as one of the starting points for the elaboration of a Latin American (but mainly Brazilian) “teoria cu”: that which is produced outside of the phallocentric and heteronormative regimes of canonic science. * Professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e do Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais. Pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index KEY-WORDS: Queer theory; Cu theory; South epistemology, Néstor Perlongher RESUMÉN: Tras haber llegado en Brasil, en el comienzo de este siglo, marcadamente por medio de la obra de la filósofa Judit Butler, la teoría queer ha sido asimilada, criticada, contestada y poco problematizada de manera más profundizada acerca de sus implicaciones epistemológicas. Aunque que se haiga, nacionalmente, desarrollado significativos y consistentes debates acerca de los aportes que esta vertiente de los saberes subaltenizados ha provocado, aún son pocas las discusiones las cuales buscan pensar en estas contribuciones en el contexto específico brasileño, en cuyo marco las categorías de género, sexualidad, raza/etnia se interconectan de manera singular, performando experiencias muy distintas de aquellas tratadas por autoras y autores extranjeros comprometidos con el queer. La provocación en este artículo es de pensar antropofágicamente, intentando en esta investigación diálogos fructíferos con el feminismo, las lecturas post-coloniales, con énfasis en aquellas formuladas a partir de la realidad latinoamericana, intentándose tensionar nuestras producciones frente a cuestiones que son transnacionales. Más que traducciones para el “queer”, la idea es pensar una teoría informada por estas producciones, pero que aventúrese a inventarse a sí misma a partir de nuestra experiencia marginal. En este articulo, tomo la corta pero intensa producción del antropólogo argentino Néstor Perlongher como uno de los marcos para la elaboración de una “teoría cu” latinoamericana, con énfasis en las discusiones brasileñas. PALABRAS-CLAVE: Teoria queer; teoría cuier; epistemologías del sur, Néstor Perlongher 1. O cu (de) Preciado Presos em um engarrafamento na Marginal Tietê, em São Paulo, um amigo e eu conversamos sobre sexo e tecnologias. Ele me pergunta se já li Testo Yonqui, então, a última publicação da filósofa espanhola Beatriz Preciado. Digo que, coincidentemente, estou fazendo naquele momento a leitura, avidamente, meio adicta. A conversa nos anima. Atropelamos as nossas falas, interrompemos abruptamente a linha rugosa das nossas argumentações para ouvir um ao outro. Em meio aquele cenário distópico, discutimos a era farmacopornográfica. Gozamos com Preciado política, intelectual e esteticamente. Rimos, porque aquela conversa parecida funcionar em nós como aquele gel que Beatriz Preciado espalha pelos ombros e ventre, estimulando-nos1. Nossas inquietações se misturam ao “testogel” e esse gruda nas palavras que, ditas em espanhol, parecem mais potentes, pelo menos para mim. Há algo de colonial nesse idioma quando vem da 1 Neste livro, Preciado narra sua experiência com a autoaplicação de testosterona em gel. Ao tom biográfico a autora acrescenta reflexões teóricas oferecendo-nos uma leitura estimulante, profunda e, por vezes, paradoxal, uma vez que certas aventuras narradas são desconcertadamente androcêntricas. Mas isso é uma outra estória. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Península Ibérica. Meu amigo concorda e acha aí a brecha para exprimir suas inquietações com aquele texto especificamente, com a autora de uma forma abrangente. Sua proposta se inicia pela própria crítica colonial, provocando minha imaginação com a possibilidade epistêmica de pensarmos a partir de algumas torções, de, com essas investidas, trazermos Preciado para a Amazônia, assim como um dia, Laura Bohannan (2005) precisou levar Shakespeare para a selva, para descobrir que não há uma natureza humana exatamente igual no mundo inteiro e que as interpretações dos dramas humanos só fazem sentido em contexto2. Ainda que, muitas vezes, cheguemos a duvidar da potência universalizante dos conceitos e da matriz científica, acabamos nos esforçando no sentido de torná-los, sim, universais. Assim, nos empenhamos, por vezes, em traduções, que, como tal, têm grande potencial para traírem-se. O professor Pedro Paulo Pereira, meu companheiro naquela viagem tecnopolítica pelas veias entupidas de São Paulo, indaga “sobre as potencialidades do queer nos trópicos”. Suas inquietações são também linguísticas, como tal, são políticas. “Como traduzir a expressão queer? Haveria possibilidade de o gesto político queer abrir-se para saberes-outros ou estaríamos presos dentro de um pensamento sem que nada de novo possamos propor ou vislumbrar? (2013, p. 372). Ele tem se empenhado nesse exercício e produzido reflexões importantes que deslocam a lógica do “centro” para outras “sócio- lógicas” forjadas nas experiências coloniais, nos apagamentos de saberes que são hoje como palimpsestos que nos esforçamos em reconhecer, em adivinhar suas lacunas para fazê-los falar. É quando nos damos conta de que nosso vocabulário ainda é escasso quando tratamos de buscar outras maneiras de dizer sobre nós. “Existe na posse da linguagem uma extraordinária potência”, aprendemos com Frantz Fanon (2008 [1952], p. 34). Pensadoras e pensadores queer fizeram uso, desde o início de conformação desse campo de proposições teóricas, dessa potência. Adotaram a ofensa, a identidade atribuída e nunca reivindicada, como seu lugar político: queer. Em inglês, já sabemos, o termo é ofensivo. “É como te chamam na escola quando querem te zoar”3, explica a antropóloga norte-americana de origem latina, Marcia Ochoa. É ela ainda que adverte que se deve ter muito cuidado com a palavra queer, pois se trata de uma categoria local 2 A Antropóloga norte-americana descreve neste delicioso texto sua experiência etnográfica ao contar para os Tiv, povo da África Ocidental, a tragédia de Hamlet, o qual ela considerava guardar um sentido fundamental comum, independente da audiência, uma vez que, supostamente, trataria de dramas universais da alma humana. Ao fim, os anciãos Tiv acabam ensinando à pesquisadora outra forma de entender a estória. 3 Tradução minha do original: “ es como te llamaban en la escuela cuando se burlaban de ti”. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index estadunidense que tem viajado justamente porque aquele país mantém ainda certa hegemonia na produção de conhecimento, o que permite a publicação e circulação de textos norte-americanos por todo o mundo, de modo que o termo “queer” tem viajado muito, “mas não tem a mesma resonância em todos os lugares”. (Ochoa. 2004: 254. Tradução minha). Felipe Rívas San Martín, editor da Revista Disidencia Sexual y Torcida, de estudos queer, conta de sua experiência ao tentar explicar para duas estudantes estrangeiras qual era a linha editorial da revista. “‘Cuir”. Es de teoría ‘cuir’”. ¿“Cuir”? -Repitieron ellas, mirándose intrigadas- ¿Qué es “cuir”? Es “cuir”, “cuir”, como el insulto homofóbico, o como “raro” en inglés. A esas alturas ya estaba angustiado. “Cuir”, “cuier”, “cuiar”. Repetía gesticulando y alterando los modos de pronunciación, intuyendo que el problema podía estar radicado ahí. De pronto las gringas se miraron y exclamaron: Ah!... “queer”, “queer”! (Rivas, 2011: 59). Também em português “queer” nada quer dizer ao senso comum. Quando pronunciado em ambiente acadêmico não fere o ouvido de ninguém, ao contrário, soa suave (cuier), quase um afago, nunca uma ofensa. Não há rubores nas faces nem vozes embargadas quando em um congresso científico lemos, escrevemos ou pronunciamos queer. Assim, o desconforto que o termo causa em países de língua inglesa se dissolve aqui na maciez das vogais que nós brasileiros insistimos em colocar por toda parte. De maneira que a intenção inaugural desta vertente teórica norte-americana, de se apropriar de um termo desqualificador para politizá-lo, perdeu-se no Brasil. Assumir que falamos a partir das margens, das beiras pouco assépticas, dos orifícios e dos interditos fica muito mais constrangedor quando, ao invés de usarmos o polidamente sonoro queer, nos assumimos como teóricas e teóricos cu. Eu não estou fazendo um exercício de tradução dessa vertente do pensamento contemporâneo para nosso clima. Falar em uma teoria cu é acima de tudo um exercício antropofágico, de se nutrir dessas contribuições tão impressionantes de pensadoras e pensadores do chamado norte, de pensar com elas, mas também de localizar nosso lugar nessa “tradição”, porque acredito que estamos sim contribuindo para gestar esse conjunto farto de conhecimentos sobre corpos, sexualidades, desejos, biopolíticas e geopolíticas também. Volto a Preciado – que para mim é uma das pessoas que melhor sabe falar de cu, em um sentido político – ainda com a ideia de propor a ela outras experiências subjetivas. Por pura coincidência, o caderno onde escrevo minhas vivências com os transes que a Umbanda tem me proporcionado, tem a mesma cor da capa de Testo Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Yonqui, além do mesmo tipo de elástico que prende as folhas, como o que está simulado em desenho na edição espanhola. Capítulo 1: “Os êres”. “A fia tem de brinca, viu fia? Deixa as crianças vi”, recomenda a Preta Velha. Sinto que a energia se intensifica. Eu vou me perdendo no tombo da cabeça e do tronco. A Preta Velha tira sua guia branca do pescoço, coloca na minha testa. O abandono se intensifica. Ela pede que eu levante. Obedeço. Me desequilibro, sinto que não sei o que sentir. Ouço os atabaques no ponto dos erês, que são crianças. De repente os ombros encurvam levemente para frente. Acho que é erê. Ele, ela, não sei. Rio um riso bom de quem não tem gênero. Pensei depois que o que me fazia não saber o que sentir era justamente não saber ser sem um gênero. Capítulo 8: “Farmacopoder”. “La inquisición condena a los cultivadores, recoletores, y conocedores de preparaciones a base de plantas, considerándolos brujas, alquimistas y parteras como herejes o desviantes satánicos: se inicia así un proceso de expropiación de saberes populares, de criminalización de prácticas de ‘intoxicación voluntaria’ y de privatización de germoplasmas vegetales que culminará en la modernidad con la persecución del cultivo, ele uso y el tráfico de drogas, la progresiva transformación de los recursos naturales en patentes farmacológicas y la confiscación de todo saber auto experimental de administración de sustancias por las instituciones jurídicos-médicas” (Preciado, 2008, p. 112) Nem todo o saber foi expropriado, quero dizer a Preciado. Basta olhar para além da linha do Equador, para o “cu do mundo”. Imagino, então, Beatriz experimentando não o gel químico da testosterona, mas ayahuasca, o vinho amazônico4. Deixando-se, assim, sentir-se menos europeia, e por isso mesmo menos masculina, ela perde o gênero. Vai se deixando ser floresta, xamã, Iansã, para pensar em Judith Butler enquanto ouve o mito do Diabo sem Cu, que fala de peixes e de homens, lá no Alto Rio Negro5. Mesmo tendo lido muito, sabendo falar e escrever em três idiomas, Preciado não parece (re)conhecer os saberes produzidos aqui, no “cu do mundo”. Não está só nesse 4 A bebida é feita através “cocção de duas plantas nativas da floresta amazônica: o cipó Banisteriopsis caapi e a folha do arbusto Psychotria viridis, chamados pelos participantes do Santo Daime de “jagube” e “rainha”, respectivamente. Esta bebida é considerada como um “ser divino”, dotado de personalidade própria e capaz de curar e de transmitir conhecimento”. (Rose, 2006, p. 35). 5 O mito do Diabo sem Cu conta como alguns peixes amazônicos surgiram. Estes teriam sido originados das tripas do Diabo sem Cu, justamente quando, por vingança, seu ex-vizinho se propôs a fazer nele um ânus no local habitual, e não abaixo da boca, como era o do referido personagem. Isso explicaria porque alguns peixes do Rio Negro têm grande proximidade entre boca e ânus. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index silêncio, ao contrário, encontra-se acompanhada de figuras ilustres, como Foucault, que me ensinou que saber e poder estão irremediavelmente tramados. Refiro-me especialmente à filósofa espanhola Beatriz Preciado porque ela tem sido uma das autoras identificadas, no Brasil, com a teoria queer. Considerada, mesmo, uma pensadora que avança em suas críticas em relação às propostas de Judith Butler. Seria, assim, mais transgressiva, uma vez que confere em seus textos grande centralidade à materialidade do corpo, enfatizando seus usos políticos e subversivos. Seu livro Manifiesto contrasexual, publicado na Espanha em 2002, não tardou a cruzar as fronteiras brasileiras e, mesmo sem tradução para o português, circulou no ambiente acadêmico, sobretudo a partir da publicação em livro da tese de doutorado da socióloga feminista Berenice Bento, em 2006, intitulada A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Ainda que não tenha nenhum livro traduzido no Brasil, apenas artigos e entrevista, a produção teórica de Preciado começou a frequentar cada vez mais as bibliografias de pesquisas nacionais, de maneira que ela passou a dividir com Judith Butler o lugar de “Queen of queer”. Esse título não ultrapassou os muros das universidades, de maneira que, ambas, mesmo consagradas no ambiente acadêmico, não chegaram a influenciar diretamente o movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros no Brasil. Ainda que muitos dos conceitos postulados por elas tenham sido adotados em diferentes fóruns políticos de maneira mais ou menos articulada com suas propostas teóricas. Por mais estranho que isso possa parecer, há motivos históricos e políticos que podem justificar essa apropriação “sem autoria” e mesmo fragmentada de suas teorias. 2. Para loca-lizar o debate6 Diferentemente do que se passou nos Estados Unidos, os estudos queer entraram no Brasil pela porta das universidades e não como expressão política vinda do movimento social. Evidentemente, esse percurso tem a ver com questões históricas, políticas e culturais que singularizam os saberes localmente. Estas marcas precisam ser apresentadas, uma vez que muito mais do que propor uma vertente teórica nacional 6 Marcia Ochoa, antropóloga norte-americana de origem colombiana, marca seu saber situado a partir do jogo de palavras que o verbo “localizar” permite em espanhol, posto que o termo “loca” refere-se, como também acontece em português (bicha louca), a homossexuais com estilo mais camp, isto é, mais “pintosos” (Ver Ochoa, 2004). Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index específica, nomeada de “teoria cu”, meu objetivo neste artigo é justamente problematizar as formas como temos localmente absorvido, discutido e resignificado as contribuições de teóricas e teóricos queer. Neste exercício não pude deixar de notar que, apesar das singularidades locais, nossa tendência inicial foi, sobretudo, de procurar aplicar os achados teóricos e conceituais queer, mais do que tencioná-los e, assim, produzir nossas próprias teorias (ainda que em diálogo com o que estava sendo produzido em outros países). Postura que tem mudado durante o próprio exercício de pesquisa e produção intelectual brasileira no campo do gênero e da sexualidade. Mas o fato é que ainda nos mantemos bastante reverentes a produções teóricas europeias e norte-americanas, enquanto guardamos relativa ignorância a respeito das contribuições de nossos vizinhos continentais, com os quais compartilhamos, muitas vezes, cenários sociais, políticos, econômicos e culturais bastante próximos. Sintomaticamente, dialogamos muito pouco com o resto da América Latina. É como se a língua portuguesa tivesse nos ilhado nesse mar volumoso do idioma espanhol. Tão próximos e tão apartados. De fato, nos conhecemos pouco. Lemo-nos menos ainda7. Mas quero voltar à promessa feita linhas atrás e apresentar, ainda que de forma impressionista, as marcas locais que fazem do queer antes um discurso acadêmico que ativista. Neste ponto é preciso ter cuidado para não reforçar dicotomias perigosas como aquelas que separam filiações teóricas de posições políticas. O pensamento queer foi desde seu início acadêmico em terras brasileiras eminentemente uma teoria de combate. Posso dizer que a teoria queer é para mim um espaço de luta política, uma arena de embate de ideias que procura enfrentar a naturalização de uma série de opressões. Seja evidenciando o caráter compulsório da heterossexualidade; desconstruindo binarismos que enrijecem possibilidades de transformações; politizando o desejo; ou apontando para as crueldades dos discursos hegemônicos, muitas vezes revestidas de um cientificismo que quita a humanidade de determinados seres humanos, tratando-os como abjetos. Guacira Lopes Louro, talvez umas das primeiras acadêmicas brasileiras a escrever, entre nós, sobre queer, apresenta essa vertente teórica como reativa à normalização, “venha ela de onde vier” (Louro, 2001, p. 546). Grande parte dessa posição de enfrentamento à produção acadêmica mais canônica e ao movimento político que se rendia ao higienismo suscitado pela crise da aids, tem na adoção do termo 7 Compartilho estas inquietações com autorxs como Rivas San Martín (2011); María Amelia Viteri, José Fernando Serrano y Salvador Vidal-Ortiz (2011) e Paola Arboleda Ríos, para citar apenas algumas inspirações. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index “queer”, sugerido por Teresa De Lauretis, uma bandeira antiassimilacionista. Foi assim que os estudos queer foram percebidos no Brasil no início dos anos 2000: como uma teoria de ação/reflexão, capaz de se valer dos aportes de Foucault, Derrida, do feminismo da diferença, dos estudos pós-coloniais e culturais para desafiar não somente a sexualidade binária e heterossexual, mas a matriz de pensamento que a conforma e sustenta. Certamente, não foi recebida assim de forma unânime. Algumas pessoas viram nos aportes teóricos e conceituais das/dos teóricas/os queer uma possibilidade de atualizar os estudos gays e lésbicos que já se fazia no Brasil desde a década de 1980. Do meu ponto de vista, esta seria uma apropriação que viria a reforçar justamente o que as pesquisas norte-americanas estavam questionando: a ideia de “minoria” e todas as implicações políticas e teóricas em aceitar essa classificação como legítima para se falar de determinados comportamentos e grupos. A intenção era pensar em como as margens são constituídas, como chegam a ser fixadas como lugares perigosos habitados por pessoas desprezíveis, muito mais do que aceitar o lugar de minorias. Os estudos queer começam a ser referenciados no Brasil no mesmo momento no qual experimentávamos o fortalecimento de políticas identitárias8, entres estas estavam aquelas articuladas pelo então movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais). De maneira que uma teoria que se proclamava como não-identitária parecia potencialmente despolitizante. Não tardou para que algumas lideranças do movimento LBGT brasileiro, muitas delas formadas na militância da luta contra a aids, se pronunciassem contra “os queer”. Isto é, não era propriamente contra um conjunto de proposições teóricas, de fato, pouco lido fora do ambiente universitário, que dirigiam suas recusas e acusações, mas a determinados nomes da academia. O sociólogo brasileiro Richard Miskolci discutiu com grande propriedade esse cenário recente em um artigo publicado em 2011. Escreve ele: 8 No Brasil vivemos, nos anos de 1980, com o recrudescimento da aids, o esvaziamento do movimento homossexual, com forte migração dos e das ativistas para as ONGs/aids, as quais passaram a receber fomentos de organismo internacionais via Programa Nacional de DST/Aids, o que reverteu-se no início do século XXI. Este foi um processo complexo, atravessado por múltiplos fatores, mas para meu argumento aqui, vale sublinhar que passada a fase “heroica” da luta contra a aids, o esgotamento de recursos financeiros para aquelas ONGs, o exercício de articulação política com diferentes movimentos sociais, outras questões suscitadas pela própria dinâmica social e política do país passaram a mobilizar os ativistas em relação a demandas relativas a diretos sexuais, fortalecendo, paulatinamente, o que viria ser chamado de Movimento LGBT, mas também o movimento de mulheres e o movimento negro. Muitas das bandeiras destes foram encampadas pelo Estado, de maneira que em 2004 foi lançado o programa nacional Brasil Sem Homofobia, ligado à Secretaria de Diretos Humanos do Ministério da Justiça. Um ano antes o governo federal criou a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR) cujo objetivo é diminuir a desigualdade racial no País, com ênfase para a população negra e, ainda em 2003, instituiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Atualmente, quando se diz “nós” no movimento LGBT brasileiro, isto com maior força em alguns Estados do que em outros, parece operar – para aqueles que dividiram o movimento mentalmente em dois grupos antagônicos – um dualismo: “nós” os LGBT em oposição ao “eles, os queer”. Tal divisão entre “identitários” e “queer” pouca diferença faz para o resto da sociedade brasileira, a qual só conhece um único movimento, o atual LGBT, e esta divisão interna, onde ela opera, esconde uma luta entre os estabelecidos que temem perder sua hegemonia e os supostamente recém- chegados que a ameaçariam. O que está em jogo, portanto, não é o que define o “nós” do movimento LGBT, este nós condenado historicamente a ser reinventado a todo o momento, mas qual o papel do movimento dentro do novo cenário da política sexual brasileira. (Miskolci, 2011, p. 44) É neste novo cenário que estamos construindo um campo de pesquisa queer, marcado em boa medida pelo recente processo de democratização do país e, mais recente ainda, de nossa ascensão econômica no panorama internacional, com diminuição da pobreza, mas com índices ainda alarmantes relativo às desigualdades9. O fato de essas serem mudanças recentes, elas não têm mais que 30 anos, é fato revelador que dá a ver as cicatrizes de um passado colonial, do qual herdamos vícios políticos como o clientelismo e um latente sentimento de inferioridade, além, é claro, da língua portuguesa. O português é um idioma ilhado, tanto em sua origem ibérica quanto em sua propagação colonial. Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Macau, Timor Leste, Guiné Bissau e Brasil sequer dialogam entre si. Estamos isolados um dos outros pelas distâncias continentais que se transformam em distâncias culturais. Em nossa pretensão de “país emergente”, costumamos localizar estes países todos “no cu do mundo”, expressão que usamos no idioma popular das ruas. Quer dizer: são todos muito distantes. E como para se medir distâncias é preciso que haja um ponto de referência... digamos que, quando na nossa vulgaridade cotidiana nos referimos ao cu do mundo, estamos dizendo que são todos lugares longe da “civilização”, que certamente fica em algum lugar da Europa central ou dos Estados Unidos da América. Sim, fomos bons alunos do positivismo. Basta ver que nossa bandeira ostenta a divisa comtiana “Ordem e Progresso”. 9 Desde 2001 a desigualdade estava em declínio e, no ano de 2012, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (IBGE), o Brasil atingiu sua menor desigualdade de renda em trinta anos. Mas ainda temos um número considerável de lares (30%, segundo a SIS) de domicílios urbanos sem serviços básicos, e quanto às oportunidades no mercado de trabalho, ainda são mulheres as que se encontram em maior desvantagem, sobretudo as mais jovens e menos brancas. No trabalho doméstico, por exemplo, 68% são negros – e a maioria, mulheres. O que torna o Brasil um caso especial é a sobrevivência de desigualdades históricas em meio a um processo de modernização acelerado (Scalon, 2011). No campo da educação, dados recentes mostram que entre os jovens (18 a 24 anos) autodeclarados como negros, cerca de 10% cursavam ou haviam concluído um curso superior. Entre os brancos, esse índice sobe para mais de 25%. O tempo médio de estudos dos negros, 6,7 anos, também é menor do que o da população autodeclarada branca, de 8,4 anos. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar de origem como sendo “cu do mundo”, ou fomos sistematicamente sendo localizados nesses confins periféricos e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografia como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma cabeça. Uma cabeça pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora morfológica desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento e onde se produz os espaços de experimentação daquelas teorias. Esta mesma geopolítica do conhecimento nos informa também em quais línguas se pode produzir ciência e, em silêncio potente, marca aquelas que são exclusivamente “produtoras de folclore ou cultura, mas não de conhecimento/teoria” (Mignolo, 2000 apud Grosfoguel, 2008, p. 24). 3. Epistemologia cucaracha Talvez este seja um bom momento para falar dos sentidos do cu em português do Brasil. Primeira advertência: não se deve falar de cu em contexto acadêmico, isto é certo. Nem mesmo em Portugal, onde a palavra pode frequentar o vocabulário de senhoras respeitáveis e de crianças comportadas, o termo não ficaria bem em um artigo ou compondo o nome de uma vertente teórica. No Brasil usamos a palavra “bunda”, de origem africana, para nos referirmos às nádegas, enquanto portugueses e espanhóis, usam “cu” ou “culo”, respectivamente, para o mesmo fim. Para nós, brasileiros, somente o orifício excretor merece este nome. Por sua associação com dejetos, aqui, como em outros lugares, ele está associado a palavrões, a ofensas, ao que é sujo, mas também a um tipo de sexo transgressivo, mesmo quando praticado por casais heterossexuais. Porém, no imaginário sexual local, o sexo anal está estreitamente associado à homossexualidade masculina. O cu excita na mesma medida em que repele, por isso é queer. Retomando as discussões proposta por Mignolo em parágrafos anteriores, penso que, muitas vezes, temos compactuado com essas “verdades” produzidas pela epistemologia ocidental, composta por binarismos duros: norte-sul, centro-periferia, desenvolvidos-em desenvolvimento, brancos-não brancos, racionais-passionais. Dicotomias que reforçam o que o antropólogo Jonnanes Fabian conceituou como discurso “alacrônico”. Aquele que resulta da prática de falar do “outro” colocando-o em um tempo diferente do tempo daquele em que se está falando (Fabian, apud. Ruiseco & Vargas, 2009, p. 200). Resulta dessa elaboração discursiva uma imagem do “outro” como “atrasado”, uma vez que sua maneira de viver remete a uma espécie de passado da Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index modernidade, o que os faz inimigos do progresso, alocando-os em um tempo/espaço irremediavelmente distante do Ocidente. Es decir, “Europa” se concibe y construye como cuna aislada de la modernidad; como “ascéptica y autogenerada”, formada históricamente sin contacto alguno con otras culturas (Castro-Gómez, 2000, p. 152). También el Otro y su “atraso” se aíslan. Su pobreza es atribuida a sí mismo, a su inadecuación y a su retraso, lo que permite ignorar las razones históricas de los problemas que enfrenta (Ruiseco & Vargas, 2009, pp. 200- 201). Ao construir cada polo das dicotomias “nós/outros”, “West/rest”, “civilizados/bárbaros” separadamente, e não como relacionados, esconde-se que o significado decorre sempre de relações e não de essências isoladas. É o que Jacques Derrida (1995) chamou de lógica da suplementaridade. Essa operação discursiva permite que se naturalizem diferenças, a partir da articulação de pares de oposição como simples negação das diferenças entre os polos do dualismo e não como parte de um mesmo sistema, no qual o hegemônico só se constrói em uma oposição necessária a algo inferiorizado e subordinado. Ainda que na escola tenham nos ensinado que nós latino-americanas/os somos parte da história triunfante da modernidade, a verdade é que o próprio fato de termos aprendido a ler assim nosso lugar na história só reforça a nossa subalternidade. Afinal, foi nos b(r)ancos escolares que aprendemos que as teorias produzidas em determinados lugares geo-históricos e escritas em línguas como inglês, francês, e alemão, são mais “avançadas” e possuem um valor universal incontestável. Para Walter Mignolo (1999), argentino, professor de literatura e antropologia, nossa colonização é também epistemológica. Já há algum tempo temos enfrentado imaginativamente essas fronteiras. Quando uso o adjetivo “imaginativamente” estou me inspirando em Arjun Appadurai10 que, a meu ver, faz uma leitura arguta e precisa da maneira como os subalternizados têm se valido das tecnologias de comunicação e sedução do presente para se infiltrarem nas brechas do que Beatriz Preciado chamou de sistema global sexo-raça-capital (Preciado em entrevista a Carillo, 2006). 10 Escreve Appadurai que “esta dimensión de lo que he denominado el ‘trabajo de la imaginación’ no está del todo disociada de la imaginación como facultad creativa, reflejada en asuntos de estilo, modas, deseos y búsqueda de riquezas. Pero también es un crisol para el trabajo cotidiano de la supervivencia y la reproducción. Es el lugar donde se encuentran los asuntos relacionados con la riqueza y el bienestar, los gustos y deseos, el poder y la resistencia. Este análisis del papel de la imaginación como un hecho popular, social y colectivo en la era de la globalización reconoce su carácter dual. Por un lado, es en y a través de la imaginación que los ciudadanos modernos se disciplinan y son controlados por los Estados, los mercados y otros poderosos intereses. Pero también es la facultad a través de la cual surgen los modelos colectivos de disensión y de nuevas ideas para la vida colectiva. (Appadurai, 1999, s.n.) Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Com nossa imaginação azeitada fomos percebendo que as fronteiras traçadas entre Norte e Sul são mais porosas e penetráveis do que nos fizeram crer. Centros sempre tiveram suas periferias, e as periferias, por sua vez, sempre tiveram seus centros. Foram as ideias dessas periferias centrais aquelas que me impressionaram. Pois foram suficientemente potentes para se transformarem em textos e viajarem. De modo que, parafraseando Oswald de Andrade, “não foram só cruzados que vieram catequizar nossa ciência bárbara. Foram também os fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes como a Iara das águas doces”11. São essas fugitivas e fugitivos aqueles sujeitos das periferias centrais. Aquelas pessoas cujas subjetividades foram marcadas pela depreciação de sua cor, pela patologização de seus desejos, pela depreciação da sua ciência pouco ortodoxa. É essa turba que me interessa. Por seu potencial político, me interessam. Porém, mesmo quando me encanto com a literatura produzida nos Estados Unidos e na Europa, penso, enquanto devoro tupinambarmente aqueles textos, é que essa relação ainda é bastante desigual. Que esse contato não resultou até o momento em diálogo, em trocas mais horizontais. Nas palavras de Ramón Grosfoguel, o que temos, ainda, é um monólogo vertical (Grosfoguel, 2006, p. 40). Nós guardamos marcas históricas e culturais dos discursos que nos constituíram como periféricos. Isso, claro, marca também nossos textos e reflexões. Quando pensamos em raça, cor, classe, sexualidades, não podemos esquecer de nossas peculiaridades locais. Como escreveu Richard Miskolci, no seu O Desejo da Nação (2012), “o ideal de nação que guiou políticas e práticas sociais” que orientou nosso desejo de nação foi “moldado por fantasias elitistas sobre branquitude” que passava necessariamente por um regime erótico específico de racialização do sexo e vinculação entre classe e cor, além da sexualização desprestigiosa dos não-brancos. Regime sensível ainda hoje. Por isso temos que construir e afiar nossas próprias ferramentas conceituais e teóricas, justamente para pensar essa realidade peculiar. Nossa drag, por exemplo, não é a mesma do capítulo 3 do Problemas de Gênero, de Judith Butler (2003), nem temos exatamente as drag king das oficinas de 11 A frase no original: “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti” (Andrade, 1922). Minha opção pela Iara, ao invés do jabuti, creio, é autoexplicativa, mas, sob o risco da redundância conto que nossa sereia índia, vivente das águas doces e profundas dos rios amazônicos, tem poder de seduzir pelo canto os homens que deseja, por prazer ou capricho. Um dia a sereia foi humana e guerreira e por sua força quase foi morta pelos seus invejosos irmãos. Mas antes que eles conseguissem seu intento, Iara, que tinha audição fina, despertou, evitando a emboscada, e os matou primeiro. Receosa da reação de seu pai, resolveu fugir, mas foi encontrada e atirada ao rio, lugar de morte para muitos povos amazônicos. Os peixes a salvaram, transformando-a em sereia. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index montaria de Beatriz Preciado, ou sequer podemos falar do homossexual do mesmo modo de David Halperin, ou da aids, como o fez Michel Warner. Nosso armário não tem o mesmo formato daquele de Eve Sedgwick. Cito aqui o quinteto fantástico do queer. Ainda que entre nós alguns nomes sejam mais familiares que outros, foi essa a bibliografia que chegou com mais força até nós a partir do território queer euro- americano. Eu gosto de pensar que essa literatura ganhou força entre nós justamente por ter chegado em um momento em que estávamos assombradas por tantas transformações, desafiados por um Brasil que mudava aos olhos estrangeiros, antes mesmo que assumíssemos internamente as dimensões destas mudanças. Nós estávamos ainda tateantes atrás de um vocabulário menos falocêntrico, de uma ciência menos canônica, de uma gramática menos heterossexista, ficamos fortemente impressionados com aquelas leituras. Felipe Rívas San Martín tece argumentações para justificar, assim como estou fazendo, o impacto do queer em contexto latino-americano, procurando mostrar que não se trata de mimesis, mas de apropriação12 significante de un corpus crítico o teórico, o al menos de una bibliografía, no totalmente articulado y siempre abierto a nuevas formas de desarrollo, que ha venido a plantear – en términos generales - una crítica a la estabilización de las identidades esencialistas y naturalizadas del sexo, el género y el deseo, junto con una lectura del poder en clave de “matriz heterosexual” o “sistema heteronormativo” (San Matín, 2011, p. 04). É interessante que até mesmo as pessoas que se colocaram contra o queer assumiram, de certa forma, seu vocabulário. Rapidamente termos como heterossexualidade compulsória, regime heteronormativo, abjeção, performatividade passaram a ocupar fóruns políticos, arenas acadêmicas, páginas de comportados periódicos científicos. Em uma análise diletante, acho que isso tem a ver com essa busca da qual eu falava há pouco, por novos referentes, por um léxico torcido, fresco o suficiente para não estar marcado pelo peso dos saberes psi, médicos e jurídicos. Assim, a teoria queer foi para nós, mas também para outras e outros latinxs americanxs, um campo de articulação e luta. Nas palavras de San Martín, “lo queer” refiere a una posición de resistencia y localización estratégica frente a procesos de normalización de lo gay y lo lésbico tanto en las lógicas del sistema neoliberal (mercado gay), como en la institucionalización de un discurso estatal multiculturalista que promueve políticas antidiscriminatorias y de tolerancia, sin cuestionar sus bases epistemológicas heterosexistas. Se trata de “lo queer” entonces, 12 Ainda que o mesmo autor reconheça que o termo queer perde localmente sua potência performativa e sua história política. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index como una resistencia política frente a las lógicas de lo que denomino “homosexualidad de Estado” (Idem, ibden, p. 05). 4. Histerias higienistas Muita coisa mudou desde os anos 80, quando fomos aterrorizados pelo pânico moral da aids, quando um surto de ignorância médica ressuscitou palavras medievais como “peste” e “praga”. Enquanto termos como “homossexualismo” e “perversão”, tão antigos quanto o século XIX, voltaram a povoar a imaginação midiática, nós buscávamos saídas. Foi preciso organizar esforços para o combate à onda repressiva, uma verdadeira “caça às bruxas” que pode ser melhor exemplificada por quem a viveu de forma dramática, como o escritor e ativista do movimento homossexual João Silvério Trevisan. Em seu livro Devassos no paraíso – A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, ele narra em tom biográfico o susto que levou diante da seguinte inscrição num banheiro público de São Paulo: “contribua para o progresso da humanidade, mate um gay por dia” (Trevisan, 2004, p. 450). Pichação que traduzia em termos populares aquilo que os jornais diziam, valendo-se muitas vezes de depoimentos de autoridades médicas como o do chefe do Departamento de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da USP, Vicente Amato Neto, que conclamava os órgãos de saúde e higiene para agirem com “a ênfase devida”, ao invés de “apoiar irregularidades, como os atos sexuais anormais e os vícios”. Afinal, “aceitar que cada um tem o direito de fazer o que desejar com o próprio corpo é convicção plena de irresponsabilidade”, dizia Amato Neto. E terminava sugerindo ironicamente que se deveria passar o cuidado dos doentes para os defensores desse direito, ou seja, “as organizações de homossexuais, bissexuais e drogados” (Trevisan, 2004, p. 450). Ainda que tivesse as nuances locais, reproduziu-se no Brasil o mesmo padrão de culpabilização e responsabilização propalado pela imprensa norte-americana e, assim, os mesmos métodos de ação preventiva. Por exemplo: as autoridades sanitárias no Brasil tomaram medidas “profiláticas” baseadas naquelas que estavam sendo adotadas em São Francisco e Nova Iorque, como o fechamento de saunas gays. Enquanto a regulamentação da coleta de sangue só se tornou lei depois de acirrado debate, ainda que fosse sabido ser a transfusão uma das formas de contágio da doença. Paralelo a este clima de pânico, o Brasil vivia o processo de esgotamento da ditadura militar, que durou 21 anos (até 1984), de modo que os movimentos sociais voltavam a se reorganizar. Alguns deles incluem a luta contra a aids e o preconceito em sua agenda política. Hemofílicos, homossexuais, associação de prostitutas e de Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index travestis, médicos e profissionais de saúde engajados na luta pela popularização e democratização da saúde, foram alguns desses grupos organizados que procuraram enfrentar o onda moralizante que fazia da aids antes uma punição merecida aos “desviantes” da ordem e da moral do que uma doença. Em 1983, por exemplo, o grupo gay Outra Coisa, em pareceria com a Secretaria de Saúde de São Paulo, passou a distribuir panfletos alertando sobre a disseminação da aids no Brasil e fornecendo orientações de encaminhamento para sanar dúvidas (Perlongher, 1987, p. 53). Não tardou para que acadêmicos também se mobilizassem, tanto no engajamento em movimentos sociais quanto na produção de pesquisas sobre os efeitos sociais da epidemia e suas consequências13. Nós que, como outras sociedades, tivemos também nosso luto acadêmico nas baixas da aids, ficamos um pouco órfãs de ideias quando os anos de 1990 terminaram e o novo século se inaugurou espetacularmente em 11 de setembro. A ativista e travesti Claudia Wonder, que faleceu se entendendo como pessoa intersex, me disse uma vez que a aids foi mais que uma epidemia, foi uma queima de arquivo. Matou conhecimentos que estavam sendo gestados pelas travas, pelos viados, pelos esquerdistas, pelos artistas marginais. Ficou um vazio. Talvez por isso a gente tivesse, naquele momento, tanta vontade de saber. Entre as nossas vítimas da aids estava Néstor Perlongher, autor da provocativa etnografia intitulada o Negócio do michê (1987 [2008]). Mariza Corrêa, a quem coube a orientação final da dissertação de mestrado que originou O negócio do michê, conta a reação escandalizada de um colega em relação ao título do trabalho de Néstor. O que neste título indignava o intelectual? A irreverência de Perlongher ou a reverência com que trouxe para os estudos acadêmicos as tropas marginais que perambulavam pelo centro da cidade? Nos final dos anos 80, Néstor Perlongher já voltava seu olhar para as bordas, e ali sublinhava a resistências marginais, os saberes próprios daqueles espaços (Miskolci e Pelúcio, 2008, p. 09). Havia na escrita barroca de Néstor um vanguardismo pós-estruturalista que transparecia na forma original como usava Deleuze, Guattari, Foucault. Há um episódio biográfico do Perlongher que foi contado para mim e para o Richard Miskolci pela professora Margareth Rago, feminista, historiadora e amiga de Néstor. Reproduzimos essa história no prefácio que escrevemos juntos para a edição de 2008 do Negócio do michê. Está no livro exatamente assim: 13 Para uma detalhada discussão sobre a emergência da aids no Brasil e as respostas da sociedade civil, assim com as governamentais à epidemia, ver Parker, 2009, entre outras inúmeras publicações em língua inglesa feitas pelo autor. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Em uma noite do ano de 1988, após a apresentação da peça Uma metamorfose, adaptação livre da obra de Franz Kafka dirigida por Gerald Thomas, um grupo de psiquiatras subiu ao palco do teatro Ruth Escobar para discutir o espetáculo. A certa altura do debate, Néstor Perlongher, da platéia, pediu a palavra. Tão vibrante quanto a sua echarpe amarela, ele discordou da leitura patalogizante que os “especialistas” faziam da personagem Gregor Samsa. Incomodado, um dos palestrantes retrucou dizendo que entre os “dois espetáculos”, havia preferido o primeiro, referindo-se à peça, numa postura que reafirmou para Néstor a impermeabilidade e o autoritarismo do discurso médico. Em protesto desafiou os interlocutores no seu indefectível portunhol: “Que fiquem com sus inseticidas higienistas que yo fico com las cucarachas”. E se retirou sob os aplausos do público (Miskolci e Pelúcio, 2008, pp. 22-23). Com a paixão própria dos insubmissos, Néstor preferia as metafóricas baratas, porque foi por muitas vezes obrigado a viver com elas. Essa experiência subjetiva marca sua escrita e suas escolhas teóricas. Por isso, o vejo como um representante local dessa ciência dos bueiros, desses saberes marginais que aprendemos a chamar em nosso inglês latinizado de teoria cuier. Em seu trabalho polêmico sobre rapazes que se prostituiam nas ruas centrais da metrópole de São Paulo (O negócio do michê), assim como no pequeno O que é Aids, publicados no mesmo ano, Perlongher opta claramente por caminhos menos óbvios dentro de território acadêmico brasileiro. Diante de um país que se urbanizou fortemente desde os anos de 1950, e de uma academia que estava mais livre para a produção, uma vez que o país entrara em seu período democrático, Perlongher vai para as esquinas marginais, onde ele prefere não falar de aids, guardando o tema para outro livro. Ainda que se insira no contexto de pesquisas sobre a homossexualidade no Brasil, originadas, principalmente, na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) entre a segunda metade da década de 1970 e início da seguinte, a investigação de Perlongher se destacou não apenas por eleger um tema polêmico e pouco explorado, mas, sobretudo, pela forma como abordou este objeto. Ao invés de apenas fornecer um retrato do negócio da prostituição viril na década de 1980, Perlongher conseguiu unir pesquisa etnográfica e reflexão metodológica de forma que terminou sua pesquisa de forma muito distinta de como a iniciou. Há um processo suave e cuidadoso de tessitura teórica que perpassa o livro até chegar, nos capítulos finais, à sua contribuição peculiar aos estudos sociológicos e antropológicos: uma reflexão sobre o social sob a perspectiva do desejo (Miskolci e Pelúcio, 2008, p. 15). O desejo ganha uma espessura sociológica no trabalho de Perlongher, “não ficaria restrito ao individual subjetivado, mas percorreria tensões de força que atravessam diretamente o campo social” (Perlongher, 1987, p. 251). Assim, não se trata Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index tampouco de seguir uma forma de desejo particular, o homossexual, mas antes os mecanismos que o dividem entre o aceitável e o “imoral”. Ele mesmo um “imoral”, recusou com sua escrita potente e fronteiriça (sempre misturando o português e o espanhol, sua língua nativa), e teorizou com liberdade crítica sobre sexualidade, homossexualidade, aids e medicina. Deixando, como já escrevi mais acima, a epidemia fora dos territórios da prostituição, o que me parece uma calculada forma de não se render ao pânico moral em curso. Em O que é Aids (Perlongher, 1987), Néstor chama as práticas de sexo seguro de “histeria higienista” e questiona a eficácia da camisinha como insumo preventivo, pois vê nela “a presença transparente da lei” a se imiscuir entre “os lascivos órgãos” que se encontram “no turbilhão dos fluxos”, num “abominável processo de disciplinarização e normatização da homossexualidade” (Perlongher, 1987, pp. 75-76). Contra esse processo que ele chama de “virada à direita” que tomava o Ocidente, ele escreve para a consagrada editora brasileira, Brasiliense (notabilizada por suas publicações mais afinadas com a esquerda brasileira), o pequeno O que é Aids, como parte da coleção Primeiros Passos, que a editora publicou por anos. O notável desta coleção foi seu compromisso em abordar temas complexos de maneira mais acessível em textos escritos por intelectuais brasileiros consagrados em suas áreas de pesquisas. No número 197 da citada coleção, Perlongher concentra seu arsenal teórico, claramente foucaultiano, mas também bastante pessoal, a fim de mostrar que para se entender “o que é aids” é preciso conhecer aqueles saberes que têm o poder de instituir verdades sobre esta síndrome e tecer julgamentos morais sobre as pessoas atingidas por ela, regulando suas condutas, vigiando seus corpos e normalizando seus desejos. Para tanto mobiliza tanto uma linguagem propriamente acadêmica como aquela própria dos guetos e dos espaços marginais. O cito: Além de seu valor terapêutico, as recomendações distribuídas a respeito da AIDS, dividindo os encontros sexuais em aconselháveis ou desaconselháveis segundo o seu grau de risco, parecem dizer respeito a certo regime de corpos. Examinando mais de perto a natureza desses conselhos, percebe-se que eles pregam determinada organização dos organismos (funções hierárquicas dos órgãos): a boca para comer, o cu para cagar, o pênis para a vagina etc.. Os usos alternativos dos corpos costumam ser considerados prescindíveis; sobretudo coito anal (lembre-se da palavra de ordem dos gays paulistas no seu apogeu contestatório: “O coito anal derruba o capital”) está no alvo das operações médico-jornalísticas desencadeadas pela AIDS (Perlongher, 1987, p. 83. Grifos do autor). Para ele, com a aids, os olhos da ciência se voltam para o ânus (idem, p. 87), de maneira que a medicina reataria sua antiga relação com a homossexualidade, podendo novamente patologizá-la. Escrever desta forma, com este vocabulário e com tal senso Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index crítico foi algo bastante vanguardista e, mesmo, transgressivo para aqueles anos em que o próprio movimento homossexual brasileiro aderia ao discurso preventivo, higienizando suas práticas e reatualizando o dispositivo do “armário”, de onde agora saiam os “gays plásticos”, como Perlongher classificou aqueles que adotaram um modelo “hétero” de comportamento, estariam aderindo a essa onda higienista, propagando o sexo seguro (leia-se o sexo sem sexo), o casamento, a castidade, apartando-se da vasta marginália das sexualidades periféricas. Entendo que nestes escritos temos os primeiros ensaios para uma teoria cu, uma teoria cucaracha, antropofágica como tem sido nossa tradição. Quando falo em teoria cu, mais que uma tradução para o queer, talvez eu esteja querendo inventar uma tradição para nossos saberes de cucarachas. Tentativa de evidenciar nossa antropofagia, a partir da ênfase estrutural entre boca e ânus, entre ânus e produção marginal. Minha inspiração, claramente, vem de Beatriz Preciado, que devoro com prazer canibal. No posfácio à reedição do livro seminal de Guy Hocquenghem, El deseo homosexual (2009 [1972]), ela retoma vigorosamente algumas das discussões já apresentadas no Manifiesto contrasexual (2002), que reproduzo a seguir: “Historicamente o ânus tem sido concebido como um órgão abjeto, nunca suficientemente limpo, jamais silencioso. Não é e nem pode ser politicamente correto” (Preciado, 2009, p. 172). Faço uma pausa. Penso que nisso o ânus de Preciado (ou seria o ânus depreciado?) se parece tanto com a gente, com os brasileirxs, periféricxs, barulhentxs, indicretxs e, para alguns, pouco confiáveis. Sigo a leitura e, na sequência, Preciado escreve: “o ânus não produz, ou melhor, só produz lixo, detritos. Não se pode esperar desse órgão produção de benefícios, nem mais-valia: nem esperma, nem óvulo, nem reprodução sexual. Só merda” (Idem, ibden). Analogias de novo me parecem irresistíveis. O ânus aqui se parece às putas, aos malandros e a toda uma marginália descrita pelos discursos higienistas. Nada mais queer que o cu. E aí vem a conclama final de Preciado pela coletivização do ânus. É claramente uma paródia travessa com o Manifesto Comunista que tanto marcou nossos desejos de revolução e nossa escrita insubmissa, mas, pobre, tão colonizada. Paro de novo, agora pensando na nossa produção residual. Penso também em nossas experiências vividas no sul global, e de como elas têm sido férteis, ainda que muitas vezes possam ser vistas como periféricas, produzidas em uma língua sonora, mas ilegível. Porém, nunca serão eles os iletrados. Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Acredito firmemente que temos trabalhado nessa produção de forma original e ao mesmo tempo sintonizadas e sintonizados com o que está sendo produzido em centros e periferias múltiplas. Esse conjunto articulado de reflexões tem mantido forte diálogo com as Teorias Feministas, com os Estudos Pós-Coloniais e com a própria Teoria Queer. Um conjunto de estudos que podemos aglutinar sob a rubrica dos Saberes Subalternos, termo que começou a ser usado de forma restrita na década de 1980, mas que recentemente passou a unificar vertentes teóricas construídas em tensão com a epistemologia hegemônica ocidental. 5. Ao sul do queer Guacira Lopes Louro escreveu que os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e o queer trataram teoria e política de forma integrada, apaixonada e, ao mesmo tempo, polêmica. Por isso, foram capazes de propor uma renovação nas reflexões sobre gênero e sexualidade, indo além delas, mantendo oxigenados diferentes campos do conhecimento que foram chamados a dialogar e, ao aceitarem o desafio, foram capazes de “pensar para além dos limites do pensável” (2004, p. s/n). Pensar além dos limites do pensável é justamente buscar refletir a partir de outros paradigmas, inventando outras palavras, pensar com outros órgãos e outras sensibilidades. Somo às propostas de Louro, as leituras argutas de Miskolci sobre nossa formação como nação; a proposta de Pedro Paulo Pereira acerca de um queer tropical, as provocações de Berenice Bento, Flávia Teixeira e Tatiana Lionço sobre vivências marginais marcadas pelo olhar obtuso sobre as plasticidades dos gêneros e dos corpos; de Anna Paula Vencato sobre os corpos de homens crossdressers, que teimam em buscar brechas; as robustas discussões de Paula Sandrine Machado com os poderes médicos e suas “verdades” sobre a intersexualidade”, como faz também Jorge Leite Júnior; as provocações de Tiago Duque interrogando-nos sobre a inviabilidade de vidas travestis; os esforços de Leandro Colling e Djalma Rodrigues Neto ao organizarem toda uma equipe de pesquisadorxs para investigar a produção das homossexualidades em telenovelas globais; o trabalho de Fernando Seffner de pensar em educação e sexualidades a partir de intensas proposições teóricas, assim como Luiz Paulo da Moita Lopes, refletindo sobre nossos tabus sexuais em espaço escolar; as pesquisas de Patrícia Porchat e Márcia Arán com suas torções à psicanálise lacaniana, assim como a produção profícua e provocativa dos também psicólogos Wiliam Peres e Fernando Teixeira Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index Filho14, entre muitas e muitos outras teóricas e teóricos cucarachas que têm por mérito não só uma produção original, mas ainda o fato de terem perturbado o argumento de que os estudos de sexualidade estariam no âmbito meramente “cultural”, e supostamente despolitizado. Creio que essas produções têm mostrado a potência das reflexões locais, na sua intensidade antropofágica. Não estamos tentando “traduzir o queer da sociedade central para a sociedade da periferia”, como teme Mário César Lugarinho, nem traindo “a própria antropofagia que nos confere identidade (2001, p. 44). Faço a mesma aposta que Lugarinho, que nossa produção é aquela gestada nas fronteiras, na ambiguidade das margens, do estar aqui e lá a um só tempo. Dos riscos que o entre-lugar apresenta, mas também da riqueza que essa experiência proporciona. Temos procurado mostrar que a construção dos sujeitos abjetos é marcada por discursos de poder nos quais as experiências de exclusão estão referidas a processos históricos que marcam subjetividades. Talvez, nossa própria experiência fronteiriça tenha nos sensibilizado para essa produção marginal, subversiva, forjada pela força rasteira dos que sempre necessitaram enfrentar os inseticidas morais para sobreviver. 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Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014 www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/index http://antropofagia.uol.com.br/manifestos/antropofagico/ CARRILLO, Jesús. 2009. “Entrevista com Beatriz Preciado”. cadernos pagu, Campinas, n. 28, Junho de 2007. COLLING, Leandro (Org.); NETO, Djalma Rodrigues Lima (Org.). Estudos e políticas do CUS: grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade. 1. ed. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2013. v. 1. 371p DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 2. ed. São Paulo. Perspectiva. 1995. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUBA, 2008 (1952). GROSFOGUEL, Ramón. “La descolonización de la economía política y los estudios postcoloniales”. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.4: 17-48, enero-junio de 2006. 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