UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO PATRÍCIA CEREDA DE AZEVEDO AS PAISAGENS DO RIBEIRÃO TATU: AS IDIOSSINCRASIAS, AS CONFLUÊNCIAS E AS POSSIBILIDADES – LIMEIRA/SP BAURU 2021 PATRÍCIA CEREDA DE AZEVEDO AS PAISAGENS DO RIBEIRÃO TATU: AS IDIOSSINCRASIAS, AS CONFLUÊNCIAS E AS POSSIBILIDADES – LIMEIRA/SP Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Bauru (SP), como requisito final para a obtenção do título de Mestre sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Norma Regina Truppel Constantino. BAURU 2021 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. A994p Azevedo, Patrícia Cereda de As paisagens do Ribeirão Tatu : As idiossincrasias, as confluências e as possibilidades - Limeira/SP / Patrícia Cereda de Azevedo. -- Bauru, 2021 199 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientadora: Norma Regina Truppel Constantino 1. Paisagem. 2. Fundo de Vale. 3. Paisagem dos Rios. 4. Rios urbanos. I. Título. PATRÍCIA CEREDA DE AZEVEDO AS PAISAGENS DO RIBEIRÃO TATU: AS IDIOSSINCRASIAS, AS CONFLUÊNCIAS E AS POSSIBILIDADES – LIMEIRA/SP Área de concentração: Arquitetura e Urbanismo Linha de Pesquisa: Teoria de Arquitetura e Urbanismo Banca examinadora: Prof.ª Dr.ª Norma Regina Truppel Constantino Universidade Estadual Paulista Dr.ª Marta Enokibara Universidade Estadual Paulista Dr.ª Renata Bovo Peres Universidade Federal de São Carlos Resultado: Aprovada. Bauru, 05 de julho de 2021. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço à minha família, que me deu toda a base de minha vida e me apoiou nessa minha jornada. Em segundo, agradeço aos meus amigos, especialmente Bárbara, Carol, Laís e Lucas, pessoas com as quais dividi essa jornada e que me apoiaram em momentos difíceis. Da mesma forma, agradeço à Bárbara e Natália pela ajuda na parte de desenho, sem o qual não conseguiria ter feito os mapas. Também agradeço aos mestres, que tudo me ensinaram para a profissão que escolhi para minha vida, principalmente a Prof.ª Dr.ª Norma Regina Truppel Constantino, minha orientadora. Por fim, agradeço à UNESP, a verdadeira universidade pública paulista, que nos acolhe. AZEVEDO, Patrícia Cereda de. As paisagens do Ribeirão Tatu: as idiossincrasias, as confluências e as possibilidades – Limeira/SP. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Norma Regina Truppel Constantino. 2021. 199f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru, 2021. RESUMO A paisagem do Ribeirão Tatu, na cidade de Limeira – SP, é um elemento urbano central, que rasga a cidade de norte a sul e que se modifica ao longo de toda sua extensão. Por isso, o objetivo principal da presente pesquisa é compreender a construção de suas paisagens, analisando a relação com o tecido urbano de uma cidade média do interior paulista, cujas idiossincrasias históricas, sociais, políticas e econômicas nela afetam. O sentido dessas paisagens para os citadinos também é levado em consideração, partindo no princípio que a relação do homem com a paisagem dos rios é primordial, desde o início das cidades, especialmente em Limeira, que nasce à beira do ribeirão. Para tal, foram empregados os seguintes procedimentos metodológicos: Pesquisa Bibliográfica e documental (legislação, mapas, planos e projetos, arquivos da Gazeta de Limeira); Pesquisa de Campo (para identificar as estruturas espaciais e ambientais; observação de uso, comportamento e atividades; levantamento fotográfico para a leitura da paisagem); Aplicação de questionários aos moradores do entorno e aos usuários dos espaços públicos próximos ao Ribeirão Tatu; Entrevistas com técnicos da Administração Municipal; Criação de mapas de leitura da paisagem (“layers”) para demarcar potenciais e problemáticas. Como resultado, é apresentada a análise da dinâmica atual da paisagem do fundo de vale do Ribeirão Tatu na cidade de Limeira, no sentido de compreender suas confluências e possibilidades, bem como embasar futuros planos e projetos para a área de estudo. Palavras-chave: Paisagem; Fundo De Vale; Limeira (SP); Paisagem dos Rios; Rios urbanos. ABSTRACT The landscape of Ribeirão Tatu, in the city of Limeira – SP, is a central urban element that crosses the city from north to south and changes along its entire length. Therefore, the main objective of this research is to understand the construction of its landscapes, analyzing the relationship with the urban fabric of an average city in the interior of São Paulo, whose historical, social, political and economic idiosyncrasies affect this construction. The meaning of these landscapes for city dwellers is also taken into account, taking into account that the relationship between man and the landscape of rivers is primordial, since the beginning of cities, especially in Limeira, which rises on the banks of the river. To this end, the following methodological procedures were used: Bibliographic and documentary research (legislation, maps, plans and projects, articles from Gazeta de Limeira); Field Research (to identify spatial and environmental structures; observation of use, behavior and activities; photographic survey for landscape reading); Application of questionnaires to surrounding residents and users of public spaces near Ribeirão Tatu; Interviews with technicians from the municipal administration.; Creation of landscape reading maps (layers), to demarcate potentials and problems. As a result, an analysis of the current dynamics of the landscape of the Ribeirão Tatu valley bottom in the city of Limeira is presented, in order to understand its confluences and possibilities, and to support future plans and projects for the study area. Keywords: Landscape; Valley Bottoms; Limeira (SP); River Landscape; Urban River. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mapa do município de Limeira dentro do estado de São Paulo ................................ 48 Figura 2 – Esquema da Bacia do Ribeirão Tatu desde sua nascente em Cordeirópolis até a foz no Rio Piracicaba ........................................................................................................................ 49 Figura 3 – Mapa esquemático retratando a origem da povoação com a hidrografia e caminhos ..................................................................................................................................................... 52 Figura 4 – Mapa da malha urbana original da cidade de Limeira, ano de 1832 ......................... 53 Figura 5 – Mapa esquemático do traçado original da cidade com a marcação do Ribeirão Tatu e da estrada de ferro ................................................................................................................... 56 Figura 6 – Alagamento nas margens da ferrovia em Limeira, década de 1920 ......................... 57 Figura 7 – Muro da empresa CPKelco próximo à área do Ribeirão Tatu, Ponto 1 no Mapa 2 .. 62 Figura 8 – Área interna da empresa CPKelco e do trecho do Ribeirão Tatu que por ali corre, Ponto 2 no Mapa 2 ...................................................................................................................... 63 Figura 9 – Ponte ferroviária sobre a Avenida Araras, próxima à área do Ribeirão Tatu, Ponto 3 no Mapa 2 .................................................................................................................................... 63 Figura 10 – Lateral do muro da empresa CPKelco, mostrando a proximidade com o Ribeirão Tatu, Ponto 4 no Mapa 2 ............................................................................................................. 64 Figura 11 – Ponte que continua a Avenida Araras e a Área de fundo de vale próxima, Ponto 5 no Mapa 2 .................................................................................................................................... 64 Figura 12 – Área de fundo de vale cuidada pela empresa CPKelco, Pontos 6 a 9 no Mapa 2 .. 66 Figura 13 – Área de fundo de vale cuidada pela empresa CPKelco, mostrando as casas abertas para o ribeirão, Ponto 10 no Mapa 2 .............................................................................. 66 Figura 14 – Ponte que continua a Rua do Rosário, atrás da Machina Zaccaria, Pontos 11 e 12 no Mapa 2 .................................................................................................................................... 67 Figura 15 – Área de fundo de vale, ao longo da Via Marginal, Ponto 13 no Mapa 2 ................. 67 Figura 16 – Parte abaixo do Viaduto Francisco D’Andrea, Ponto 14 no Mapa 2 ....................... 68 Figura 17 – Parte abaixo do Viaduto Francisco D’Andrea, Pontos 15 e 16 no Mapa 2 ............. 68 Figura 18 – Via Marginal, próxima à antiga estação de trem da cidade, Ponto 17 no Mapa 2 .. 70 Figura 19 – Obra de desassoreamento feita pela prefeitura em 1998 e Situação atual do ribeirão, Pontos 18 e 19 no Mapa 2 ............................................................................................ 70 Figura 20 – Margem do ribeirão, com ênfase nos gabiões, Ponto 20 no Mapa 2 ...................... 71 Figura 21 – Área do fundo de vale, atrás de ruína do galpão da antiga estação, Pontos 21 e 22 no Mapa 2 .................................................................................................................................... 71 Figura 22 – Avenida Capitão Bernardes, via próxima ao Ribeirão, em dia de enchente, Ponto 23 no Mapa 2............................................................................................................................... 72 Figura 23 – Antiga Ponte dos Suspiros, que cruzava o Ribeirão, 1980, Ponto 24 no Mapa 2 ... 73 Figura 24 – Atual estado de ruínas em que se encontra a Ponte dos Suspiros, 2021, Ponto 25 no Mapa 2 .................................................................................................................................... 73 Figura 25 – Galpão da antiga ferrovia em estado de ruínas, Ponto 26 no Mapa 2 .................... 73 Figura 26 – Via Marginal, Ribeirão Tatu e antiga estação ferroviária ao fundo, Ponto 27 no Mapa 2 ......................................................................................................................................... 74 Figura 27 – Mesmo trecho da Via Marginal durante enchente em 2002, Ponto 28 no Mapa 2 . 75 Figura 28 – Estruturas de sustentação da canalização do Ribeirão Tatu e suas obras de canalização, meados do século XX, Pontos 29 e 30 no Mapa 2 ................................................ 75 Figura 29 – Trecho do ribeirão que passa atrás do terminal de ônibus, mostrando as estruturas de concreto, visto de cima da Ponte de Pedestres, Ponto 31 no Mapa 2 .................................. 76 Figura 30 – Trecho do ribeirão que passa atrás do terminal de ônibus, com ênfase na paisagem, vista de cima da Ponte de Pedestres, Ponto 31 no Mapa 2 ..................................... 77 Figura 31 – Ruínas da antiga Machina São Paulo, vistas do pontilhão, Ponto 1 no Mapa 3 ..... 79 Figura 32 – Via Marginal, fechada, com reabertura programada para o final de 2021, Ponto 2 no Mapa 3 .................................................................................................................................... 79 Figura 33 – Via Marginal, com ênfase na vegetação alta, Ponto 3 no Mapa 3 .......................... 80 Figura 34 – Vegetação das margens do Ribeirão Tatu e suas estruturas, Ponto 4 no Mapa 3 . 81 Figura 35 – Vegetação das margens do Ribeirão Tatu e suas estruturas, Ponto 5 no Mapa 3 . 81 Figura 36 –Via Marginal, vista de cima do Viaduto Laércio Corte, Ponto 6 no Mapa 3 ............. 82 Figura 37 – Parte abaixo do Viaduto Laércio Corte, considerada área marginal, próxima aos trilhos do trem, Pontos 7 e 8 no Mapa 3 ..................................................................................... 83 Figura 38 – Margem oeste, na qual se veem pessoas utilizando as pistas de caminhada, Ponto 9 no Mapa 3 ................................................................................................................................. 83 Figura 39 – Estado atual do mobiliário urbano nesta área, Ponto 10 no Mapa 3 ....................... 84 Figura 40 – Obra de drenagem, feita na margem oeste do Ribeirão Tatu, Ponto 11 no Mapa 3 ..................................................................................................................................................... 84 Figura 41 – Ponte de Pedestres, que liga os dois lados, e de seu interior, Ponto 12 no Mapa 3 ..................................................................................................................................................... 85 Figura 42 – Vista da Ponte de Pedestres e meandros do ribeirão, Ponto 13 no Mapa 3........... 86 Figura 43 – Vegetação e mobiliário urbano na margem oeste, Ponto 14 no Mapa 3 ................ 87 Figura 44 – Área de caminhada na margem leste, Pontos 15 a 18 no Mapa 3 ......................... 88 Figura 45 – Trilhos do trem em área lindeira aos bairros do entorno, mas ainda assim separada pela vegetação, Ponto 19 no Mapa 3 ......................................................................................... 88 Figura 46 – Galeria de água do Córrego Presidente Dutra, Ponto 20 no Mapa 3 ...................... 89 Figura 47 – Via de pedestres próxima à Ponte Preta, Ponto 21 no Mapa 3 .............................. 90 Figura 48 – Área de fundo de vale próxima à Ponte Preta, Ponto 22 no Mapa 3 ...................... 91 Figura 49 – Fotos da situação da área livre do fundo de vale em 2018 (à esquerda) e da situação atual do trecho conhecido como "Ponte Preta" (à direita), pontos 23 e 24 no Mapa 3 92 Figura 50 – Fotos da situação de enchentes e inundações na área da Ponte Preta (Pontos 25 e 26 no Mapa 3) ............................................................................................................................. 92 Figura 51 – Ribeirão Tatu em área atrás da antiga estação de trem onde se observa o descuido com o espaço e presença de lixo ................................................................................................ 99 Figura 52 – Notícia sobre a entrega da ponte de concreto na Rua Senador Vergueiro ao Bairro da Boa Vista .............................................................................................................................. 103 Figura 53 – Imagens dos sites G1 e Rápido no Ar com as notícias de enchentes e inundações em Limeira ................................................................................................................................. 104 Figura 54 – Homem pescando no Ribeirão Tatu em área próxima à Ponte Preta ................... 105 Figura 55 – Evidência de vida aquática no Ribeirão Tatu ........................................................ 105 Figura 56 – Maquinário intervindo no processo de assoreamento do Ribeirão Tatu, ano de 1984 ................................................................................................................................................... 107 Figura 57 – Processo de recuperação do Ribeirão Tatu em áreas centrais, 1998 .................. 108 Figura 58 – Processo de recuperação do Ribeirão Tatu no bairro CECAP, 1999 ................... 109 Figura 59 – Área conhecida como Ponte Preta em dia de grande quantidade de chuvas apresentando problemas de drenagem, início de janeiro de 2020 ........................................... 111 Figura 60 – Algumas das pranchas do projeto de 2007 ........................................................... 118 Figura 61 – Mapa e descrição das propostas do projeto de 2007, Trecho 1 ........................... 119 Figura 62 – Mapa e descrição das propostas do projeto de 2007, Trecho 2 ........................... 119 Figura 63 – Mapa e descrição das propostas do projeto de 2007, Trecho 3 ........................... 120 Figura 64 – Mapa e descrição das propostas do projeto de 2007, Trecho 4 ........................... 120 Figura 65 – Mapa de caracterização do Trecho 1 pelo Projeto Tatu ........................................ 122 Figura 66 – Mapa de caracterização do Trecho 2 pelo Projeto Tatu ........................................ 123 Figura 67 – Mapa de caracterização do Trecho 3 pelo Projeto Tatu ........................................ 123 Figura 68 – Mapa de caracterização do Trecho 4 pelo Projeto Tatu ........................................ 124 Figura 69 – Fundo de vale próximo à CPKelco ........................................................................ 144 Figura 70 – Fundo de vale próximo à Ponte Preta ................................................................... 154 Figura 71 – Áreas de fundo de vale são cercadas por fachadas inativas ................................ 165 Figura 72 – Inundação na rotatória próxima ao Posto Tigrinho ................................................ 166 Figura 73 – Área verde ainda intacta no Trecho 2 .................................................................... 170 Figura 74 – Área de mata ciliar com locais de caminhada no Trecho 3 ................................... 170 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Gráfico feito a partir das respostas dos questionários sobre os problemas encontrados pelos citadinos ........................................................................................................ 97 Tabela 2 – Gráfico feito a partir das respostas dos questionários sobre os benefícios encontrados pelos citadinos ........................................................................................................ 97 LISTA DE MAPAS Mapa 1 – Percurso do Ribeirão Tatu – levantamento fotográfico – Trechos 2 e 3 .................... 60 Mapa 2 – Trecho 2 com a demarcação das fotos do Ribeirão Tatu, Limeira/SP ....................... 61 Mapa 3 – Trecho 3 com a Demarcação das Fotografias do Ribeirão Tatu, Limeira/SP ............ 78 Mapa 4 – Localização das enchentes relatadas e fotografias baseadas nas notícias ............. 106 Mapa 5 – Mapa dos setores de risco na cidade de Limeira-SP, Plano Municipal de Saneamento, Limeira/SP .......................................................................................................... 126 Mapa 6 – Mapa com a delimitação da Bacia do Ribeirão Tatu ................................................ 128 Mapa 7 – Mapa de Figura Fundo no entorno do Ribeirão Tatu ................................................ 129 Mapa 8 – Mapa de Uso e Ocupação do Solo de Limeira ......................................................... 130 Mapa 9 – Leitura das portas da paisagem contendo os trechos 1, 2, 3 e 4 ............................. 132 Mapa 10 – Território fabricado: uso das áreas públicas, Trecho 1 ........................................... 136 Mapa 11 – Território fabricado: uso das áreas públicas, Trecho 2 ........................................... 137 Mapa 12 – Território fabricado: uso das áreas públicas, Trecho 3 ........................................... 138 Mapa 13 – Território fabricado: uso das áreas públicas, Trecho 4 ........................................... 139 Mapa 14 – Paisagem como Representação Cultural e percepção, Trecho 1 .......................... 141 Mapa 15 – Paisagem como Representação Cultural e percepção através de documentos e questionários, Trecho 2 ............................................................................................................. 142 Mapa 16 – Paisagem como Representação Cultural e percepção dos elementos da paisagem, Trecho 2 .................................................................................................................................... 143 Mapa 17 – Paisagem como Representação Cultural e percepção através de documentos e questionários, Trecho 3 ............................................................................................................. 146 Mapa 18 – Paisagem como Representação Cultural e percepção dos elementos da paisagem, Trecho 3 .................................................................................................................................... 147 Mapa 19 – Paisagem como Representação Cultural e percepção, Trecho 4 .......................... 149 Mapa 20 – Paisagem como Meio Ambiente Material e Vivo das Sociedades, Trecho 1 ......... 152 Mapa 21 – Paisagem como Meio Ambiente Material e Vivo das Sociedades, Trecho 2 ......... 153 Mapa 22 – Paisagem como Meio Ambiente Material e Vivo das Sociedades, Trecho 3 ......... 155 Mapa 23 – Paisagem como Meio Ambiente Material e Vivo das Sociedades, Trecho 4 ......... 156 Mapa 24 – Paisagem como Contexto de Projeto, Trecho 2 ..................................................... 159 Mapa 25 – Paisagem como Contexto de Projeto, Trecho 3 ..................................................... 160 Mapa 26 – Paisagem como Contexto de Projeto, Trecho 4 ..................................................... 161 Mapa 27 – Problemáticas da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 1 ........................................ 163 Mapa 28 – Problemáticas da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 2 ........................................ 164 Mapa 29 – Problemáticas da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 3 ........................................ 167 Mapa 30 – Problemáticas da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 4 ........................................ 168 Mapa 31 – Potencialidades da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 1 ..................................... 171 Mapa 32 – Potencialidades da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 2 ..................................... 172 Mapa 33 – Potencialidades da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 3 ..................................... 173 Mapa 34 – Potencialidades da paisagem do Ribeirão Tatu, Trecho 4 ..................................... 174 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14 CAPÍTULO I - OS FUNDOS DE VALE NA PAISAGEM .................................. 20 1.1 PAISAGEM ....................................................................................................................................... 20 1.2 ESPAÇOS LIVRES PÚBLICOS ....................................................................................................... 25 1.3 FUNDOS DE VALE NA PAISAGEM ................................................................................................. 30 1.4 A LEGISLAÇÃO E OS FUNDOS DE VALE ...................................................................................... 41 CAPÍTULO II - LIMEIRA E O RIBEIRÃO TATU .............................................. 46 2.1 CARACTERÍSTICAS GERAIS ......................................................................................................... 47 2.2 LEVANTAMENTO HISTÓRICO E DOCUMENTAL DE LIMEIRA E DO RIBEIRÃO TATU ............... 50 2.3 PERCURSO DA LINHA PRINCIPAL DO RIBEIRÃO: LEVANTAMENTO FOTOGRÁFICO ............. 58 2.4 PERCEPÇÃO DA PAISAGEM DO RIBEIRÃO PELOS MORADORES DE LIMEIRA ...................... 93 2.5 O RIBEIRÃO TATU VISTO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO ................................................. 100 2.6 PROJETOS, PLANOS E LEGISLAÇÃO ......................................................................................... 107 CAPÍTULO III - A PAISAGEM DO RIBEIRÃO TATU: CONFLUÊNCIAS E POSSIBILIDADES ......................................................................................... 127 3.1 LENDO A PAISAGEM: MAPAS PRODUZIDOS ............................................................................. 127 3.2 AS PORTAS DA PAISAGEM PARA O RIBEIRÃO TATU .............................................................. 132 3.2.1 A paisagem como território fabricado e habitado .................................................................... 133 3.2.2 A paisagem através da representação cultural e social .......................................................... 140 3.2.3 A paisagem como meio ambiente material e vivo das sociedades humanas .......................... 150 3.2.4 A paisagem como contexto de projeto .................................................................................... 157 3.3 CONFLUÊNCIAS E POSSIBILIDADES: MAPEANDO AS PROBLEMÁTICAS E AS POTENCIALIDADES ............................................................................................................................ 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 176 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 180 APÊNDICES .................................................................................................. 190 APÊNDICE 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTA....................................................................................... 190 APÊNDICE 2 – CONTINUAÇÃO DO ROTEIRO DE ENTREVISTA ..................................................... 191 APÊNDICE 3 – CONTINUAÇÃO DO ROTEIRO DE ENTREVISTA ..................................................... 192 ANEXOS ........................................................................................................ 193 ANEXO 1 – DIRETOR E ASSESSORA ............................................................................................... 193 ANEXO 2 – ENGENHEIROS................................................................................................................ 194 ANEXO 3 – DIRETOR E CHEFE (1) .................................................................................................... 195 ANEXO 4 – DIRETOR E CHEFE (2) .................................................................................................... 196 ANEXO 5 – DIRETOR .......................................................................................................................... 197 ANEXO 6 – PONTOS DE TRÂNSITO SUJEITOS A INUNDAÇÃO ...................................................... 198 ANEXO 7 – ESTRATÉGIA DE REQUALIFICAÇÃO AMBIENTAL........................................................ 199 14 INTRODUÇÃO A paisagem nunca é apenas natureza, é também história. Para sua identidade, contribuem diversos fatores, incluindo as ações com as quais o homem marca e modifica o ambiente em que vive (BONESIO, 2011). Segundo Besse (2014), a paisagem pode ser definida como um território produzido pela sociedade ao longo da história, tratando-se não somente de um conjunto de espaços organizados coletivamente pelos homens, mas também de: [...] uma sucessão de rastros, de traços que se superpõem no solo. A paisagem neste sentido, é como uma obra de arte, e a terra, o solo, a natureza são como os materiais que os homens moldam segundo os valores culturais que evoluíram no tempo e no espaço. (BESSE, 2014, p. 153). Parte dessa paisagem, os espaços livres públicos, são de vital importância para as cidades, especialmente os espaços verdes que circundam as áreas de fundo de vale e seus corpos d’água, visto que eles se relacionam com a formação urbana de maneira intrínseca, conformando locais de passagem, de encontro, de permanência e de trocas, típicos da natureza do espaço público, embora apresentem diferentes graus de degradação segundo a forma que as cidades são planejadas e produzidas. Por esse motivo, os espaços livres públicos são valiosos objetos de estudo considerando-se sua influência na vida de todos aqueles que vivem no meio urbano, atuando como palco e reflexo da própria sociedade (PESAVENTO, 2007). Esses espaços podem ser considerados lugares únicos na paisagem urbana, derivados não só das variáveis de ordem social e econômica, mas também ambiental, cultural, política e, ainda, pela passagem do tempo, tornando-se um palimpsesto da ocupação humana (BESSE, 2014). Nesse viés, o objetivo principal desta dissertação foi compreender a construção da paisagem de Limeira, uma cidade média do interior paulista, a partir dos fundos de vale, analisando sua relação com o tecido urbano, cujas idiossincrasias históricas, sociais, políticas e econômicas a afetam, bem como a dinâmica atual da paisagem, o uso e ocupação do solo. Também se buscou levantar o histórico de ocupação desde o início da formação da cidade, para melhor compreender as questões ambientais e paisagísticas envolvendo o fundo de vale do Ribeirão Tatu, além de investigar a relação entre o curso d´água e a população, a fim de descobrir quais os valores atribuídos (seus significados e atributos) que repercutem diretamente no aspecto 15 paisagístico atual do curso d’água, apontando as confluências e possibilidades. A paisagem dos fundos de vale de Limeira sofre por conta da intervenção no curso/retificação desse rio, retirada de mata ciliar, lançamentos de esgotos e outros resíduos. Para que se possa analisar os rios e sua relação com o tecido urbano, primeiramente, devem-se levantar questões morfológicas do espaço, além daquelas de ordem histórica, social, ambiental, cultural, econômica e política, verificando a dinâmica da relação do rio com a cidade, seus impactos, histórico e estado atual. No processo de construção e de transformação da paisagem urbana, pode-se revelar e valorizar ainda mais os seus significados e atributos tornando-os visíveis. Por esse enfoque, muitos de nossos rios ainda estão por ser habitados. “Reconhecer o rio como paisagem, portanto, é habitar o rio” (COSTA, 2006a, p. 11), além do que para a mesma autora, no adensamento do espaço construído, os rios trazem uma importante contribuição para a experiência urbana, pois como espaços livres de edificação, ampliam a possibilidade de fruição da paisagem da cidade (CONSTANTINO, 2014). O cuidado com a paisagem ocupa, na atualidade, um lugar crucial nas preocupações sociais e políticas pela qualidade dos quadros de vida oferecidos às populações, em relação aos questionamentos sobre a identidade dos lugares, sobre a governança dos territórios ou, ainda, sobre a proteção dos meios naturais. (BESSE, 2014, p. 7). Assim, haja vista que a análise da paisagem e consequente produção em meio urbano são de vital importância para melhorar a qualidade de vida na cidade e a saúde dos cidadãos, tendo em conta que são locais desconectados do tecido urbano e muito degradados, torna-se essencial estudar em detalhe esses lugares tão relegados dentro do tecido urbano, uma vez que sua realidade atual em cidades de médio porte (como no caso da cidade de Limeira) ainda é pouco estudada - considerando a produção científica existente -, especialmente no que concerne aos fundos de vale. Dado o exposto, esta pesquisa considerou os três eixos entrelaçados: a revisão da literatura, o balanço das posições teóricas e a coleta de dados e informações segundo o recorte estabelecido – o fundo de vale do Ribeirão Tatu, na cidade de Limeira. De acordo com Lamparelli (2000), esses três eixos são inseparáveis, fazendo parte de um único processo de aproximação sucessiva, do conhecido para o desconhecido. 16 Partindo do pressuposto de que, historicamente, as paisagens fluviais foram se transformando também em paisagens urbanas, a partir do referencial teórico de Besse (2014) e utilizando os métodos qualitativos e quantitativos, a pesquisa buscou desvendar como acontece a inserção dos rios na cidade de Limeira, considerando como chave de leitura a permanência dos rios urbanos na cidade e no território. Dessa maneira, foi possível atingir o objetivo principal de compreender a construção da paisagem limeirense a partir do fundo de vale do Ribeirão Tatu, analisando sua relação com o tecido urbano. Para atingir os objetivos específicos elencados, por sua vez, foram utilizados os seguintes procedimentos metodológicos: Pesquisa bibliográfica e documental (legislação, mapas, planos e projetos, arquivos da Gazeta de Limeira); Pesquisa de Campo para identificar as estruturas espaciais e ambientais, observação de uso, comportamento e atividades; Levantamento fotográfico; Aplicação de questionários aos moradores do entorno e aos usuários dos espaços públicos próximos ao Ribeirão Tatu; e Entrevistas com técnicos da Administração Municipal. O recorte temporal desta pesquisa compreende o início do povoamento, em 1826 (por conta do levantamento histórico da paisagem dos rios), até os dias atuais, com a percepção atual dos moradores, usuários e poder público. A história da formação da cidade (dentro do estudo dos espaços públicos), como propõe Pesavento (2007), faz-se importante para que se construa a evolução cronológica de um núcleo urbano, através da reunião de dados e sua ordenação. Tal ação se faz necessária, no caso dos espaços públicos e, por consequência, dos fundos de vale, para que se compreenda a evolução do tecido urbano, bem como as mudanças pelas quais passou ao longo do tempo, pois, ao se recontar o histórico da paisagem e do espaço, pode-se compreender melhor sua situação atual, motivo pelo qual é elencado como o primeiro objetivo específico desta pesquisa de mestrado. A bibliografia do tema e os documentos pesquisados tiveram o propósito de servir como base para se recontar a história da paisagem dos fundos de vale de Limeira, possibilitando uma visão mais ampla sobre esse local, compreendendo como era tratado pelo poder público e pelos citadinos e também servindo para mostrar como se deu a alteração da paisagem dos corpos d’água na cidade ao longo do tempo. Os documentos e materiais foram pesquisados nos acervos da Câmara Municipal (legislação, requerimentos e relatórios voltados aos fundos de vale), Prefeitura 17 Municipal (legislação, textos, mapas, projetos e planos voltados aos fundos de vale) e no Centro de Memória (mapas, textos, planos e projetos voltados aos fundos de vale, porém relacionados ao histórico da cidade). Também se buscou analisar artigos de jornais, publicados no jornal local Gazeta de Limeira, que abordassem o uso das águas e dos fundos de vale. Já a pesquisa de campo (para identificar as estruturas espaciais e ambientais; observação de uso, comportamento e atividades; levantamento fotográfico) e a aplicação de questionários aos moradores do entorno e aos usuários dos espaços públicos próximos ao Ribeirão Tatu foram produzidas ao longo da pesquisa com o propósito de verificar a relação entre o ribeirão e a população, para descobrir quais os valores atribuídos (seus significados e atributos) que repercutem diretamente no aspecto paisagístico atual do curso d’água. A pesquisa de campo e os questionários puderam ser analisados de forma quantitativa (gráficos) e qualitativa por meio da elaboração de mapas, identificando os principais equipamentos públicos elencados e o uso e ocupação do espaço dos fundos de vale, bem como a configuração da paisagem do local. As entrevistas, por sua vez, tiveram o objetivo de compreender os valores atribuídos aos fundos de vale pelo poder público. As fontes levantadas foram escolhidas por conta de fornecerem um panorama amplo do tema, complementando-se mutuamente para conferir a visão de múltiplos agentes atuantes e influenciados pelo espaço (poder público, citadinos, pesquisadores do tema etc.). Ao escolher como fontes primárias a legislação, os requerimentos, os relatórios, os textos, os mapas, os projetos e os planos produzidos pelo poder público (Câmara e Prefeitura Municipal, assim como o material histórico guardado no Centro de Memória), foi possível acompanhar todo o investimento feito no espaço público pelo Estado (BACELLAR, 2005), um dos maiores agentes de produção do espaço, o que auxiliou, em parte, na compreensão da evolução e da situação atual da paisagem dos fundos de vale. Uma das fragilidades dessa fonte é a parcialidade de seu discurso, uma vez que pode ter um alto teor político (voltado à exaltação dos feitos de certas gestões) e econômico, sendo moldado pelo contexto histórico (aquilo que a gestão da época considerava mais importante). O mesmo ocorre com o meio jornalístico como fonte de estudo, no caso, o uso de artigos do jornal local Gazeta de Limeira. Apesar de apresentar uma visão diferente 18 do poder público, pode ser também altamente parcial em seu discurso devido aos diferentes editores e proprietários ao longo do tempo, tendo enfoques particulares (o que é positivo por conta de uma visão alternativa, mas negativo por sua parcialidade). Ambos os arquivos, do poder público e do jornal, possuem a dificuldade de não estarem completos, devido à perda de documentos e informações, uma vez que “os arquivos públicos tiveram, ao longo do século XX, grandes dificuldades em manter a continuidade do processo de recolhimento documental” (BACELLAR, 2005, p. 48) e “mesmo na iniciativa privada, ainda hoje, é muito comum denominar-se os serviços de arquivo como ‘arquivo morto’, como que ignorando a preciosidade de muitos dos documentos ali esquecidos.” (BACELLAR, 2005, p. 49). Por isso, foi necessário procurar outras fontes complementares, como a bibliografia sobre o tema, questionários feitos aos moradores e usuários dos espaços públicos próximos e pesquisa de campo (para identificação das estruturas espaciais e ambientais, observação de uso, comportamento e atividades e levantamento fotográfico). A bibliografia sobre a cidade constitui um panorama daquilo que já foi estudado pelos pesquisadores, mas por conta de sua visão focada em outros aspectos da cidade, fez-se necessário buscar mais informações acerca do tema desta pesquisa, os fundos de vale. Tecidas essas considerações, no primeiro capítulo, discute-se a teoria que embasa esta pesquisa. Nele, são apresentadas as definições de paisagem e sua relação com as cidades, além de como se entendem os espaços públicos e áreas verdes pela pesquisadora, visto que este estudo trata das paisagens de fundo de vale urbano. Também se analisam a legislação referente aos fundos de vale e a situação dessas áreas em meio urbano brasileiro, uma vez que o contexto específico das cidades médias paulistas atua sobre a forma de produção urbana. Já no segundo capítulo, é apresentado o caso de estudo, o Ribeirão Tatu na cidade de Limeira/SP. Foram levantados todo o histórico, características principais e legislação que trata desse fundo de vale por meio de levantamento documental, da mesma forma que a visão da mídia sobre o ribeirão pelos meios de comunicação, tanto físicos (Gazeta de Limeira) quanto digitais (Rápido no Ar, G1 – Piracicaba e Região, entre outros). Nesse capítulo, também se apresenta um levantamento fotográfico feito em visita de campo, salientando as características do objeto de estudo. 19 Por fim, no terceiro capítulo, descreve-se a análise da paisagem desse corpo d’água urbano a partir dos conceitos das “Portas da Paisagem” de Besse (2014), apresentando a paisagem do Ribeirão Tatu como “Território Fabricado e Habitado”, “Representação Cultural e Social”, “Meio Ambiente Vivo e Material das Sociedades Humanas” e como “Contexto de Projeto”. Baseando-se nessa análise, foram elaborados mapas para apresentar os resultados obtidos e, como síntese desse trabalho cartográfico e de sua análise, um mapeamento de potencialidades e problemáticas encontradas nesse espaço, a fim de que se possam subsidiar ações de requalificação das áreas verdes do Ribeirão Tatu. 20 CAPÍTULO I - OS FUNDOS DE VALE NA PAISAGEM 1.1 PAISAGEM Pode-se enxergar a paisagem através de diversos prismas: como natureza, como habitat, como artefato, como sistema, como palco social, como lugar, como estética. O conceito de paisagem, ligado principalmente à visão e percepção estética da natureza, dá-se por meio de um olhar constantemente treinado, que une emoção, arte e natureza (ARRAES, 2018). A paisagem para Goethe e Humboldt aparece como uma porção vital da totalidade natural enquadrada pela sensibilidade do olhar treinado e transfigurada em arte (literatura e pintura) [...] cujos fundamentos da representação de paisagem não se restringiram à descrição de eventos; ao contrário, a paisagem possui uma fisionomia que lhe é própria derivada da conjunção harmoniosa de fatores humanos (terras agricultáveis, navegação, pastoreio, arquitetura) e naturais (nuvens, céu, vegetação, montanha) em um enquadramento, seja material (moldura) ou visual. (ARRAES, 2018, p. 21). Porém, devemos compreender que essa ideia evolui e se modifica com o passar do tempo. A partir da obra Cosmos, de Humboldt (1852 apud ARRAES, 2018), o conceito de uma “janela” pela qual se vê que a natureza passa a abrigar embasamento científico, relacionando a paisagem ao estudo experimental da natureza, ou seja, buscando “observar os fenômenos em sua realidade objetiva e refletir como a humanidade projeta seus sentimentos sobre a natureza.” (ARRAES, 2018, p. 17). Além disso, aponta as três formas de se propagar o estudo da natureza: No segundo tomo de Cosmos, o naturalista prussiano comenta três maneiras de propagar o estudo da natureza pelas quais a imaginação e a sensibilidade criadora do homem manifestam-se: a primeira seria a poesia ou as descrições animadas de cenas da natureza; a pintura de paisagem vem a ser a segunda forma, aliás ela mesma uma modalidade de poesia; e, por último, os jardins, lócus simultâneo de contemplação e investigação dos fenômenos naturais, particularmente os botânicos. (ARRAES, 2018, p. 17). Já em meados do século XX, passa-se também a considerar a apreensão do espaço através dos cinco sentidos e sua forma como influência na percepção dos povos, dependendo do contexto temporal, social e cultural, surgindo, assim, a percepção ambiental (baseada em teorias da psicologia): Na dinâmica que caracteriza a evolução da paisagem, o fator mais constante tem sido, sem dúvida, o mecanismo humano de percepção pelos cinco sentidos, através dos quais todos os estímulos passam para despertar nossas emoções. Embora esse mecanismo seja bastante estável, a expressão das emoções despertadas pela paisagem, seja através da ciência, da pintura, da literatura ou do paisagismo, varia a cada período histórico. (LEITE, 1992, p. 62). 21 Atualmente, as noções de paisagem têm abrangido ainda mais a interdisciplinaridade, utilizando conceitos sociais para explicar como a paisagem tem o papel de promover o encontro entre as pessoas (sendo parte essencial dos espaços públicos) e “abrigar tanto os propósitos humanos, quanto os processos naturais.” (LEITE, 1992, p. 63). Dessa forma, áreas tais quais a geografia conceituam a paisagem como a expressão materializada das relações do homem com a natureza em uma determinada porção do espaço (CLAVAL, 1994), apontando a importância da análise das paisagens como um dos componentes essenciais da crítica da ordem espacial e dos determinantes sociais e culturais (CLAVAL, 1997). Considera-se, aqui, o conceito de paisagem adotado pela Council of Europe (2000, p. 38): “Paisagem designa uma parte do território, tal como é percebida pelas populações e cujo carácter resulta da ação de fatores naturais e/ou humanos e das suas inter-relações”. Autores como Besse (2014) e Tardin-Coelho (2010) consideram a paisagem como uma derivação da cultura humana no espaço, ou seja, é um artefato construído pelo homem sobre uma natureza existente, revelando-se como bem coletivo que se manifesta sobre o território físico/funcional. Entretanto, assim como é influenciada pela ação humana, o homem é também por ela influenciado, estabelecendo-se uma correspondência entre as paisagens familiares, a língua, a literatura e o espírito coletivo (CLAVAL, 1997). Tal fato aponta por que o estudo das paisagens se identifica com o estudo das formas de pensamento, percepção subjetiva e a expressão através de códigos (discurso, valores etc.) (BESSE, 2006). Podemos considerar que a paisagem não é só um conjunto de ambientes organizados coletivamente pelos homens, mas é também uma sucessão de rastros, de traços que se superpõem no solo, e que esses traços da história do lugar devem ser levados em conta ao analisar alternativas projetuais para a requalificação de áreas inseridas na paisagem urbana (BESSE, 2014). Para o mesmo autor, “o valor paisagístico de um lugar não é considerado unicamente do ponto de vista estético [...], é considerado mais em relação à soma das experimentações, dos costumes, das práticas desenvolvidos por um grupo humano nesse lugar.” (BESSE, 2014, p. 27). Ou seja, esses espaços livres públicos podem ser considerados lugares únicos na paisagem urbana, derivados não só das variáveis de ordem social e econômica, como também ambiental, cultural e política sobre o espaço e, ainda, pela passagem 22 do tempo, constituindo-se um palimpsesto da ocupação humana. Outra faceta da paisagem, relacionada a esses componentes de ordem social, econômica, cultural, ambiental e política, é a organização do território, compreendido como “uma extensão mais ou menos vasta da superfície terrestre que pode ser delimitado segundo divisões geofísicas (montes, rios) [...] ou divisões convencionais” (ASSUNTO, 2011, p. 128). A organização desses espaços e a combinação específica desses componentes contextuais é o que cria um sentimento de pertencimento com o local e o torna identificável por certa população (CARNEIRO; DUARTE; MARQUES, 2009). Para Besse (2014), a paisagem pode ser definida como uma representação cultural e social; como um território (fabricado e habitado) produzido pelas sociedades ao longo da história; como um complexo sistêmico que articula os elementos naturais e culturais em uma totalidade dinâmica, evolutiva, atravessada por fluxos; como um espaço de experiência fenomenológica, podendo ser definido como o acontecimento do encontro concreto entre o homem e o mundo que o cerca; ou ainda como um sítio ou um contexto de projeto. Nesse sentido, o autor apresenta as cinco portas da paisagem – entradas para diferentes leituras da problemática paisagística -, de acordo com os grupos de profissionais que costumam trabalhar com esses conceitos. Nesta pesquisa, busca-se utilizar as diferentes aproximações teóricas para analisar a paisagem, onde as cinco portas apresentadas por Besse (2014) podem se sobrepor, no intuito de perceber a interação entre o objeto de estudo – o Ribeirão Tatu – e a paisagem de Limeira. Todas essas visões da paisagem se interligam, criando um conceito multifacetado do que seja a paisagem e sua importância para as pessoas, levantando a importância de se considerar a paisagem, acima de tudo, “como bem coletivo, como recurso coletivo, como a manifestação coletiva sobre o território físico/funcional, que lhe dá caráter e a esse se soma, conformando a paisagem que deriva da cultura humana sobre a natureza, a paisagem cultural.” (TARDIN-COELHO, 2010, p. 3). As paisagens são únicas, resultantes de um conjunto de variáveis relacionadas que participam em sua formação, de modo que cada paisagem é o resultado da manifestação dinâmica da interação homem/natureza ao longo do tempo. (TARDIN-COELHO, 2010, p. 3). Por ser um bem coletivo, percebe-se a importância da preservação da paisagem como bem cultural. Assim, órgãos e comitês registram a necessidade de se 23 incluir uma nova categoria de proteção patrimonial ligada à paisagem, em especial, à paisagem urbana, que conta a história e cultura dos povos, visando proteger “a autenticidade e integridade dos sítios, conjuntos urbanos e monumentos isolados do impacto dos empreendimentos contemporâneos os quais, muitas vezes, ameaçam o patrimônio natural e cultural de valor excepcional, descaracterizando-o.” (CARNEIRO; DUARTE; MARQUES, 2009, p. 139). É apontado por esses autores, assim como por Tardin-Coelho (2010), a necessidade de se traçar um projeto coletivo de paisagem cujas intervenções urbanísticas possam ser pensadas e construídas a partir de uma imagem coletiva da paisagem que se deseja. As transformações na paisagem, sejam de forma positiva ou negativa, traduzem vontades. A ausência de uma “vontade de paisagem” ou a apreciação dela em meio urbano é o que causa o seu abandono, descuido e degradação (BESSE, 2018, p. 37-38). Em outras palavras, colocadas nas paisagens e em relações múltiplas e constantes com elas, as sociedades humanas agem, por um lado, nas paisagens e, por outro lado, com elas. É essa distinção entre agir na e agir com que deve ser esclarecida. A questão me parece considerável, porque leva, como tentarei indicar, a uma reavaliação do conceito de projeto e da educação para a atividade de projeto nas escolas que o tornaram o eixo de seus programas de formação. (BESSE, 2018, p. 38, tradução livre)1. Ou seja, trazer a atenção para aquilo que nos rodeia, as manifestações naturais e artificiais que compõem a paisagem urbana, é um ato de escolha que, por sua vez, irá influenciar nas transformações que serão realizadas nos espaços. Como aponta Besse (2018), o agir com a paisagem é um ato deliberado, visando transformar o espaço e a paisagem de forma consciente, criar e seguir um projeto de paisagem que, além da construção física do espaço, engloba também a educação sobre a paisagem e sua importância. De outra forma, podemos entender que o agir com a paisagem, como aponta o autor, compreende um diálogo constante com o meio que nos cerca, levando-nos à apropriação do espaço ao mesmo tempo que ele se reflete em nós. 1 Original: “Autrement dit, places dans les paysages et en relations multiples et constantes avec eux, les sociétés humaines agissent d’une part sur les paysages es d’autre parte avec eux. C’est cette distinction entre agir sur et agir avec qu’il faut éclairer. L’enjeu me parait considerable, car il conduit, comme je vais essayer de l’indiquer, á une réévaluation de la notion de project et de l’éducation á l’activité de projet dans les écoles qui en ont fait l’axe de leurs programmes de formation.” (BESSE, 2018, p. 38). 24 Porque não se trata apenas de fazer ou refazer (ou mesmo produzir ou reproduzir) uma paisagem, seja urbana, periurbana ou agrícola. Também é necessário iniciar uma espécie de "diálogo" com o material do local, ou seja, as forças e formas da paisagem como ela já está lá, dada e viva com sua própria vida, mesmo se essa vida pudesse ser melhor. As propriedades e declives de um solo, o tamanho de um espaço, a energia e o curso de um rio, a qualidade da luz e da sombra, as atividades humanas, de trabalho e de lazer, o espaço público e os vários atores que o atravessam e nele intervêm, etc.: é com todos esses elementos, e outros ainda, mais ou menos poderosos e ativos, e com o que eles podem dar que se deve fazer e agir. Agir com, isto é, colaborar. (BESSE, 2018, p. 43, tradução livre)2. Especificamente a paisagem das águas é de grande importância para este trabalho, pois aponta não só a importância desse elemento natural na formação das cidades, como também na forma de interação com os citadinos. A paisagem cultural das águas é resultado da inserção paisagística das águas nas cidades (COSTA; MONTEIRO, 2002), e os corpos d’água são considerados elementos visuais e paisagísticos que possuem grande influência na percepção da cidade, especialmente os rios, que facilitam a leitura e legibilidade da cidade “na medida que, a sua linha atravessa a cidade, e que atraiu e atrai outros elementos simbólicos, construídos e naturais.” (MATOS; VELOSO, 2007, p. 227). Esses elementos, que outrora foram de grande importância para o desenvolvimento das cidades e sua utilização como marcos fronteiriços para delimitar os traçados das novas cidades, hoje, são percebidos, em grande parte, como elementos de repulsão, devido à: [...] desvalorização dos rios diante das condições paisagísticas, geográficas, econômicas, culturais e ambientais analisadas; potencialidades existem, entraves e ameaças também são verificadas quanto à estrutura paisagística e à qualidade de vida da população ribeirinha; encontros e desencontros são percebidos na paisagem das águas. (MATOS; VELOSO, 2007, p. 222). Sua importância na paisagem, na formação e morfologia e sua atual situação de desvalorização fazem com que se reflita: seria possível reintegrar os corpos d’água ao tecido urbano e torná-los lugar de uso público? 2 Original: “Car il ne s’agit pas seulement de faire ou de refaire (voire de produire ou de re-produire) un paysage, qu’il soit urban, périurbain, ou agricole. Il est nécessaire aussi d’engager une espèce de « dialogue » avec la matière du site, c’est-à-dire les forces et les formes du paysage tel qu’il est déjà lá, donné et vivant de sa vie propre, même si cette vie pourrait être meilleure. Les propriétés et les pentes d’un sol, la taille d’un espace, l’énergie et le cours d’une rivière, la qualité de la lumière public et les divers acteurs qui çe traversent et y interviennent, etc. : c’est avec tous ces éléments, et d’autres encore, plus ou moins puissant et actifs, et avec ce qu’ils peuvent donner, qu’il faut faire et agir. Agir avec, c’est collaborer.” (BESSE, 2018, p. 43). 25 1.2 ESPAÇOS LIVRES PÚBLICOS Os espaços livres públicos são de vital importância para as cidades, especialmente os fundos de vale, cuja relação com a formação urbana é intrínseca, conformando locais de passagem, de encontro, de permanência e de trocas, típicos da natureza do espaço público. Entretanto, a proposição de uma conceituação exata do que sejam os espaços públicos é difícil, pois as situações são tão dinâmicas e, por vezes, tão únicas, que inviabilizam as explicações gerais, que abarquem todos os casos. Como diz Richard Sennett (1988, p. 58), “é provável que existam tantos modos diferentes de se conceber o que é uma cidade quantas são as cidades existentes”, algo que é aplicável ao espaço público devido à sua relação intrínseca com a cidade. De outra forma, Sennett (1988, p. 58) considera que: O mais simples [significado] diz que uma cidade é um assentamento humano no qual estranhos irão provavelmente se encontrar [...] a concentração populacional deve ser um tanto densa, as trocas comerciais entre a população devem fazer com que essa massa densa e díspar interaja. O foco dessa visão do autor está nas relações comerciais, que são parte integrante da existência das cidades, mostrando como o espaço público é marcado e moldado por essas relações, as quais foram mudando ao longo do tempo. Dimenstein e Scocuglia (2017) adotam perspectiva semelhante à de Sennett (1988), entendendo o espaço público: [...] na sua dimensão de lugar de conflito e dissenso, de encontro com o Outro, da alteridade e da diversidade, mas também a dimensão de convivialidade, de urbanidade no sentido urbanístico de espaços livres abertos, de visibilidade e acessibilidade irrestritos. (DIMENSTEIN; SCOCUGLIA, 2017, p. 418). Essa visão, contudo, vai além das relações comerciais, valorizadas por Sennett (1988), incorporando o aspecto social, que é representado pelo encontro com o outro, mostrando que esse encontro com realidades diferentes é o que caracteriza o espaço público. Assim, a estruturação do espaço viria sendo moldada pelos interesses econômicos e conflitos sociais. Dentro dessa estruturação, o mercado imobiliário é um importante agente produtor do espaço urbano, junto do Estado, que manipula a distribuição da mais valia com benfeitorias e valoriza certas áreas em detrimento de outras, o que exerce forte influência sobre as práticas espaciais dos citadinos (FARRET, 1985). Dessa forma, a ocupação do espaço urbano fica definida pelas classes sociais. 26 Historicamente, a ocupação humana da paisagem tem se dado pelo mercado, e mesmo pelo Estado, de forma heterogênea, privilegiando certas áreas em detrimento de outras, o que exerce forte influência sobre o uso e ocupação do solo pelos citadinos: É nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas que a população trabalhadora pobre vai instalar-se: beira de córregos, encostas de morros, terrenos sujeitos a enchentes ou outros tipos de riscos, regiões poluídas, [...] áreas de proteção ambiental (onde a vigência de legislação de proteção e ausência de fiscalização definem a desvalorização). (MARICATO, 1996, p. 58). A questão do processo de formação e apropriação do espaço urbano e a desvalorização de algumas áreas, como as de fundo de vale, “constituem a face mais visível da problemática dos mananciais” (MARCONDES, 1999, p. 33) e, um dos motivos pelos quais se dá esse processo é apresentado pela autora da seguinte maneira: [...] para nós, a teoria da renda da terra, tal como pensada por Lojkine, especialmente o conceito de renda diferencial, pode ser aplicada na análise da produção do espaço na área de mananciais de modo a explicar os processos de desvalorização dessas áreas por causa da ausência de inversões em infraestrutura, de acordo com o que preconiza a legislação de proteção de mananciais editada na década de 1970. (MARCONDES,1999, p. 31-32). Essa forma de produzir o espaço urbano é criticada por diversos autores, como Serpa (2007, p. 17), que aponta a “mercantilização” como algo que só atende aos interesses econômicos e, inclusive, desencadeia um processo de privatização do espaço público, no qual se criam atrativos pautados no sentido de consumo, tais como restaurantes, bares, parques de diversão e outros entretenimentos pagos, a exemplo de seus estudos de caso em Salvador e em Paris (SERPA, 2007). Em sentido semelhante, autores como Richard Sennett (1988) chegam a mencionar "a morte do espaço público", evidenciada com o "esvaziamento" desses espaços, uma vez que as pessoas passam a buscar em suas casas e demais espaços privados as relações que antes buscavam nos espaços comuns. A monofuncionalidade e o zoneamento, típicos do urbanismo moderno e da produção do espaço pelo mercado, que inibem a interação entre diferentes tipos de pessoas e a convivência dos diferentes usos, seriam, para esse autor, alguns dos principais responsáveis pela “morte do espaço público”. Sennett (1988, p. 26-28), inclusive, atribui responsabilidade aos planejadores urbanos, visto que “quando o 27 planejamento de cidades procura melhorar a qualidade de vida tornando-a mais intimista, o próprio senso de humanidade do planejador cria a esterilidade que ele pretendia evitar”, e também aos arquitetos que projetam edifícios isolados e herméticos, com fachadas de vidro que não abrem e com muitos andares, que já não se relacionam com a rua, ocasionando a perda de vínculo com as vias e com o movimento que ali ocorre. Como reforçado por Gehl (2013), a partir do quinto andar, perde-se essa possível relação visual. Isso também ocorre, porque uma grande parte do espaço público está, atualmente, sob o domínio do automóvel. O carro é mais um meio hermético que isola a pessoa do meio externo, tanto por sua forma e materiais como pela velocidade que alcança ao trafegar pela cidade, tornando o meio externo algo sem sentido. O automóvel particular é o instrumento lógico para o exercício desse direito [a movimentação sem restrições do indivíduo], e o efeito que isso provoca no espaço público, especialmente no espaço da rua urbana, é que o espaço se torna sem sentido, até mesmo endoidecedor, a não ser que possa ser subordinado ao movimento livre. A tecnologia da movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um desejo de eliminar as coerções da geografia. (SENNETT, 1988, p. 29). Assim, estão sendo produzidas “cidades do automóvel”, ao invés de “cidades para pessoas” (GEHL, 2013, p. 6), o que tem relação direta com a crise do espaço público. Conforme Rolnik e Klink (2011), os espaços públicos de uso comunitário cada vez mais se resumem a espaços para circulação, seja de pedestres ou de veículos. As áreas destinadas à permanência vêm se deslocando gradativamente para espaços privados, como shopping centers ou parques. Independentemente da cidade, a parte da população mais afetada pela carência desses espaços, tanto em termos quantitativos como qualitativos, é justamente a população mais pobre, cujas possibilidades não permitem o acesso aos equipamentos e espaços de uso comunitário privados (OLIVEIRA; MASCARÓ, 2007). Outro ponto levantado sobre a produção da paisagem que foi observado por Tardin-Coelho (2010, p. 9) é o de que “ao analisarmos o planejamento de nossas cidades, de modo geral, historicamente, este foi concebido tendo em vista a ocupação extensiva, sem a devida consideração dos distintos sistemas da paisagem como um todo que possibilita a vida humana”, o que significa que, no que se refere ao Sistema de Espaços Livres, segundo a lógica capitalista de se produzir a cidade, não se 28 considera o potencial desses espaços na dinâmica dos sistemas da paisagem, sejam eles biofísico, urbano, sociocultural ou econômico, tratando-os como limitadores da ocupação urbana, algo condizente com os ideais mercantilistas de apropriação da mais valia da terra, apresentados anteriormente. De acordo com a autora, os espaços livres, pelo contrário, são paisagens que deveriam ser protegidas, controladas, determinadas e geridas dentro do processo de ocupação urbana, relacionando-os de forma mais harmônica com as vias e assentamentos, dentre outras infraestruturas, para garantir um habitar mais saudável. Nesta direção, a ordenação dos espaços ocupados e ocupáveis vem de encontro aos assentamentos urbanos existentes e possíveis, à necessidade de habitar a cidade e às condições que permitiram o habitar sustentável da paisagem de acordo com as demandas coletivas. Seja através de questões relacionadas à edificação, às infraestruturas ou aos espaços livres, de cara à conquista de uma eficiência da ocupação urbana, em seus custos e benefícios, sejam econômicos, socioculturais, biofísicos ou urbanos propriamente ditos, referidos à função urbana que exerce cada elemento e sua capacidade de atender às demandas coletivas. (TARDIN-COELHO, 2010, p. 12, grifo próprio). Fora manifestações esporádicas de protesto no cotidiano das cidades, sejam elas por motivos políticos, sociais ou econômicos, os autores apontam muitas evidências de que os citadinos têm perdido a vontade de estar nos espaços públicos e participar da vida coletiva, refugiando-se em espaços privados nos quais não há diversidade e, supostamente, não há perigos. Porém, diante de tudo que já foi apresentado, quando se observa atentamente os espaços livres de lazer, principalmente os fundos de vale na atualidade, fica o questionamento: pode-se mesmo decretar “a morte do espaço público”? Ora, esses lugares continuam a exercer atração sobre os citadinos pelas atividades e interações que possibilitam, as quais não seriam possíveis em espaços privados. Os espaços públicos ainda possuem tanta vitalidade dentro do tecido urbano que há novas tendências de se produzir esses espaços para que possam ser melhor aproveitados e reconhecidos, criando novas identidades e requalificando o meio urbano. Uma dessas tendências é a de se priorizar o pedestre e as ciclovias, fazendo com que, nas baixas velocidades desenvolvidas por esses meios de transporte, os cidadãos criem maior conexão com a cidade (GEHL, 2013). Outros ideais que vêm sendo incorporados à produção do espaço urbano são o incentivo à criação de parques lineares, frentes ribeirinhas, corredores verdes e outras estratégias de 29 adaptação da cidade a formas mais ecológicas e naturais, algo bastante ligado a meios não motorizados de locomoção, como andar a pé e de bicicleta, descritos acima (BRANDÃO, 2011). Scalise (2002) vê nessas novas formas de produção do espaço urbano uma busca por equilíbrio entre o processo de urbanização contemporâneo e a preservação do meio ambiente, uma vez que se tratam de espaços “com novos contornos culturais e estéticos, desenhando o perfil, entorno e identidades, devendo ser encarados nos seus diferentes tempos, funções e usos.”. A preservação do meio ambiente passa a se tornar uma prioridade na forma de se produzir o espaço urbano, e as novas tendências das políticas ambientais, apresentadas por Souza e Macedo (2014), apontam a relevância desse tema. Nas últimas décadas, a política ambiental brasileira vem se consolidando como um significativo instrumento de ordenamento territorial, introduzindo no meio urbano um conjunto de novas tipologias de espaços livres cujas funções ambientais são prioritárias. Parques lineares, parques ecológicos, reservas florestais, unidades de conservação públicas e privadas, são alguns dos elementos que se multiplicam pelas cidades brasileiras, imprimindo novas configurações ao tecido urbano e sua relação com o meio natural que lhe dá suporte. (SOUZA; MACEDO, 2014, p. 2-3). As práticas relacionadas à interação com a natureza e atividades ao ar livre, como cuidado com o corpo e saúde, exercem atração sobre os citadinos, especialmente aqueles que não possuem espaços livres em suas residências, já que é difícil reproduzi-los em espaços privados individuais. Tais práticas, próprias dos espaços livres, estão entre os fatores que motivaram a criação dos parques, como assinala Macedo (2012): No início do século XXI caminhadas, corridas, o andar de bicicleta e skate, jogos ao ar livre, pescarias e piqueniques são atividades desejadas por muitos. Muitas são de difícil acesso para grandes parcelas da população, que não tem condições de frequentar clubes ou centros esportivos públicos, ir à praia ou campo no fim de semana, sítio ou casa de praia ou mesmo moram em locais distantes de tais logradouros. Por outro lado, nas áreas mais densas, consolidadas e, muitas vezes, verticalizadas, tornam-se escassos os espaços públicos destinados a recreação. Estes se limitam a praças ajardinadas com programas de uso obsoletos, pois com o aumento da população se tornam por vezes pequenos para o número de usuários. (MACEDO, 2012, p. 146). Outro ponto importante para se falar sobre o espaço público se refere aos diversos aspectos de caracterização propostos por Holanda (2007, p. 117), sendo eles: “funcionais” (relativos às exigências práticas da vida cotidiana, às condições para a realização de atividades humanas), “bioclimáticos” (relativos ao conforto ambiental, 30 às condições de iluminação, acústica, temperatura, umidade, velocidade do vento, qualidade do ar), “econômicos” (relativos aos custos de implementação, manutenção e uso dos lugares), “sociológicos” (relativos às condições de permanência e movimento de pessoas, de encontros interpessoais), “topoceptivos” (relativos à legibilidade e visibilidade do lugar, conferindo-lhe propriedades de identificação e orientação para as pessoas), “afetivos” (relativos ao modo como o lugar afeta o estado emocional das pessoas), “simbólicos” (relativos à capacidade do lugar de remeter a outros elementos, significados, valores e memória) e “estéticos” (relativos à beleza cênica, a características de um todo estruturado, com qualidades que implicam o estímulo dos sentidos para além das questões práticas). Ou seja, todas essas características que o espaço livre público pode ter compõem as formas de uso e ocupação do solo, as atividades que são realizadas pelos citadinos, o sentido e o significado desses espaços para as pessoas, a relação desses espaços com a cidade e suas funções nessa escala maior. 1.3 FUNDOS DE VALE NA PAISAGEM Os rios sempre tiveram uma relação intrínseca com a cidade (COY, 2014), pela disponibilidade de água, comida, transporte, comunicação, lazer e matérias-primas que ofereciam, sendo que, a partir da “teoria hidráulica”, a história dos rios “corresponde, em grande escala, à história das suas cidades: pontos de passagem, lugares de encontro, centros de intercâmbio, locais de proteção.” (COY, 2014, p. 1). Portanto, a dinâmica do desenvolvimento de uma cidade tem muito a ver com as funções do seu rio, a importância fluvial revela-se, via de regra, na organização espacial da cidade. Pontes, cais, embarcadouros, portos fluviais formavam, durante séculos, em muitas cidades europeias – e continuam formando em muitos casos - os pontos estratégicos, os espaços de alta centralidade e, finalmente os lugares emblemáticos na cidade. (COY, 2014, p. 1). Porém, como Coy indica (2014), a relação rio-cidade não é permanente. Ela depende de diversos fatores econômicos, das formas de comunicação e transporte, da expansão urbana, da política, do planejamento urbano e dos hábitos dos próprios cidadãos. Por conta dessa fluidez na dinâmica, as áreas de fundo de vale sofreram com épocas de desvalorização e degradação através do desmatamento de matas ciliares, invasão dos leitos dos rios, despejo de resíduos, entre outras ações nocivas, causando alterações significativas nos ambientes naturais dos corpos d’água em meio urbano. (HERZOG, 2008 apud AZEVEDO; SALCEDO; CONSTANTINO, 2020, p. 18). 31 Também são identificadas alterações significativas nos ambientes naturais dos corpos d’água em meio urbano, especialmente por conta do impacto que os resíduos das atividades urbanas neles causam (HELLMUND; SMITH, 2006). No caso brasileiro, o maior inimigo dos fundos de vale tem sido o planejamento da ocupação dos espaços urbanos que, segundo Tucci (1997), não considera aspectos fundamentais, como a presença ou a falta das redes de escoamento de águas pluviais, a ocupação de áreas de risco e o gerenciamento adequado da produção do espaço público, fatores que trazem grandes transtornos e custos ao meio urbano, como o “aumento significativo na frequência das inundações, na produção de sedimentos e na deterioração da qualidade da água.” (TUCCI, 1997, p. 3). Outro fator de degradação e desvalorização dos fundos de vale é a industrialização, segundo a qual os rios são considerados importantes por conta da disponibilidade de recursos, mas também por constituírem local de despejo de resíduos. Seu uso predatório causou uma poluição progressiva e intensa descaracterização (retificações, recobrimentos e mudanças de curso), “fato este que mudou fundamentalmente a percepção da população em muitas cidades perante os seus rios.” (COY, 2014, p. 3). É importante lembrar que todos esses fatores têm efeito sobre o uso do solo e sua renda diferencial, uma vez que a “formação e apropriação faz rendas fundiárias urbanas, de desvalorização do espaço construído e de espaços naturais [...]” (MARCONDES, 1999, p. 33). Tendo isso em vista, nas últimas décadas, surgiu um movimento de recuperação dessas áreas que envolvem os corpos d’água em meio urbano. Os fundos de vale, anteriormente degradados por usos industriais e domésticos, são recuperados com a criação das Áreas de Preservação Permanente – APPs – e consequente reconstituição das matas ciliares e dos cursos d’água, agregando, assim, valores “que potencializam o uso das áreas de fundo de vale para a exploração da paisagem natural e para o lazer contemplativo em área urbana” (SCALISE, 2002). A unificação não decorre, entretanto, da integração entre cidade e natureza e sim reificação do urbano, da utilização da natureza de acordo com sua inserção no urbano. Assim, é no espaço das cidades globais que incide o projeto ambientalista, em direção à construção de cidades sustentáveis. (MARCONDES, 1999, p. 37). 32 Com base no conceito de APPs urbanas, surgiu a ideia de se criar Parques Fluviais, que unem o “encontro com o outro”, presente no caráter de espaço público, com o valor ecológico, pertinente às APPs: Os Parques Fluviais serão instrumento de conservação e preservação de bacias hidrográficas situadas, principalmente, em áreas urbanas, visando contribuir de forma permanente para aperfeiçoar a articulação com os diversos atores sociais presentes nas bacias hidrográficas. Esses parques serão projetados para prevenir a ocupação desordenada das margens dos rios; recuperar a vegetação; e preservar os recursos naturais de uma região, favorecendo o desenvolvimento de diversas atividades culturais, lazer, esporte e turismo. Trata-se de um projeto simples, exequível e democrático. (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, [2021], p. 1). Esses espaços possibilitam múltiplos usos e funções simultâneas, podendo ser planejados, projetados e manejados de forma a tirar o máximo partido da paisagem e de seus atributos, podendo embasar as atividades humanas como uma oportunidade de estabelecer uma conexão cotidiana entre o ser humano e a natureza (especialmente no que se refere à educação ambiental) e, ao mesmo tempo, gerar benefícios socioeconômicos (HERZOG, 2008). As zonas de influência das águas dos rios em períodos de cheia podem ser utilizadas como áreas de recreação, lazer e transporte em tempos de seca, diminuindo o risco de inundações e dos prejuízos decorrentes, tanto em perdas materiais como humanas. (BONATTO; MASCARÓ, 2013, p. 3). Esses novos ideais ecológicos e sustentáveis vêm do “redescobrimento” do rio por parte de políticos, planejadores e dos próprios habitantes, que percebem os fundos de vale como paisagem atrativa, que dá identidade às cidades, gerando uma valorização progressiva das margens urbanas e dos próprios corpos d’água, atendendo a diversas funções (COY, 2014, p. 4). Ou seja, tanto o poder público quanto os próprios citadinos passam a voltar seus olhares para os fundos de vale em meio urbano, percebendo valores de ordem funcional, bioclimática, econômica, sociológica, topoceptiva, afetiva, simbólica e estética, como já apontado por Holanda (2007). Da mesma forma, para Herzog (2008), as ciências sociais passam a estudar como essas áreas verdes, especialmente ligadas aos rios, afetam a vida das pessoas, da comunidade, as relações sociais dos diversos usuários e a economia. As sociedades passaram a considerar a relevância das atividades ao ar livre tanto como fonte de saúde física e mental para a população, como potencial geradora de renda por novas possibilidades econômicas. (HERZOG, 2008, p. 7). No que concerne à paisagem, as áreas verdes de fundo de vale e o rio trazem 33 grandes contribuições para a experiência urbana, ampliando a possibilidade de permeabilidade entre os espaços construídos e gerando maior qualidade de habitação do espaço, visto que “reconhecer o rio como paisagem, portanto, é habitar o rio.” (COSTA, 2006a, p. 11). Costa (2006b, p. 154) ressalta que: “para manter estes ecossistemas para o futuro, estas estruturas ambientais da paisagem (as águas) devem estar visíveis no desenho e na nossa experiência cotidiana da cidade”. Nesse sentido, as interações potencializam-se à medida que os cursos d’água adquirem maior visibilidade e se tornam mais acessíveis. Com isso, as águas ampliam seu papel social e cultural, ganham uso coletivo e reforçam a relação de identidade da sociedade com o bem natural (COSTA, 2006b). A conectividade, que consiste nas conexões entre as águas e entre elas e os demais componentes urbanos em todas as escalas, também se apresenta como atributo físico importante, promovendo um movimento contínuo e interligado. Assim, a visibilidade, a conectividade e a acessibilidade ao longo do fundo de vale do Ribeirão Tatu irão contribuir para a construção da identidade do lugar, tornando-o mais legível e passível de apropriação em termos culturais e simbólicos (COSTA, 2006b) e ampliando as possibilidades de valorização e preservação ambiental. Quanto às áreas verdes, especialmente aquelas que envolvem os corpos d’água, como em fundos de vale, possuem grande relevância para o meio urbano e proporcionam melhorias na qualidade do espaço. Dos benefícios ambientais que promovem e que ocasionam uma melhor qualidade de vida, podem-se mencionar melhorias no microclima, na qualidade do ar, da água, do solo, da fauna e da flora, cujo efeito positivo depende da qualidade e quantidade dessas áreas, bem como de sua distribuição pelo tecido urbano (MAYMONE, 2009). A vegetação que acompanha os fundos de vale é de suma importância para manter o equilíbrio ecológico por estabilizar as margens dos cursos d’água, controlar o aporte de sedimentos e produtos químicos, filtrar e controlar a alteração de temperatura para o ecossistema aquático, evitar o assoreamento de microbacias hidrográficas, produzir alimento para espécies aquáticas, abastecimento de água potável, entre outros benefícios (COSTA; PROCAM, 2007). 34 A ausência ou descuido com esses espaços podem causar impactos danosos às cidades. Segundo Rueda (1999), os impactos causados pela ocupação urbana no ciclo da água são: aumento da velocidade da água, devido a impermeabilização de uma parte significativa da bacia e a canalização dos leitos dos rios; redução de áreas de infiltração; distorções no movimento por gravidade da água, expansão urbana de baixas densidades (grandes jardins, piscinas). Mas principalmente, no que concerne a sua importância para a viabilidade da ocupação humana, as APPs são responsáveis pela prevenção de enchentes e deslizamentos. (COSTA; PROCAM, 2007, p. 6). Conforme Tundisi (2003 apud FRIEDRICH, 2007), os impactos danosos que essas áreas sofrem são causados pelo aumento da densidade das construções, pela cobertura asfáltica e pelo aumento populacional. Segundo ele, a densidade das construções e a cobertura asfáltica provocam o aumento da área impermeabilizada, aumento do escoamento superficial direto, alteração no sistema de drenagem, aumento da velocidade de escoamento e alterações no clima urbano. Já a maior densidade populacional provoca o aumento do volume de águas residuais, a deterioração dos rios a jusante da área urbana, da água de escoamento pluvial e da qualidade da água, o aumento da demanda de água, redução da quantidade de água disponível, diminuição da recarga subterrânea e aumento das enchentes, dos picos das cheias na área urbana e dos problemas de controle da poluição e das enchentes. Ainda na visão do autor, as origens desses impactos sobre os recursos naturais ribeirinhos seriam: o sistema de esgoto, o sistema de drenagem pluvial, dependendo do tipo de solo, do tipo de pavimento, da área permeável e impermeável e da topografia, a disposição do lixo urbano e o índice de áreas verdes (FRIEDRICH, 2007). Citando Franco (2011 apud FRIEDRICH, 2007), ele pontua que, para conservar essas áreas de APPs e impedir esses impactos, há novas formas de se produzir o espaço urbano, como os Parques Fluviais, que são uma maneira alternativa de utilização do espaço de fundo de vale. A implantação desses parques incorpora: [...] princípios do planejamento ambiental ao campo da arquitetura e do planejamento urbano, pois inter-relacionam aspectos de drenagem, circulação, transporte, áreas verdes, gerenciamento de resíduos, esgotos, cidadania e educação ambiental, em busca da qualidade ambiental urbana e consequente qualidade de vida. (FRIEDRICH, 2007, p. 61). Uma vez que garantem a permeabilidade do solo nas margens desses corpos d’água, eles permitem a infiltração e vazão controladas das águas pluviais e são menos danosos ao ecossistema fluvial que a canalização por manter o curso d’água no estado mais próximo do natural e sem impermeabilização (FRIEDRICH, 2007). 35 Já como afirma Costa (2006a, p. 58): Sabe-se que os processos de desmatamento com a retirada de vegetação original, o reafeiçoamento topográfico para implantação de vias e edificações, a impermeabilização do solo e a implantação de obras de drenagem convencionais modificam hidrologicamente uma bacia hidrográfica aumentando a velocidade de escoamento das águas para seu curso principal, contribuindo para o agravamento das inundações e a poluição difusa das águas. Logo, a instituição de uma infraestrutura verde por meio de intervenções de baixo impacto e com a melhoria no manejo das águas urbanas poderia criar um desenho mais ecológico do tecido urbano, o que o tornaria, inclusive, mais eficiente, reforçando “o papel crucial dos espaços livres vegetados para uma maior sustentabilidade urbana.” (COSTA, 2006a, p. 59). Ela ainda complementa que esses espaços verdes urbanos poderiam exercer múltiplas funções que, para além dos objetivos tradicionais de lazer, melhora ambiental e estética, trariam melhorias microclimáticas e acomodação de usos relacionados à moradia, trabalho, educação, transporte e abastecimento. (COSTA, 2006a). Além do benefício ambiental que as áreas dos fundos de vale podem proporcionar às cidades, há o benefício social, visto que não é somente do verde que se trata, “mas do ambiente seguro e promotor da qualidade de vida de todos.” (SAKAI; FROTA, 2014, p. 4). Autores como Mello (2008, p. 42) consideram, tais quais Holanda (2007), que essas áreas são importantes para promover a urbanidade, entendida como “aquilo que qualifica a vida urbana no sentido de interação entre os cidadãos no espaço coletivo da promoção do encontro e do convívio social” e, no que diz respeito ao tema em tela, “da interação harmônica entre as pessoas e o corpo d’água” (MELLO, 2008, p. 42). Seu entendimento do que seja urbanidade é semelhante ao conceito de espaço urbano, apresentado anteriormente, ao apontar a relevância da interação entre as pessoas, promovendo o que foi chamado de encontro com o outro. Essa compreensão confirma a importância dos espaços naturais como espaços públicos de convívio, encontro e lazer, tão necessários à vida urbana quanto a função ecológica. Segundo Silva (2007), sua função como espaço público é essencial ao bem- estar da população por melhorar a qualidade de vida com elementos paisagísticos e por promover recreação e preservação ambiental, afirmando que as áreas verdes “agem simultaneamente sobre o lado físico e mental do homem, absorvendo ruídos, 36 atenuando o calor do sol, melhorando a qualidade do ar, contribuindo para a formação e o aprimoramento do olhar estético, etc.” (SILVA, 2007, p. 1). De outra forma, a proximidade a esses espaços e sua ligação com os sentidos (poder vê-los, ouvi-los e tocá-los) podem levar a uma redução significativa, tanto física como psicológica, de níveis de estresse. Esses indicadores apontam como “ambientes aquáticos podem oferecer implicações políticas importantes em termos da melhor forma de melhorar a saúde da população e seu bem-estar” (WHITE et al., 2010, p. 491), algo que se liga às novas formas ecológicas de uso dos espaços públicos apontadas por Brandão (2011). Várias características da paisagem ribeira são apreciadas pela maioria das pessoas. Como afirmam os autores, a água em movimento, determinados sons e cheiros, e pequenos animais que vivem às margens dos rios, trazem o prazer de se estar próximo à natureza. Deste modo, os rios e toda a paisagem que os envolve podem contribuir para o bem-estar da população nos seus espaços livres urbanos. (COSTA, 2006a, p. 98). Scalise (2002) também aponta benefícios, como a diversificação da paisagem construída, o embelezamento da cidade e o relaxamento que o contato com elementos naturais propicia para as pessoas. De acordo com esses autores, as paisagens aquáticas são espaços que conservam os princípios ambientais, ao mesmo tempo que oferecem lazer e atividades esportivas aos frequentadores; desenvolvem ações de educação ambiental, pesquisa científica e conservação de ambientes naturais; oferecem culto às tradições da região, por meio da criação de parques e bosques temáticos, valorizando a cultura e homenageando as etnias que ajudaram a formar a cidade; e possibilitam a estruturação de atrativos turísticos (VAN KAICK; HARDT; OBA, 2006). De um lado, cursos d’água ecologicamente saudáveis ou restaurados com oportunidades de acesso público podem contribuir para uma experiência esteticamente agradável. De outro lado, cursos d’água não monitorados ou pobremente gerenciados no meio urbano podem ser locais com risco de inundação, infestação de insetos, poluição e/ou despejo de resíduos. (HAEFFNER et al., 2017, p. 137, tradução livre)3. Outro ponto de grande importância das paisagens ribeirinhas é a formação e morfologia das paisagens urbanas, tornando os corpos d’água pontos de legibilidade das cidades, linhas de atração e organização espacial (COSTA; MONTEIRO, 2002). 3 Original: “On the one hand, ecologically healthy or restored waterways with public access opportunities can contribute to an aesthetically pleasing experience. On the other hand, unmonitored or poorly managed urban waterways can be sites of flooding risk, insect pests, pollution and/or waste disposal.” (HAEFFNER; SMITH; BUCHERT; RISLEY, 2017, p. 137). 37 Essa legibilidade, junto com as funções naturais e humanas que possuem, transforma os fundos de vale em áreas simbólicas para a cidade e de grande força para a paisagem. A principal questão legada por Jackson4 é a da potência estruturante dos caminhos para a paisagem. O caminho é um elemento que serve para organizar o território, dando-lhe uma medida e uma orientação, isto é, um sentido. (BESSE, 2014, p. 184). A relação dos corpos d’água com o meio urbano data do princípio fundamental das cidades e sua criação (COY, 2014). Porém, a sociedade brasileira sempre teve uma relação altamente conflituosa com eles, reiterando que a “inserção dos elementos naturais não pressupõe a integração entre cidade e meio ambiente.” (MARCONDES, 1999, p. 23). Segundo Macedo (2012), um dos maiores fatores de negação desse espaço no tecido urbano é a permissão velada do despejo de dejetos domésticos e industriais, provocada pela ausência de políticas e investimentos públicos na criação de redes de coleta e tratamento, situação que, ainda hoje, é muito comum em diversas cidades brasileiras. Além da questão do despejo de dejetos, muitas soluções de atuação sobre os fundos de vale degradaram não só o próprio local, como o resto da cidade, causando inúmeros problemas urbanos. Uma das soluções adotadas pelo poder público para lidar com os cursos d’água, especialmente durante a segunda metade do século XX, foi a canalização e recobrimento total dos córregos e rios urbanos para que fosse possível viabilizar a construção de eixos viários (MACEDO, 2012). Segundo Costa (2006a), o binômio saneamento/vias públicas tornou-se uma prática comum nas administrações municipais e a conjugação da canalização dos rios e criação de vias marginais visava resolver vários problemas simultaneamente. Essa maneira de agir, ainda que trouxesse algumas melhorias discutíveis quanto ao saneamento, à habitação e ao tráfego, causou vários problemas, até hoje recorrentes, como as enchentes e inundações, devido à supressão das várzeas dos rios e à impermeabilização de suas áreas verdes. A impermeabilização do solo é também uma prática comum adotada por citadinos em seus espaços privados. Os lotes costumam ser completamente utilizados e impermeabilizados para melhor aproveitamento construtivo (SOUZA; MACEDO, 4 Refere-se ao Jackson (1984). 38 2014), deixando permeáveis somente os percentuais obrigatórios pelos códigos de obra existentes, isso quando o projeto é regularizado. Mesmo o poder público age de forma a impermeabilizar o espaço público, principalmente quando se trata do sistema viário. Já nos espaços públicos, é notória a primazia do sistema viário sobre os demais espaços livres urbanos. O alargamento das vias em detrimento do estreitamento das calçadas, a ocupação de praças e parques por bases e alças de viadutos, a pavimentação e total impermeabilização do solo, e a lógica de se ocupar os fundos de vale com a implantação de sistema viário, foram práticas correntes da urbanização Modernista. (SOUZA; MACEDO, 2014, p. 7). Os autores consideram que a apropriação que se fazia do espaço seguia uma visão utilitarista dos recursos pré-existentes na paisagem, causando danos ao meio ambiente e à qualidade de vida apenas para privilegiar o desenvolvimento econômico (SOUZA; MACEDO, 2014). Além disso, como se pode observar por ambas as formas de produção do espaço urbano, a canalização/recobrimento dos cursos d’água e a impermeabilização do solo causam diversos impactos negativos no próprio meio urbano, sendo as enchentes o principal deles. A questão é que, por não reconhecer as funções, importância e comportamento dos corpos d’água, acaba-se por “transformar o fenômeno natural de inundação das várzeas em um problema social” (TUCCI; GENZ, 1995 apud FRIEDRICH, 2007, p. 69). Para Costa (2006a, p. 116), essa forma de se produzir o espaço público e as áreas verdes negligenciava as questões paisagísticas intrínsecas ao espaço ribeirinho, como o valor natural, social e cultural existente, causando uma “fragmentação semântica dos espaços que percorrem sua paisagem pela cidade” que os impediu de realizar todo seu potencial de provocar a interação entre a natureza e as pessoas. “O esgoto sujou os rios, a energia retificou e mudou seu curso, a necessidade de saneamento levou à sua canalização, e o automóvel ao seu desaparecimento.” (CORRÊA; ALVIN, 1999, p. 109). Outra forma de produção urbana que degrada os fundos de vale é sua ocupação desenfreada, seja por populações carentes, que são compelidas a esses locais (MARICATO, 1996 apud IKUTA, 2003), ou por empreendedores, que usam o argumento de não haver mais vegetação e não ser mais um ambiente natural para invalidar a legislação (COSTA; PROCAM, 2007). Marcondes (1999) aponta os motivos que levam à segregação dos fundos de vale, além de se tornarem um local de encontro de populações marginalizadas pela 39 sociedade. Os processos sociais resultantes apontam para o processo de dualização urbana, em que os fenômenos brutais de exclusão social e de marginalização têm reflexos diretos nos padrões de ocupação do solo e da apropriação dos recursos ambientais, questões que interferem diretamente nas áreas de mananciais. (MARCONDES, 1999, p. 36-37). As APPs são, muitas vezes, encaradas como limitações ao desenvolvimento urbano, enquanto o Código Florestal e as Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente-CONAMA são tidos como obstáculos pelo mercado imobiliário, visão muito equivocada, segundo Costa e Procam (2007), uma vez que as áreas verdes urbanas, das quais as APPs fazem parte, constituem-se áreas permeáveis que conferem diversos atributos positivos ao espaço urbano. Contraditoriamente, a garantia de preservação das APPs e, por consequência, de seus mananciais é a única forma de viabilizar a expansão urbana, visto que a provisão de abastecimento de água está entre os principais fatores responsáveis pela fixação do homem ao espaço geográfico. O atual debate, que procura uma forma de produção do espaço menos prejudicial ao meio ambiente, segundo Souza e Macedo (2014), volta-se para instrumentos cada vez mais rígidos quanto ao uso dessas áreas, exatamente para tentar reverter os impactos que a urbanização causou nos ecossistemas hídricos. As novas pautas, levantadas por eventos como a Agenda 21 e Rio Mais 5, pontuam que a sustentabilidade não se trata apenas dos fatores ambientais e ecológicos, mas de interligá-los às questões humanas, levando em consideração os fatores sociais, econômicos, espaciais e culturais. Entretanto, o planejamento dos espaços livres é bastante incipiente em todo o país, algo que afeta os fundos de vale e os corpos d’água nele presentes. O desafio que o planejamento enfrenta é a situação urbana consolidada, que é de difícil alteração, e os quadros socioambientais complexos. Na maioria das grandes cidades brasileiras, as ações sobre espaços ambientalmente relevantes são pontuais, implantadas em áreas remanescentes da urbanização e, geralmente, subordinadas a uma visão conservacionista do meio ambiente urbano, que prevê a mínima intervenção do homem sobre essas áreas, criando um conjunto homogêneo de espaços livres – uma replicação de bosques, reservas ecológicas, parques naturais ou lineares e outras áreas densamente vegetadas – que nem sempre são adequados para responder nem às demandas sociais por espaços livres públicos, nem aos aspectos ecológicos em uma escala mais abrangente. (SOUZA; MACEDO, 2014, p. 8). 40 Indo ao encontro dessa ideia, é apontado por Costa (2006a, p. 147) que, no que se refere à inserção das águas em meio urbano, “destaca-se com frequência a ausência de políticas públicas que promovam sua valorização, o que contribui para configurá-las como os recursos mais intensivamente utilizados e mais frequentemente agredidos em todo o mundo”. Nos últimos anos, porém, começou-se a pensar em novas formas de produzir o espaço, buscando soluções mais ecológicas e com a intenção de integrar as APPs ao tecido urbano. Uma dessas formas é o Parque Fluvial, como já mencionado, que adapta as APPs às funções, não só ecológicas, mas também de lazer, cuidado com o corpo, saúde, esporte e sociais, entre outras. Como toda aglomeração urbana está de alguma forma associada a uma rede hidrográfica, verifica-se que de norte a sul do país, a preservação das matas ciliares tem sido adotada como parâmetro para a ocupação territorial nos planos diretores municipais, [...] a figura do parque linear se consolida como medida de tratamento das orlas fluviais urbanas, tornando as APPs a referência de muitas das ações paisagísticas mais relevantes da atualidade. (SOUZA; MACEDO, 2014, p. 3). Macedo (2012) aponta que os parques passam a ser introduzidos na agenda de investimentos públicos de forma abundante, porque além de atenderem a uma demanda real, acabam por se constituir em espaços de grande visibilidade pública que proporcionam um bom retorno político a seus idealizadores. Outro ponto a ser lembrado é a valorização imobiliária que a intervenção em fundos de vale promove, pois o processo de reurbanização dessas áreas atrai investimentos privados para áreas adjacentes, tornando-as mais nobres do que eram anteriormente (MARTINELLI, 1994). Ambos os fatores apresentados acima possibilitam uma visão crítica quanto à execução desses espaços, levando à desconfiança perante os projetos atuais no sentido de se consideram, de fato, as funções ecológicas, sociais, de lazer, entre outras. Não obstante a necessidade de se analisar criticamente os interesses de valorização econômica ou ganho político, presentes nos projetos desses parques, deve-se admitir que, contraditoriamente, essas intervenções também promovem um sentimento de pertencimento por parte da população, provocando um desejo de proteger aquele espaço, assim favorecendo a integração das APPS à cidade (SAKAI; FROTA, 2014). Para além dos ganhos políticos, é importante também considerar a atuação do Estado, que é fundamental para elaborar projetos, planejar, atuar e gerir os espaços 41 de APP onde se encontram os corpos d’água. Suas ações, quando não são pautadas em privilegiar grupos exclusivos, possibilitam a melhoria na qualidade ambiental da cidade para todos, promovendo, com isso, qualidade de vida a todos os citadinos. Mesmo assim, em conjunto com o Estado, deve haver a participação da sociedade civil na tomada de decisões e na escolha das tecnologias usadas para tornar o espaço mais sustentável, bem como através de atividade de educação ambiental (SAKAI; FROTA, 2014). Segundo Ikuta (2003, p. 74-75), a melhor forma de se atuar sobre essas áreas, especialmente buscando a preservação ambiental, é por meio da “valorização e ampliação dos canais de participação popular nos processos de tomada de decisão e de socialização dos direitos, deveres e instrumentos existentes referentes à questão ambiental” e de “um processo educativo contínuo orientado para a reflexão das condições de vida atual e para a construção de novos valores”. Em contrapartida, um dos maiores problemas ligados à valorização dos fundos de vale é a tendência de “gentrificação” causada pelos novos projetos de revitalização nas margens de rio, algo que só amplia a segregação socioespacial (COY, 2014). É possível que, à proporção que o espaço se torne mais cheio de amenidades, pode ter mais associação com valor. A desigualdade especial encontrada no estudo pode estar plantando as sementes de um futuro verde – ou azul – gentrificação, se as cidades conseguirem criar acessos públicos atrativos aos espaços com água, à medida que as populações mudam devido a transações do mercado imobiliário. Se os preços aumentarem próximos a amenidades urbanas, podemos esperar um deslocamento daqueles que estão atualmente vivendo perto de espaços de água. (HAEFFNER; SMITH; BUCHERT; RISLEY, 2017, p. 144, tradução livre)5. 1.4 A LEGISLAÇÃO E OS FUNDOS DE VALE A importância de se analisar a legislação pertinente aos fundos de vale provém das questões sociais, econômicas, culturais, ambientais e políticas associadas à paisagem. Tomando a paisagem como uma expressão das relações humanas no espaço, sabemos que a legislação que atua sobre ela é, então, aquela que traduz a manifestação da cultura coletiva sobre o território Dessa forma, no que se refere à legislação brasileira, as primeiras menções às 5 Original: “It is possible that as space becomes more crowded amenities might have stronger associations with value. The spatial inequality found in this study could be planting the seeds of future green − or blue − gentrification if cities succeed in creating desirable public access to waterways as populations shift due to real estate market transactions.