UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO - UNESP INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM ARTES THIAGO CAMACHO TEIXEIRA A Arte da Performance como proposta pedagógica de comunicação e expressão no Ensino Fundamental II e Médio SÃO PAULO 2016 THIAGO CAMACHO TEIXEIRA A Arte da Performance como proposta pedagógica de comunicação e expressão no Ensino Fundamental II e Médio Monografia apresentada para aprovação no Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação em Licenciatura em Arte – Teatro, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Orientação: Dra. Theda Cabrera Goncalves Pereira SÃO PAULO 2016 THIAGO CAMACHO TEIXEIRA A ARTE DA PERFORMANCE COMO PROPOSTA PEDAGÓGICA DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO NO ENSINO FUNDAMENTAL II E MÉDIO Dissertação Aprovada como requisito para obtenção de diploma de Licenciado no curso da graduação em Arte-Teatro do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP pela seguinte banca examinadora: Professora Doutora Theda Cabrera Gonçalves Pereira – UNESP Orientadora Professora Mestre Denise Pereira Rachel - UNESP Instituto de Artes da UNESP – Aprovação em 22 de Novembro de 2016 TEIXEIRA, Thiago Camacho. A Arte da Performance como proposta pedagógica de comunicação e expressão no Ensino Fundamental II e Médio. Monografia- Licenciatura em Arte- Teatro. Universidade Estadual Paulista- Instituto de Artes. São Paulo: 2016. RESUMO Esta pesquisa pretende trazer alguns apontamentos metodológicos e pedagógicos sobre o trabalho conjunto e de criação com estudantes de Ensino Fundamental II e Médio do ensino básico público, no interior da escola, a partir de uma modalidade específica da linguagem: a performance arte. A partir do processo de estágio supervisionado do pesquisador, seja como observador e seja como propositor de atividades de arte-educação, buscou-se envolver toda a comunidade escolar e local, chamando atenção para os recursos expressivos, de construção e apropriação do conhecimento desta linguagem artística. A metodologia utilizada foi o diálogo entre a leitura e estudo bibliográfico acerca da performance-arte e experimentos praticados realizados junto aos estudantes de Ensino Fundamental e Médio da Escola Estadual Professor Renato Braga, zona sul de São Paulo, em 2016 e em anos anteriores. Contemplou também a discussão sobre performance e transgressão transversalmente, relacionando as experiências do pesquisador enquanto artista-performer e leituras que o inspiram. Como conclusão, afirma-se que o ato de Performar no contexto desta investigação significou todo modo de interagir subvertendo sistemas, com sentidos diversos da transgressão, um modus operandi educativo e uma alternativa pedagógica que gera a experiência no processo de ensino-aprendizagem nas abordagens sociais, poéticas, culturais e políticas dos espaços escolares frente à possibilidade da comunicação. Palavras-chave: arte educação, Performance arte, escola pública, criação coletiva transgressão. ABSTRACT This research aims to bring some methodological and pedagogical notes on the set and creative work with students from elevem to eighteen age, within the public school, from a specific type of language: performance art. From the stage of process supervised, the researcher, either as an observer or as proposer of art and education activities, searched to involve the whole school and local community, drawing attention to the expressive resources, construction and appropriation of knowledge of this language artistic. The methodology used was the dialogue between reading and bibliographic study of the performance art and practical experiments with students of the State School Renato Braga, in São Paulo, 2016 and in previous years. Also included the discussion of performance and transgression, relating the experiences of the researcher as an artist- performer and readings that inspire him. In conclusion, it is stated that the act of perform in the context of this investigation meant every way of subverting interacting systems with diferente meanings of transgression, an educational modus operandi and an educational alternative that generates the experience in the teaching-learning process in social approaches: poetic, cultural and political school spaces facing the possibility of communication. Key-words: Art-education, Performance art, Public school, Collective creation, Transgression. AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu companheiro Matheus Fernando Felix e aos meus pais Silvana da Costa Camacho Teixeira e José Augusto Teixeira por todo suporte sem o qual esta pesquisa e os meus estudos não existiriam. Agradeço a Professora Theda Cabrera por sua competente e sempre solícita orientação, e mais que isso, por ser uma parceira, - co-autora – com quem pretendo continuar a trabalhar sempre que possível neste e em outros temas. Agradeço a minha irmã Cláudia Camacho Teixeira por vários subsídios e recursos durante o trabalho. Agradeço a minha tia Luciana da Costa Camacho Cardoso por todo apoio. Agradeço a professora Karin Paula Eikmeier pelo suporte dado em muitas das investigações práticas. Agradeço aos estudantes, professores, seguidores e demais participantes da página A Escola Pública é Nossa e do projeto, que a eles chegaram, permaneceram, e estabeleceram, a partir de então, o apreço à tolerância e ao pluralismo de concepções e ideias. São inúmeras as formas de conceber o mundo, de questionar a vida, e quem acompanha as atividades, segue e se insere em seu cotidiano expressivo, artístico e por vezes político, traz também consigo sua atmosfera democrática (suas opiniões concordantes ou divergentes acerca dos discursos e da qualidade da estética), a luta pelas liberdades individuais e coletivas (ainda que se mostrem conflitantes), seu espírito cidadão e seu respeito a diversidade. E ao engrossar a atividade acadêmica ligada a esse compartilhamento (nas dissertações dentro da arte-educação, projeto do mestrado, e da docência atrelada às linguagens e códigos) eu quero deixar meu obrigado a todos que ajudam a construir estes - e outros - espaços virtuais de partilha e da comunicação, que também se vinculam ao universo da educação - da formação e do desenvolvimento - dentro dos quais podemos divulgar arte e pensamento. Vida, expressão subjetiva, registros das mesmas e numa mistura dos três, a performance-arte. DEDICATÓRIA Ao meu companheiro Matheus Fernando Felix, aos meus pais Silvana da Costa Camacho Teixeira e José Augusto Teixeira e aos meus avós Neusa Maria da Costa Camacho e Aldônio Ferraz Fernandes Camacho. SUMÁRIO Introdução p.11 1. Metodologias de Criação ................................................................................. p.15 1.a- A criação coletiva como metodologia de pesquisa........................................ p.15 1.b- A escolha da metodologia e sua especificidade ............................................ p.19 2. Performance-arte como linguagem .............................................................. p.23 2.a- A ação expressiva e o ato de performar.......................................................... p.23 2.b- Dramaturgia e performance na contemporaneidade....................................... P. 27 2.c- Tendências dramatúrgicas e programas da Performance............................... p.27 3. A Arte da performance na escola: Algumas experiências .......................... p.31 3.a- A Performance e a criação coletiva em ações pedagógicas........................... p.31 3.b-Investigações da performance como recurso da comunicação e da .............. p.37 4. A Arte da performance e a Transgressão........................................................ p.49 4.a- Conceitos da transgressão............................................................................. p.49 4.b– Outros sentidos para a transgressão.............................................................. p.49 5. Polifonia das experiências de transgredir................................................... p.53 5.a- Experiência sensorial do barulho como estímulo da expressão..................... p.53 5.b- Expressões performativas a partir de desenhos e corpos instalados p.58 5.c- Expressão a partir da alteração da autoimagem como processo performativo p.72 5. d- Expressão a partir da conexão de corpos: Uma liga afetiva.......................... p.75 5. e- Experiência e Expressão a partir do professor-performer............................. P.76 6. Participação das comunidades escolar e local............................................... P.83 7. Conclusão.......................................................................................................... P.87 8. Referências Bibliográficas............................................................................... P.91 11 Introdução A presente investigação, orientada pela professora doutora Theda Cabrera Gonçalves Pereira, no Instituto de Artes da Unesp, desenvolveu-se no ano de 2016 com estudantes do ensino público básico regular de Fundamental II e Médio na cidade de São Paulo, na Escola Estadual Professor Renato Braga, com experiência em cada turma destes ciclos. Embora as atividades possam funcionar como experiência para estas faixas etárias e para outras, como para adultos e idosos, aqui nos restringiremos às séries especificadas. Também houve diálogo com estudantes, professores, comunidades e famílias de escolas parceiras consideradas pertencentes às periferias de alta periculosidade frente aos índices da segurança pública de São Paulo: Jardim São Luiz, Jardim Casablanca e Parque Santo Antônio, bairros onde há recordes nas taxas de homicídio, por exemplo. As escolas são a EMEF Airton Arantes Ribeiro, a Escola Estadual Reverendo Jacques Orlando Caminha D’Avilla e a Escola Estadual Professor Luiz Gonzaga Pinto e Silva. Estas parcerias se deram entre estudantes, professores, funcionários, comunidade e mais amplamente com inserção da sociedade, e por meio de convites a eventos, rodas de conversa, oficinas de performance que ocorreram em saraus e apresentações abertas para a comunidade, como reuniões de pais e mestres, trocas de experiências e análises das práticas dispostas e diálogos através de mídias sociais, onde registros de ações são frequentemente publicados e armazenados. A escolha desta escola se deu a partir primeiro da minha efetivação como docente concursado e responsável, como me sentia, por aquele universo formativo a respaldar e devolver a cultura e o aprendizado refletidos e desenvolvidos que nos foram confiados como agentes da educação e em segundo do meu convívio com seus membros integrantes: corpo de professores, estudantes, comunidade, funcionários, e eu, todos interessados em corroborar com o trabalho em torno da apropriação do conhecimento, em uma perspectiva que entendia a mediação de espectro mútuo para essa apropriação, e que no entendimento nosso e dos autores referenciais desta pesquisa deveria ser conjunto. A pesquisa colocou o pesquisador e os estudantes na posição de sujeitos de um processo de construção coletiva de algumas experiências práticas de comunicação e expressão, a partir de reflexões e observações acerca da arte da performance como linguagem. Também foi e é de interesse a busca de metodologias e fundamentações pedagógicas plurais e experimentais da arte-educação, considerando as vontades e potencialidades expressivas destes estudantes de Ensino Fundamental II e Médio. Dessa forma, optei por ampliar o repertório de referências interativas e decidi não utilizar tão somente as bases teóricas, por exemplo, do Teatro pós-dramático, ou do teatro performativo, indicadas para o processo de performance como presentificação, e adentrei na construção de pontes dialógicas a partir da bibliografia, entre teatro e performance e as metodologias específicas que estão acopladas a cada uma dessas instâncias, em troca constante entre conceitos de áreas distintas e as vezes opostas tais como: performance e dramaturgia, presentificação e representação, e texto e cena. A diversidade e a proposição de colocar campos específicos e diferentes como formas interseccionais e de potencial diálogo aumenta as chances de construir nas relações e na apropriação do conhecimento, uma amplitude mais rica e variada de práticas, conversas e de reflexões. Decidi então a partir destes propósitos utilizar metodologias históricas como processos para teatro no Brasil como formas de produção da arte da performance tais como a Criação Coletiva em relação ao Processo Colaborativo, sob a égide de agrupar conceitos outrora não relacionais. Isto foi importante porque percebi como pesquisador que, nas escolas públicas da periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo, os estudantes apresentam problemas de aprendizagem, de socialização e interação, problemas de ordem social e um natural senso comum na percepção e sensibilidade em torno das artes. Também porque suas dificuldades aumentam quando querem comunicar seus problemas, expectativas; bem como quando querem expressar suas dúvidas, necessidades; quando querem resolver problemas por meio da comunicação. O projeto pretendeu, então, oferecer apoio a estes alunos, permitindo que descubram meios de expressão, interatividade no trabalho, na relação de ensino-aprendizagem, com a construção autônoma e mediada de seu próprio saber e também pode fornecer instrumentos a fim de que comuniquem de diferentes formas suas demandas sociais e culturais. Ao longo do relato torno claro o meu interesse pelo setor público e pela marca da vulnerabilidade social do mesmo e da região escolhida para o intento, e trago a tona que minha proposta é justamente alternativa e experimental porque busca fornecer uma opção de expressar e comunicar a fim de ampliar o arcabouço da linguagem dos estudantes que inseridos neste meio, apresentam problemas de interação e de emissão do que sentem e pensam. 13 Há orientações em arte educação que enfatizam o cuidado que se deve ter ao utilizarmos a arte apenas como ferramenta para conseguir algo sem que se conheça a priori a própria manifestação artística como sistema. Questionarei estes direcionamentos no sentido de explicitar a compreensão de que a arte não é apenas instrumento a partir de referências, e de tratar a arte não só como dimensão do sensível, ou como ferramenta de comunicação, mas incluir a sua dimensão racional, do saber, como campo de conhecimento próprio, de possibilidades diversas, que ela não serve apenas a matizar os efeitos e excessos técnicos e científicos do currículo escolar, porém ressalto e devolvo reflexões e perguntas a fim de contestar se se pode excluir a arte quando ela aparece apenas em sua faceta de ferramenta de linguagem para a comunicação. Se ela serve para tanto, negar este aspecto de sua dimensão seria como dizer: cuidado para não utilizar a língua portuguesa para a comunicação, sem antes conhecer sua própria estrutura e gramática, isto é, o seu próprio sistema. Esse reforço unilateral da gramática das artes, o sistema artístico como linguagem, engavetando conceitos, a meu ver deve se expandir para a pluralidade de concepções e da ideia de arte não auto reducionista em sua existência, admitindo portanto funcionalidades quando for o caso, já que a arte não obedece tão somente a sua gramática, ela a transcende e atravessa, e pode comunicar antes que se tenha qualquer consciência sobre qual sistema se esteja usando, bem como uma criança que diz pela primeira vez “mamãe” sem saber que está utilizando a língua portuguesa. Claro que iremos entrever aqui a importância de se conhecer a manifestação artística em si para as buscas de seu domínio até mesmo técnico quando houver, sempre relembrando a recusa que já coloco a excluir seu uso como ferramenta de comunicação. No decorrer da pesquisa e do processo educativo, tendo por base discursos e narrativas comuns do grupo, também se pretendeu a prática da intervenção no espaço, como atividade simbólica, de ocupação e de expressão, permitindo aos sujeitos interventivos ampliarem suas capacidades de representar, presentificar e de transmitir ideias, de dialogar com a comunidade escolar e local, de avaliar percursos formativos nesta modalidade da linguagem frente às outras disciplinas e aos seus próprios processos de aprender, e de pensarem como suas realidades e contexto sociocultural corroboram na formulação dos discursos dispostos nessas situações comunicativas e dialógicas. As práticas executadas levam, como mencionado, em consideração as metodologias da criação coletiva e do processo colaborativo como meios de investigação histórica, da experiência, e de estudos acerca dos sentidos das ações produzidas pelo grupo, pelos indivíduos em diálogo e as suas peculiaridades e necessidades consideradas, a partir de pontos de vista diversos acerca das percepções e construções plurais da comunicação e da expressão, ao identificarmos novas formas do conhecer por meio da arte. Por meio dessas metodologias e de reflexões sobre as suas distinções, criamos em conjunto um circuito de performances e oficinas performativas a partir de discursos dos próprios estudantes articulados com opiniões de suas famílias e da comunidade local durante este ano, 2016. Cada ação foi nomeada e executada em diversos momentos: nos espaços escolares nos intervalos para o lanche, durante o período de aulas com subsídio da professora de artes Karin Paula Eikmeiere do diretor Ney Alves dos Santos, algumas experiências também foram feitas pelos estudantes no caminho para casa e junto aos seus parentes. Também criamos espaços de divulgação virtual de conteúdos e formas produzidas, bem como de reflexões a partir dos mesmos. Planejamos em seguida apresentações no Instituto de Artes da Unesp e na reunião de pais e mestres, que foram executadas em 22 de novembro de 2016. A pesquisa está então dividida em dois momentos: as experiências de 2016 e uma mistura de reflexões e descrições de outras que foram feitas e vivenciadas anteriormente, em outros anos, na mesma escola durante minha trajetória como docente e em pareceria com as mesmas escolas citadas nos modelos e das formas especificadas, além de contar um breve histórico da minha experiência, relação e trabalho com a arte da performance. E se divide também na tentativa de conceituar os sentidos da transgressão como componente constitutivo desta arte, em uma discussão acerca do que é transgredir. Este trabalho é experimental e pretende, portanto, apontar experimentos de pedagogia em performance para promover interação, comunicação e expressão nas modalidades de ensino referidas. Teremos por princípio acadêmico então assumir o caráter de experiência como relato aberto, proponente e disposto às trocas dialógicas de quem pensa a arte-educação para o sistema público. 15 1. Metodologias de Criação 1.a- A criação coletiva como metodologia de pesquisa Optei por ampliar o repertório de referências interativas e decidi não utilizar tão somente as bases teóricas, por exemplo, do Teatro pós-dramático, ou do teatro performativo, indicadas para o processo de performance como presentificação, e adentrei na construção de pontes dialógicas a partir da bibliografia, entre teatro e performance e as metodologias específicas que estão acopladas a cada uma dessas instâncias, em troca constante entre conceitos de áreas distintas e as vezes opostas tais como: performance e dramaturgia, presentificação e representação, e texto e cena. A diversidade e a proposição de colocar campos específicos e diferentes como formas interseccionais e de potencial diálogo aumenta as chances de construir nas relações e na apropriação do conhecimento, uma amplitude mais rica e variada de práticas, conversas e de reflexões. É importante ressaltar também a partir destas escolhas frente aos objetivos da linguagem que há orientações em arte educação que enfatizam o cuidado que se deve ter ao utilizarmos a arte apenas como ferramenta para conseguir algo sem que se conheça a priori a própria manifestação artística como sistema. Questionarei estes direcionamentos no sentido de explicitar a compreensão de que a arte não é apenas instrumento a partir de referências, e de tratar a arte não só como dimensão do sensível, ou como ferramenta de comunicação, mas incluir a sua dimensão racional, do saber, como campo de conhecimento próprio, de possibilidades diversas, que ela não serve apenas a matizar os efeitos e excessos técnicos e científicos do currículo escolar, porém ressalto e devolvo reflexões e perguntas a fim de contestar se se pode excluir a arte quando ela aparece apenas em sua faceta de ferramenta de linguagem para a comunicação. Se ela serve para tanto, negar este aspecto de sua dimensão seria como dizer: cuidado para não utilizar a língua portuguesa para a comunicação, sem antes conhecer sua própria estrutura e gramática, isto é, o seu próprio sistema. Esse reforço unilateral da gramática das artes, o sistema artístico como linguagem, engavetando conceitos, a meu ver deve se expandir para a pluralidade de concepções e da ideia de arte não auto reducionista em sua existência, admitindo portanto funcionalidades quando for o caso, já que a arte não obedece tão somente a sua gramática, ela a transcende e atravessa, e pode comunicar antes que se tenha qualquer consciência sobre qual sistema se esteja usando, bem como uma criança que diz pela primeira vez “mamãe” sem saber que está utilizando a língua portuguesa. Claro que iremos entrever aqui a importância de se conhecer a manifestação artística em si para as buscas de seu domínio até mesmo técnico quando houver, sempre relembrando a recusa que já coloco a excluir seu uso como ferramenta de comunicação. No que tange ao ensino-aprendizagem dos estudantes, a arte da performance como linguagem dentro da escola de educação pública e básica, pode ser uma forma de expressão e de criatividade que se atrela ao discurso compartilhado. Para que se realize como um modo de produção da comunicação, interessa-nos que ela esteja sob a égide da criação coletiva, para atingir um fim específico: promover uma alternativa de comunicar, frente às múltiplas dificuldades escolares pelas quais passam os estudantes, de modo a envolver as minúcias que surgem das relações entre professores, estudantes, funcionários, família e a comunidade local e escolar. Neste intento, é importante situar o processo de pesquisa e de criação no espaço comum dos discursos: o do pluralismo de concepções e ideias, o da cidadania escolar e comunitária e o da democracia social, cultural e política. Dessa forma, neste texto sobre uma experiência no campo da arte-educação, constrói-se um complexo de narrativas particulares que encontram um meio dialógico e interativo para explicitar formas comunicativas e as demandas e insurgências estudantis decorrentes. Nesta perspectiva, vamos resgatar o conceito de teatro de grupo dos anos 1970 como referência (Fernandes, 2000), diferenciar o método da criação coletiva, que foi utilizado por alguns desses grupos, do processo colaborativo que tem sua pesquisa incrementada a partir dos anos 1990 (Pereira, 2011). Farei esse comparativo somente entre os conceitos e como os entendo para que fique claro porque ao analisar o teatro de grupo opto pelo conceito da criação coletiva como metodologia deste presente ensejo de pesquisa em performance. A criação coletiva como método nos anos 1970 era um processo dentro do qual se exprimia o desejo da polifonia como resistência à ditadura militar brasileira dentro dos grupos de teatro, isto é, havia a preocupação contra a censura e a coerção da liberdade de expressão que culminavam nessa prática e a partir dela a conceituação que se fazia posteriormente: todos os integrantes do grupo exerciam todas as funções isentos de uma estrutura hierárquica de funcionamento, e todas as suas vozes eram impressas na tessitura da montagem, fundamentalmente sobre a criação da dramaturgia, construída de forma plural. Não havia especificidades das funções e cada integrante transitava por elas, podendo apenas um deles exercer e criar como ator, diretor, cenógrafo, figurinista e etc. A 17 figura do diretor ou do encenador não era mais importante que as demais na construção da dramaturgia e do espetáculo. O processo colaborativo de criação se diferencia da criação coletiva porque nele existe a composição e o agrupamento das especificidades das funções, isto é, existem posições demarcadas. Cada integrante do grupo deverá desempenhar um papel segundo a sua especialidade, ainda que a hierarquia continue ausente e a ordem de importância dos comandos continue espalhada entre todos. Novamente a figura do diretor não é mais importante que a dos outros integrantes que exercem outras funções, porém esta mesma figura e a suas atribuições, como as outras, estão definidas e delimitadas a priori. Reconhecemos prerrogativas em comum entre criação coletiva e processo colaborativo, justamente pela simetria dos dois métodos criativos em alguns aspectos, do ponto de vista prático e histórico. Mas interessa-nos falar um pouco mais sobre a diferença entre eles, especialmente sobre a horizontalidade da criação, justamente o aspecto que configura os processos como isentos da hierarquia de profissões e dos comandos internos superiores das especialidades mais tradicionais e mais marcadamente incisivas. Neste aspecto, pode-se entender que a criação coletiva, como a instauração de um espaço compartilhado de ideias, não é apenas uma troca entre especialistas definidos, como acontece com o histórico de grupos como Galpão e o Teatro da Vertigem. Criação coletiva aqui se consubstancia no espaço e no tempo da cena contemporânea por ser uma ruptura na função da direção, da dramaturgia e da encenação, já que todos podem dirigir, e já que todos criam o texto por meio da prática e da tessitura de vozes dos integrantes, isto é, há uma ruptura da hierarquia que antes aparecia principalmente na figura do encenador, do diretor e do dramaturgo. Estes agentes da criação determinavam, por assim dizer, tanto o percurso completo da dramaturgia da cena, quanto das movimentações, das ações e conceituações produzidas e acatadas pelos outros agentes cênicos, o que praticamente restringia a ordenação da criação e a colocava em situação de subordinação a estes profissionais. Na década de 1970, a criação coletiva, enquanto uma vertente política, pretende que todos os indivíduos participantes possam decidir e criar desde as montagens no nível do discurso e da Estética, como nas formas de encenar que se tecem na dramaturgia, nas práticas e nas concepções e usos dos materiais na sala de ensaio. No processo colaborativo, os artistas participantes organizam o seu trabalho levando em conta suas especializações, cada um continuará a trabalhar com a ideia de função, e cada qual exercerá a sua, seja ela a do diretor, do encenador, do dramaturgo, do ator, do iluminador, do cenógrafo, do figurinista, do coreógrafo e assim por diante, o que confere aos três primeiros maior poder de decisão e amplitude na criação, ainda que seja por meio colaborativo e horizontalizado. Isto acontece porque se a eles é conferida a responsabilidade por criar o texto, a organização geral, e condução do espetáculo, naturalmente os mesmos tomarão as decisões mais consolidadas, importantes e visíveis tendo, portanto, maior autonomia nos processos. A nossa opção metodológica traz à tona outras perguntas, outros conflitos potenciais inerentes a estes tipos de atividade compartilhada. Pois se no contexto teatral surgem questionamentos quanto à importância da figura do encenador, diretor, dramaturgo e do ator - Como os grupos que decidiram pela criação coletiva lidam com a figura do ator? - que aparece com os mesmos poderes de decisão e de criatividade, enquanto agente da dramaturgia e da encenação? - estas questões evocam um comparativo entre: as funções no interior dos grupos de arte-teatro e as funções na construção de um projeto no interior da sala de aula. A influência da criação coletiva e do processo colaborativo na dramaturgia contemporânea faz todo o trabalho e toda a expressão resultarem em textos também não- verbais, vozes e decisões de todos os integrantes: a ação dos atores, a concepção do iluminador, a observação do cenógrafo, a orientação da direção e da encenação não- hierárquicas, em um processo dentro do qual todos criam, com especificidades (no processo colaborativo) ou não (no segundo processo: na criação coletiva). (Silveira, 2011). No contexto da arte-educação, a pergunta que nos interessa a partir do comparativo entre a metodologias da criação coletiva e processo colaborativo é: qual seria o papel do professor que coordena seus estudantes enquanto sujeitos autônomos da criação expressiva no espaço escolar frente a essa escolha? Qual o lugar do diretor, do encenador, do dramaturgo e do professor que colocam suas marcas de direção, de orientação, de ensino, e de encenação, neste caso, de performatividade, na criação? Como os estudantes que tiveram pouco ou nenhum contato com o teatro do século XX e o pós- dramático (Lehmann, 2003) entram em contato com essas manifestações visuais intrínsecas as suas demandas comunicativas e vontades? Quais as suas expectativas iniciais quanto ao papel a ser desempenhado no processo e quanto à expressão desta modalidade da linguagem e como fazer com que encontrem a consciência dessa possibilidade? Quais dificuldades surgem e cabe a quem encaminhá-las? 1.b- A escolha da metodologia e sua especificidade 19 Interessa-nos a metodologia e a absorção do conceito da criação coletiva para a presente pesquisa porque esta prática e forma de pensar a ação incentiva à criatividade em diferentes posições funcionais, à possibilidade da experimentação das práticas específicas no processo de expressão e da gestão das atividades, à experiência com a própria autonomia na hora de decidir e do fazer e traz a oportunidade de mediar os outros e de ser mediado em situações de aprendizagem. Isto decorre do fato, como já dito anteriormente, da proposição metodológica permitir e operar pela livre experimentação de funções ou tarefas no sistema de produção do grupo, de modo que os participantes, ou no nosso caso os estudantes, a princípio isentos da hierarquia, possam identificar os fazeres nos seus tempos e espaços, até que optem e definam pelos quais nutrem maior apreço, e também para que aperfeiçoem essas práticas e seus resultados por meio da própria reflexão, fornecendo a eles inclusive a possibilidade da auto avaliação contínua como instrumento crítico, em uma concepção de avaliação e de prática processual, formativa, inclusiva, plural e não sentenciadora. Na criação coletiva e no espaço de experimentação performática no interior da escola pública, a atividade de manifestação de sensações e de discursos subjetivos e compartilhados necessita de troca constante, e essa dialogicidade e escuta um do outro, podem desenvolver até mesmo a subversão de estereótipos arraigados de abuso de poder, ou promover interações que conciliem com bases democráticas e plurais os conflitos decorrentes de opiniões divergentes, de comportamentos diversos e outros aspectos relacionais da cultura escolar. Trata-se aí de um possível trajeto de orientação e reorientação mútuos nas ações, entre os participantes, trajeto dentro do qual a criação pode aparecer também como uma forma de construção da autonomia do estudante, de aguçamento da curiosidade epistemológica (Freire, 2011). Interessa que o grupo de estudantes e os educadores partilhem a autogestão de seu próprio conhecimento num esforço conjunto, com a finalidade da apropriação do saber e da produção da comunicação a partir dele, a fim de estabelecerem a criatividade horizontal (Pereira, 2015), termo utilizado para designar uma metodologia de criação dentro da qual todos os integrantes tenham o mesmo poder de decisão. A criatividade horizontal aparece então como condição alternativa pela qual nos mobilizaremos tendo em vista a dialogicidade e partilha dos fazeres projectuais, isentos, a princípio, da hierarquia de funções, com livre experimentação e poder de decisão, e que pode aparecer como medida educativa a favor de situar o estudante como um sujeito ativo do processo de ensino-aprendizagem e criador de sua própria expressão comunicativa. Na criação coletiva, portanto, pode-se ressaltar ainda a intenção de construir-se uma identidade do estudante, de cada individualidade em questão e também do grupo, esforço que deve ser mediado pelo educador. Este também deve permitir-se ser conduzido, em alguns momentos, a fim de estimular essa criação e essa autonomia crítica que partirá dos discentes ao verem que é necessária a tomada de posição e de decisão frente aos trabalhos e ao se perceberem como sujeitos do processo. Grotowsky chamou a figura do diretor de espectador de profissão, (Rosseto, 2014) que é exatamente a ocupação deste lugar de onde a direção observa e coordena, a seu critério, os agentes a exercerem suas funções específicas. Cabe no nosso processo, com inicial não-especificidade das funções, quando na livre experimentação e tomada de decisão, os estudantes identificarão por si mesmos suas posições de maior apreço, fazer com que cada integrante esteja em algum momento dirigindo, vivenciando a mediação dos outros indivíduos em questão. Isto é, ao contrário da definição de Grotowsky, que estava baseada na estrutura de lugares bem marcados, o diretor além de não estar aqui em posição hierárquica e de comando absoluto, já que ele apenas direcionará sugestivamente, podendo o grupo ou os estudantes individualmente admitirem ou não as suas intervenções, ele ainda é uma figura de rotatividade no que diz respeito a sua encarnação funcional, o que significa dizer que cada estudante terá a oportunidade de, a sua maneira, ocupar esta posição específica de ação no decorrer das atividades até que por ventura alguém se identifique mais com esta tarefa. Uma equiparação à configuração de montagem referida por Grotowsky pode ser feita no processo educativo tradicionalista do professor que coordena os seus alunos, dirigindo-os de modo unilateral, e ajustando as suas possíveis falhas ou os fomentando com subsídios para aumentar os seus rigores metodológicos (Freire, 2011) frente ao saber. Porém na criação coletiva e na atual proposição de atuação performática na escola, já que se pretende que a figura do diretor e sua função sejam ocupadas e exercidas, em algum momento, por todos, enquanto experiência e campo de atuação, esse modelo irá se utilizar da horizontalidade da criação como característica de sua metodologia, e da ruptura dos modelos condutores tradicionais e clássicos, não sendo mais o diretor um espectador de profissão nas ações, mas criando- se uma direção rotativa, dentro de um modelo educativo de estímulo à autogestão. Da mesma forma pretende-se que as posições e funções de mediação-orientação e norteamento executadas pelo professor-educador sejam compartilhadas com todos, a fim 21 de que se crie coletivamente e de que se incentive a capacidade dos estudantes de, com autonomia, se posicionarem, e novamente mediarem o processo uns com os outros nos espaços e tempos escolares frente a consecução dos propósitos estipulados, e a avaliação e a reelaboração dos mesmos. Para este processo, como para outros, é de fundamental importância ter uma figura que possa olhar de fora e a partir desse olhar que possa auxiliar em como se articulam os materiais e em como dialogam com os elementos produzidos, elementos que formam a textura e as amarras do trabalho, para que o mesmo seja conduzido conscientemente e de forma responsável no caminho em direção aos objetivos e justificativas estipulados. E como processo de criação coletiva, tanto em sua significação e conceituações históricas, quanto acerca da necessidade de promoção política da cidadania, do aspecto democrático e da autonomia individual, especialmente no contexto de produção e de ensino da sala de aula, ele precisa permitir que os interessados passem por este lugar e exerçam esta função no sentido de demarcar o discurso como uma propriedade coletiva, equivalendo esta circunstância a do próprio lugar que ocupam, a escola pública. O desenvolvimento primordial da consciência e da responsabilidade do que fazem com o que é público, da natureza do que é de todos e dos sentidos de como ocupar e de como agir nesses espaços, com essa determinação. Ainda sob reflexão a partir da direção dos elementos citados por Freire (2011), se justamente as metodologias promovem uma rotatividade de funções, uma propulsão a tomada de decisão, de engendramento dos discursos comuns dos próprios estudantes, fomentando nada mais nada menos que a autonomia, suponho estar consequentemente contido nisso a curiosidade epistemológica sobre a linguagem, sobre o fazer e o que dizer, coisas que eles podem criar juntos. E sobre a roteirização, e construção dos discursos, de conhecimentos diferentes colocados em comparação e diálogo, tais como performance e a dramaturgia, em busca de um rigor, a partir de críticas sociais ou de expressões mais emotivas, singelas ou sensíveis, também acredito que se pode dizer que podem encontrar determinado rigor na investigação dos sentidos daquilo que eles mesmos fazem e criam se subsidiados por trocas interativas entre campos do saber que sobretudo conversem e se atravessem, a superar barreiras e limítrofes do pensar e do inovar. Ao ser feita essa relação entre as funções de diretor, dramaturgo e professor- educador, dentro do processo de criação coletiva pode-se contextualizar também uma aproximação comparativa entre performance e dramaturgia como linguagens. A noção de performance, usualmente, escapa da delimitação rigorosa de conceitos, ela não pode ser rigorosamente definida como se pode fazer, por exemplo, com a dramaturgia. Ela é uma tipologia de linguagem que pode inclusive transitar entre campos, tais como os das artes visuais, das artes cênicas e das poesias literárias. Entretanto, algumas características parecem fazer parte dela, e então buscaremos aqui algumas definições que nos amparam. . 23 2. Performance-arte como linguagem 2.a -A ação expressiva e o ato de performar Performance, para Marvin Carlson (1980) é um termo de historicidade. Em determinados períodos tem significação e sentido híbrido e de fronteira entre campos semânticos. Carlson (1980) segundo sua pesquisa sobre o termo diz que performance pode, ao longo do tempo significar as seguintes distinções que não se definem como mais ou menos próprias, e as quais mais nos interessam: a- A desenvoltura de alguma ação, e a demonstração de habilidade de algum fazer. Como um concerto de piano ou um festival de dança ou circo, dentro dos quais o pianista, o bailarino, e o palhaço exibem seus talentos e as nuances de suas atividades artísticas. b- A desenvoltura e a eficácia de ações a partir de objetos e coisas, isto é, de atributos vinculados ao não-humano, como o tempo entre o início e o fim de uma mistura química em que os elementos realizam uma “performance” até o resultado final da experiência. c- Em um conceito de Bauman, pode significar o esforço que fazemos para representarmos socialmente os papéis que, codificados por normas da cultura e esperados pelas tradições e costumes, executamos em nosso dia-a-dia, a exemplo das diferenças de comportamento que assumimos em nossa residência ou na empresa ou instituição onde trabalhamos frente aos nossos superiores e chefes. d- A performance com sentido Estético e de atividade de um atuante emissor, na perspectiva artística, começa a ganhar sentido para Carlson (1980) a partir de Bauman, quando ele nota que o filósofo identifica uma duplicidade ou multiplicidade na consciência, e uma intencionalidade, na representação dessas identidades sociais, quando finalísticamente orientadas para a expressão subjetiva ligada à arte. Então, como termo de nossa pesquisa, aparece-nos a performance-arte. (Carlson, 1980, pp. 11-20). Ainda diante da introdução crítica a performance de Carlson (1980), ele nos mostra os estudos de Richard Schechner ao estabelecer sete “áreas em que a teoria da performance e as ciências sociais coincidem” (Carlson, 1980, p. 22). 1. Performance na vida diária, incluindo reuniões de qualquer tipo. 2. Estrutura de esportes, rituais, jogos e comportamentos políticos públicos. 3. Análise de vários modos de comunicação (diferentes da palavra escrita) semiótica. 4. Conexões entre modelos de comportamento humano e animal com ênfase no jogo e no comportamento ritualizado. 5. Aspectos da psicoterapia que enfatizam a interação de pessoa para pessoa, a encenação e a consciência do corpo. 6. Etnografia e pré-história – tanto das culturas exóticas quanto das familiares. 7. Constituição de teorias unificadas de performance, que são na verdade, teorias de comportamento. A lista de Richard Schechner é, de algum modo, reminiscente de uma tentativa semelhante de sugerir futuras áreas de pesquisa entre o teatro e as ciências sociais, publicada em 1956 por George Gurvitch, para resumir os trabalhos de uma conferência francesa sobre o assunto. Antecipando o estudo subsequente de pesquisadores como Goffman e Turner, Gurvitch chamou a atenção para os elementos teatrais ou de performance em todas cerimônias sociais, mesmo numa ‘simples recepção ou reunião de amigos’ (Carlson. 1980, p. 22-23). Estes conceitos da performance como um termo contestado são para Carlson (1980) dispositivos que nos fazem compreender melhor a sua evolução temporal, até que os seus sentidos como ação artística se engendrem. Performar, segundo Cohen (2007), corresponde a um ato de emissão subjetiva, da expressão cênica, inserindo-se, desse modo, nas artes da representação do atuante em cena. Enquanto fenômeno semiológico se consubstancia no tempo e no espaço em ação e- ou de um possível eu-lírico para o outro, com a reportagem ou a permissão relacional, dialógica da informação ou expressividade e, às vezes, da e na inversão atuante-público. A performance pode ocorrer em diversas localizações, desde as praias, piscinas, elevadores, e museus, às igrejas, praças, ruas, edifícios, palcos, e especialmente, nas escolas e ambientes de educação. A amplitude temporal desta ação é muito variável e flexível e pode se estender de minutos a dias. O ato de performar como ato intencional e ligado à expressão artística deve suas origens às Artes Visuais, tornando-se um meio híbrido da expressão e das dimensões dinâmico-espaciais. Em uma noção estendida da performance, o (a) atuante pode ser um artista ou um não-artista; embora os mesmos possam se retirar de cena ao deixarem em seus lugares um boneco, um animal, um objeto instalado ou formas abstratas e concretas quaisquer. O texto pode ser simbólico, o que se pode entender pela representação em código compartilhado verbal ou não-verbal, imagético-icônico, e -ou mesmo indicial, em 25 relação de causa e consequência, e dessa forma, a ação é constituída por amplo campo de possibilidades semiológicas. O conceito multiplex code pensado por Schechner (Schechner apud Cohen, 2007, p.30) é um exemplo dessas possibilidades e pode ser equivalente às provocações incidentes e resultantes nas reações cognitivo-sensoriais causadas no espectador. Isto é, o efeito de sensação que se implica no público. Numa pesquisa sobre o candomblé, o ritual e o corpo cotidiano (Aquino, Ciotti, 2013) a partir do conceito pensado por Richard Schechner, as duas pesquisadoras fazem relações sobre as tarefas multiplex e seus efeitos na relação atuante-público. Elas enfatizam a natureza espiralar, da potência transformadora e de uma realidade múltipla a partir do rito, que determinada cultura utiliza na busca pela totalidade, e-ou por suas crenças. Schechner aponta que precisamos usar das nossas experiências e criar metodologias cognitivas e somatizadas, tarefas multiplex contra as narrativas não-confortáveis, para entender e mudar ideias neocolonialistas. No processo ritual o multiplex code movimenta-se numa trajetória em espiral, as soluções são codificadas em estratégias que ao longo do tempo se complexificaram, tornando possível o conhecimento hábil para a sobrevivência e êxito no meio. Deste modo, nossos rituais seriam mecanismos que objetivam a busca da totalidade frequentemente inexistente ou difícil de ser percebida no nosso cotidiano. Num sistema como o nosso, onde o indivíduo sempre tem primazia, tudo já está separado conceitual e concretamente. Por causa disso, aqui o rito não divide, junta. Não separa, integra. Não cria o indivíduo, mas a totalidade. Durante todo esse processo de pesquisa, perceber que percorrer em espiral indica a transformabilidade, e aponta para a natureza múltipla da realidade. (Aquino, Ciotti. 2013 p. 1). Sobre o “público”, elemento constituinte da cena performativa, Adolphe Appia (Appia apud Cohen, 2007, p.29) propõe a troca de posição, a inversão, atuante-público durante a ação. O atuante, na performance como linguagem (Cohen, 2007), desvincula-se da ideia de atuação como encarnação ou re-apresentação do elemento ficcional através da personagem. Uma das marcas a qual devemos nos ater nos relatos é a marca do “acontecimento presente”, de um evento que pode se repetir nestas relações, porém cada qual com uma particularidade temporal e local. Outra marca de singularidade dada a cada um desses acontecimentos, como possibilidade de identificação da performance no contexto em voga, é a que se constitui por sua “dramaturgia”. Temos então o emprego do termo dramaturgia na situação de performance, o que representa uma fusão conceitual contemporânea. Ainda podemos identificar definições sobre outras áreas da expressividade que estão em diálogo e intersecção com a performance arte e que se desenvolveram e se desenvolvem junto a esta prática artística: o happening e a body art. Cohen (2011) nos trará uma percepção: a de que o termo happening é usado pela primeira vez pelo artista Allan Kaprow (Kaprow apud Cohen, 2007, pp.38) tendo em vista eventos de caráter artístico que aconteciam, sobretudo, com a imprevisibilidade e a espontaneidade da ação, envolvimento ou não com o espectador, que pode participar ativamente do ato, e como mais um tipo de expressão que se coloca entre fronteiras, consubstanciando diálogos entre as artes visuais e as artes cênicas. O happening se diferencia da Performance-arte na medida em que ele acentua seu modo instável, não planejado, e surpreendente de ocorrer, dado que em alguns casos sequer o artista tem a pretensão de instalar um evento, a priori. Então o momento de execução espontâneo e sem trama, embebido de teatralidade, adquire a forma em questão. A improvisação e a marca presente do acontecimento, que nunca se repete da mesma forma, são também componentes fundamentais desta arte, que designam uma circunstância peculiar na linguagem cênica e visual: uma prática com o intuito de tirar a visualidade e as imagens das telas e colocá-las em movimento, trazendo-as para a vida. Como uma arte do corpo, ou uma expressão que vem dele, enquanto é objeto potencialmente simbólico e canal de comunicação, a body art (Dempsey, 2003) estabelece relações com o happening e a Performance art enquanto linguagens de fronteiras, consubstanciando diálogos entre as artes cênicas e visuais. Para Dempsey (2003), manifestação acontece quando a partir das artes visuais que englobam gradativamente o corpo do artista, caracterizando-o por fazê-lo pertencer à obra e retirando a visualidade da tela, trazendo-a para o movimento e para a vida junto a ele, envolvendo então seu aspecto cênico e atuante, a arte em questão o transforma, e lhe confere a essência da mutação. Neste caso, o espectador pode atuar não apenas de forma passiva, mas como agente ou voyeur dessas mutações. Como a performance, a body art pode ter caráter ritualístico e se pronunciar como um modo de expressão carregado da subjetividade e das crenças do artista. A premissa deste tipo cênico e visual de ação ocorre entre outras referências em Marcel Duchamp quando diz que “tudo pode ser utilizado como obra de arte”, inclusive o corpo. 27 2.b- Dramaturgia e performance na contemporaneidade O conceito de dramaturgia tem se ampliado no espaço da cena contemporânea: Os estudos das relações entre texto e cena – principalmente no que tange à investigação das processualidades dramatúrgicas e cênicas e às metodologias de criação compartilhada – lida, atualmente, com um alargamento conceitual das noções de dramaturgia, de texto, obra e autoria e com uma ampla diversidade terminológica, expressa no uso – corrente no campo dos estudos teatrais contemporâneos – de acepções como ‘dramaturgia coletiva’, ‘dramaturgia do ator’, ‘dramaturgia do espectador’, ‘dramaturgia do espaço’, ‘dramaturgia da cena’, ‘texto cênico’ e ‘escrita cênica’, entre outros. Tal aspecto – pensado em relação à produção dramatúrgica dos coletivos teatrais acompanhados por mim em seus processos de criação, nos últimos anos – levou-me a algumas questões: o que se denomina texto? A composição de ordem linguística (ou literária) produzida pelo dramaturgo? O conjunto resultante da criação, concretizada em termos de espetáculo? As falas pronunciadas pelas personagens (quando elas existem) ou pelos atores em cena? O que se denomina dramaturgia: o trabalho específico de composição do todo, produzido pelo dramaturgo? Todo o processo de composição poética e produção de sentidos e significâncias – ainda que individual – que ocorre no interior da criação e é nesse sentido que se usa dramaturgia do ator ou dramaturgia da luz? Que dramaturgia o coletivo produz? Qual a distinção entre dramaturgia e autoria, entre criação e encenação ou entre obra e texto? Quais as distinções entre a encenação e a dramaturgia produzidas no interior dos coletivos teatrais? (Pereira, 2011, pp.14-15). Ao entendermos a dramaturgia como uma composição de ações (Pereira, 2015) no espaço da cena contemporânea, entendemos a possibilidade de falarmos da dramaturgia de uma performance, uma vez que a performance é também ação. 2.c- Tendências dramatúrgicas e programas da Performance Ao falarmos de performance como uma prática expressiva, pode-se pensar também, em termos de planejamento da ação, ou da criação dramatúrgica de uma ação performativa, na conceituação que Eleonora Fabião (2008) fará ao citar num programa de performance: as “tendências dramatúrgicas da performance”: Sugiro que podemos encontrar em programas performativos alguns elementos dramatúrgicos discerníveis. Porém, veja-se bem, restrinjo-me a apontar tendências gerais, pois considero vão, mesmo equivocado, qualquer esforço no sentido de definir o que seja ‘performance’. Trata- se de um gênero multifacetado, de um movimento, de um sistema tão flexível e aberto que dribla qualquer definição rígida de ‘arte’, ‘artista’, ‘espectador’ ou ‘cena’. Como a performance indica, desafiar princípios classificatórios é um dos aspectos mais interessantes da arte contemporânea. A suspensão de categorias classificatórias permite o desenvolvimento de ‘zonas de desconforto’ onde sentido se move, onde espécimes ontológicos híbridos, alternativos e sempre provisórios podem se proliferar. Porém, é preciso frisar: não se trata de um elogio à falta de clareza, de fetichisar o misterioso, muito pelo contrário: trata-se simplesmente de reconhecer e investigar a extrema vulnerabilidade dos ditos ‘sujeitos’ e ‘objetos’ e torná-la visível. Dito isto, consideremos algumas tendências dramatúrgicas na performance: 1) o deslocamento de referências e signos de seus habitats naturais (...); 2) a aproximação e fricção de elementos de distintas naturezas ontológicas (...); 3) acumulações, exageros e exuberâncias de todos os tipos (...); 4) aguda simplificação de materiais, formas e ideias num namoro evidente com o minimalismo (...); 5) a aceleração ou desaceleração da experiência de sentido até seu colapso (...); 6) a aceleração ou desaceleração da noção de identidade até seu colapso (...) ; 7) o desinteresse em performar personagens fictícios e o interesse em explorar características próprias (etnia, nacionalidade, gênero, especificidades corporais), em exibir seu tipo ou estereótipo social (...); 8) o investimento em dramaturgias pessoais, por vezes biográficas, onde posicionamentos e reivindicações próprias são publicamente performados (...); 9) o curto-circuito entre arte e não-arte (sempre); 10) o estreitamento entre ética e estética (sempre); 11) a agudez conceitual (muita); 12) o encurtamento ou a distensão da duração até limites extremos (como quando uma única ação dura um ano inteiro) e a irrepetibilidade (como quando uma ação única é tudo); 13) a ritualização do cotidiano e a desmistificação da arte (...); 14) a ampliação dos limites psicofísicos do performer (...); 15) a ampliação da presença, da participação e da contribuição dramatúrgica do espectador (que por vezes se vê diretamente implicado na ação). Estrategicamente, a performance escapa a qualquer formatação, tanto em termos das mídias e materiais utilizados quanto das durações ou espaços empregados. (Fabião, 2008a, pp. 238-239). Para Eleonora Fabião, há na abordagem do programa da performance uma possibilidade de roteirização, com definições e preparos do que seria feito, a partir das ações pensadas e/ou executadas anteriormente. Nesta programação surge um espaço para criticizar e problematizar o que Foucault dizia desde 1975, dos corpos dóceis (Foucault, 2010) isto é, corpos formatados e induzidos pelas ideologias e normatização do comportamento e do pensamento em locais comuns, como a escola. Ao estabelecermos relações entre a concepção de programa de performance da Fabião (2011) e do espaço que se abre para a discussão das formatações ideológicas dos indivíduos a partir dos corpos dóceis de Foucault (2010), ocorre-nos de que o espaço-tempo escolar poderia levar o performer ou atuante a refletir e discutir mais sobre a sua ação, sobre a sua inserção histórica, sobre as elaborações e reelaborações que seriam possíveis a partir dos planejamentos e replanejamentos, em sala de aula, e no interior da escola. Poderiam os 29 estudantes pensar de modo menos padronizado e de modo que levantassem questões cada vez mais pertinentes sobre as suas realidades e necessidades de comunicação, se abertos estes espaços e tempos para discussão, planejamento, em suma, se aberto um programa de performance? Essa desprogramação dos corpos e das atitudes padronizadas estabelecidas é algo que, segundo Fabião (2011), pode ser pensado, dito e reavaliado a cada ação encadeada uma na outra, seja na forma da repetição – que conservará suas singularidades nesse trânsito mesmo sendo repetidas - ou da criação inovadora. Frente a esses indicativos desta modalidade da linguagem, pode-se vislumbrar a performance como um instrumento de mudança de paradigmas e de atitude dos estudantes acostumados a antigos hábitos e acostumados as possíveis defasagens em seus impulsos e vontades comunicativos. A performance aponta um caminho para a desconstrução e reconstrução de possibilidades, para um universo de maior possibilidade e diversidade de expressão, fazendo com que os estudantes identifiquem e se conscientizem do que precisam ou querem transformar em si mesmos e nos espaços, justamente para que essa comunicação exista e flua melhor. Esta seria mais uma possível identificação da performance: a de desestabilizar lugares estáveis, ela pode ter uma função transformadora (Fabião, 2011). A performance em uma perspectiva política: o lugar da subversão. Neste sentido, mais questionamentos decorrentes destas definições podem surgir, tais como: como se dá a transgressão nos espaços públicos e como ela se dá em cada local específico, com as normas e limitações definidas destes locais, como pode se dar a transgressão na escola pública? Como transgredir dentro dos limites definidos de um local público, atendendo as demandas locais e escolares frente à cidadania e a democracia? 31 3. A Arte da performance na escola: Algumas experiências 3.a- A performance e a criação coletiva em ações pedagógicas Em 2014, enquanto professor da Educação Básica no Ensino Fundamental II e Médio, na Escola Estadual Professor Renato Braga, em uma periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo, iniciei minhas experimentações na escola por meio de ações que aos poucos se revelaram performativas. Tanto pelo caráter de eventualidade dos feitos e pela subjetividade expressiva que se podia notar nos estudantes, quanto pela natureza política do que estava sendo produzido e pelo que entendíamos acerca do meio de expressão identificado: um canal de reivindicação e uma forma de manifestação. Naquele momento, a criação em conjunto nos tempos e espaços propostos tiveram como disparadores os anseios e expectativas estudantis relacionados tanto as realidades locais e pessoais dos jovens em questão, em relação à escola, aos professores, a comunidade e mais amplamente a sociedade, quanto aos momentos políticos atrelados de grande repercussão midiática e cultural. O período era pós-manifestações de 2013 no Brasil, insurgência do MPL – Movimento Passe-Livre, que protestava contra o aumento da passagem dos transportes públicos em São Paulo, ações repreendidas drasticamente pela força de Estado da PM – a Polícia Militar, evento notório e a partir dele considera-se a eclosão em grandes atos por todo o país. Sentindo-se mobilizados, os estudantes sugeriram em conversas e debates informais em sala de aula sobre a possibilidade de se manifestarem politicamente a versar sobre a justiça social. E sobre como isso podia partir de atividades fomentadas na e pela própria escola. A reflexão também se deu porque os indivíduos do grupo identificavam problemas com a educação pública a nível nacional, e especialmente Estadual, em São Paulo – referente às suas próprias inserções históricas e reais. Todos sabem que muitas escolas ainda hoje em 2016 se encontram em condições de péssima infraestrutura, falta de água, recentemente de merenda, sobre a desvalorização dos professores da rede pública, etc. – e aqueles estudantes em 2013 percebiam a importância da liberdade de expressão e o quanto as linguagens e as artes poderiam lhes servir de instrumento para projetar suas vozes plurais, dúvidas e anseios, em busca de suprir necessidades públicas, subjetivas, e tendo em vista a ampliação e criação do que já entendiam por direitos e deveres na política e pelo que já pressupunham por espaço privado e espaço público. Nesse momento, procurei pensar em como poderia atender as demandas que se apresentavam de modo que estes estudantes pudessem ter algumas experiências com a comunicação e expressão por meio da linguagem não-verbal, também pertencente ao plano estadual de ensino, currículo e programa de educação do Estado de São Paulo para as disciplinas, as quais eu lecionava: Línguas Portuguesa, Inglesa, e Literaturas, e de modo que pudessem ter contato com a modalidade de estudo a qual já era meu objeto de observação: a performance-arte como linguagem e as suas possibilidades sensoriais e semiológicas marcantes e diversas. Houve debate e nele discutimos durante algumas aulas sobre o que queríamos falar, sobre o momento delicado vivido e como construiríamos esses discursos de modo que todos fossem representados, a princípio, por questões inerentes ao grupo como um todo, a partir da escola e das questões sociais e políticas em voga. Decidimos então que falaríamos sobre a necessidade de expor um aspecto que os estudantes sentem como comum em suas vivências e em seus contextos específicos: a alienação. Ligados ao senso comum e levando em consideração a experiência concreta dos sujeitos, naquele momento entendíamos por alienação a forma anestesiante e dissimulada das instâncias políticas governamentais tratarem a população, “no paralelo”: negligência do Estado com as necessidades fundamentais, entre as quais, a educação pública gratuita e de qualidade. Neste intento, pensamos em quais materiais poderíamos utilizar e de que formas poderíamos representar a alienação, isto é, o enrijecimento do pensamento crítico e a ideia anestesiante e sustentada pelo conformismo dos corpos dóceis (Foucault, 2010) mencionada anteriormente. Uma vez que todos os nossos corpos são variavelmente programados pela cultura, e como na escola há o poder espalhado, que a torna um lugar estável, torna-se desnecessário localizar estes corpos dóceis: eles estão por toda parte, somos nós. Comunicar e expressar por meio da performance na escola por si só é desestabilizador, desafia os currículos e sugere caminhos para a ampliação das possibilidades de expor e de dizer algo. Elegi, a partir de uma inspiração de um dos grupos de Teatro Visual dos quais eu era integrante, percurso que citarei brevemente adiante, a máscara neutra (Copeau, 2004) como recurso, e essa atividade consistia a princípio em: os estudantes cobrirem seus rostos com um pano branco, especificamente fraldas de pano. A máscara neutra foi uma forma de metodologia utilizada por Jacques Copeau para corrigir vícios de movimentação dos atores e transformar o teatro vigente que segundo ele “estava impregnado pelo exibicionismo dos atores, monstros sagrados, e pelos vícios interpretativos de um teatro de ‘mãos e rosto’ ” (Copeau apud Sachs, 2004, p. 33 38), em busca de uma arte do espetáculo que saísse de seu instante meramente festivo e glamoroso para uma prática cênica de maior relevância técnica e também moral e ética. Para ele, este recurso potencializaria a precisão técnica do corpo e do movimento, ante o bloqueio dos vícios de expressão do rosto, ante o bloqueio parcial da visão e das iniciativas sem compromisso com o rigor da atuação. Não se trata aqui de utilizar esse material somente para neutralizar a expressão desses estudantes em uma analogia entre alienação e expressão neutra, anestesiada e inerte, mas também de propiciar um estímulo sensorial do contato do material com o rosto, com a sensação de ver difusamente, de forma nebulosa, com a sensação claustrofóbica e sufocante que talvez, apenas talvez, tivesse relação com a realidade vivenciada: uma política de corrupção, exploração, negligência e de sufocamento da expressão pela repressão de Estado, e pela dissimulação dos valores na relação de direito público e ocultamento do descaso, em um cenário de reivindicação e de luta pela ampliação de direitos, característica que marca a democracia e o exercício da cidadania. Após diversas ações expressivas de ocupação dos espaços no interior da escola com esse material, a máscara neutra, em ato performativo no intuito de representar, comunicar e expressar as sensações e vivências relatadas, frente ao objetivo de ampliar esses discursos poéticos e políticos construídos, envolvendo a comunidade e mais amplamente a sociedade, e utilizando ao mesmo tempo as ferramentas tecnológicas de nosso tempo, criei junto aos estudantes uma página no Facebook -a rede social com a qual eles tinham maior proximidade e experiência de uso- dentro da qual publicávamos nossos atos. O nome da página é “A Escola Pública é Nossa”, e está disponível no endereço: http://www.facebook.com/ProfessorThiagoCamacho/?fref=ts. Segue abaixo uma das postagens que reporta uma das primeiras ações feitas por aqueles estudantes naquele ano: No dia 31 de março de 2014, o Professor Thiago Camacho e seus alunos da Escola Estadual entraram em ação com a performance “Indisciplinados”, manifesto que teve intuito crítico com relação a negligência do Estado acerca da educação, do Sistema Público de ensino, da pouca valorização de professores e estudantes, estes últimos, filhos de trabalhadores. http://www.facebook.com/ProfessorThiagoCamacho/?fref=ts Gênese da ação A Escola pública é Nossa. Na foto: Thiago Camacho e um jovem integrante da ação. Escola Estadual Professor Renato Braga, São Paulo/ SP, 2013. Foto: Emerson Lisboa. Gênese da ação A Escola pública é Nossa. Na foto: Thiago Camacho e um jovem integrante da ação. Escola Estadual Professor Renato Braga, São Paulo/ SP, 2013. Foto: Emerson Lisboa. 35 A Escola pública é Nossa. Escola Estadual Professor Renato Braga. São Paulo/ SP, 2014. Foto: Jared Mehmetof. A Escola pública é Nossa. Escola Estadual Professor Renato Braga. São Paulo/ SP, 2014. Foto: Jared Mehmetof. A Escola pública é Nossa. Escola Estadual Professor Renato Braga. São Paulo/ SP, 2014. Foto: Jared Mehmetof. Junto às postagens, haviam reflexões e ações estão pensamentos acerca da política, da Instituição Pública e da Filosofia política, com citações e referências relacionadas, que de modo algum representam uma opinião definida, impositiva ou fechada ao diálogo. Houve e está ainda ocorrendo uma intensa atividade política durante os anos 2013- 2016, frente à áspera crise econômica, a intensificação das reivindicações e manifestações contra e pró-governo, e fundamentalmente com as Ocupações das escolas estaduais pelos secundaristas em protestos contra a gestão Alckmin (2011- 2016) e diante de suas reivindicatórias acerca da reorganização escolar da rede estadual de São Paulo, que fecharia escolas, e com a qual estes estudantes e parte dos professores discordavam. A base referencial que selecionei reavaliar as ações performáticas oco os estudantes depois dessa intensa atividade está ancorada em um pensamento ao qual me identifiquei e que representa os ensejos inclusive anteriores, quando já ocupávamos a escola com 37 reivindicações e ações expressivas. Em entrevista para a Revista Cult, a filósofa e professora aposentada do curso de Filosofia da USP Marilena Chauí fez um pronunciamento que pode resumir a partir da visão política e filosófica como eu pensava a questão e o nosso projeto até então. (...) a maior diferença entre a ocupação das escolas e o movimento de 2013 é que a paralisação aconteceu no interior de uma instituição pública e social para a garantia do caráter público dessa instituição. Não foi um evento em favor disso ou daquilo; foi uma ação coletiva de afirmação de princípios políticos e sociais. Os dois grandes princípios foram, primeiro, o princípio republicano da educação – a educação é pública; segundo, o princípio democrático da educação – a educação é um direito. A ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles disseram: ‘O espaço da escola é nosso. Somos nós, alunos e professores, que somos a escola’. Então, foi a ‘integração de posse’ das escolas pelos alunos e professores. É gigantesco o fato de alguém no Brasil pensar que algo público é nosso! (Chauí, 2015). Estes apontamentos da filósofa e professora serviram de base para organizar meu pensamento e reflexão tal que eu pudesse identificar a partir de que nossas ações performativas se colocavam como atos políticos, para os nossos ensejos e práticas educativas, de nosso coletivo estudantes-professor. Vale salientar que o trabalho escolar desencadeado pelos estudantes e por mim, como narrativas e reivindicações deles mesmos, dentre a divulgação das ações por esta página, todo eles possuem intuitos democráticos de apreço pelo pluralismo das concepções, e pela diversidade do pensamento, o que significa uma mudança de paradigmas na forma como entendo a justiça social hoje, enquanto educador, questionando também as disparidades das ideias radicais e extremistas das ideologias. 3.b- Investigações da performance como recurso da comunicação e da expressão Farei agora um breve resumo da minha experiência investigativa especificamente sobre a arte da performance para explicitar algumas outras referências que me inspiraram, para explicitar de onde bebo as ideias que subsidiaram esta pesquisa, e para me aproximar do relato das atividades e práticas atuais com essa modalidade da linguagem, bem como falar de algumas mudanças de procedimento e de conceituação segundo a minha percepção. Este trabalho é um relato que apesar de ser construído em conjunto na escola, tem marcas de protagonismo da minha visão sobre o que foi produzido, uma vez que que as relações que faço a partir das reflexões de outrem trazem minha vivência e experiência própria na docência e atuação em arte-performance e teatro, então ao assumir a pluralidade de vozes que aqui está presente, assumo também que a minha narrativa se dá sobre minha percepção dessa tessitura de vozes, e que esta percepção está aberta e receptiva. A minha trajetória na investigação da performance tem início quando eu cursava a minha primeira Graduação em Letras pela Universidade Paulista em 2007, e apresentava pequenas ações expressivas nos saraus lítero-musicais e na Semana do curso de Letras da Universidade. Continuei esses estudos e experiências pelos espaços urbanos com registros em fotografia e vídeo, e em seguida na Universidade Federal de Ouro Preto, por meio do curso de Artes Cênicas no ano de 2012. Posteriormente ingressei no Instituto de Artes da Unesp, sede desta pesquisa, em Arte-Teatro em 2013. No Instituto de Artes, enquanto continuava a produzir ações expressivas tanto no campus universitário, quanto ainda nos espaços urbanos, passei a fazer alguns exercícios expressivos com os estudantes das escolas em que eu lecionava Português, Inglês e Literaturas, ante a minha primeira formação, nas aberturas que o currículo proporcionava para a comunicação e expressão não-verbal e para um aprofundamento no conhecimento das linguagens e códigos e sua diversidade, ainda antes do projeto da Escola Pública é Nossa. Continuei a minha atividade performativa pelos espaços da cidade e da Universidade, quando em 2013 passei a integrar o grupo de teatro e performance Desvio Coletivo com direção de Marcos Bulhões, Marcelo Denny - ambos professores doutores da Escola de Comunicação e Artes da USP- e Priscilla Toscano, até então professora da rede pública municipal de ensino de São Paulo. As atividades e investigações sobre a performance se intensificaram especialmente após nossa temporada do espetáculo “Pulsão” (2013), no Instituto de Artes, no teatro Reynuncio Lima, e após a estreia deste mesmo espetáculo na I Bienal Internacional de Teatro da USP (2013), no circuito de apresentações denominado Realidades Incendiárias, enquanto executávamos outras ações performativas urbanas tais como a performance “Cegos’ (2013-2015) e Matrimônios” (2013-2015). 39 Espetáculo Pulsão. Thiago Camacho e os integrantes do Desvio Coletivo. Desvio Coletivo, 2013. Foto: Eduardo Bernardino. Performance Matrimônios, em ação na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo. Desvio Coletivo, 2015. Foto: Eduardo Bernardino. Performance Cegos, em ação na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo. Desvio Coletivo, 2013. Foto: Eduardo Bernardino. Performance Cegos. Thiago Camacho e os integrantes do Desvio Coletivo junto a um morador de rua inserido na ação, em Campinas. Desvio Coletivo, 2013. Foto: Eduardo Bernardino. Nesta ocasião, eu já pertencia também a equipe do Laboratório de Pesquisa do Teatro Brasileiro e Mundial, o “Portal Teatro sem Cortinas” coordenado pelo professor Alexandre Mate – professor doutor do Instituto de Artes da Unesp-, e era integrante da extensão “Teatro Didático da Unesp”, e “Teatro de Brancaleone”, coordenados por Wagner Cintra – também professor doutor do Instituto de Artes da Unesp- dentro do qual 41 participei de apresentações do espetáculo visual “O Rio”. Foi a partir dessa extensão, das pesquisas em laboratório, que pude me aprofundar mais sobre o que significava na prática o trabalho com as visualidades e materiais cênicos e de onde inspirei-me sobre a atividade, história e conceituação acerca da máscara neutra, citada anteriormente. “O Rio” era um espetáculo de trabalho com a potencialização da expressão dos materiais e objetos de cena, bem como com a manipulação de bonecos feitos com esparadrapo, recursos didáticos muito pertinentes para a arte-educação, e também de trabalho com a precisão necessária para esse tipo de atuação, precisão corporal e física decorrente de um exercício contínuo com a máscara neutra, neste momento sem intentos políticos, apenas estéticos e técnicos. O Rio. Teatro Didático da Unesp e Teatro de Branca Leone. Instituto de Artes da Unesp. São Paulo, 2014. Foto: Genise Braga. Depois experimentei algumas ações poéticas em Lisboa, Portugal, e na Ilha da Madeira, quando eu e meu companheiro Matheus Fernando Felix - com quem experimento performances- resolvemos ocupar os espaços da cidade e da ilha com mãos dadas e beijos que duravam algumas horas ininterruptas (2014). Fotos de Thiago Camacho. Portugal, 2014. Fotos de Thiago Camacho. Portugal, 2014. 43 Fotos de Thiago Camacho. Portugal, 2014. No Brasil, em 2014, passei a pertencer também ao grupo de teatro e performance Coletivo Pi, e além de integrar ações urbanas junto ao coletivo, passei a integrar também o espetáculo “O Retrato mais que óbvio Daquilo que não Vemos” com direção da atriz e professora Pâmella Cruz. Este espetáculo teve duas temporadas até agora, por meio de programas culturais e editais públicos da cidade de São Paulo, o Proac e o Funarte – Artes na Rua, e era um espetáculo que ocorria em partes no ambiente externo dos edifícios: a rua. Por isso, frente a esse diálogo que acontecia entre teatro de rua e performance, interessa-nos falar um pouco mais sobre essa experiência, que explicita melhor a minha atividade de expressão nos espaços públicos desde o início e como a performance foi se consolidando na minha prática de educador frente as alternativas de comunicação e expressão nessa investigação do universo das linguagens. O Coletivo Pi esteve em 2015 envolvido com mais uma de suas obras autorais: o espetáculo “O Retrato Mais que Óbvio Daquilo que Não Vemos”, em sua segunda temporada, com o apoio do Edital Funarte - Funarte Artes na Rua, do Ministério da Cultura e também da SP Escola de Teatro. Na investigação, construção criativa, técnica e também subjetiva do espetáculo, já estivemos juntos além deste ano, em 2014, com a primeira temporada da peça na Casa das Caldeiras e região de Perdizes, por meio do edital PROAC da Secretaria de Cultura de São Paulo. Já com a segunda temporada, exerci as funções de performer e ator, participativa acerca das idealizações e planejamentos criativos e integrando processos interativos de debate e reflexões junto às comunidades com as quais dialogamos, na cidade, no Baixo Centro de São Paulo, e também nos espaços governamentais, públicos e acadêmicos. Enquanto um Coletivo que investiga a composição e o espaço da cidade, para injetar nela a expressividade dos corpos e de suas ações, as proposições do grupo foram sendo consubstanciadas na medida em que o trajeto itinerante, na rua, região do Baixo Centro, em São Paulo, fora sendo traçado de uma forma dialógica, crítica e composicional. Como ator e performer assumi a personagem Homem-Placa pelas ruas, colaborando na condução do público em meio ao trajeto e consolidando a composição dialógica neste espaço, o urbano. Integrei também uma cena chamada “Hino Nacional”, dentro da qual ocorreu em crítica ao Estado e ao nacionalismo cego, obsessivo, e autoritário, um strip-tease ao som do hino do país em tom de sátira ao período eleitoral que se estabelecia naquele ano. Como podemos notar, a concepção de performance com a qual permaneci vinculado até o momento, junto aos grupos e atividades pessoais, era a que tinha em sua composição a transgressão de estética marcadamente agressiva, associada ao impacto e confronto moral por meio da visualidade, concepção esta que questionarei mais tarde especificamente para este projeto e para este intento. Era a forma expressiva com a qual me identificava naquele contexto. Posteriormente, discorreremos também sobre os diversos sentidos do componente performativo que será também nosso objeto de estudo: a transgressão. A atuação técnica e simbólica na função mencionada anteriormente, no espetáculo “O Retrato mais que Óbvio”, do Coletivo Pi, inclusive com o envolvimento na contrarregragem atrelada às ações, permitiu a deflagração das condições reais e objetivas: ocupar expressivamente os espaços e tempos da cidade e dialogar com os seus transeuntes, e suas vozes, de modo a construir as narrativas coletivas emergentes destas relações em um ambiente de contrastes, entre classes sociais, especialmente, e muitas vezes em meio a situação radical de vulnerabilidade social. Os processos de gentrificação, o poder político e suas estruturas na modernidade líquida (Bauman, 2000) a biopolítica (Foucault, 2010) analisados na perspectiva da cidade na atualidade, as leituras e debates a partir das teorias subjacentes permitiram que fluíssem os princípios de diálogo, crítica e intervenção a que nos propomos. 45 Como mencionado, estive na composição de uma cena-ação nomeada “Hino Nacional”, uma execução cênica satírica, de confronto moral e questionamento acerca dos poderes públicos e foi a partir dessas visualidades que também pude perceber nos processos práticos a possibilidade de ressignificações das mesmas cenas em outros momentos e contextos, por fim em outras figuras composicionais como a de um câmera man que ressignifica a placa da personagem Homem-Placa e passa a filmar simbolicamente o espetáculo. O Retrato Mais que Óbvio Daquilo que não Vemos. Coletivo Pi. Proac, Casa das Caldeiras São Paulo/ SP, 2014. Foto de Eduardo Bernardino. O Retrato Mais que Óbvio Daquilo que não Vemos. Coletivo Pi. Proac, Casa das Caldeiras São Paulo/ SP, 2014. Foto de Eduardo Bernardino. Pude observar as relações burocráticas do grupo com as regras dos editais e prêmios ganhos para o apoio do espetáculo, e os vínculos e compromissos junto à Cooperativa Paulista de Teatro, um sindicato trabalhista dos artistas de São Paulo. Para a construção e manutenção do espetáculo enquanto prática, performance, encenação e intervenção na rua, o Coletivo ensaiava todo sábado e domingo por 8 horas diárias, ensaios dos quais fiz parte, que envolviam repertório de corpo – exercícios fundamentados em jogos teatrais e improvisações e também repertório vocal, com exercícios para entonação e afinação. É importante deflagrar os processos de construção e suas minúcias porque nos fazem lembrar, já neste ponto, sobre o que Eleonora Fabião (2011) já nos disse sobre o aspecto da programação das atividades artísticas e de sua importância neste estágio. Além do preparo vocal e dos ensaios de corpo, também andávamos pelo trajeto planejado para o espetáculo em laboratório, investigando o percurso, as relações que poderiam se estabelecer com nossa presença cênico-interventiva na rua, e de que forma 47 poderíamos deixar algo naqueles espaços em termos de experiências sensoriais, e marcas simbólicas. Isto é: os resultados das performances e atuações, as sobras das ações que ficam nos ambientes, como poéticas dos espaços lá deixadas, chamadas também por instalações poéticas. A experiência pode me despertar para questões fundamentais sobre o exercício cênico e sobre a performance como linguagem, que comunicam e transformam, e identificar neste complexo uma importante ferramenta a ser utilizada na educação enquanto forma de debate, de composição e ocupação expressiva de espaços públicos, gestão da construção de um espetáculo com os materiais e recursos disponíveis e apropriação de territórios estabelecendo relações e problemáticas nestes meios. A aprendizagem se configura, também, enfática no que se refere a despertar em nossa observação olhares sensíveis para os espaços e para as pessoas que fazem parte deles, sobre o que elas querem dizer, o que precisa ser debatido, quais são suas necessidades, a quem esse espaço abriga, e que história pode ser contada por ambos, em meio às vozes desta cidade, que durante o espetáculo estamos a ocupar e a representar simbolicamente e por meio de um discurso. Discurso este que construímos na chamada de atenção para uma sociedade dividida em classes, deflagrando seus conflitos a partir dessa realidade, suas necessidades mais urgentes, e injetando, por conseguinte, críticas aos modos de produção, de dominação e de exploração humana. Toda essa imersão em atividades ligadas ao engajamento social possibilitaram estar muito mais atento e sensível a realidade da escola pública, dos estudantes inseridos nela em meio às suas urgências: os estudantes que reprovaram quatro vezes consecutivas no Ensino Médio; os que ainda possuem dificuldades para decodificar o texto e mais ainda para interpretá-lo no EJA – a Educação de Jovens e Adultos; os estudantes com necessidades especiais em situação de exclusão em sala de aula; o prejuízo da relação de ensino-aprendizagem e professor-aluno frente a discriminação étnica e racial, de gênero, por orientação sexual, por credo e religiosidade; a má formação de professores e não valorização dos mesmos, bem como dos funcionários da escola de modo geral; a pobreza e a fome como problemas presentes dentro da escola; a violência física entre estudantes; os casos de furto, roubo, o tráfico de drogas; a gravidez na adolescência; o desemprego na família e a sua desestruturação; o sucateamento do ensino público e a péssima gestão; a degradação do patrimônio escolar; e a dificuldade atroz de comunicar e expressar os sentimentos, as expectativas, as frustrações, os anseios, as dúvidas, a vontade de aprender e construir que se origina deste cenário. Interessa-nos perceber de forma gradativa que a comunicação e a expressão na escola, em sala de aula, na relação de ensino-aprendizagem, é necessária e precisa de instrumentos, de ações finalísticamente orientadas que sirvam de alternativas para as mesmas, a fim de subsidiar o aspecto relacional fundamental: o do diálogo nos processos educativos e de formação do cidadão. Continuemos então, as narrativas do presente instrumento em questão, a performance. 49 4. A Arte da performance e a Transgressão 4.a- Conceitos da transgressão Como discorríamos anteriormente, a performance como linguagem possui como componente a transgressão, o que dá a essa Estética uma perspectiva política, (Fabião, 2008; Pereira, 2015). No instante em que a arte tem uma função transgressora, socialmente engajada e preocupada com a esfera política das relações humanas e de suas organizações, ela desestabiliza lugares estabelecidos e estruturados justamente quando identifica por meio de um olhar contemplativo e sensível, individual ou coletivo, os motivos merecedores da problematização. O fato da performance ter essa característica transgressora significa também que ela é política, porque seja tratando das questões sociais e suas estruturações, como a questão da vulnerabilidade social nos ambientes da educação, ou as questões feministas e indígenas, ou seja problematizando o objeto artístico e o cotidiano, trazendo a ele o extra cotidiano, a arte performativa parece questionar a si mesma. Quando a arte, por meio de um artista, busca desestabilizar seu próprio sistema e sua própria realidade comum e cotidiana, e contestar os seus modos de produção, pode-se entender que ela está exercendo também um papel político (Pereira, 2015). 4.b- Outros sentidos para a Transgressão. Neste sentido, a partir dessas concepções e, na continuação do relato, quero dar ao componente da performance, a transgressão, dois sentidos diferentes: o combativo e o extra cotidiano. O primeiro, na minha concepção, foi o que utilizei até este instante, porque vendo a Estética como ferramenta de questionamento, embate e confronto moral, era possível que atravessando o espectador pelo impacto eu pudesse atingir seu universo sensível ainda que houvesse a possibilidade de afastá-lo de vez. Era um risco que corria e suponho que todo performer corra neste intento. O segundo veio à tona com a orientação do presente trabalho, entre conversas e percepções a partir de materiais de investigação. Trata-se de nos utilizar também das visualidades poéticas, mas no sentido de quebrar o cotidiano e introduzir aspectos do belo e delicado no extra cotidiano por meio da linguagem da performance, estabelecendo ações que tragam à tona a sensação, a quebra de rotina, e por vezes até mesmo a problematização do sistema e do objeto artístico, porém inserindo concepções alternativas do que se pratica comumente com a ideia da performance arte e de sua catarse. Interessou-nos mais, a partir de então, experimentar o segundo sentido da transgressão como componente da modalidade: a simplicidade de execuções feitas por crianças e adolescentes, a partir da qual a extravasação catártica não tem necessariamente a ver com a estetização da violência ou da agressão, já que beleza e delicadeza, neste sentido, também podem ser transgressoras ao romper um cotidiano bruto, vulnerável e condicionado a mecanicidade do mundo atual. Um exemplo disto, que serviu de material inicial de estudo quanto aos múltiplos sentidos da palavra transgressão é o filme “The man on wire”, um documentário que conta a história e experiência de Philippe Petit, um funâmbulo – aquele que anda na corda bamba – que na década de 1970 presenteou a cidade de Nova York com um espetáculo de mais de uma hora em que ele foi de um lado a outro das Torres Gêmeas sobre uma dessas “cordas bambas”, uma visualidade bela para os populares e um risco para ele que fez a ação clandestinamente (Marsh, 2008). Outro exemplo disto é o vídeo chamado “Extravasação” (ou Extra – vaza – ação) feito pelos artistas educadores Maryah Monteiro e Claudio Gomes (Monteiro; Gomes, 2015) com crianças de 8 a 10 anos do Programa PIÁ, (programa de iniciação artística de crianças e adolescentes da Prefeitura Municipal de São Paulo), na Biblioteca Monteiro Lobato em 2015. A filmagem mostra ações simples, tais como uma menina que deixa bolinhas de gude caírem de um andar alto pelos degraus da escada sobre as demais crianças que optaram por esperar lá embaixo deitadas sendo ao final massageadas pelas mesmas bolinhas que tocam em seus corpos ao passarem por eles, ou as crianças que mergulham sua cabeça em bacias de água experimentando a simples sensação da ação em dias quentes e suas reações prazerosas; entre outras ações que articulam aspectos da quebra do cotidiano e da expressividade sensorial proveniente da criatividade dessas crianças. Nesta referência, vê-se como as crianças participaram de um conglomerado de sensações e experimentações no campo das ações poéticas, todas juntas em meio as suas expressividades que consubstanciaram o belo de que tratamos, o diferente e o extra cotidiano. Nestas ações, ligadas ao segundo sentido da transgressão e da problematização do objeto artístico em seu próprio sistema, não houve a catarse no sentido violento e perturbador do termo, e sim um abalo sobre o tédio do cotidiano com os recursos da 51 beleza e da delicadeza, recursos que destoam da estetização comum da violência nesta modalidade da linguagem. Não cabe nesta narrativa, segundo o meu entendimento, definir estes conceitos, mas expressar minha impressão das práticas dispostas e como as sinto, tentando compreendê-las em busca de sua apropriação, e a partir das práticas relacionar comparativos a algumas teorias subjacentes a esta pesquisa. Na problematização do lugar comum da transgressão relacionada ao impacto e a ao conflito como estética de embate, podemos citar Renato Cohen (2007) sobre a banalização da performance como linguagem em um tempo e espaço em que a ações expressivas desta natureza já foram absorvidas pelos meios de comunicação, pela propaganda e marketing, e pelos veículos artísticos e locais de apresentação das linguagens, de modo geral, a citar a indústria cultural e a contemporaneidade. (...) os modos inventivos e as ações ideológicas da arte-performance perpetrados por Joseph Beuys, pelos situacionistas em maio de 1968 e pela ação antiartística do Fluxus ou contracultural de inúmeros atuantes são, hoje, contraabsorvidos ou antropofagizados pelos curiosos mecanismos da mídia e da indústria cultural, que diluem assim sua virulência antissistema - dos ridículos reality-shows aos contorcionismos dos apresentadores ‘performáticos’ da MTV, enforma-se toda uma produção associada, de certo modo, performance, mas destituída de sua virulência transformadora. Como foco de resistência, a investigação da performance tem migrado, desde os anos de 1990, de seu ponto de partida nas contundentes ações antropológicas e investigativas da consciência e da corporeidade humana. É o caso das realizações do La Fura dei Baús, da performer Orlan, de Marina Abramovic, de Tunga e outros, que colocam sua psique e corpo na busca das extensões - e, curiosamente, grande parte deles está nomeada como pesquisa do ‘Corpo Extenso’ - e, em outra frente, das ações e performances com tecnologia, desde trabalhos com mediação de corpo até inúmeras produções na Arte WEB (Internet), que democratizam a veiculação de cenas e acontecimentos e criam ambientes de produção, semelhantes às ações dos anos de 1960. Assim, são geradas quer pesquisas de mutação e identidade, como as de Eduardo Kac, quer experimentação erótica e subjetiva e veiculação de ‘rádios livres’, como a Zapatista, as resistências do Kosovo, entre outros acontecimentos performativos e políticos. Em outra frente, incorporam-se inúmeros processos de subjetivação, como as recentes pesquisas cênicas e performáticas na confluência entre arte e loucura, a exemplo dos trabalhos da Cia Ueinzz (São Paulo), sob minha direção e de Sérgio Penna. Por último, importa lembrar que ‘Performance como Linguagem’ tornou-se uma espécie de cult pioneiro (no caminho visionário da Editora Perspectiva), em língua portuguesa, junto com o livro de Luiz Roberto Galizia, ‘Os Processos Criativos’ de Robert Wilson, na apresentação de repertórios e procedimentos da cena moderna e contemporânea, da performance em sua manifestação radical, corroborando, segundo depoimentos, o caminho de inúmeros jovens artistas confrontados e autorizados por essas perspectivas vitais (Cohen, 2007, p. 14). É possível entender, então, que a Performance-arte, em meio às vivências documentadas e sentidas neste processo de pesquisa, tem como componente comum a este tipo de linguagem a transgressão, e que esse componente está multifacetado em intenções estilísticas diversas, isto é, assume a experiência de transgredir em perspectivas plurais. Se por um lado as ações puderam sentir o impacto de confrontar saberes e poderes estruturais, tais como as determinações vigentes do universo político escolar, e também como as convenções artísticas e da expressão, por outro, em um novo sentido, elas puderam questionar estes mesmos sistemas de uma forma não mais combativa, sem, contudo, deixar de conservar seu aspecto transgressor. Aspectos morais, políticos e burocráticos da Escola são transgredidos a partir do momento em que a linguagem da performance, que já não é usual como sistema artístico de comunicação e expressão e que as vezes é repelida nestes espaços justamente por questionar ordenações vigentes e seriadas, desmonta uma série de convicções e enrijecimentos sistemáticos que programam corpos a atitudes e vivências rotineiras e repetitivas, a posturas passivas e submissas a comandos externos, bem como ao conformismo ou a anestesia que impede o vislumbre de outras realidades possíveis nestes espaços, outros locais do aprender, e a exploração inquietante e desestabilizadora dos mesmos, a partir de ferramentas inovadoras, mobilizadoras, e de um próprio sistema que repercute por transformar cotidianos estáveis acerca das práticas de ensino-aprendizagem. Além disso, a performance pode estarrecer imposições sociais e construções culturais dependendo de suas abordagens que geralmente desconstroem esses mesmos paradigmas por ora pouco debatidos, presentificados e representados, tais como os do corpo orgânico. 53 5. Polifonia das experiências de transgredir. 5.a- Experiência sensorial do barulho como estímulo da expressão: a estética do estouro. Estes experimentos foram realizados em 2016 na Escola Estadual Professor Renato Braga, escola da periferia da zona sul de São Paulo no Jardim Casa Blanca, desde o Ensino Fundamental II ao Médio, com auxílio da professora de artes titular Karin Paula Eikmeier, e com fins de investigar ações comunicativas e expressivas a partir da performance-arte e a partir de seus efeitos sensoriais e tendências dramatúrgicas. A ação. A gênese desta ação acontece ao pensarmos a arte enquanto experiência. Enquanto uma vivência de sensação que se traduz e reflete na Estética. Sobre a arte como experiência e como uma consumação sensorial, John Dewey dirá que ela é justamente a configuração de processos de integração entre o organismo e o meio e que esses processos não são separáveis porque eles são parte da obra e do evento estético (Dewey, 2010, p.60). A emoção, as sensibilidades despertadas por meio da arte caracterizam o processo-resultado que se consuma na experiência (ação). Quando os objetos artísticos são separados das condições de origem e funcionamento na experiência, constrói-se em torno deles um muro que quase opacifica sua significação geral, com a qual lida a teoria estética. A arte é remetida a um campo separado, onde é isolada da associação com os materiais e objetivos de todas as outras formas de esforço, sujeição e realização humanos. Assim, impõe-se uma tarefa primordial a quem toma a iniciativa de escrever sobre a filosofia das belas-artes. Essa tarefa é restabelecer a continuidade entre, de um lado, as formas refinadas e intensificadas de experiência que são as obras de arte e, de outro, os eventos, atos e sofrimentos do cotidiano, universalmente reconhecidos, como constitutivos da experiência. Os picos das montanhas não flutuam no ar sem sustentação, tampouco apenas se apoiam na terra. Eles são a terra, em uma de suas operações manifestas. Cabe aos que se interessam pela teoria da terra - geógrafos e geólogos - evidenciar esse fato em suas várias implicações. O teórico que deseja lidar filosoficamente com as belas-artes tem uma tarefa semelhante a realizar. Se alguém se dispuser a admitir essa postura, nem que seja apenas a título de um experimento temporário, verá que daí decorre uma conclusão surpreendente, à primeira vista. Para compreender o significado dos produtos artísticos, temos de esquecê-los por algum tempo, virar-lhes as costas e recorrer às forças e condições comuns da experiência que não costumamos considerar estéticas. Temos de chegar à teoria da arte por meio de um desvio. É que a teoria diz respeito à compreensão, ao discernimento, não sem exclamações de admiração e sem o estímulo da explosão afetiva comumente chamada de apreciação. É perfeitamente possível nos comprazermos com as flores, em sua forma colorida e sua fragrância delicada, sem nenhum conhecimento teórico das plantas. Mas quando alguém se propõe a compreender o florescimento das plantas tem o compromisso de descobrir algo sobre as interações do solo, do ar, da água e do sol que condicionam seu crescimento. O Partenon é, por consenso, uma grande obra de arte. Mas só tem estatura estética na medida em que se torna uma experiência para um ser humano. E se o sujeito quiser ir além do deleite pessoal e entrar na formação de uma teoria sobre a grande república da arte da qual essa construção é membro, terá de se dispor, em algum momento de suas reflexões, a se desviar dele para os cidadãos atenienses apressados, a r gumentadores e agudamente sensíveis, com seu senso cívico identificado com uma religião cívica de cuja experiência esse templo foi uma expressão, e que o construíram não como uma obra de arte, mas sim como uma comemoração cívica. Esse voltar-se para eles se dá na condição de seres humanos que tinham necessidades, as quais foram uma exigência para a construção e foram levadas à sua realização nela; não se trata de um exame como o que poderia ser feito por um sociólogo em busca de material relevante para seus fins. Quem se propõe teorizar sobre a experiência estética encarnada no Partenon precisa descobrir, em pensamento, o que aquelas pessoas em cuja vida o templo entrou, como criadoras e como as que se compraziam com ele, tinham em comum com as pessoas de nossas próprias casas e ruas. Para compreender o estético em suas formas supremas e aprovadas, é preciso começar por ele em sua forma bruta. (Dewey, 2010, p.60). A partir destas considerações, temos em vista as nossas premissas de pesquisa, observação e prática compreendidas como alternativas de comunicação e expressão: a arte que passa necessariamente pela vivência tanto de nossas construções afetivo- pessoais, sensíveis, socioculturais e políticas, quanto pelos seus efeitos estéticos e sensoriais produzidos na e pela ação. Compreendendo-se a importância