RESSALVA Atendendo solicitação do(a) autor(a), o texto completo deste trabalho será disponibilizado somente a partir de 24/09/2023. MAICO FERNANDO COSTA A CLÍNICA DA URGÊNCIA E O PRELÚDIO ÀS ENTREVISTAS PRELIMINARES: uma práxis entre a luta de classes e as formações do inconsciente ASSIS 2021 MAICO FERNANDO COSTA A CLÍNICA DA URGÊNCIA E O PRELÚDIO ÀS ENTREVISTAS PRELIMINARES: uma práxis entre a luta de classes e as formações do inconsciente Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para obtenção do título de Doutor em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Dr. Gustavo Henrique Dionísio Orientador: Prof. Dr. Abílio da Costa-Costa (in memorian) Bolsista pela FAPESP. FAPESP, nº do processo: 2017/06805-1; nº do processo BEPE: 2019/10472-3. ASSIS 2021 javascript:openProcess('240415',%20'false') javascript:openProcess('298366',%20'false') AGRADECIMENTOS O meu reconhecimento e agradecimentos ao povo de Minas Gerais, à classe trabalhadora de Monte Santo de Minas, especialmente à família Oliveira e família Costa. Sem a história dos meus “antigos”, e os seus valores, que evidentemente não foram os do capital, não teria sequer me aproximado de uma Universidade pública, muito menos da defesa de uma Tese de Doutorado. A prova de resistência, luta e sobrevivência pela qual vocês passaram, desde sempre possibilitou que o meu desejo não morresse e, obstinado, rompesse a regra de uma sociedade não permeável às pessoas (como nós), que antes mesmo de nascerem já estão predestinadas a servir os outros e se privar de seu próprio saber. Portanto, os meus agradecimentos à vocês, minha fonte de impulso à vida, são mesclados ao profundo respeito que tenho pelo nosso passado, orgulho de poder dizer em alto e bom som: “Sou pé rachado!”. Obrigado amados pais (Dirce de Oliveira Costa e Luiz Carlos da Costa), avós (Hilda Ferreira de Oliveira, José Firmino de Oliveira; Dirce Dias da Costa e Valdivino Rodrigues da Costa), tias, tios, primas e primos (da Família Oliveira à Família Costa), Joel Esteves Pereira Neto, amigas e amigos da nossa Minas Gerais. Obrigado Hilda Ferreira de Oliveira, você é o ser humano com mais fibra que pude conhecer. “Vó”, o legado que a senhora deixou percorre em minhas veias, persiste e prossegue em minha labuta. Abílio da Costa Rosa, sou imensamente feliz por ter tido a honra de ter sido teu orientando. Tantas histórias... Grato pela tua aposta em meu trabalho, mesmo quando os meus escritos eram um “desastre que só”. Foram quase dez anos de uma transmissão que marcou e marcará toda a minha formação no campo das Políticas Públicas. Sigo e continuo Costa- Rosean[d]o. Obrigado por ter me proporcionado a referência de um trabalhador que não se deixa tiranizar. Obrigado Gustavo Henrique Dionísio, por ter me acolhido em um dos piores momentos de minha vida e por ter me possibilitado seguir adiante com as minhas inquietações e produções reflexivas. Sou feliz por ter sido teu orientando, nesta etapa final do meu doutorado. Soraia Georgina Ferreira de Paiva Cruz, amada amiga, professora e mestra. Carrego em mim, as inscrições de uma postura na instituição que não se furta dos jogos de forças, teu ensino me foi, e é, visceral e instituinte. Obrigado pela presença marcante. Walter José Martins Migliorini, querido amigo, sou grato pela tua presença tão terna, tenaz, doce e encorajadora. Obrigado Silvio José Benelli, pelo constante aprendizado, forte referência de posicionamento na vida e ininterruptas possibilidades de troca... Enfim, pude contar com as contribuições tuas entre os examinadores de minha Tese. Je vous remercie, monsieur Hubert, c’est une grande joie d’avoir découvert votre travail, la Psychanalyse Sociale, et d’apprendre avec votre sensibilité au savoir collectif de la classe ouvrière. Merci également pour les échanges constants dans le cadre de la Fondation APPS [Analyse Pratique Psycho-Sociale]. Fico agradecido à Miriam Debieux Rosa e Ana Laura Prates, foi uma honra ter tido a chance de vos conhecer, desta vez não só pelas tuas produções teóricas, o meu obrigado. Obrigado Maria Cristina Candal Poli, por ter aceito compor a minha banca de defesa e pela pronta disposição em contribuir com as tuas observações a respeito da Tese. Conforme lhe disse, o encontro com um de teus textos (“Freud e Lacan com Marx: mais, ainda”), foi-me significante. Obrigado Tereza Etsuko da Costa Rosa. Tenho você como inspiração em minha trajetória, exemplo de garra e de ternura, qualidades tão essenciais para o trabalho na Saúde Coletiva: “hay que ser duro pero sin perder la ternura jamás”. Queridas amigas, amigos, companheiras e companheiros de estrada. Incluo aqui também, aqueles que, pela razão de não poder e conseguir tudo dizer, não pude escrever o nome. Queria poder dedicar linhas, livros, versos a vocês, e sei, ainda não teria sido o bastante. Quero que saibam que cada um de vocês me marca de um jeito muito especial, tenho a maior felicidade por vos ter como presença em minha história. Sei que entre nós, os aprendizados mútuos são sinceros, considera a luta cotidiana e contempla o carinho de um coletivo que é sensível à diferença e aos interesses da classe trabalhadora: Pedro Henrique Santos Decanini Marangoni, Waldir Périco, William Azevedo de Souza, William Fernandes Rabelo da Silva, Lucas Carvalho Peto, Mário Henrique Souza, Carlos Henrique Andreassa do Amaral, Mayara da Silva Curcio, Mayara Aparecida Bonora Freire, Caetano Pinto e Felipe Ferreira Pinto, Juliana Cristina Bessa, Felizardo Tchiengo Bartolomeu Costa, Cledione Jacinto de Freitas, Roberto Duarte Santana Nascimento, Gonzalo Patricio Montenegro Vargas, Tânya Marques Cardoso, Eurípedes Costa Nascimento, Lourenço da Silva Queiroz, Christiane Cardoso Ferreira, Fábio Henrique Tonon, Rafael Fermino Beverari, Eliane Volpini Belavenute, Carlos Vitor Belavenute, Paula Graziela Belavenute e Geraldo Belavenute Júnior, Leonardo Chioda, Abílio Rezende Macedo, Matheus Viana Braz, Vinícius Xavier Cintra Marangoni, Nivaldo Ferreira Júnior, Gustavo Guimarães Ferri, Marita Penariol, Eduardo Moura da Costa, Naeli Simoni de Castro, Carine Sayuri, Thiago Marques Leão, Francyelle Tostes, Claudinei Chelles, https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj_u_nCudjPAhUBYSYKHYtOD2IQFggcMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.bv.fapesp.br%2Fpt%2Fpesquisador%2F176398%2Fpedro-henrique-santos-decanini-marangoni%2F&usg=AFQjCNEtNZreOMz_-8d7HsN7_WJqsy2rcQ&bvm=bv.135475266,d.dmo https://www.escavador.com/sobre/3826733/leonardo-chioda Raquel Gregorio, Cibele Toledo, João Felipe Guimarães de Macedo Sales Domiciano, João Elias Cury Júnior, Keli Cristina Pacheco, Fábio Ávila Arcanjo, Samuel Coelho Mandacaru, Larissa Ferreira de Abreu Pereira, Letícia Delfino, Fernanda Martinhago, Sara Mexco, João Elias Cury Junior, João Renato C. Pagnano, Vanessa Favoni, Jose Eduardo Atílio Pereira de Souza, Isabela Dias Oliveira, Ricardo Francelino da Silva, Gabrielly Spanic, Regiano Bregalda e Jeferson Rodrigues. Obrigado às companheiras e companheiros de trabalho do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e Subjetividadessaúde (LATIPPSS), com quem a luta faz valer a pena. Grato à família Lima e Klajnman por ter me acolhido em tempos tão difíceis. Já vos admiro... Grato pela tua presença terna e indelével, Frida Khalo Klajnman. Obrigado Deborah Lima Klajnman pela oportunidade de poder te conhecer e aprender contigo. E grato também por ter me suportado nesse período tão complexo e conturbado, em meio a maior pandemia do século e a perdas tão cruciais em minha vida. Sou feliz e honrado por tê-la como companheira e parceira de estrada. Trabalhadores da Seção Técnica de Pós-Graduação, e da UNESP-Assis/SP como um todo, sem vocês o nosso trabalho, a nossa causa, não teria visibilidade, não teria sentido, não seria Coletivo, que possamos reconhecer mais o que vocês fazem para além desses “escritos” no papel... Obrigado especialmente à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pelo financiamento desta intercessão-pesquisa, presente desde a Graduação, Mestrado e agora no Doutorado, incluindo a concessão da bolsa BEPE (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior), fundamental para o desenvolvimento da Tese em território francês. Sou reconhecido do aporte que me deram, encerrando-se neste ciclo. Obrigado. https://www3.uepg.br/letras/corpo-docente/keli-cristina-pacheco/ https://www3.uepg.br/letras/corpo-docente/keli-cristina-pacheco/ https://www3.uepg.br/letras/corpo-docente/keli-cristina-pacheco/ https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwiJ0smwgtjPAhWBHx4KHa2sA7IQFggeMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.bv.fapesp.br%2Fpt%2Fpesquisador%2F666983%2Fjoao-elias-cury-junior%2F&usg=AFQjCNH0dsnmgP5DLNsXzYz0Kc9o5t33PQ https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwiJ0smwgtjPAhWBHx4KHa2sA7IQFggeMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.bv.fapesp.br%2Fpt%2Fpesquisador%2F666983%2Fjoao-elias-cury-junior%2F&usg=AFQjCNH0dsnmgP5DLNsXzYz0Kc9o5t33PQ https://www.escavador.com/sobre/5912725/samuel-coelho-mandacaru https://www.escavador.com/sobre/5912725/samuel-coelho-mandacaru https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&sqi=2&ved=0ahUKEwjwvvy4_tfPAhXFKCYKHUC1DzwQFggcMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.fapesp.br%2F&usg=AFQjCNEOljbCfHOHnOaCp7vfi3Bwv6okyw&bvm=bv.135475266,d.dmo https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&sqi=2&ved=0ahUKEwjwvvy4_tfPAhXFKCYKHUC1DzwQFggcMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.fapesp.br%2F&usg=AFQjCNEOljbCfHOHnOaCp7vfi3Bwv6okyw&bvm=bv.135475266,d.dmo COSTA, Maico Fernando. A clínica da urgência e o prelúdio às entrevistas preliminares: uma práxis entre a luta de classes e as formações do inconsciente. 2021. 273f. Tese (Doutorado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2021. RESUMO Esta tese é o desfecho de um trabalho de oito anos de intercessão-pesquisa, incluindo a Iniciação Científica e o Mestrado, cujo tema é a Clínica da Urgência em uma Unidade hospitalar. A tese de doutorado que se apresenta, foi o resultado de uma atuação profissional em uma Santa Casa de Misericórdia de um município do Interior Paulista. O psicólogo advertido pela Psicanálise de Freud e Lacan e por Marx foi a posição assumida, durante a experiência próxima aos sujeitos do sofrimento e do coletivo de trabalhadores. Mobilizados pela práxis das urgências, nossas indagações foram atravessadas pela seguinte questão: é possível uma Clínica da Urgência que além de ofertar a escuta analítica aos impasses psíquicos em igual teor queira interceder na divisão fundamental do trabalho, em favor das equipes de Saúde hospitalar? Sustentamos que a Clínica da Urgência em uma Unidade hospitalar, só é efetiva se visamos igualmente a escuta analítica aos sujeitos do sofrimento e a intercessão no Estabelecimento institucional, junto aos seus modos de produção de saúde e subjetividade. O Dispositivo Intercessor foi o “método” que adotamos, para os posicionamentos clínicos no Estabelecimento hospitalar e para a posterior escrita da reflexão em forma de tese de doutorado. Ele é menos um método tradicional de pesquisa do que um modo de operar na práxis. Apropria-se de elementos da Psicanálise de Freud e Lacan, do complexo lógico-categorial marxiano, da Análise Institucional de Lourau e Lapassade e da Filosofia da Diferença (especialmente com a suprassunção do conceito deleuziano de “intercessores”). Defendemos que do ponto de vista de uma Ética da singularização dos desejos, avessa à produção de saúde como serialização de movimentos da vida em sociedade, escutar o sujeito do inconsciente implica não tapar os olhos frente aos modelos instituídos que reiteram os modos de sociabilidade capitalista na instituição de Saúde. Desta maneira, ampliamos a concepção de Clínica da Urgência, a partir da Psicanálise, vinculando-a, em um certo sentido, ao pensamento de Marx, no que diz respeito à realidade brasileira e às bases ético-políticas da Reforma Sanitária, movimento revolucionário de prática em saúde que deu origem ao SUS – Sistema Único de Saúde. Palavras-chave: Clínica da Urgência. Psicanálise. Marx. Dispositivo Intercessor. Estabelecimento hospitalar. COSTA, Maico Fernando. The clinic of urgency and the prelude to preliminary interviews: a praxis between class struggle and formations of the unconscious. 2021. 273f. Thesis (Doctoral degree in Psychology). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2021. ABSTRACT This thesis has in its outcome a work of eight years of intercession-research, whose theme is the Emergency Clinic in a hospital unit. The intercession-research derived from the doctoral thesis presented is the result of a work in a “Santa Casa de Misericórdia”, one of the hospitals of a city in the interior of the state of São Paulo. The psychologist cautioned by Freud and Lacan's Psychoanalysis and by Marx was the position taken, during the experience close to the subjects of suffering and to the collective of workers, particularly to the Intercessor Device and the worker-intercessor. Mobilized by the practice of urgencies, our questions revolve around the following question: is it possible for an Urgency Clinic that, besides offering analytical listening to the psychic impasses, in equal content, wants to intercede in the fundamental division of work in favor of the Hospital Health teams? We maintain that the ER Clinic in a hospital unit is only effective if we also aim at analytical listening to the subjects of suffering and the intercession in the institutional establishment, together with their modes of health production and subjectivity. The Intercessor Device was the "method" instrument that we used for the clinical positions in the hospital establishment and the subsequent writing of the reflection in the form of a doctoral thesis. It is less a traditional method of research than a way of operating in praxis, it appropriates elements of Freud and Lacan's Psychoanalysis, the Marxian logical-category complex, Lourau and Lapassade's Institutional Analysis and the Philosophy of Difference (especially with the Deleuzian concept of "intercessors"). We defend that from the point of view of an Ethics of the singularization of desires, averse to the production of health as a serialization of movements of life in society, listening to the subject of the unconscious implies not covering the eyes in front of the instituted models that reiterate the modes of capitalistic sociability in the Health institution. In this way, we expand the concept of Emergency Clinic, based on Psychoanalysis, linking it, in a certain sense, to Marx's thought, with respect to the Brazilian reality and to the ethical-political bases of the Sanitary Reform, a revolutionary movement of health practice that gave rise to the SUS - Unified Health System. Keywords: Emergency Clinic. Psychoanalysis. Marx. Intercessor Device. Hospital establishment. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Estrutura dos discursos – p. 42, 257. Discurso da Histeria – p. 43. Discurso Universitário – p. 44. Discurso do Analista – p. 44. Discurso do Mestre – p. 45, 257. Quadro da angústia – p. 171. Algoritmo da transferência – p. 220. GRAFO – Formações Inconscientes – p. 256. GRAFO – Formações Sociais – p. 256. Discurso do Capitalista – p. 257. GRAFO – Formações inconscientes-Discurso do Mestre – p. 258. GRAFO – Formações sociais-Discurso do Capitalista – p. 259. LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABRAPSO – Associação Brasileira de Psicologia Social ACS – Agentes Comunitários de Saúde APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais AVE – Acidente Vascular Encefálico CA – Câncer CAPS – Centros de Atenção Psicossocial Centro POP – Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social DA – Discurso do Analista DC – Discurso do Capitalista DH – Discurso da Histeria DI – Dispositivo Intercessor Dimpc – Dispositivo Intercessor como meio de produção de conhecimento DM – Discurso do Mestre DU – Discurso Universitário ESF – Estratégias Saúde da Família IBGE –Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPA – International Psychoanalytical Association LATIPPSS – Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e “Subjetividadessaúde” LGBTQIA+ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros, Queer, Intersex, Agêneros e Assexuados. MCP – Modo Capitalista de Produção MS – Movimento Sanitarista NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família OSS – Organização Social de Saúde PEH – Processo de Estratégia de Hegemonia PF – Paradigma Flexneriano PJ – Pessoa Jurídica PPSS – Paradigma da Produção Social da Saúde PS – Pronto-Socorro PSF – Programas Saúde da Família RH – Recursos Humanos RS – Reforma Sanitária s-a-A – saúde-adoecimento-Atenção SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SUS – Sistema Único de Saúde TMD – Teoria Marxista da Dependência UBS – Unidades Básicas de Saúde UPA – Unidades de Pronto Atendimento UTI – Unidade de Terapia Intensiva SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 24 ENSAIO 1 ................................................................................................................................ 27 FUNDAMENTOS BÁSICOS E PRINCÍPIOS PRIMORDIAIS DO DISPOSTIVO INTERCESSOR: um modo de operar e uma questão às disciplinas ................................ 27 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 28 ALGUMAS CARACTERIZAÇÕES DA NOÇÃO DE DISPOSITIVO EM: Foucault, Deleuze e Agamben ................................................................................................................. 29 O Dispositivo em Foucault ....................................................................................................... 30 O Dispositivo em Deleuze ........................................................................................................ 31 O Dispositivo em Agamben: o sagrado e a profanação ........................................................... 32 O DISPOSITIVO INTERCESSOR E OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO SINGULARIZANTES ........................................................................................................... 35 As condições e a conjuntura para a intercessão ........................................................................ 37 O trabalhador-intercessor: da estratégia às suas táticas ............................................................ 41 Os discursos e a produção de laço social .................................................................................. 42 A materialização do DI: ofertas transferenciais e a produção de uma escuta .......................... 50 O lugar do Um a mais ............................................................................................................... 55 Efeitos de intercessão e a instalação do Mais um ..................................................................... 58 O DISPOSITIVO INTERCESSOR E OS SEUS MOMENTOS ........................................ 61 Dispositivo Intercessor como meio de produção de conhecimento (DImpc) e a intercessão-pesquisa ............................................................................................................... 68 A Intercessão-Pesquisa e o intercessor-pesquisador ................................................................ 69 CONCLUIR... ......................................................................................................................... 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 74 ENSAIO 2 ................................................................................................................................ 81 AS PRÁTICAS DE SAÚDE NO CONTEXTO HOSPITALAR: exposição, investigação e análise de uma Santa Casa de Misericórdia ......................................................................... 81 INTRODUÇÃO: a experiência e as suas questões .............................................................. 82 HOSPITAL: instituição e história social .............................................................................. 84 O método expositivo e investigativo: análise do campo hospitalar de Atenção ao sofrimento ................................................................................................................................ 88 DOENÇA-CURA, A HEGEMONIA DO SABER MÉDICO E O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA ............................................................................................... 98 PARADIGMAS E OS SEUS MODOS DE PRODUÇÃO ................................................. 105 Princípios de tratamento e a análise de um caso .................................................................... 109 O paradigma da normatividade e o paradigma histórico-estrutural ....................................... 115 CONHECIMENTO DE CAMPO E ANÁLISE DO ESTABELECIMENTO ................ 117 Estabelecimentos e Rede: desarticulação, ausência e sucateamento ...................................... 120 A característica empresarial e o voluntarismo ........................................................................ 124 Parâmetros da análise paradigmática ...................................................................................... 129 MOVIMENTO SANITÁRIO E REFORMA SANITÁRIA: Políticas Públicas e sociais ................................................................................................................................................ 141 CONCLUSÃO: a teorização imprescindível ...................................................................... 144 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 146 ENSAIO 3 .............................................................................................................................. 152 O DISPOSITIVO CLÍNICA DA URGÊNCIA E O PRELÚDIO ÀS ENTREVISTAS . 152 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 153 PATHOS E A NORMALIDADE ......................................................................................... 154 A CLÍNICA DA URGÊNCIA: TRAUMA, ANGÚSTIA, MORTE E URGÊNCIAS .... 157 Clínica da Urgência e seus fundamentos ................................................................................ 160 Trauma e desamparo ....................................................................................................... 163 A Angústia....................................................................................................................... 165 A morte na vida ou a vida que há na morte? A vida que da morte há por se fazer ......... 173 Clínica do acting-out e da passagem ao ato ........................................................................... 178 O tempo na urgência ............................................................................................................... 181 A ESCUTA À URGÊNCIA ORGÂNICA COMO DISPOSITIVO DA URGÊNCIA SUBJETIVA: a inscrição de um significante ..................................................................... 183 Urgência propriamente dita .................................................................................................... 184 Urgência orgânica-generalizada ............................................................................................. 186 Instalação da urgência ............................................................................................................ 187 Urgência subjetiva .................................................................................................................. 189 Urgência social ....................................................................................................................... 190 Intercessão na urgência ........................................................................................................... 192 Urgência e suas conclusões .................................................................................................... 195 CLÍNICA DA URGÊNCIA: estratégia para o prelúdio às entrevistas preliminares .... 196 Prelúdio às entrevistas: a construção do dispositivo .............................................................. 203 A regra fundamental: falar com as paredes e não às paredes ................................................. 207 O estilo sintomático e a questão do diagnóstico ..................................................................... 212 Urgência na neurose ........................................................................................................ 215 Urgência na psicose ......................................................................................................... 216 O enlace transferencial: queixa sem demanda, demanda de análise ...................................... 218 O desejo de analisar ................................................................................................................ 227 NOTAS BREVES SOBRE OFERTAS OUTRAS: a recepção de grupo na urgência ... 229 PARA COMPREENDER E CONCLUIR .......................................................................... 232 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 235 CONSIDERAÇÕES FINAIS: algumas notas sobre os limites da práxis psicanalítica na sociabilidade capitalista brasileira ...................................................................................... 246 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 269 16 APRESENTAÇÃO Psicólogo advertido pela Psicanálise e pelo complexo lógico-categorial marxiano No ano de 2012, em nossa Iniciação Científica, ainda no curso de Graduação em Psicologia, avaliamos a pertinência da escuta orientada pela Psicanálise em um Pronto-Socorro (PS) de uma cidade do Interior Paulista. Na sequência, o Mestrado serviu para delinearmos a experiência de um psicólogo em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), atuando segundo a abordagem prática e teórica (práxis) do Dispositivo Intercessor (DI). A conclusão da dissertação de Mestrado forneceu duas indicações: 1) O necessário exercício do psicólogo, na perspectiva ética do agente principal do DI, o trabalhador-intercessor, como operador da escuta aos sujeitos1 em sofrimento e articulador de Redes – seguindo os ideários da Saúde Coletiva; e, 2) As (im)possibilidades de atuação do trabalhador da Saúde, atravessado pela Ética do desejo e do carecimento (na concepção de trabalho art fornecida por Marx). Consideramos que o desempenho da ação institucional em saúde, numa Unidade hospitalar, regida pelo Modo Capitalista de Produção (MCP) em sua versão mais avançada (COSTA; COSTA-ROSA; AMARAL, 2016; COSTA, 2016), encontrou significativos percalços. A tese de doutorado, por sua vez, derivada da intercessão-pesquisa, é o resultado da práxis em uma Santa Casa de Misericórdia – Estabelecimento institucional de natureza privada- caridosa-filantrópica com ofertas de atendimento ao público a partir do SUS (Sistema Único de Saúde), em um município do Interior Paulista. O psicólogo advertido pela Psicanálise de Freud e Lacan e por Marx, proposição clínico-teórica de Costa-Rosa (2019a), foi a posição assumida, próxima aos sujeitos do sofrimento e do coletivo de trabalhadores, particular ao DI e ao trabalhador-intercessor. E por que advertido pela Psicanálise e não praticante da psicanálise ou simplesmente psicanalista? Respondemos que é em razão do tipo de transferência e suposição 1 No decorrer do texto, e ao longo dos ensaios, referimo-nos às pessoas em tratamento e aos seus acompanhantes de dois modos: ora como “pessoa”, ora como “sujeito”. Para além dos conceitos de pessoa como ser humano e sujeito como o que aparece na relação com o Outro, por meio da linguagem, ambas as locuções convergem para a semântica de serem uma função gramatical que indica quem fala, ou de quem se declara alguma coisa, ou seja, “pessoa” e “sujeito” podem ser sincronicamente sujeito e objeto em uma oração. Em alguns momentos fazemos uso das categorias “sujeito em sofrimento” e “sujeito do sofrimento”, como sinônimos daquele que está em tratamento hospitalar. Seguimos o ensino de Lacan, para atestarmos a junção entre “sujeito” e “sofrimento” nos moldes de um termo, os dois significantes são encarados como fatos pelo psicanalista. De um lado, o sujeito é um fato de discurso que se verifica nos efeitos de linguagem numa análise, do outro lado, o sofrimento é também um fato que tem a sua linguagem e se dirige a uma verdade (LACAN, 2008). 17 de saber-fazer que por hipótese difere da qual recai o analista, uma vez que se trata essencialmente de estar mais próximo da realidade e da posição assumida por um trabalhador “comum”; embora, possamos testemunhar o que é a vivência de uma análise pessoal, da supervisão de caso e do atendimento clínico em um consultório, no que concerne ao ensino e a transmissão psicanalítica (LACAN, 2003). Nomeamo-nos como psicólogo advertido pela Psicanálise, ou trabalhador-intercessor orientados pelo complexo lógico-categorial marxiano, em função de três pretensões: prescindir, servir-se e suprassumir a Psicanálise. Portanto, prescindir [parcialmente] da Psicanálise é no mínimo nos livrar das heranças burguesas e classistas pelas quais a Psicanálise se forjou e atualmente se ratifica (ALEMÁN, 2009; ALTHUSSER, 1984; POLITZER, 1994, ROZITCHNER, 1989). Servir-se da Psicanálise é usufruir do germe e do caráter revolucionário que nela habita (ALTHUSSER, 1984; LIPPI; LANDMAN, 2013). E, suprassumir a Psicanálise é utilizá-la como mais-uma ferramenta dentre outras, na interlocução com os demais campos do saber e do conhecimento, intensificando-a a outros graus de determinação, ao nosso interesse, para a figura do trabalhador-intercessor e nos propósitos do DI (COSTA-ROSA, 2019a). O DI foi o instrumento de “método” que usamos para o posicionamento técnico, no Estabelecimento hospitalar e na posterior escrita da reflexão, em forma de tese de doutorado. Destacamos que ele é menos um método tradicional de pesquisa, do que um modo de operar na práxis. De acordo com Costa-Rosa (2019b), seu criador, é uma ferramenta transdisciplinar com a meta ética de in acto e in vivo superar os processos cristalizantes da produção de subjetividade no campo das Políticas Públicas sociais (mesmo que tenha inicialmente surgido no contexto da Saúde Mental Coletiva). Para a sua composição, apropria-se principalmente de elementos da Psicanálise de Freud e Lacan e do complexo lógico-categorial marxiano, além de se beneficiar da Análise Institucional de Lourau e Lapassade e da Filosofia da Diferença (em especial do conceito deleuziano de “intercessores”). No que diz respeito ao seu modo de reflexão, acrescentamos que a intercessão-pesquisa é o meio de funcionamento clínico-teórico do DI, o qual segue à risca a preconização freudiana a respeito do método psicanalítico. “Estamos tão prontos agora, como o estávamos antes, a admitir as imperfeições da nossa compreensão, a aprender novas coisas e a alterar os nossos métodos de qualquer forma que os possa melhorar” (FREUD, 1996, p. 173). Neste sentido, a experiência vem em primeiro lugar e, em relação à teoria, não precisaríamos necessariamente da Universidade caso quiséssemos refletir a nossa prática (COSTA-ROSA, 2019c). 18 O outro objetivo do DI, como já se nota, é interrogar o saber universitário “comum” e produtor de dados rendido ao discurso capitalista, mostrando-nos que o ponto de partida é ser intercessor-pesquisador, radicalmente oposto ao pesquisador que quer saber pelo outro e, para tal, vai a campo rapinar as informações dos atores institucionais e depois delas fazer livros, os “manuais universitários”. A pretensão é que a Universidade não seja propriedade dos intelectuais, de modo que ela possa se tornar um lugar para os trabalhadores pensarem sobre o seu fazer. Contrariamente a este tradicional posicionamento do pesquisador na Universidade, o trabalhador-intercessor é a postura anterior, em definição lógica, do intercessor-pesquisador. É o trabalhador transdisciplinar que tem como sua a causa da classe trabalhadora (a qual ele próprio entende como pertencente) e das lutas populares. Quando está em ação não está fazendo pesquisa, pois, a sua teorização é incontestavelmente uma etapa a ser realizada ao cabo da práxis propriamente dita. Nesta, a ação-reflexão de seus movimentos é para a escuta aos sujeitos em sofrimento e em tratamento, dispondo questionar a instituição de seus modelos capturantes, ofensivos ao desejo e à singularidade do sujeito (COSTA-ROSA, 2019a). Neste caso, a práxis exercida enquanto trabalhador-intercessor não foi decorrente de um contrato trabalhista. Devido à ausência de processos seletivos e concursos no chão de trabalho que era de nosso desejo, vimo-nos na situação de solicitar à Santa Casa firmar um acordo que pudesse prever a atuação de Psicólogo no hospital. Afinal, seria uma oportunidade de apr[e]ender/contribuindo com o Estabelecimento, visto que ainda não tínhamos trabalhado em uma Unidade hospitalar de média para alta complexidade na Atenção ao público. Atestamos que em nada nosso trabalho se comparou com um ato de “voluntarismo”. Sentíamos pagos pela chance de atuar em um local de nossa vontade, importante para a contínua e ininterrupta formação de trabalhador-intercessor. Beneficiamo-nos de haver um professor universitário, aposentado, como provedor do hospital, ele compreendeu que a nossa oferta de trabalho não se tratava de uma pesquisa, aos moldes tradicionais. Contudo, houve uma dúvida da provedoria do Estabelecimento sobre se os atendimentos seriam também para os trabalhadores, à qual respondemos que não. Pontuamos que, com os trabalhadores, construiríamos os processos de escuta e os projetos de atendimento para os sujeitos do sofrimento que se tratavam no hospital. O pretendido era o engajamento das pessoas, recepcionadas pela Santa Casa, em um tratamento psíquico que, posteriormente, pudesse ter a sua continuidade noutro lugar com um outro psicólogo ou trabalhador de Saúde Mental. Feitas as explanações, foi solicitado que elaborássemos um projeto e, no modelo de uma pesquisa, que este fosse submetido ao Comitê de Ética de uma faculdade qualquer. Como não queríamos nos 19 vincular a nenhum contrato de voluntarismo, por uma questão ética e simbólica de que se tratava este trabalho, concordamos em aceitar a exigência. O projeto foi elaborado e enviado para o Comitê de Ética e, após a sua aprovação, foi protocolado no setor de Recursos Humanos (RH) do hospital. Em seguida, foi marcada uma reunião em que estiveram presentes um enfermeiro chefe da Santa Casa, a psicóloga do RH e a sua auxiliar. Foi explicada a proposta de trabalho e o intuito de estar como psicólogo junto aos sujeitos do sofrimento, bem como próximo aos seus acompanhantes. A intensão era fazer o que já se fazia no SUS: escutar os sujeitos e levar em conta a Rede de Saúde2 e as Unidades que lhes eram referência no Território. Semanas depois deste encontro, fomos convidados de novo para uma outra reunião, desta vez era somente com a provedoria do hospital, na presença de uma doutoranda em Fisioterapia, interessada em pesquisar no Estabelecimento. Um fato curioso do qual gostaríamos de comentar, já na sala de espera, conversando com a doutoranda, ao sermos indagados sobre o que fazíamos, argumentamos, quando ela nos questionava inconformada que o modo nosso de “pesquisar” era avesso ao tradicional, que a nossa presença na Santa Casa não tinha um modelo prévio de pensamento a ser aplicado em campo. Destacamos que se havia um a priori, este dizia respeito à práxis de escutar os sujeitos do sofrimento e que estes não eram “sujeitos” de pesquisa, eram na verdade aqueles que poderiam vir a demandar um tratamento psíquico. Neste caso, o nosso ponto de partida seria sempre estarmos dispostos a oferecer um tratamento pela palavra. Na reunião com a provedoria, foram acertados as arestas e o início do trabalho. Ao receberem a proposta de atuação psicológica no hospital, decidiram que a possibilidade de implementação de uma prática destas na Unidade seria pensada a partir da nossa experiência. Portanto, iríamos auxiliá-los a perceber se um psicólogo na Santa Casa seria relevante ou não (neste sentido, a nosso ver, desde o início a nossa inserção já se demonstrava intercessora). A despeito de não estarmos oficialmente como um psicólogo remunerado, no quadro legal de funcionários do Estabelecimento, fomos incluídos na organização de fluxograma e organograma da Unidade de Saúde. Mesmo que desde o término da graduação tenhamos trabalhado, seja via concurso ou contrato trabalhista em instituições de Saúde Mental e Assistência Social, o âmbito hospitalar de Atenção aos sujeitos sempre foi de nosso interesse. Encantamo-nos pela aposta e pelo 2 Os conceitos de Rede e Território foram descritos significativamente em tópicos da intercessão-pesquisa que coube à Dissertação de Mestrado (COSTA, 2016). Em vista disso, na Tese de doutorado privilegiamos uma análise mais detida e consistente em volta do Estabelecimento e da materialização das práticas de saúde no hospital. 20 desafio, experimentados logo nos estágios da faculdade de Psicologia, de construir condições para a realização da ampliação do dispositivo analítico, em um contexto onde reside uma concepção organicista e hospitalocêntrica do sofrimento. Fomos atravessados pela motivação de resistir aos saberes hegemônicos, instituídos, ficando lado a lado dos discursos bloqueados e assujeitados. Sendo assim, elegemos o campo hospitalar para exercer a ética da qual partilhamos, local onde habita o império do Discurso Médico representando a Ciência e os valores que são estimulados pelo MCP. A práxis das urgências e a escrita por ensaios A identificação com a classe operária, com os povos historicamente minorizados, por sua condição de pauperização e de outros marcadores sociais, tem a ver com a nossa história familiar e particular. Alocados no DI e mobilizados pela práxis das urgências, nossas indagações giraram ao redor da seguinte questão: é possível no contexto da Saúde Coletiva uma Clínica da Urgência que além de ofertar a escuta analítica aos impasses psíquicos, queira interceder na divisão fundamental do trabalho, em favor da classe trabalhadora e das equipes de Saúde hospitalar? Procuramos responder a esta questão por intermédio da escrita por ensaios, com o intuito de alcançar os trabalhadores da Saúde interessados nos estudos da Psicanálise de Freud e Lacan, em interlocução necessária com a obra de Marx. Para Benelli (2020), o propósito do ensaio é realizar a exposição de uma unidade discursiva em prosa, com interrogações e discussões acerca de um objeto. É um estilo de organização do pensamento científico que é resultado de uma imersão ativa em um determinado campo de análise, sem pretender esgotá-lo. No caso da existência de objeções a este método de escrita, em uma dissertação ou tese, poderão haver alguns pesquisadores que podem argumentar que a escrita por ensaio serve a um modelo capitalista de produção textual que visa à publicação imediata de trabalhos científicos. Questionamos as referidas objeções: não será a escrita por capítulos o método secular e positivista, de enquadramento de um objeto em um modelo de pensamento linear e previamente estipulado: teoria, método, resultados, descrição, análise e discussão de dados? O pesquisador, na sua forma hegemônica, possui as respostas antes mesmo de as encontrar e vai ao campo somente para constatar o que já sabia, com seus clássicos instrumentos de pesquisa. “A Universidade, no apogeu de seu período positivista, tendo fixado as regras e os cânones da pesquisa exaustiva séria, rechaçava o ensaio e o ensaísmo às trevas exteriores, com o risco de 21 banir, no mesmo movimento, o brilho do estilo e as audácias do pensamento” (STAROBINSKI3, 2011, p. 15). Sustentamos que o ensaio tem a característica de uma criação singular e livre, não pretende fechar uma questão ou trazer uma resposta cabal à construção de texto relacionada ao problema estudado. Conforme Starobinski (2011), o ensaio costuma propor ideias novas e uma interpretação original a respeito de um tema. Isto posto, será o método de escrita por ensaio uma prática de propriedade somente dos velhos pensadores ou pesquisadores gabaritados, com volumes de produção científica, os quais possuem a sua carreira já consolidada? Vamos responder a esse ponto de vista com uma observação, colhida de orientações de pesquisa com o professor Abílio da Costa-Rosa4, com quem trabalhamos da graduação até a metade do percurso no doutorado: [...] se não for para escrever por ensaios agora, quando escreveremos? Trata-se de uma escrita nos moldes dos textos em Psicanálise. Freud escrevia por ensaios, era interpelado pela realidade e se enxergava convocado a responder uma questão que não se pretendia acabada e sentenciadora de uma posição. O ensaio é muito mais o esboço de uma posição de autor, em um lugar onde a academia quer enquadrar o potencial criativo daquele que reflete sobre a sua prática. Por que não escrever por ensaios? É para escrever como todo mundo escreve? Quando então estaremos preparados para escrever nessa vida? Esse discurso do professor Abílio foi proferido em uma reunião de orientação de doutorado, após uma banca de defesa de um de seus orientados, companheiro em nosso Laboratório de Intercessão-Pesquisa. Lembramos mais uma vez, com Benelli (2020), que Marx, Freud e Foucault, escreviam por ensaios. Acreditamos que defender uma tese respaldados nos referenciais da Psicanálise, de Marx e de algumas contribuições da Filosofia da Diferença, é também buscarmos aproximar a escrita do texto na mesma senda desses autores. Sabemos que o fato de sermos jovens no terreno da pesquisa não depõe a favor de uma ausência de rigor de nossa parte. Portanto, é coerente com a ética do DI a escrita por ensaios. Seus operadores linguísticos incluem os seguintes: a linguagem procura ser direta, sensível, rigorosa e elegante e o estilo é marcado pelo recorte pessoal do autor. A redação do texto pode ser mais ou menos complexa, dependendo da singularidade do autor e, ao mesmo tempo, busca ser direta, visando à objetividade científica, pois constrói sua coerência através da lógica com que organiza seu conteúdo, sem pretensão de atingir um grau de certeza sobre a verdade final das coisas (BENELLI, 2020, p. 22). 3 Trata-se do discurso pronunciado pelo autor por ocasião do recebimento do Prêmio Europeu do Ensaio. Tradução de Bruna Torlay. 4 Comentário de Abílio da Costa-Rosa em reunião de orientação com os doutorandos em abril de 2018. 22 Conferimos ênfase às palavras de Benelli, em relação ao estilo do autor ensaísta, marcado pelo seu recorte pessoal. A intercessão-pesquisa, ao contrário de abordar uma investigação e metabolização de dados extraídos por um pesquisador inclinado “sobre” o objeto, diz respeito às indagações suscitadas ao trabalhador-intercessor nos instantes da sua experiência de trabalho, mostrando-lhe os limites de seu método e de sua práxis. Escrever por ensaios não nos desobriga de sermos rigorosos, pelo contrário, exige-nos uma ampla gama de estudos em torno dos variados temas enlaçados ao núcleo de nossa questão de intercessão- pesquisa. Assim, estruturamos o nosso trabalho em três ensaios. Cada ensaio possui a sua “tese”, a defesa de uma posição perante o recorte da realidade que se pretende realizar com a teorização da práxis, contudo, as questões de cada ensaio estão articuladas em torno do objeto central da intercessão-pesquisa que se efetuou. Os temas de reflexão eleitos foram evocados pela experiência do trabalhador-intercessor, estão conectados ao problema fundante de nossa tese de doutorado: a práxis da Clínica da Urgência em uma Unidade hospitalar, instrumentalizada pelo DI, só é efetiva se visamos igualmente a escuta analítica aos sujeitos do sofrimento e a intercessão no Estabelecimento institucional, junto aos seus modos de produção de saúde e subjetividade. Nesse sentido, não existe trabalho dentro de uma instituição sem considerá-la, não há como não sofrer os efeitos de seus atravessamentos. Por se tratar do exercício reflexivo de uma práxis, entendemos que é coerente escrever os ensaios em primeira pessoa do plural. O objetivo é que possam ser lidos separadamente numa perspectiva lógica e não cronológica, apesar de termos escolhido uma sequência para a leitura de nosso público interlocutor. O primeiro ensaio, por exemplo, inclina-se por definir o Dispositivo Intercessor, referencial de “método” utilizado. Buscamos descrever as bases filosóficas que fundamentam os seus postulados teóricos, em Foucault (1988), Deleuze (1996) e Agamben (2009). Terminamos por expor, por meio da exibição de fragmentos da nossa experiência de trabalho, as elaborações de Costa-Rosa (2019a; 2019b; 2019c). Discutimos a formalização do Dispositivo Intercessor e a sua materialização no trabalhador-intercessor e na intercessão-pesquisa, modo de operar na práxis que sustentou todos os passos no posicionamento da escuta e seus deslocamentos pelo hospital. O segundo ensaio, sob a influência do pensamento marxiano, debate a instituição de Saúde, representada na Santa Casa de Misericórdia. Realizamos uma análise do campo hospitalar e expusemos algumas categorias, intensificando-as à concretude dos acontecimentos. Desenvolvemos junto a isso a leitura dos paradigmas em Mendes (2006), com base nas contribuições de Marx e conciliada à proposição de parâmetros por Costa-Rosa (2013). 23 Buscamos analisar os paradigmas de Atenção no âmbito da Saúde hospitalar e descortinar as suas práticas no Estabelecimento, em vias de uma produção de saúde congruente às demandas das classes populares e opostas aos interesses do MCP. O terceiro ensaio, por fim, propõe o alargamento da noção de Clínica da Urgência. Em razão da extensiva pesquisa bibliográfica acerca do conceito, realizada na Iniciação Científica e no Mestrado (COSTA; COSTA-ROSA; AMARAL, 2016; COSTA, 2016; COSTA; COSTA- ROSA, 2018; COSTA, 2019; COSTA; COSTA-ROSA, 2021) optamos, com os subsídios teóricos pincelados, por sugerir nossa própria concepção de Clínica da Urgência orientada pelo DI. Estipulamos expressões da urgência, tanto no plano do acontecimento quanto no nível dos fenômenos psíquicos vividos pelos sujeitos. Indicamos novos modos de manejo do dispositivo na instituição, propondo uma forma de aplicabilidade de um tratamento preliminar às entrevistas preliminares na Psicanálise, nomeado de “prelúdio às entrevistas”. O esforço foi explorar os caminhos para uma escuta psicanalítica, multiplicando as suas possibilidades de alcance e acesso aos sujeitos, em um contexto diverso do consultório privado, levando em consideração a realidade apresentada pelo Estabelecimento institucional. Sublinhamos que cada ensaio nesta tese tem as suas contribuições para a práxis da Clínica da Urgência na Unidade hospitalar. Eles estão enodados na medida em que mostram a profundidade dos temas que permeiam o objeto da intercessão-pesquisa. Neste aspecto, lembramos da transmissão de Costa-Rosa em nossas orientações: “a realidade é sempre mais complexa do que qualquer teoria, portanto, estudar a teoria é o mínimo do mínimo, para o que podemos fazer diante dos fenômenos que nos apresentam”5. Em vista disso, a ação-reflexão inscrita no texto assinala, em acordo com os seus respectivos problemas, os impasses, as dificuldades, as reflexões e as proposições do psicólogo, trabalhador-intercessor, em relação ao seu lugar no campo da Atenção hospitalar. Destacamos ainda que, durante o transcorrer do doutorado, fomos interpelados por várias experiências e encontros intercessores: pela nossa própria práxis profissional ao longo do tempo da intercessão-pesquisa; realizamos estudos intensos de algumas obras de Marx (1982; 2010; 2011a; 2011b; 2013; MARX; ENGELS; 2007; 2009); estivemos atuando como membro titular da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo (em uma ação conjunta com a população indígena e com um instituto6 que age no combate à discriminação, ao racismo e à intolerância); tivemos a oportunidade de 5 Reflexão partilhada por Abílio da Costa-Rosa, em reunião de orientação clínico-institucional em março de 2018, relacionada a abordagem do Dispositivo Intercessor no contexto hospitalar da Saúde. 6 Instituto Zimbauê (Fonte: https://www.facebook.com/institutozimbaue/). 24 realizar um estágio de pesquisa em Paris, na França, financiado pela FAPESP (Número do Processo: 2019/10472-3), durante o período de 01/10/2019 a 30/09/2020, onde descobrimos a Psicanálise Menor por meio de nosso supervisor Thamy Ayouch (2018) e conhecemos o trabalho de Hervé Hubert (2017) com a Psicanálise Social e a Análise Prática Psicossocial. Esses encontros intercessores nos ajudaram a formular perguntas no que tocam a psicanálise, sobretudo, no que diz respeito aos limites que nos colocou a práxis no hospital. Para tanto, nas considerações finais achamos importante abordar a relação da política [capitalista] com a Psicanálise. Partimos de um diálogo/interlocução fértil entre o complexo lógico-categorial marxiano e a Psicanálise de Freud e Lacan. As premissas desta interlocução visam um respaldo em Marx (2010; 2013) como meio de encontrar na Psicanálise um caráter revolucionário e subversivo para a realização de sua práxis. Seguindo a linha de Lacan, reconhecemos em Marx o precursor do estádio do espelho, o inventor do sintoma e um poeta (LACAN, 1977-78; 1999; 2008). Apostamos que as contribuições da obra marxiana nos exibem pistas de análise de como ir além da sociabilidade capitalista, quando esta se situa no espaço de trabalho das políticas. Portanto, a nossa postura no hospital teve como base uma Psicanálise crítica às formações sociais burguesas, com o compromisso de tensionar as práticas instituídas, ostensivas ao desejo e às capacidades múltiplas de se relacionar com o gozo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 25-54. ALEMÁN, J. Para una izquierda lacaniana: intervenciones y textos. Grama Ediciones: Buenos Aires, 2009. ALTHUSSER, L. Freud e Lacan, Marx e Freud (1964-1976). Rio de Janeiro: Graal, 1984. AYOUCH, T. Psychanalyse et hybridité : genre, colonialité, subjectivations. Leuven : Leuven University Press, 2018. BENELLI, S. J. Figuras da clínica “psi” na contemporaneidade: o olhar, a escuta e a sensação. 2020. Tese (Livre Docência em Psicologia Clínica) [não publicada]. Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, São Paulo, 2020. COSTA-ROSA, A. 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As alegações sustentadas refletem não apenas o que julgamos ser a base ética das ideias que estão na tese, são decididamente o posicionamento do intercessor-pesquisador às voltas com os efeitos de seu trabalho junto à instituição. Poderiam nos interrogar: “se o tema desta pesquisa é a Clínica da Urgência, por que diabos o desejo em pretender falar de capitalismo?”. Respondemos que em circunstância das pulsações sociais que desaguam no hospital e estão suplantadas na evidente percepção de que a imensa maioria das pessoas atendidas eram pobres (superexploradas), logo, e dessa maneira, concebemos que o retorno ao complexo lógico-categorial marxiano é imprescindível neste percurso (PETO, 2018). A atuação em uma Santa Casa de Misericórdia, hospital de média para alta complexidade em uma cidade do Interior Paulista, subsidiou-nos a teorização de um particular modo de operar com a Clínica da Urgência em uma Unidade hospitalar, orientada pelo Dispositivo Intercessor. Sustentamos a validação de uma escuta aos sujeitos do sofrimento que seja indissociável da intercessão na divisão social do trabalho. Defendemos que do ponto de vista de uma Ética da singularização dos desejos, avessa à produção de saúde como serialização de movimentos da vida em sociedade, escutar o sujeito do inconsciente implica não tapar os olhos frente aos modelos instituídos, desconsiderando-os, que reiteram as formas da sociabilidade capitalista no Estabelecimento institucional. Cumpre observarmos que mesmo em termos de Políticas Sociais, geridas pelos dispositivos financiados pelo Estado, cada vez mais as Organizações Sociais da Saúde têm ocupado o espaço de atendimento ao público. Foi em razão deste dado, que no Ensaio 2 estendemos a noção de Saúde Pública aos Estabelecimentos de natureza não-governamental, os mesmos têm ofertado uma Atenção de origem estatal à população. Em nosso ponto de vista, este é um retrocesso para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para os movimentos sociais que ajudaram a fundar este sistema. 247 Concebemos que o fomento às políticas de iniciativa privada, para gerir os dispositivos de Saúde, é um desserviço à população mais pobre e vai na contramão dos princípios fundamentais do SUS, privilegiando aqueles que já são privilegiados socialmente pela sua condição de classe, de raça, de gênero e de sexo. As demandas conjunturais da população e singulares a cada sujeito são deixadas de lado, ocorre que há nessa rejeição um deslocamento das ações territoriais para atendimentos de caráter imediatista, centrados nos binarismos queixa- resposta e carência-suprimento. Para uma práxis das urgências consideramos ao menos três planos de intercessão- análise-pesquisa, entrelaçados de maneira lógica: 1) a escuta do sujeito do inconsciente em tratamento; 2) o trabalho para que o sujeito teça as suas próprias redes no Território, em continuidade à experiência subjetiva de tratamento no hospital; 3) A atuação ao lado das equipes e do coletivo de trabalhadores, na intensão de tensionar a divisão do trabalho que transforma o Estabelecimento em modelo fabril de atendimento. Os efeitos da experiência do psicólogo advertido pela Psicanálise e por Marx, ocupando posições de trabalhador-intercessor, mostrou-nos o funcionamento de um hospital se intensificando em práticas de saúde no modo grupos-sujeitos e horizontalização de relações sociais (COSTA-ROSA, 2019a). As formas de ação propostas pelo Movimento Sanitário nos inspiraram para o ensaio de uma escuta analítica com inclinação ao enfrentamento de desigualdades sociais. Os postulados de Marx foram a base para estarmos em uma práxis psicanalítica não guiada por princípios burgueses, auxiliando-nos no horizonte de um SUS norteado prioritariamente às demandas das classes populares. Atestamos a validade ética de nossas ações por meio da abertura do Estabelecimento hospitalar, este, no que lhe concernia, tinha uma flexibilidade em permitir a existência de práticas instituintes: o reconhecimento de uma dimensão psíquica no sofrimento; a aquiescência para implementação de grupos de trabalho, de caráter formativo e crítico, com as equipes da Unidade; a autorização para oferta de recepções-escuta de grupo; e, a articulação em Rede para o acompanhamento e o encaminhamento de casos referenciados pela Saúde Mental do município. Entendemos que os princípios da Saúde Coletiva, influenciados como são pela abordagem marxista, são um guia para a práxis hospitalar. Levamos em consideração os determinantes sociais como produtores da doença, os marcadores de raça, de sexo e de gênero, imbricados às condições de classe, são determinantes na produção de saúde-adoecimento- Atenção e de subjetividades. É substancial nos darmos conta das múltiplas expressões do 248 sujeito, circunscrevendo-os como constituídos numa particular conjuntura histórica-social- econômica. Outrossim, miramos a noção saúdessubjetividade (a compreensão de que não há produção de saúde que não seja uma produção de subjetividade) como modelo de prática para a direção do tratamento e as produções de saúde que esperávamos. O nosso panorama de intercessão, buscou uma produção de saúdessubjetividade singularizada, nos atendimentos aos sujeitos e nas parcerias com os colegas trabalhadores (COSTA-ROSA, 2013). Está imbuída na compreensão de saúde-doença apresentada, a admissão de que mesmo nas urgências orgânicas há, inseparável delas, a experimentação de impasses psíquicos, a realidade fisiológica do corpo humano está vinculada à realidade psíquica. Encontramos em Lacan (2001), tendo ele visitado e proferido uma releitura da obra freudiana, uma premissa ética acerca destas presunções: a epistemo-somática. As dores psíquicas, físicas e os fenômenos psicossomáticos, por exemplo, podem ser explicados à luz da hipótese de um corpo como substância e ente gozante. Sobreposto às feridas e lesões que atingem o organismo, há uma relação lógica e constitutiva dos registros psíquicos atreladas a elas, estas respondem à vivência do Acidente, nos encontros com o Real. Esse conjunto de teorizações, a respeito do plano social das relações de trabalho e da compreensão subjetiva dos fenômenos do adoecimento, compõem de certa maneira a conceituação de Clínica que sugerimos para o contexto hospitalar. Partimos de uma Clínica da Urgência diversa dos psicanalistas argentinos e de outros que foram estudados nesta tese (BELAGA, 2005; SOTELO, 2007a; 2007b; 2007c; 2007d), na medida em que introduzimos, próximo à escuta dos sujeitos, os elementos integrantes das formações sociais. Ampliamos a concepção de Clínica da Urgência a partir da Psicanálise relacionando-a com a realidade brasileira e com os eixos de ação do Movimento Sanitário brasileiro: movimento revolucionário da classe trabalhadora que deu origem ao SUS. Para tanto, com o término da práxis e influenciados pelas reflexões que dela vieram, fomos inspirados a sugerir a formalização do “prelúdio às entrevistas”, ferramenta de anterioridade lógica a todo tratamento em Psicanálise nas instituições: tratamento prévio de entrada às entrevistas preliminares. Indicamos que perceber as filigranas de uma escuta analítica em um Estabelecimento hospitalar, revela a necessidade de não aplicarmos a Psicanálise do consultório na Unidade de Saúde. Arranjamos o espaço institucional para quem sabe a Psicanálise possa nele caber. O primário na intercessão-pesquisa é não desconsiderar o coletivo de trabalhadores, a configuração arquitetônica e organizativa dos atendimentos ofertados pelo Estabelecimento, bem como da Rede na qual este último está inserido. 249 A Clínica da Urgência que operamos na Santa Casa foi baseada na abordagem multirreferencial “Dispositivo Intercessor” (DI). Embasado em uma ação-reflexão de cunho transdisciplinar, o DI propõe a subversão dos saberes instituídos pelo capital e a superação dialética das disciplinas. Afirmamos a possibilidade de assegurar, em uma determinada leitura, que Freud (1996a; 1996b) não opõe o orgânico ao psíquico e muito menos o social ao individual. É notório dizer que o DI dialoga com preceitos teóricos não binários em suas formulações reflexivas, uma vez que a busca é por tensionar os limites das referências universitárias que são tecnicistas ou transcendentalistas. No que nos concerne, mencionando os impasses que a realidade nos trouxe, vimo-nos na necessidade de interrogar os limites de nossa experiência, advertidos pela psicanálise, na conjuntura formação social capitalista. Sendo assim, sintonizados com o horizonte ético- político do DI, encontramos na Psychanalyse Mineure72 (AYOUCH, 2018) e na Psychanalyse Sociale73 (HUBERT, 2017) veículos de intercâmbio importantes quanto ao que pretendemos aspirar em torno de nossa prática. Ayouch (2018) sugere a Psicanálise Menor como um questionamento ao discurso psicanalítico em suas heranças binárias. A ideia é privilegiar uma escuta que tenha a sua atenção voltada aos sujeitos minorizados, em suas identificações singulares contemporâneas e em seus processos de subalternidade e subalternização, para além das normatividades sociais, culturais e de gênero que são classistas, racistas, sexistas e misógenas. Em uma linha de trabalho similar, o psicanalista Hervé Hubert74 (2017) propõe a Psicanálise Social como uma práxis que tem como objeto primeiro o “social”, o seu campo de intervenção é a análise dos processos sociais e políticos que consideram o sujeito como um ser social, no sentido marxiano do termo. O objetivo da Psicanálise Social é notabilizar a transferência e, nomeando-a de transferência social, analisar o não-sabido da formação social e das formações psíquicas. Dentro deste arcabouço clínico-teórico e ético-estético, o DI, através da postura do trabalhador-intercessor e do intercessor-pesquisador, é o que garante os alcances da Clínica da Urgência como um modo de operar subversivo, no enfrentamento às desigualdades sociais e na escuta de sujeitos em sofrimento psíquico. Tal especificidade de trabalho, orienta-nos rumo ao 72 Psicanálise Menor (tradução independente) 73 Psicanálise Social (tradução independente) 74 Fonte: http://www.apps-psychanalyse-sociale.com/atelier-pratique-psychanalyse-sociale. Acesso em: 18 de maio de 2020. 250 resgate do caráter revolucionário75 da Psicanálise e nos afasta de sua prática convencionalmente “individualista”, restrita aos consultórios privados. Uma posição da psicanálise sobre os fenômenos sociais e políticos Todavia, diversamente das ditas práticas individualistas, a experiência enquanto trabalhador-intercessor, e a sensação de recuperar uma dimensão subversiva da Psicanálise, evocaram algumas perguntas: a Psicanálise tem em sua teoria e prática a proposição de uma práxis revolucionária para ser recuperada? Como aparece a sua postura subversiva? O que dizem de revolucionário os psicanalistas a respeito de temas debatidos no cenário contemporâneo, como por exemplo, sobre as instituições, a desigualdade social, a segregação, o racismo, o machismo, a homofobia e a política? Acreditamos que em relação aos fundamentos éticos do DI, é fundamental o tensionamento das abordagens referenciais inerentes ao seu modo de operar, por meio da experiência do trabalhador-intercessor, de modo a afastá-las do caráter disciplinar pelo qual poderiam ser atravessadas e atravessadoras (COSTA-ROSA, 2019a). Assim sendo, para teorizarmos os limites da escuta analítica, resolvemos elaborar uma categoria conceitual: A relação do particular com o social. Por meio da exposição de fragmentos clínicos procuramos ser freudianos dentro da legalidade dos postulados de Marx, colocamos o nosso método à prova de sua imperfeição (FREUD, 1996c) e, antes de tudo, fazemos o exercício de problematizar a prática assentados numa crítica ao capital e às suas produções de sociabilidade (MARX, 2013). As formas sociais capitalistas que estão expressas inclusive no referencial utilizado para escutar os sujeitos do tratamento. Elucidamos que a imensa maioria das pessoas que escutamos, em trabalho analítico, era marcada pelos processos de pauperização que assolam os países latino-americanos desde a sua colonização. Em alguns casos, sentíamos que estaríamos limitados “apenas” com “uma escuta” 75 Levando em consideração as citações, poderão existir aqueles psicanalistas que dirão: “não partilhamos da ideia de revolução na psicanálise, já que, segundo Lacan, a revolução é retornar para o mesmo”. Inquieta-nos, dialogando com esses colegas, nossos interlocutores, como ao lerem estas citações as desconsideram em seus contextos. Se descrevermos o que enfatizou Lacan, possuímos a oportunidade de matizar o que ele disse, a revolução da qual ele comentava dizia respeito ao sentido que vinha sendo apreendido em sua época (LACAN, 2003a), em meio aos efeitos de Maio de 68, e ao emprego que era dado à palavra revolução (LACAN, 1992). Estamos avisados que Lacan foi afetado pela obra de Marx, o qual por vezes é mencionado em seu ensino. Não acreditamos que o uso que Lacan fazia do conceito de revolução era inadvertido ou inocente, quando o próprio Marx (MARX; ENGELS, 2013), em “Lutas de classes na Rússia”, combateu o emprego leviano que se fazia do termo revolução, em torno de uma concepção “etapista”, “evolucionista”, eurocêntrica e “unilinear”. Marx e Engels, juntos, questionavam os movimentos políticos revolucionários que não partiam da classe trabalhadora para a própria classe trabalhadora. 251 para oferecer, por mais que a ética da nossa ação incluísse as articulações de Rede, o trabalho cooperado com as equipes hospitalares e contemplasse uma visão ampliada das demandas. Referimo-nos ao que nos trouxe algumas mulheres em atendimento. Ivete era uma mulher de aparentemente cinquenta anos, acompanhava o marido que estava com uma prejudicada circulação arterial. Disse-nos, no quarto onde ele se encontrava, que enfrentava uma guerra no hospital e fora dele. O atual esposo estava desempregado e possuíam somente a pensão do seu ex-marido, há uns anos falecido. Ivete revelou não saber se iria aguentar tanta dor, faziam dois anos que a sua mãe morreu e em seguida quem veio a óbito foi o companheiro com quem partilhava a vida, depois de dois meses o seu irmão foi assassinado. E naquele momento, o seu companheiro estava bastante doente. Pronunciou que estavam com dificuldades financeiras, receava não terem o que comer em casa quando saíssem do hospital. Expressou que não tinha ninguém com quem conversar, desabafar, carregava um peso nas costas e não podia dividir isso com mais ninguém, tinha que ficar sozinha e calada com os seus pensamentos. Em sua vez, Rita indicava estar com fortes dores de cabeça, estava internada em razão desta queixa. Contou que seu esposo dizia que era frescura. Relatou que perdeu muitas pessoas na vida, a mãe, o pai, os irmãos e sofria por isso. Por muito tempo viveu passando fome, existiam dias que em casa havia água, mas não comida. Rita fazia uso intenso de medicações psicotrópicas, dentre elas ingeria o “Diazepam”. Dos seus três filhos, dois estavam presos e em cárcere também se encontrava o marido. Confessou não saber o que era sonhar. Não sonhava mais, há muito tempo não sabia o que era isso, afirmou repetidas vezes. Diferente de Ivete e Rita, Fabiana materializou em seu discurso um destaque de maior acentuação nas violências preconceituosas sofridas. Estava internada em decorrência de uma cirurgia que realizou para a retirada de um mioma no útero. Estudou grande parte da vida na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), sempre ouviu das pessoas ao seu redor que tinha “problema de cabeça”, no entanto, acreditava ser “normal”, capaz como qualquer um. Comentou que era maltratada, por aparentar ser diferente dos demais, por ser “boazinha” e “calma”. Fabiana cresceu com a avó e com o avô, enfatizou que a mãe não a quis, doou-a aos avós. Segundo Fabiana, a sua mãe biológica gostava de lembrar a todos que ela não era a sua filha. Exprimiu que o seu pai, assassinado há uns anos, era o único que lhe dava carinho e atenção, amava-a como ela era. Diante das queixas escutadas, de imediato, éramos levados à famosa pergunta de Lênin (1978), que deu nome a um livro seu: “Que fazer?”. Os três casos relatados apresentavam os seus respectivos sintomas, em seus discursos apareciam as perdas irreparáveis, vividas como 252 violentas, além de tristezas e impasses dos quais não esboçavam, por meio da fala, vislumbrar qualquer tipo de saída ou resolução a curto, médio ou longo prazo. Nas suas histórias existiam: assassinatos, mortes abruptas e sequenciais, encarceramentos (dos filhos e de marido [presos por conta do tráfico]) e preconceito. E junto aos lutos, notabilizavam uma privação real da qual a expressão de falta também residia ferozmente no desemprego, na ausência de recursos materiais mínimos para sobreviver, tais como, por exemplo, a comida. Colocamo-nos a escutar essas mulheres, como em toda sessão, almejando o sujeito do inconsciente e o aceno para a formulação de uma questão de análise, a ser esboçada conosco ou noutro momento em outro espaço. Apesar disso, esbarramos numa impossibilidade que não era a de analisar, de governar, de educar e tampouco era a de se fazer desejar: o impossível que confrontamos era o de viver. A possibilidade de sobrevida para elas estava bastante ameaçada, quiçá então as chances para uma vida digna. Cada uma atendemos em um dia, dado que logo em seguida receberam alta para retornar às suas casas. Avisados pela Psicanálise, sucumbimos nos limites do que podíamos naquelas experiências. A sensação era de que essas mulheres teriam saído dos trabalhos de análise, em “prelúdio às entrevistas”, da mesma forma que entraram. A posteriori, pensamos: “falaram de suas angústias, de seus conflitos e lutos, para retornarem aos seus ‘lares’ e depois voltarem a padecer da fome e do desemprego?”. Não encontramos respostas para as questões, porém, reiteramos as perguntas: “o que fazer? O que fazemos com isso?”. “O que poderíamos com a Psicanálise numa instituição de atendimento ao público, defronte demandas da ordem do morticínio social, de mortes e privações provocadas pelas formas de produção da vida material capitalista?”. A realidade capitalista latino-americana e a práxis possível Tendo em vista as grandes privações e misérias materiais que os sujeitos manifestavam, articuladas aos impasses psíquicos dos quais também sofriam e nos endereçavam, decidimos construir uma reflexão em torno disso. A relação do particular com o social foi a categoria conceitual imprescindível para a práxis defendida, esta relação tem como premissa a interlocução entre as referências nas obras de Marx, Freud e no ensino de Lacan. O começo por Marx é justificado pelo fato de ser o autor que nos auxilia em um posicionamento na luta social, em favor da classe trabalhadora. A psicanálise que elegemos está implicada em um processo revolucionário (COSTA; COSTA-ROSA, 2020; COSTA, DIONÍSIO, 2020). Por esse motivo, concordamos com Slavutzky (1983, p. 55): https://www.estantevirtual.com.br/livros/Abr%C3%A3o%20Slavutzky 253 Os caminhos alternativos da psicanálise, em uma perspectiva de integração às lutas sociais e políticas da América Latina e do mundo, na busca de uma sociedade mais justa e humana, estão associados à sorte destas lutas. Sempre que soprarem ventos conservadores, com golpes militares, toda cultura e também a psicanálise sofrerá, menos é óbvio, que o povo em geral. Quando sopram ventos democráticos, progressistas, os caminhos alternativos estarão fortalecidos. A ideia de ventos pode parecer uma questão natural; não se trata disso, os fatores econômicos, é sabido, são os determinantes em última instância, mas os seres humanos, através da política, das classes, estão em contínuo movimento. Em tempos de governos com aspirações militares e políticas conservadoras se torna decisivo o retorno a Marx, conforme fez Lacan com Freud e também com o primeiro (LACAN, 1992). Enquanto trabalhadores advertidos pelos fenômenos sociais e pelas formações do inconsciente, pontuamos que tomar um partido rente as populações minori[ci]zadas, em contextos nos quais as pessoas estão sofrendo as mazelas de todas as sortes, é um ato de humanidade. Notamos que Marx (1996; 2010) era atento ao componente subjetivo que existe no consumo, na expropriação que há na compra e venda da força de trabalho. Marx (1996) sinalizou que todo consumo (como produção) é objetivo e subjetivo, e chegou a enfatizar que no sentido humano o sofrimento é um gozo que o homem tem de si próprio (MARX, 2010). Muitas décadas após a morte de Marx, em 1937, numa carta a R. L. Worrall, depois de ser informado pelo mesmo de que Marx e Engels não desprezavam a atividade psíquica implicada nos fatores econômicos, Freud soube assumir a importância do pensamento marxista e decidiu que essa descoberta desfazia a principal diferença que acreditava existir entre o marxismo e a psicanálise (JONES, 1989). Neste mesmo caminho, Lacan captou as similaridades éticas entre Marx e Freud, e Hubert (2017), as precisou, sublinhando que o francês foi o primeiro psicanalista a reconhecer as contribuições do pensamento marxiano: Marx trabalhou sobre a questão do não querer saber disso que faz a vida social funcionar, ao passo que Freud investiu na questão do não querer saber do que faz a vida psíquica funcionar. A postura materialista de Lacan ao longo dos seus seminários não é escondida. No ano de 1971 ele afirmou que não era nominalista (postura teórica que defende o caráter abstrato e universal dos conceitos), pois, para sê-lo era preciso renunciar por completo o materialismo dialético – esfera teórica do materialismo histórico (ALTHUSSER; BADIOU, 1979; LACAN, 2009). Alguns anos antes, em “Respostas a estudantes de filosofia” [1966], proclamou que a sua teoria da linguagem era materialista, uma vez que o significante como linguagem era matéria (LACAN, 2003b; 2009; 2012). 254 Destarte, confessamos que é de se surpreender o fato de que possam haver psicanalistas [que chamam a si mesmos de] lacanianos que forcluem este dado histórico. Para Lacan (1992), Freud e Marx não terem dito besteira era o que os caracterizaria. Em que consiste a citação? No decorrer de um texto em que você avança mais ou menos bem, se você está, digamos, nos pontos certos da luta social, de repente cita Marx, e acrescenta – disse Marx. Se você é analista, cita Freud e mete: – disse Freud. Isto é capital. [...] Quando se cita Marx ou Freud – não foi por acaso que escolhi estes dois nomes –, isto se dá em função da participação em um discurso pelo leitor suposto (LACAN, 1992, p. 37, grifos do autor). Parece haver em Lacan, um esforço de atribuir a Marx uma conexão que privilegia complexificar a análise do sujeito do inconsciente, como forma de não incorrermos no problema ético de localizar a dimensão gozosa humana numa “transhistória” e, por conseguinte, não deixarmos de a sublinhar em uma específica conjuntura temporal. Não consentimos com a ideia de que possa existir arbitrariedade no ensino lacaniano, nas afirmações de que o mais-valor é o memorial do mais-de-gozar e de que ambos seriam homólogos. Salvaguardamos que é possível tirar consequências da máxima de que o processo de exploração humana está envolvido na espoliação de gozo, ou seja, tanto a exploração quanto a espoliação dizem respeito a uma mesma lógica de funcionamento (CUÉLLAR, 2015; LACAN, 1992; 2008; POLI, 2017; COSTA; COSTA-ROSA, 2020; COSTA, DIONÍSIO, 2020). Conforme Hubert (2017), Marx teria sido um precursor do estádio do espelho76 e o inventor do sintoma, por dar o sinal de algo que não vai bem no Real. Na presente construção argumentativa, o particular da experiência subjetiva está imbricado no plano da realidade social compartilhada. Há um irredutível que escapa ao sujeito e o deixa submetido a registros culturais e valorativos que lhe são anteriores, determinando-o por intermédio do lhe é significante (LACAN, 1999; 1974-1975). O que lhes disse pode, entretanto, ter sido mal entendido, o que acabo de dizer, entendido de forma que seja apreendido no sentido de saber se a psicanálise é um sintoma social. Só há um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, quer dizer, não tem nenhum discurso do qual faça elo social, dito de outra forma, semelhante (LACAN, 2002, p. 13). 76 Lacan (1999) em “O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente”, cravou Marx como o precursor do estádio do espelho. Em uma nota de rodapé no capítulo I do Livro I de “O capital”, disse Marx (2013): “De certo modo, ocorre com o homem o mesmo que com a mercadoria. Como ele não vem ao mundo nem com um espelho, nem como filósofo fichtiano – Eu sou Eu –, o homem espelha-se primeiramente num outro homem. É somente mediante a relação com Paulo como seu igual que Pedro se relaciona consigo mesmo como ser humano. Com isso, porém, também Paulo vale para ele, em carne e osso, em sua corporeidade paulinia, como forma de manifestação do gênero humano” (p. 1125). 255 Interpretamos a citação entendendo que o proletário é o sujeito que se viu obrigado a produzir, diante da perda do objeto, uma alienação à linguagem, cujo significante encontrado foi o do mestre, capaz de o ajudar a fazer sintoma para estar no laço social. Lacan dizia que Marx era um dos teóricos por quem mais tinha simpatia, olhava-o como um poeta, alguém que criou uma obra possível de se fazer movimento político a partir dela, qualificada de materialismo histórico. Marx teria sido o primeiro a abordar os traços que caracterizam o sintoma, desvelando o segredo de que o capital em seus efeitos é marcado por sintomas circunscritos à norma proletária (LACAN, 1977-78; 2016). Segundo Askofaré (1997) e Naveau (1997), foi por intermédio da obra de Marx que Lacan pôde forjar a noção de sintoma social, inserindo-a no campo freudiano. Por conseguinte, com este avanço teórico, a teoria enfim é coerente com o que ocorre materialmente na prática. Nela, constatamos que há um saber em todo fazer e, portanto, em relação aos sintomas, há em cada um a expressão do sintoma social que é dominante em nossa cultura. “O que Lacan introduziu como sintoma social não deve portanto ser oposto ao sintoma particular da mesma maneira que uma vã psicologia opõe o individual e o coletivo ou o subjetivo e o social” (ASKOFARÉ, 1997, p. 182). Apropriando-se de Melman (2000), Costa-Rosa (2016) intensifica a ideia de “sintoma social” à categoria de conceito, definindo o que seria o Sintoma Social Dominante e as suas fisionomias principais. O Sintoma Social Dominante é caracterizado pela relação efetiva entre o modo de produção da vida material (capitalista) e os modos de subjetivação. O sintoma é assinalado como socialmente dominante por possuir uma estrutura homóloga à formação social em que ocorre. As suas fisionomias principais contrastam com traços que dizem respeito a uma proximidade do sujeito com o objeto e a uma dificuldade do primeiro se separar deste último. Destas fisionomias do Sintoma Social Dominante, citamos: as toxicomanias, as compulsões diversas, as depressões, as bulimias e as anorexias. Nesta sequência, aquiescemos com a manifestação de Askofaré (2009), de que os significantes que ordenam nossas relações com o trabalho, o gozo sexual, a propriedade, as instituições, e com os sintomas delas decorrentes, estariam assegurados pelo discurso do mestre dominante na contemporaneidade. Consideramos significativa a proposição lacaniana de precisar o indivíduo como o proletário. Marx (1982) indicou este último como aquele que é confundido com o objeto- mercadoria por ter o valor de seu trabalho transformado em interesses mercantis. Nestes termos, o sujeito apreendido por indivíduo vive senão para reproduzir uma relação que o destitui de sua singularidade de desejante e o mantém comandado por um saber de mestria. 256 Costa-Rosa (201877) aperfeiçoou o que escutamos sobre o sintoma particular, enquanto uma expressão do sintoma social. Para o psicanalista e analista institucional, as realidades subjetivas e sociais estão entrelaçadas moebianamente pelos Discursos do Mestre e do Capitalista, elas são respectivas formas de produção de laço social e meio de se vincular à mercadoria. Portanto, as formações sociais estão em continuidade moebiana às formações do inconsciente, são diferentes lados de uma mesma fita que se entrecruzam, consumando-se, em cada dobra sua (COSTA-ROSA, 2019a). Se prestarmos atenção, por meio da Banda de Moebius78, podemos ver os dois planos, de um lado o da realidade subjetiva com o sujeito do inconsciente ($) e à distância o seu objeto a. E do outro lado, ao realizarmos uma torção na mesma fita, enxergamos o lado da realidade social capitalista e, por consecução, o objeto amontoado no sujeito, isto é, falta a mediação simbólica entre o sujeito e o objeto. Neste registro da experiência psíquica o sujeito está morto. Sendo assim, a relação entre os “lados” é moebiana porque em cada um dos lados é possível visualizar o outro. GRAFO – Formações Inconscientes GRAFO – Formações Sociais 77 A exposição teórica referente à relação moebiana entre as formações sociais e formações inconscientes, ora compartilhada nesta tese, são de inteira autoria de Abílio da Costa-Rosa, foram escritas em dois momentos no ano de 2018: em uma orientação de intercessão-pesquisa como parte do doutorado e, posteriormente, em um encontro do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e “Subjetividadessaúde” (LATIPPSS). Essas reflexões, pouco tempo antes de seu falecimento, eram teses nas quais Costa-Rosa estava trabalhando para iniciar o processo de as escrever e posteriormente as publicar. 78 Referência à Banda de Moebius: estrutura da topologia conhecida também como fita ou laço, utilizada pelos matemáticos para pensar o fora e o dentro em uma superfície infinita, como lados (espaços) que não são antagônicos. Lacan se apropria dos conceitos matemáticos para analogamente pensar a estrutura do inconsciente: um significante não possui somente um significado, enquanto isso que representa o sujeito para um outro significante, a sua capacidade de significação do dito é contínua e infinita. Sendo assim, a realidade para Lacan (2007) é um dentro que não é sem um fora. E, o que há de mais profundo nos dizeres do sujeito, encontramo-lo na própria superfície do seu discurso. Portanto, a paráfrase que realizamos incide na compreensão de que a realidade social é indissociável da realidade inconsciente, não há realidade psíquica que não se constitua a partir de uma realidade social e vice-versa. 257 Conforme Costa-Rosa (2018), encontramos em Lacan o entendimento de que o discurso do inconsciente, abrangido pela Realidade Subjetiva, é o Discurso do Mestre. No mesmo instante, descobrimos com Marx, interpretado por Lacan, que a Formação Social pode ser lida como o Discurso do Capitalista. Os discursos são aparelhamentos do gozo pelo significante. Lidos como modos de subjetivação, os discursos ultrapassam as palavras. São Modos de Produção de laço social que se estruturam em quatro lugares (Agente, Verdade, outro/Trabalho, Produção) e estão encarnados por quatro elementos. Dependendo da modalidade de produção de laço social em movimento, os elementos se revezam por entre os lugares (COSTA-ROSA, 2013; 2016; LACAN, 1992). Estrutura dos discursos Conforme Magno (2007), o agente suportado pela verdade, e impulsionado por ela, é quem põe o discurso em ação, faz agir um outro que está no lugar do trabalho a realizar uma produção. A partir de Lacan (1978; 1992), Costa-Rosa (2018) propõe pensarmos o Discurso do Mestre e o Discurso do Capitalista, ele expõe a constituição do sujeito e a consequente sociabilidade na qual se está fadado no consumo da mercadoria. Discurso do Mestre Discurso do Capitalista O Discurso do Mestre (DM), compreendido como a fundação de um laço social em ascensão à linguagem, é o sujeito ($) representado por um significante [unário] (S1) para um outro significante [secundário] (S2). Em relação ao objeto causa de desejo (a), as marcas da 258 impossibilidade (//) representam um não conseguir, da parte do sujeito, reaver este objeto para sempre perdido. A dominância e a finalidade do DM é o governo. É sabido que na sociedade em que estamos, incondicionalmente em algum momento iremos nos deparar com o seguinte ponto: O capitalista (S1), impulsionado pela verdade de que a ele falta o saber ($), agencia um trabalhador (S2) para produzir os seus “objetos” – saber-a-mais e valor-a-mais de gozo (COSTA-ROSA, 2018). Igualmente, a consumação do Discurso do Mestre na modernidade, o outro lado da banda, é o Discurso do Capitalista (DC), o qual Jaques Lacan (1978) indicou como o discurso do mestre moderno. A inversão do DM é a falta-a-ser do $, representando um poder de comando (S1), transformada em fissura. Nesta perspectiva, a queda da impossibilidade na sociedade capitalista é a viabilidade de que o sujeito se confunda com a mercadoria, sendo “livre” para consumir até à morte. Consuma-se, portanto, nesta estrutura de sociedade um Modo de Produção no qual não há mais limites para trabalhar, acumular e comprar. De acordo com Costa-Rosa (2018), “Agora não há mais constrangimentos, o a cai sobre o sujeito”, logo, o sujeito é o próprio capital. Os gerentes (S1), tecnocientistas ou tecnocratas, sob o agenciamento da sociabilidade capitalista, na forma de sujeitos siderados pelo consumo ($), fazem trabalhar as máquinas (S2) para produzirem os objetos gadgets (a), as famosas latusas, os objetos luminosos do capital que atrairão os seus consumidores. O a nesse momento está na mesma linha direta com o $, correspondendo ao consumidor. Portanto, a lógica da fantasia fundamental ($ ◊ a: o sujeito alienado na linguagem e separado do objeto) que ocorre no DM, experimenta uma distorção no DC, isto posto, o objeto e o sujeito são fundidos um no outro (a > $) e há uma realização concreta da fantasia na realidade. Se quisermos, o DM e o DC podem ser inscritos, respectivamente, pelos Grafos das formações inconscientes e sociais, ou seja, os planos das formações inconscientes e sociais estão enlaçados à constituição do sujeito e aos seus potenciais relacionamentos com o outro semelhante. O último como a suprassunção do primeiro. GRAFO Formações inconscientes-Discurso do Mestre 259 GRAFO Formações sociais-Discurso do Capitalista É fundamental estarmos cientes de que o sujeito do desejo (inconsciente) [DM] se funde na sociedade capitalista [DC], por meio de uma torção na relação com o objeto. A teorização de Costa-Rosa (2016; 2018), acerca da formação moebiana entre as realidades subjetivas e sociais, propõe escutarmos outras categorias de trabalho que não se restringem às clássicas. Por admitirmos a forte presença do capital, as categorias conceituais inseridas nos permitem enxergar um para além do capital, visto que quando o visualizamos podemos construir ferramentas para superá-lo. Neste sentido, não há sintoma, sofrimento, impasse ou conflito psíquico trazido pelos sujeitos em tratamento que não sejam também produzidos – afetados – pelo contexto social [capitalista] em que estão. Enunciemos esta discussão com a vinheta clínica que contrasta a escuta de João Pedro. Atendemos ele em três oportunidades, ele cumpria uma pena de quatorze anos na penitenciária de uma outra pequena cidade da região. Optamos pela tática de o atender em três momentos, pelo motivo de querer construir uma direção de um tratamento que acolhesse a sua demanda, a poder ser formulada pelo próprio por intermédio da entrevista. João Pedro veio à Santa Casa devido a uma problemática cardíaca e por um “furúnculo” na nádega esquerda. Dialogando com as técnicas de enfermagem, elas nos aconselharam a não entrar em contato com o “presidiário”, disseram que ele não merecia atenção. Desconsideramos a advertência, conversamos com o agente penitenciário e com o policial que o acompanhavam, perguntamos se poderíamos escutá-lo. Permitiram, com a restrição de que o agente deveria permanecer no quarto conosco. No primeiro contato, após uma apresentação, João Pedro um tanto solícito, dirigiu-nos a palavra: “Doutor, te dou toda a atenção, no que eu puder te ajudar o faço com o maior prazer e respeito”. Respondemos: “Aqui, quem quer lhe dar a atenção para o que você tem para falar 260 sou eu”. João Pedro sorriu e se pôs a discursar. Chegamos a pedir para o agente nos deixar a sós, no entanto, ele não o quis. João Pedro tinha um vocabulário bastante rebuscado, percebemos que falava por metáforas, por medo da represália que poderia sofrer do agente penitenciário e do policial. Revelou que vivia através de máscaras, não podia ser autêntico e nem original, pois, no contexto em que estava isso era muito perigoso. Começou a se emocionar. Disse que a sua dor era relacionada com o seu cotidiano, a sua experiência. João Pedro possuía quatro filhos, com duas mulheres diferentes. Somente um de seus filhos, o que mais o respeitava, não era envolvido com coisas ilícitas, por outro lado, os demais, tal como o pai o foi, estavam articulados com o crime organizado. Contou que foi preso outras duas vezes por tráfico e por não pagar a pensão. Antes de ser preso morava com a mãe, com a irmã, com a filha da irmã, com o cunhado e com o padrasto, que no momento estava preso cumprindo uma pena de 9 anos por homicídio e outras infrações. Desabou a chorar, contou que a sua irmã foi abusada por seu padrasto e que a sua mãe mal conseguia comentar sobre o ocorrido. Emendou o que falava, referindo-se a importância de que houvesse psicoterapia para os “detentos”, disse que era muito importante para o aspecto “emocional” de suas vidas. Interrompemos a sessão e pontuamos: “Volto depois. Quando voltar, gostaria de o escutar falar de sua experiência”. Durante o seu discurso, sentimos que precisávamos lhe dizer que as perguntas eram para o ajudar a discursar e assim podermos escutar a sua demanda, na intenção de que pudesse iniciar um trabalho de análise. Sentimos que deveríamos lhe admitir isso, tendo em vista a sua familiaridade com interrogatórios no âmbito judiciário, que mais poderiam servir para produzir provas contra ele próprio. Em definitivo, não queríamos em hipótese alguma sermos confundidos com o Judiciário ou com o lugar de juiz, a nosso ver, a explicitação desta diferença era fundamental para a constituição de um campo transferencial entre a nossa práxis e João Pedro. Combinamos com os policiais e depois de uma hora retornamos. Na sua segunda sessão, João Pedro iniciou: “Viu, como eu falei que é tudo muito desumano com a gente, é como se tivéssemos perdido a humanidade. Depois que você saiu, come