Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 11 ENTRE ZOLA E EÇA: O NATURALISMO BRASILEIRO EM SEU APOGEU (1888) Alvaro Santos Simões Junior∗ Resumo O naturalismo brasileiro começou em 1881 com a publicação do romance O mulato, de Aluísio Azevedo. Apesar da grande dependência cultural do Brasil diante da França, o grande mestre europeu dos naturalistas brasileiros foi inicialmente o português Eça de Queirós. Seu romance O primo Basílio (1878) repercutiu intensamente no meio intelectual do Rio de Janeiro, onde encontrou admiradores entusiastas e também críticos impiedosos como Machado de Assis. Apenas por volta de 1888, quando o naturalismo francês sofria sérias defecções, alguns romancistas brasileiros adotaram as propostas estéticas de Émile Zola diretamente através da leitura do ciclo dos Rougon- Macquart. Naquele ano, publicaram-se vários romances: O missionário, de Inglês de Sousa, O cromo, de Horácio de Carvalho, A carne, de Júlio Ribeiro, Hortência, de Marques de Carvalho, Uma família baiana, de Xavier Marques, e Lar, de Pardal Mallet. Torna-se relevante considerar quais características das obras de Zola e Eça foram incorporadas aos romances publicados em 1888, ano que representa o ápice do naturalismo brasileiro. Abstract Brazilian naturalism began in 1881 with the publication of O mulato by Aluísio Azevedo. In spite of the considerable Brazilian cultural dependence on France, the great European master of Brazilian naturalists was initially the Portuguese Eça de Queirós. His novel O primo Basílio resounded intensely in the intellectual environment of Rio de Janeiro, where it had found admirers and fierce critics like Machado de Assis. Only around 1888, when the French naturalist movement suffered serious defections, Brazilian novelists adopted Émile Zola’s esthetical proposals directly through the reading of the Rougon-Macquart cycle. In that year, O missionário by Inglês de Sousa, O cromo by Horácio de Carvalho, A carne by Júlio Ribeiro, Hortência by Marques de Carvalho, Uma família baiana by Xavier Marques, and Lar by Pardal Mallet were published. Nevertheless, it is relevant to consider which features of Zola’s and Eça’s works were incorporated in those works which established a flowering moment of Brazilian naturalism. Palavras-chave Dependência Cultural; Eça de Queirós; Émile Zola; Naturalismo brasileiro; Naturalismo europeu; Romance. Keywords Brazilian Naturalism; Cultural Dependence; Eça de Queirós; Émile Zola; European Naturalism; Novel. ∗ Departamento de Literatura – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp/Assis. E-mail: simões@femanet.com.br Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 12 ... em 1881, surge O mulato, acolhido com entusiasmo. A vitória consolida-se em 1884, com a Casa de pensão, e em 1888 o naturalismo atingiria o seu apogeu. Lúcia Miguel Pereira - História da literatura brasileira O primeiro romance brasileiro claramente naturalista foi O mulato (1881), de Aluísio Azevedo, que aprendeu com Eça de Queirós a criar tipos e representar usos e costumes de sociedades provincianas1. O escândalo provocado em São Luís do Maranhão por essa obra praticamente obrigou seu autor a tentar a sorte no Rio de Janeiro, onde publicou, em 1884, Casa de Pensão, que ainda seguia Eça de Queirós no que respeita à caracterização de personagens, descrição do espaço e disposição para denunciar mazelas sociais. Em 1887, Aluísio Azevedo publicaria O homem, que seria dedicado ao estudo de um caso de histeria. Impedida de casar-se por cálculos e preconceitos de seu pai, Magdá, a protagonista, encontrava nos sonhos e nos delírios a satisfação erótica que a realidade negava-lhe. A dívida com Zola era evidente na adoção do modelo de romance experimental, na ênfase na fisiologia e na disposição polêmica de abordar com franqueza a sexualidade. No ano de 1888, o naturalismo brasileiro chegaria ao ápice com a publicação de seis romances: Hortência, de Marques de Carvalho; O missionário, de Inglês de Sousa; O cromo, de Horácio de Carvalho; A carne, de Júlio Ribeiro; Lar, de Pardal Mallet; e Uma família baiana, de Xavier Marques. Importa considerar que aspectos das doutrinas e das obras de Zola foram diretamente apropriados pelos autores brasileiros nesse momento que, do ponto de vista histórico, seria marcante pela abolição da escravatura e pelo ocaso do Império. Lar, de Pardal Mallet, narra a formação moral de Sinhá, típica moça da classe média do Rio de Janeiro. Amamentada por ama-de-leite, cresceu ao lado da colaça Chiquinha. Da madrinha, D. Perpétua, ouvia histórias bíblicas e contos de fada; a menina não fazia qualquer distinção entre as duas modalidades narrativas. No colégio, que para ela era mero pretexto para um passeio cotidiano, Sinhá convivia com as meninas maiores, que a introduziram nos mistérios do sexo. De volta ao lar, procurava instruir Chiquinha, o que o narrador resumiu em termos rudes. Queria botar para fora esse feto espúrio aplacentado na membrana de suas convivências,  emprenhado do zoosperma dos colégios no útero das cozinhas; esse, nas regiões do lar, homólogo moral das baratas e das aranhas que germinam no mistério das porcarias (MALLET, 1888, p. 71). Note-se, no fragmento, a condenação das cozinhas, que, nas casas burguesas, eram o espaço dos criados ou escravos, onde a moral burguesa não era observada e as meninas entravam em contato com valores e práticas considerados imorais. Como episódio fundamental do amadurecimento fisiológico de Sinhá, o narrador relata o aparecimento de sua menarca. ... por uma noite em que ela não dormiu, a lei indefectível e fatal do progredir orgânico rasgou-lhe lá bem no fundo das entranhas a ferida periódica dos 1 Segundo Lúcia Miguel Pereira, “só quando o realismo se exagerou no naturalismo e ganhou aquela rigidez agressiva que facilitou o êxito retumbante de Zola em França e Eça de Queirós em Portugal, é que se instalou definitivamente aqui, com Aluísio Azevedo. O modelo concreto conseguiu o que não haviam obtido nem as alterações do meio, nem os esforços dos críticos, nem as preferências dos leitores” (MIGUEL PEREIRA, 1988, p. 121). Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 13 fecundalismos e chuviscou-lhe gotas de sangue por sobre o cálice rubro de suas virgindades (MALLET, 1888, p. 103). A notícia do evento na família põe em discussão a educação da moça. Por sugestão da madrinha, compra-se-lhe um piano. Pouco depois, Sinhá deixa o colégio. Os dois fatos, aparentemente distintos, mas comicamente entrelaçados, dão os contornos do papel social que se reservava às moças. Também não precisava aprender mais nada! Lia correntemente, escrevia em belo cursivo arredondado de mulher e já sabia as quatro operações! Não tinha de ser nenhuma doutora e o que sabia chegava para que o homem da venda não a enganasse nas contas do fim do mês! (MALLET, 1888: 189). Considerada, pela família, pronta para casar, Sinhá passa a freqüentar bailes e a fazer passeios em companhia de seu pai. A despeito de todo esse empenho, Sinhá vai encontrar o noivo ideal em Juca, vizinho e antigo companheiro de infância, que se formara em Farmácia. Seu Sardinha, pai de Sinhá, providencia o dinheiro para que o futuro genro pudesse estabelecer-se e, assim, o casamento viabiliza-se segundo práticas burguesas. Lar vale por ser uma interessante crônica de costumes cariocas. Narram-se, por exemplo, as festas familiares em que se servia, por economia, vinho de cevada; o despertar da cidade com os bondes cheios de passageiros, vacas de leite perambulando pelas ruas, trabalhadores reunidos nos quiosques e escravos domésticos que saíam às compras de mantimentos; a leitura dos jornais, que desprezava as notícias sérias para concentrar-se nos folhetins; os namoros regidos pelas cartas e conselhos do Confidente dos namorados e inspirados pelos romances-folhetins; os bailes em clubes dançantes dirigidos pela burguesia. O romance encerra-se com o casamento de Sinhá, que, pouco antes de fechar-se no quarto com o noivo, recebe conselhos da mãe e da madrinha. Que necessidade tinha daqueles conselhos vagos e indefinidos, formulados a medo como quem limpa com pé um pouco de porcaria e tem receio de sujar as botinas?! Sabia mais do que aquilo! E ria-se (MALLET, 1888, p. 274). Pardal Mallet parece empenhar-se em demonstrar que a vida das castas donzelas contém muito mais curiosidade e descobertas precoces sobre o sexo do que se poderia suspeitar. Lar seria, deste modo, uma denúncia da hipocrisia da moral burguesa. Seu naturalismo de matriz zolaniana residiria no interesse pelo desenvolvimento fisiológico de Sinhá e no modo franco de tratar do sexo. Em Uma família baiana, de Xavier Marques, narra-se uma cilada que se arma a Luciano Pires, rico cafeicultor paulista, que, em viagem a Salvador, fica hospedado na casa do coronel Antunes do Lago, que era financista e pai de Mafalda, moça em idade de casar-se. A convivência cotidiana entre a jovem e Pires inspira carta anônima, em que se acusava o coronel de ser complacente com a sedução da filha. Apesar da perfídia, a carta baseava-se no fato concreto de que Mafalda e Pires envolviam-se sentimentalmente. Concluindo que um casamento entre os dois poderia ser um grande negócio, o coronel Antunes, que era “audacioso para empreender as coisas, manhoso para dissimular, inonesto [sic] para não recusar meios” (MARQUES, 1888, p. 74), forja carta anônima dirigida ao fazendeiro, a quem se alertava sobre os danos que sua estadia na casa do coronel estava causando à reputação de Mafalda. Antunes contava com que sua carta convenceria Pires a reparar a situação com um casamento em regra. Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 14 Marcado com efeito o casamento, entra em cena o Juca, irmão de Mafalda, que esbanjava dinheiro com bebida e jogo. Quando sabe das aventuras do filho, o coronel fica alarmado por duas razões: um eventual escândalo poderia comprometer o casamento projetado e sua própria candidatura à diretoria do Banco Comercial. Não obstante, Juca passa a relacionar-se com Lúcia, costureira e filha de Valentina, que pedia esmolas pelas ruas de Salvador. A moça engravida, mas D. Teresa, a mãe de Juca e Mafalda, opõe-se a essa reparação porque a moça, além de pobre, era parda. O coronel resolve o problema com a sua inventividade, enviando aos jornais mofina em que se acusavam Valentina e Lúcia de explorarem a boa fé de moços incautos. O caso não modifica o comportamento de Juca, que, sem dinheiro, contrai empréstimos vultosos assim como o estróina Brás Cubas, personagem de Machado de Assis. Esgotados todos os recursos, Juca rouba cadeia de ouro do hóspede, que descobre o furto, mas, para poupar-se aborrecimentos, se cala, por desconfiar de empregada da casa. D. Teresa, temendo a eclosão de um grande escândalo, ansiava pela realização do casamento de Mafalda e Pires e pela ida dos noivos a São Paulo, o que suscita comentários irônicos ao narrador. Já se viu uma sogra desejar viver longe do genro, de boa vontade renunciar à tutela ilegal que todas se arrogam e dispensar a gostosa missão de reguladora da paz doméstica, ditando às jovens esposas quando devem destilar os ciúmes ou fazer explosão, fingir o arrufo ou lançar os pratos da mesa abaixo, dormir voltadas para a parede ou deixar os maridos ao relento (MARQUES, 1888, p. 162). Antes do casamento da irmã, ainda houve tempo de Juca ameaçar suicidar- se, o que revolucionou a casa e deixou Antunes e D. Teresa desesperados. Entretanto, Juca troca o melodramático suicídio, no qual nunca pensara seriamente, por uma prosaica bebedeira. Com sua encenação, consegue, não obstante, obter várias concessões dos pais à sua vida boêmia. Na cerimônia de casamento de Mafalda e Luciano Pires, há abundância de comida, bebida e discursos. Juca aproveita a ocasião para tomar liberdades com as amigas da irmã, o que suscita ao narrador explicações naturalistas. Quem o governava não era mais o livrinho das Regras de bem viver, era o seu sangue, seu instinto, sua animalidade fogosa, pruída incessantemente pelos desejos carnais (MARQUES, 1888, p. 195). Após o casamento, Mafalda e Luciano Pires deixam a Bahia, onde Juca continua sua existência dissoluta. Pouco depois, chega a Salvador epidemia de cólera. Juca e D. Teresa apresentam os sintomas da doença e morrem. O coronel deixa a sua casa, flerta com uma das Castros, mulheres de seu círculo de amizades, mas decide afinal mudar-se para São Paulo a fim de fugir da epidemia. Nas páginas finais, há uma cena decalcada do romance O primo Basílio, de Eça de Queirós, onde Julião, que estivera ausente de Lisboa, vai à casa de Jorge e encontra-a fechada em decorrência da morte de Luísa. Depois, Julião encontra o amigo hospedado na casa de Sebastião. Em Uma família baiana, o professor Manoel dos Passos, que estivera acamado por vários dias, vai à casa do coronel Antunes, mas não encontra ninguém. Vem, depois, a descobrir o amigo hospedado na casa das Castros, onde se abrigara após as mortes da esposa e do filho. Há outras marcas de Eça de Queirós no romance. No terceiro capítulo, as personagens são apresentadas coletivamente mediante uma reunião social, a Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 15 exemplo do que ocorre em O crime do padre Amaro e O primo Basílio. Além disso, o solene João Bernardo é uma espécie de conselheiro Acácio baiano. Assim como em Lar, há no romance de Xavier Marques uma manifestação do narrador contra a promíscua convivência entre as donzelas burguesas e a criadagem. Não há nada tão comum em certos lares onde se abriga a nossa combalida fidalguia, como se ver a gentil patroazinha, esquecida das conveniências a que noblesse oblige, cavaquear familiarissimamente com a criada manzorra e faladeira (MARQUES, 1888, p. 121). Como conseqüência, a educação moral das moças ficava tacitamente a cargo das criadas. ... é de todo natural que a noiva inexperiente fosse socorrer-se à experiência da ama, pedindo à sabedoria dessa ignorante o que lhe faltava para ficar inteirada do papel, ativo e passivo, que tem a desempenhar uma senhora casada (MARQUES, 1888, p. 122). A típica família da elite baiana descrita por Xavier Marques está corrompida por imoralidade, egoísmo e hipocrisia. A cidade de Salvador, por sua vez, literalmente não cheira bem. Ao passar pela primeira vez perto da Misericórdia, Luciano Pires fica impressionado com o mau cheiro causado por fezes, lixo etc. A propósito, o narrador faz o seguinte comentário: “No entanto, digamo-lo por honrar as nossas tradições de desasseio [sic], o paulista não sabia da missa a metade” (MARQUES, 1888, p. 41). O romance Uma família baiana contém um ataque frontal aos críticos literários, “uma classe de escrupulosos cujos narizes estão sempre a farejar, nos livros modernos o fartum dos canos de esgoto” (MARQUES, 1888, p. 123), mas que sempre se mostram tolerantes com as licenças da literatura antiga. A argumentação de Xavier Marques contra esses críticos é tipicamente naturalista: “Querem para seu deleite uma natureza mutilada, convencional, onde só haja perfumes, luz, saúde, beleza, bondade, virtude, grandioso, puro (sic)” (MARQUES, 1888, p. 123). Entretanto, a despeito desses critérios estéticos naturalistas e da dívida evidente com Eça de Queirós, Uma família baiana é um romance movimentado e repleto de situações cômicas e/ou equívocas como um vaudeville. Em Hortência, Marques de Carvalho documenta usos e costumes de Belém do Pará como a festa do Círio de Nazaré e a venda ambulante de açaí, mas seu propósito principal é o de narrar um caso de alcova, em que a protagonista é reduzida pelo próprio irmão, Lourenço, à condição de escrava sexual. De “frio temperamento” (CARVALHO, 1989, p. 68), Hortência aceita com fatalismo submeter-se à relação incestuosa. O sangüíneo Lourenço encontra no corpo da irmã a satisfação de seus “fantasiosos sentidos de mulato saudável” (CARVALHO, 1989, p. 78). Nessa caracterização da personagem, nota-se uma especificidade do naturalismo brasileiro. A hereditariedade, concepção fundamental do ciclo dos Rougon-Macquart, passa a ser compreendida como pertencimento a uma raça. Para caracterizar o temperamento da personagem, o romancista vincula-a a uma determinada raça; a constituição psico-fisiológica de seus ascendentes não é considerada relevante. Dessa perspectiva, o mestiço seria, via de regra, sensual, indisciplinado, preguiçoso, violento etc. Em Hortência, o mulato Lourenço, além de estuprar a irmã, envolve-se com mulheres casadas, rouba e espanca a mãe, briga com outros homens pelo privilégio de dormir com certas prostitutas, foge Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 16 da polícia, abandona o trabalho para viver às custas da irmã, entrega-se à bebida e, finalmente, esfaqueia a irmã porque esta não lhe dera dinheiro. Igualmente ambientado na região Norte do Brasil, o romance O missionário, de Inglês de Sousa, foi provavelmente inspirado em La faute de l’abbé Mouret (1875), de Zola. Recém-egresso do seminário de Belém, onde se destacara pela viva inteligência, o padre Antônio de Morais decide iniciar a sua carreira eclesiástica em Silves, pequena cidade que não dispunha nem mesmo de jornal. Idealista, o novo pároco procura desempenhar com denodo todas as suas funções sacerdotais. Entretanto, suas iniciativas são recebidas com indiferença ou até mesmo com hostilidade pela maioria dos fiéis, que, não obstante, reconhecem as qualidades do religioso, entre as quais se destacava a castidade, justamente por ser delas a mais inusitada. Em desespero de causa, padre Antônio profere violento sermão contra o desprezo pela religião e contra as festas e licenciosidades da tradicional colheita das castanhas, que estava para iniciar-se. O sermão, em que se descrevem de modo vivo os castigos infernais, impressiona os fiéis, mas não impede que, logo depois, a cidade fique deserta com a fuga de boa parte da população para os castanhais. Deprimido com o fracasso de sua pregação e espicaçado pelo escárnio de um livre-pensador local, que dizia não existirem padres brasileiros com coragem e abnegação suficientes para catequizar os índios, o padre concebe o projeto de ir em missão evangelizadora à aldeia dos mundurucus, índios antropófagos. Em companhia do sacristão Macário, que, contrariado, alimentava esperanças de dissuadi-lo a tempo da missão que lhe parecia insensata, o padre enfrenta inúmeros perigos e provações até ser abandonado em plena floresta amazônica por seu companheiro quando ambos se vêem frente a frente com índios. Ao contrário do que julgara Macário, não são canibais, mas pacíficos índios catequizados, os que vão ao encontro do padre e, depois, levam-no para o seu sítio, onde o padre recupera as forças depauperadas. Nesse ambiente bucólico, que lhe lembrava a fazenda onde fora criado, o padre Antônio conhece a mestiça Clarinha, filha natural do padre João da Mata, que, quando vivo, costumava passar longos períodos de descanso naquele retiro. Longe da “civilização” e tratado com desvelos carinhosos pela adolescente Clarinha, o padre quebra seus votos de castidade na sombra convidativa das árvores de cacau. Como ocorre com Serge Mouret no Paradou criado por Zola, a natureza agradável da propriedade rural cercada pela floresta amazônica excita a sensualidade do padre, fazendo despertar o seu “temperamento de campônio livre e robusto” (SOUSA, 1987, p. 210). No entanto, ao contrário de Mouret, o padre Antônio não perdera a memória; servindo-se indiferentemente ora do “senso comum do campônio” (SOUSA, 1987, p. 185), ora de uma “filosofia egoística e chicaneira” (SOUSA, 1987, p. 2007), o padre paraense convence-se de que a situação era tolerável e reversível e, por isso, peca voluntária e conscientemente. Mouret, ao contrário, ao recuperar a memória e tornar-se consciente de seu erro, arrepende-se, abandona Albine e, a despeito de alguma hesitação, retoma suas funções sacerdotais. O padre Antônio, ao contrário, teme apenas que um eventual escândalo prejudique a sua carreira. Quando descobre que os relatos fantasiosos de Macário criaram-lhe em Silves uma santa reputação de missionário audaz, resolve voltar à sua paróquia acompanhado de Clarinha, a quem convenientemente instalaria em sítio afastado da cidade para poder desfrutá-la com discrição. Nesse particular, o padre Antônio lembra os padres cínicos de Eça de Queirós. Inglês de Sousa é superior a Marques de Carvalho, pois cria personagens ricas como o sacristão Macário, que, posto ao lado do quixotesco “missionário da Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 17 Mundurucânia”, torna-se uma espécie de Sancho Pança paraense. Sousa narra sua história com um tom irônico que não poupa nem mesmo o anticlerical Chico Fidêncio, medíocre portador das idéias modernas. Consegue realizar, enfim, uma representação bem abrangente de uma típica povoação amazonense com toda a sua complexidade política e social. Entretanto, assim como Carvalho, Sousa incide na visão negativa do mestiço, visto como uma tentação e uma ameaça por sua sensualidade. Clarinha, que possuía uma “linda boca vermelha de lábios fortes e carnudos” (SOUSA, 1987, p. 195), portava o “cheiro afrodisíaco das mulatas paraenses” (SOUSA, 1987, p. 192) que pôs a perder um padre idealista. Também mestiço é o protagonista d’O cromo, romance de Horácio de Carvalho. Dr. Teixeira, porém, é uma espécie de herói naturalista, que se conservou casto até os trinta e três anos para poder dedicar-se integralmente à ciência. Médico do interior de São Paulo, passa a tratar Ester, filha de um rico cafeicultor. A jovem padece com delírios, dores de cabeça e hemorragia. O médico trata-a com hipnose, pois tem a convicção de estar diante de um caso de histeria. Com o êxito do tratamento, Dr. Teixeira conquista o respeito e a amizade de Ester, por quem se apaixona. A moça, no entanto, morria de amores por estudante de Direito que vira uma única vez em um certo baile; o rapaz era loiro, além de possuir olhos azuis e pele clara. A pretexto de assegurar a saúde da filha, o major Cornélio muda-se com toda a família para a cidade de S. Paulo, onde depois Ester encontra-se casualmente com o estudante, mas, ao conhecê- lo melhor, decepciona-se com a sua vulgaridade. O caminho fica, portanto, aberto para as investidas do médico, que passa a corresponder-se com Ester. Ainda no interior, o Dr. Teixeira rende-se, no entanto, aos encantos de Tonica, uma mulata de corpo escultural. Quando já não se sentia com forças para livrar- se da amante, o médico também parte para a capital deixando a clínica aos cuidados de colega recém-formado. Em São Paulo, é muito bem recebido pela família de Ester e tem ocasião de tratar com êxito de sua mãe, D. Eufrásia, que sofria com os males da menopausa. Antes de fazer um pedido de casamento em regra, combina com Ester uma entrevista no gabinete da moça para quando o pai e o irmão dela estivessem ausentes. Chegado o dia do encontro, o médico ministra sonífero à mãe da moça. Depois, à noite, a sós com Ester, hipnotiza-a para conter-lhe a crescente exaltação e para poder apreciar a nudez de seu corpo virgem, que não obstante deixa intacto. Logo depois, o médico faz o pedido e celebra-se o casamento. Dr. Teixeira e Ester tornam-se um modelo higienista de felicidade conjugal. Note-se, entretanto, que o médico respeitou a virgindade da rica herdeira branca, mas não hesitou em relacionar-se sexualmente com a mulata Tonica, companheira de um amigo seu. Ricardo, irmão de Ester, abusa, por sua vez, de criada da família; esta moça, que também era mestiça, engravida. Mais uma vez, representa-se o mestiço como desencadeador e objeto da lascívia do branco. O cromo é um mau romance, mas é também um belo catálogo de características do naturalismo brasileiro. Ambos os protagonistas são devotados à ciência; mencionam-se na narrativa autores e obras científicas. O livro contém episódios eróticos como a exibição dos corpos nus de Tonica grávida e de Ester hipnotizada. O narrador não hesita em mencionar saliva, sangue, pus e outras secreções e excreções do corpo humano como as descritas em La terre, de Zola2, e disserta sobre questões contemporâneas como a campanha abolicionista, o separatismo republicano paulista, a expansão urbana de São Paulo e a vida social dos barões do café. Não há, entretanto, qualquer inter-relação mais 2 Nas páginas 344, 381 e 386 da edição de 1980 aqui utilizada. Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 18 evidente entre os problemas políticos e sociais contemporâneos abordados e a vida das personagens. O cromo é um romance típico do naturalismo brasileiro até mesmo pelo romantismo residual que reponta na caracterização das personagens e nas descrições de paisagens. Ambientado no interior paulista como O cromo, o romance A carne, de Júlio Ribeiro, também apresenta um par de protagonistas apaixonados pela ciência. Órfã de mãe, Helena (Lenita) recebera uma educação masculina por desejo do pai, que lhe assegurou o estudo de várias ciências e línguas e franqueou-lhe a leitura de todo e qualquer livro. Barbosa, filho de um rico fazendeiro, pudera morar na Europa, onde estudara e convivera com grandes cientistas. Ao perder o pai, Lenita fica muito abatida e procura recuperar a saúde na fazenda do coronel Barbosa, que fora tutor de seu pai. Na propriedade rural, a doença agrava-se, mas é curada com apenas uma injeção. O coronel tinha um filho, já maduro, que se encontrava nas longínquas margens do rio Paranapanema, onde fora caçar. Lenita ouve falar desse homem, que já fora casado, e passa a idealizá-lo como um refinado cavalheiro. Quando Barbosa volta e apresenta-se diante dela enlameado, com a barba e o cabelo crescidos e com o hálito recendendo a cachaça, a moça decepciona-se profundamente e fica até mesmo indignada porque ele, sem muita conversa, logo se tranca no quarto alegando uma já antiga enxaqueca. No dia seguinte, Barbosa procura-a no pomar com roupas limpas e elegantes e trata-a com distinção e delicadeza. O casal logo inicia uma longa e erudita conversa sobre botânica. Nos dias seguintes, fazem com aparelhos adquiridos por Barbosa experiências de física e química e traduzem trechos de autores latinos. Quando o relacionamento científico entre os dois ia de vento em popa, Barbosa vê-se obrigado a ir a Santos resolver problemas financeiros do pai. Entristecida com a iminente partida do amigo, Lenita dispõe-se a arrumar-lhe as malas. Ao sentir o cheiro de que o quarto de Barbosa estava impregnado, Lenita sofre um ataque histérico. De São Paulo, Barbosa envia a Lenita uma longa carta repleta de erudição científica em que disserta sobre a estrada de ferro Santos-Jundiaí, São Paulo, a serra do Mar e o litoral paulista. Somente no final da missiva, confessa ter pensado em Lenita. Quando Barbosa volta, o casal abandona os livros e os aparelhos científicos para dedicar-se às caçadas. Barbosa prepara para Lenita uma ceva no meio da floresta, onde a moça abate vários animais. Entretanto, nesse mesmo lugar, Lenita é picada por uma cascavel. Mesmo socorrida por Barbosa, que suga o lugar atingido para retirar parte do veneno e toma todas as providências necessárias, Lenita teme morrer. Nessa hora extrema, confessa seu amor por Barbosa, que então simplesmente a beija na testa. Sentindo-se de todo recuperada da ação do veneno, Lenita entra furtivamente no quarto de Barbosa à noite. Inicia-se, a partir de então, uma longa série de encontros amorosos a princípio no quarto de Lenita e, depois, em plena natureza. Uma nova viagem de Barbosa vem a interromper o idílio. Entediada, Lenita vai ao quarto do amado e, ao mexer em suas gavetas, descobre relíquias de antigas conquistas amorosas. Presa de ciúmes retrospectivos e considerando Barbosa um “dom-João de pacotilha”, Lenita sente-se usada. Ao descobrir logo depois que estava grávida, Lenita decide deixar a fazenda para casar-se segundo os preconceitos da sociedade. Quando retorna à fazenda, Barbosa sente o vazio deixado pela moça e recrimina-se por ter-se apaixonado. Dias depois, Barbosa recebe uma carta de Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 19 Lenita, em que a moça trata longamente do progresso urbano, social e econômico de São Paulo. Somente no final da carta, revela estar grávida e à procura de um casamento de conveniência que proporcionasse um pai socialmente aceitável ao seu filho. Curiosamente, esse romance naturalista apresenta um final melodramático. Barbosa aplica-se veneno e sua mãe, que havia anos não andava, deixa a cama e arrasta-se até o quarto do filho para presenciar a sua agonia. A carne é um mau romance, pois suas personagens concebidas a priori estão apenas esboçadas e são incoerentes. Lenita, por exemplo, que tão avançada mostrava- se e tão indiferente parecia diante dos preconceitos sociais, entregando-se a um homem separado, descobre no final do romance que não é amor aquele “que não tenda a santificar-se pela constituição da família, pelo casamento legal” (RIBEIRO, 1991, p. 141). A despeito disso, A carne é, de todos os romances aqui analisados, o que mais diretamente trata da questão servil. Os escravos são, a princípio, alvo da piedade da Lenita que possui sólida formação humanista e, depois, vítimas do sadismo da Lenita que sofre de histeria. Os escravos são, também, parte da paisagem natural quando se amam sob as vistas excitadas de Lenita e são parte da realidade econômica quando movem o engenho ou interrompem seu funcionamento ao serem apanhados nas engrenagens. O narrador revela os castigos físicos a que se submetiam os escravos e a justiça sumária que se ministrava com a complacência do fazendeiro, mas trai seu preconceito racial ao atribuir aos escravos uma “catinga africana, indefinível, que doía ao olfato” (RIBEIRO, 1991, p. 64) e uma linguagem que era uma “algaravia bárbara, horripilante, impossível de reproduzir” (RIBEIRO, 1991, p. 97). O narrador também menciona a “maledicência característica da raça negra” (RIBEIRO, 1991, p. 137). Dos romances de 1888, A carne é o que presta o maior tributo a Zola. Júlio Ribeiro dedica o seu livro “ao príncipe do naturalismo Emílio (sic) Zola”, a quem se dirige em carta transcrita com verso emprestado de Dante: “Tu duca, tu signore, tu maestro”. Nesse paratexto, Ribeiro pondera que a dedicatória seria provavelmente agradável ao grande escritor: “Porquoi pas? Les rois, quoique gorgés de richesses, ne dédaignent pas toujours les chéfits cadeaux des pauvres paysans” (RIBEIRO, 1991, p. 07). Essa homenagem de um brasileiro, datada de 25 de janeiro de 1888, talvez fosse um desagravo ao grande escritor francês, que fora tão asperamente criticado no ano anterior pela publicação do romance La terre. Em A carne, assim como no episódio mais escandaloso de La terre, um touro fecunda uma vaca. Lenita, ao contrário de Françoise, não intervém, mas apenas contempla a cena à distância. Segundo o narrador, Lenita considera o ato fisiológico “grandioso e nobre em sua adorável simplicidade” (RIBEIRO, 1991, p. 61). Em La terre, Jean contempla a cena impassível porque, simplesmente, “c’était la nature” (ZOLA, 1980, p. 37). Apesar de proclamar-se discípulo de Zola, Júlio Ribeiro não realiza um estudo satisfatório da questão fundiária e da cultura camponesa como Zola fez em La terre. De todos os romances publicados em 1888, somente Inglês de Sousa segue à risca o exemplo de Zola ao escrever O missionário, que contém uma análise abrangente de uma sociedade provinciana com suas várias classes e tipos sociais, além de discutir questões polêmicas como o celibato dos sacerdotes católicos. Diga-se, entretanto, que nenhum dos romances aqui considerados trata de modo conseqüente da escravidão, o mais grave problema social do Brasil no final do Império; em A carne, os escravos fornecem pretextos para evidenciar a histeria de Lenita. Provavelmente, o racismo pseudocientífico, que Olho d´água, São José do Rio Preto, 4(1): 1-163, 2012 20 se revela nas considerações preconceituosas e estereotipadas dos narradores sobre negros e mulatos, vistos como um perigo e uma tentação para os brancos, comprometia uma discussão mais aprofundada da questão servil. Como se nota claramente em Uma família baiana, os romances de 1888 ainda trazem fortes marcas queirosianas em determinados episódios, na descrição de espaços e na caracterização e apresentação de personagens, mas já são tributários de Zola na importância atribuída ao temperamento e à fisiologia, na coragem em abordar temas polêmicos como o incesto, no cientificismo e no tratamento franco e ousado da sexualidade. No entanto, nesses romances já se nota a constituição de uma linhagem de personagens nacionais, representada pelas histéricas Ester (O cromo) e Lenita (A carne), prováveis descendentes de Magdá, protagonista do romance O homem, relativo sucesso de público do ano de 1887. SIMÕES Jr., A. S. Between Zola and Eça: Brazilian Naturalism at its zenith (1888). Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 4, n. 1, p. 11-20, 2012. ISSN 2177-3807 Referências AZEVEDO, A. O homem. Posfácio de Letícia Malard. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. CARVALHO, H. de. O cromo: estudo de temperamentos. Rio de Janeiro: Tipografia de Carlos Gaspar da Silva, 1888. CARVALHO, M. de. Hortência. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1989. MALLET, P. Lar. Rio de Janeiro: Tipografia Central, 1888. MARQUES, X. Uma família baiana. Bahia (sic): Imprensa Popular, 1888. MIGUEL PEREIRA, L. História da literatura brasileira: prosa de ficção, de 1870 a 1920. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1988. RIBEIRO, J. A carne. São Paulo: Círculo do Livro, 1991. SOUSA, I. de. O missionário. São Paulo: Ática, 1987. ZOLA, É. La terre. Paris: Gallimard, 1980. Recebido em 23/11/2011; Aprovado em 25/02/2012