UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PROFISSIONAL EM ARTES – PROF-ARTES OSVALDO PINHEIRO DA SILVA Ilustração: Coletivo Cearense Entrelinhas Cariri / Instagram: @entrelinhascariri POVOS ORIGINÁRIOS: 11.645 RASTROS EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA CONTRACOLONIAL São Paulo 2023 OSVALDO PINHEIRO DA SILVA POVOS ORIGINÁRIOS: 11.645 RASTROS EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA CONTRACOLONIAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), para a obtenção do título de Mestre em Artes. Linha de Pesquisa: Processos de ensino, aprendizagem e criação em artes. Orientação: Prof.ª Dra. Carminda Mendes André. São Paulo 2023 2 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S586p Silva, Osvaldo Pinheiro da, 1979- Povos originários: 11.645 rastros em busca de uma pedagogia contracolonial / Osvaldo Pinheiro da Silva. -- São Paulo, 2023. 148 f.: il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Carminda Mendes André. Dissertação (Mestrado Profissional em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte na educação. 2. Indígenas. 3. Educação e Estado. I. André, Carminda Mendes. II.Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 707 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 3 OSVALDO PINHEIRO DA SILVA POVOS ORIGINÁRIOS: 11.645 RASTROS EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA CONTRACOLONIAL Trabalho de Conclusão de curso apresentado publicamente e aprovado em 26/05/2023, pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: _________________________________________ Prof.ª Dra. Carminda Mendes André Universidade Estadual Paulista Presidente da Banca (Orientadora) _________________________________________ Prof.ª Dra. Luíza Helena da Silva Christov Universidade Estadual Paulista Membro Avaliador _________________________________________ Prof. Dr. Carlos José Ferreira dos Santos Universidade Estadual de Santa Cruz Membro Avaliador 4 DEDICATÓRIA Ao Acampamento Terra Livre (ATL). Um evento de mobilização dos Povos Indígenas do Brasil em torno de seus direitos constitucionais que acontece, anualmente, desde o ano de 2004. Ao Cordão da Mentira, um bloco carnavalesco de intervenção estética que, de modo bem humorado e radical, versa e canta sobre temas cruciais para uma real transformação da sociedade brasileira. Um grupo formado por sambistas, grupos de teatro, coletivos culturais e artísticos, militantes, mães de maio, mães do Brasil e movimentos sociais. O Cordão desfilou pela primeira vez em 2012 debatendo acerca das heranças da ditadura em nosso cotidiano e, desde então, vai para as ruas anualmente discutindo a violência de Estado e a opressão contra as classes populares no Brasil, sempre no dia 1º de abril, dia da Mentira, dia do golpe de 1964. Aos movimentos sociais, especialmente ao MST e todes que fazem de seus dias de vida, uma constante luta contra todas as desigualdades. A todas as vidas resistentes e a todas as pessoas que, infelizmente e absurdamente, se foram neste país diante de uma necropolítica no maior laboratório a céu aberto da COVID-19 do mundo, com seus milhares de óbitos diários a que chegamos. Todo apoio às/aos Yanomami, pois suas terras foram invadidas por garimpeiros que levaram fome, violência, doenças e até a morte para adultos e crianças. Segundo dados oficiais entre 2019 e 2022, 570 crianças Yanomami morreram e muitas delas vítimas da fome. 5 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha orientadora, Prof.ª Dra. Carminda Mendes André, que me acolheu como seu orientando e fez um excelente trabalho de acolhida sensível e provocação profunda diante das incertezas. Uma intelectual que seguirá como minha referência em toda trajetória pessoal, profissional e mesmo cotidiana. A essa banca examinadora titular e suplente, Prof. Dr. Carlos José Ferreira dos Santos (Casé Angatu Xukuru Tupinambá) e Profs. Dras. Luíza Helena da Silva Christov, Clarissa Lopes Suzuki e Eneila Almeida dos Santos. Obrigado pela confiança no meu trabalho, pelo respeito, por me ensinar, pela compreensão e pelos sábios conselhos na qualificação e todo percurso. Aos meus familiares, especialmente, à minha mãe Maria do Socorro Pinheiro da Silva, referência primeira de amor, dedicação e coragem de enfrentar os machismos diários que a circundaram de forma direta e objetiva. Ao meu pai José Francisco da Silva (Zé Bigode), por me ensinar que mesmo diante das tragédias do dia a dia, a alegria ainda pode ser um grande antídoto de organização da vida. Às minhas irmãs e irmão, Aldeniza, Ana Cláudia, Ana Lúcia e Francisco José (Dedé), por me acompanharem atentamente, mesmo que de longe, sempre na torcida e me mostrarem o quanto somos parte de um cordão umbilical que a cada dia mais se fortalece, encontra sentido e significância de ser e estar em toda complexidade deste mundão. Às/Aos sobrinhas(os) Bruno Américo, Luan Américo, Amanda Pinheiro, Isabela Moraes e Isadora Moraes que sempre me acompanham com todo carinho e me devolvem o esperançar necessário de dias melhores. Às/Aos Avós e Avôs (in memorian) Paternos: Maria Almerinda (Vovó Nenê) e José Pregintino que, na simplicidade e no silêncio dos dias difíceis de suas lutas diárias por pão e justiça, nos ensinaram que é com coragem e alegria que se faz a luta cotidiana. E às/aos Maternos: Maria Aldeniza Pinheiro e Francisco Aldemar Rodrigues Pinheiro, por nos fazerem acreditar que, mesmo diante do impossível, sempre há algo no horizonte a se conquistar e compartilhar. Ao meu parceiro Paulo Reis Nunes, por me encorajar a trilhar este caminho acadêmico, muitas vezes desacreditado por uma estrutura classista, 6 que torna nossos corpos (oriundos de classe trabalhadora), historicamente desmerecidos, desde que o eurocentrismo nos enfiou goela abaixo seus fundamentos como verdade oficial. Agradecer imensamente pela paciência e competência de excelente revisor e organizador de conteúdo. Aqui, minha eterna gratidão. À minha querida amiga Geórgia Sales (Carambola) que, na reta final deste agrupamento de sonhos e ideias, me fez acolhida atenta como revisora, diagramadora e organizadora de conteúdo, me deixando suspirar por alguns segundos para a conclusão dessa importante travessia. Amor nos define e nos reafirma. Às lideranças Indígenas entrevistadas: Cacique Chicão Terena (Edenilson Sebastião), Chirley Pankará (Chirley Maria de Souza Almeida Santos), Valdir de Souza, Budga Deroby Nhambiquara, Eldo Shanenawa (Eldo Carlos Gomes Shanenawa), Olívio Jekupé, Mirna Kambeba Anaquiri (Mirna Kambeba Omágua Yelê), Joedson Nascimento (Francisco Joedson da Silva Nascimento), Ingrid Sateré Mawé (Ingrid Silva de Assis Leitemberg) e Ismael Krahô (Ismael Ahprac Krahô), que me fizeram entender melhor os atravessamentos coloniais que nos habitam e que, ainda hoje, necessito refazer enquanto travessia. A todo corpo docente, discente, gestão, coordenação e trabalhadoras(es) em geral, que fazem da EMEF Célia Regina Andery Braga um complexo espaço de aprendizagem, afetuosidade e amor. Em especial, às/aos docentes, coordenação e gestão participantes: Fernanda Lopes de Moraes, Claudineide da Silva Caires, Cláudia Nunes, Lúcia Emiliano, Breda Cruz, Rosemeire Santos, Solange Diorato, Fernanda Reges, Elaine Santos, Péricles Souza, Elizabeth Martinez, Débora Kateriny Ferreira de Aguiar, Rita de Cássia Batista Bortoti, Thiesa Christina Ramos Visentini, Sérgio Souza, Osni Vieira, Cristiano Coulange, Adriane Luzia, Fernando Santos, Bruna Santos, Camila Vitorino, Solange Bacelar, Antônio Marcos, Viviana Valente, Cíntia Freire, Cristiane do Amaral, Jivaldo Gomes, Alexandre Oliveira, Renata Almeida, Márcia Santiago e Luciana Ferreira. Ao Grupo de Estudos da Orientadora Professora Dra. Carminda Mendes André, que me manteve constantemente alimentado pelas provocações necessárias: Caio Franzolin, Cida Almeida, Cristian Reichert, Daniele Santana, Daniel Viana, Dudu Oliveira, Élder Sereni, Eneila Almeida, Fernando Catelan, 7 Gustavo Henrique, Karyne Dias, Maíra Leme, Márcia Fusaro, Nathália Imbrizi e Rodrigo Abreu. A Todes da turma do Prof-Artes, que me encorajaram a fazer cada travessia da forma mais íntegra e humana: Ana Clara, Ana Lara, Anderson Souza, André Luís, Bruno Canabarro, Budga Nhambiquara, Janaína Farias, Joy Japy, Lenara Abreu, Lindhy Barbosa, Milena Miotto, Sarah Nhambiquara, Thabata Vecchio, Thiago Nascimento e Vinícius Gil. Às/Aos Professoras(es) Doutoras(es) Docentes que, da forma mais íntegra, me fizeram um tanto mais sensível e sabido: Prof. Dr. Sidiney Peterson Ferreira de Lima, Prof. Dr. Victor Hugo Neves de Oliveira, Prof.ª Dra. Rejane Galvão Coutinho, Prof.ª Dra. Carolina Romano, Prof.ª Dra. Lilian Vilela, Prof. Dr. Mário Bolognesi e Prof.ª Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli. À querida Lourdes Reis Silva pelo apoio constante e presente de obra necessária sobre as Leis 10.639/03 e 11.645/08. Aos familiares Sâmia Feitoza Nascimento, Filomena Oliveira, Lucimeire Oliveira e Maria Vilmar (Tia Uá), que me ajudaram a encontrar rastros ancestrais de nossos povos originários dentro da família e que, assim, me fizeram entender melhor os objetivos trilhados. Às/Aos amigas(os) que sempre me estimularam a querer mais e foram escuta profunda e atenta durante toda a pesquisa: Ana Paula Correia, Beth Castro, Paula Cortezia, Daniela Giampietro, Maria Carolina Dressler, Kátia Lazarini, Karine Micheline, Luciano Carvalho, Ana Paula Silva, Clau Carmo, Janaína Barbosa, Rodrigo Cacciatore, Fernanda Azevedo, Rute Reis, Alexandra Alves, Júlia Oliveira, Cléber Ferreira, Renata Marques, Marília Gabriela, Vanéssia Gomes, Nei Gomes, Maurício Hiroshi Kanashiro, Marvinie Barros, Simone Santos, Elaine Silva, Flávia Paiva e Léia Magalhães Freire. Às/Aos atuais e anteriores integrantes da Cia. Estável de Teatro, uma das minhas principais universidades de formação política, social e cidadã, que me fizeram entender melhor sobre importâncias e prioridades num caminhar arrebatador e tão complexo. A todos os movimentos sociais, que no enfrentamento cotidiano fazem da luta cotidiana um motivo a mais pela destruição do descalabro sistema capitalista que tanto nos despotencializa, especialmente à toda contribuição que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) fez em minha trajetória. 8 À família Budga Deroby Nhambiquara, Sarah de Castro Ribeiro Nhambiquara e Itamaraí Nhambiquara, por me aproximarem da forma mais solidária aos movimentos sociais indígenas organizados, que vêm fazendo o enfrentamento tão necessário para a mudança epistêmica e subjetiva deste país. E a todas(os) profissionais que fazem de sua vida um trabalho contínuo na área da Arte Educação e Pedagogia, em prol de mudar o mundo. 9 PIRA TININGAR (Osvaldo Pinheiro) Pindorama, Tapuias que me habitam Peço-lhes permissão que eu possa contar Algo da história que a história faz passar Porque hoje tu mais que ninguém Sabes que é tudo encruzo E é na luta que a gente reconhece o justo. Pindorama, Piratiningar Terra das Palmeiras, Que o usufruto de gente que se fez grande Com sangue retinto, com sangue originário Que transformou pau-de-pernambuco pau-rosado, pau-brasil, em simplesmente Brasil Possa ressurgir ao sol raiar. Não permita Nhanderu, que desde 1500 Versos que o livro foi apagar Continue nos corpos como herança colonial Pois se somos um carrego Que o descarrego político e poético Com arco, flecha, foice e martelo Nos desmonte é pra já. E neste habitar de mais invasão do que descobrimento Sangue, sangue, sangue do meu sangue Pintado atrás das molduras do herói emoldurado Entre dissidentes, mulheres, griôs e originários Saltem das valas comuns e façam ecoar as potências que a colonialidade tentou abafar. Parem a onda crescente de homofobia já Que nunca mais tibiras tombem amarrados Como espetáculos de um cis-tema que se arrasta E se multiplica de 1614 a 1964 Com gritos e palavras amarradas E nunca mais Tupinambás esquartejadas. AfroPindoramicoBrasil Tua cara é de cariri De Tupã tu foi parir Porque a liberdade é um dragão no mar de Aracati. Francisco José do Nascimento Dragão do Mar ou Chico da Matilde Arrasta essas jangadas para as bandas de cá Que o movimento abolicionista do meu Ceará Crave no coração dessa ilusão colonial A derrota daqueles que correm em suas veias Um brasil acima de tudo e um caramunhão acima de todos. Salve Dandaras, Guajajaras, Tupinambás e Pankarás Porque quem foi de aço e vieram lhes matar Há uma clemência que possa aguardar Pois do Tupi roubado e aportuguesado Muitos quimbundos, umbundos e iorubás Hão de mandingar1. 1 Livre inspiração da música: “Histórias Para Ninar Gente Grande” – Samba-enredo da Escola Estação Primeira de Mangueira, em 2019. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=7SObzDOug_A. Acesso em 25/03/2023. https://www.youtube.com/watch?v=7SObzDOug_A 10 RESUMO A pesquisa apresenta um estudo e ações sobre práticas curriculares e metodológicas desenvolvidas no Ensino Fundamental da EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Braga, em São Paulo (SP), como importante contribuição para entender e analisar como se efetivam os processos sobre cultura indígena no ensino formal, sob a ótica de docentes e discentes, ampliando as bases teóricas e metodológicas da arte-educação, por meio de uma ação que visa reconstruir imaginários e garantir a aplicação da Lei 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena, formulando o debate sobre direitos e acessos das políticas educacionais. A pesquisa se deu a partir das seguintes metodologias: entrevistas, pesquisa participante, pesquisa ação, análise de conteúdo e pesquisa de campo, dividindo-se em três momentos organizados em forma de Cadernos. O Primeiro Caderno diz respeito às experiências vividas e observadas no “Acampamento Luta Pela Vida” em Brasília (DF), resultante da convivência com lideranças e movimentos indígenas de diversas partes do Brasil, participação momentânea de suas realidades e ritos, e reorganização indígena na América Latina. O Segundo Caderno traz resultados de formação com docentes, a partir da Lei 11.645/08 e o compartilhamento do meu percurso na arte educação, na busca constante por uma educação contracolonial que reverberasse em mim e nos demais docentes do contexto escolar de trabalho cotidiano, como flechadas ao vento. Já o Terceiro e último caderno, explanamos o projeto intitulado: “O Teatro e Os Povos Originários”, como proposição de des-caravelização2 de nossas mentes. Assim, esta pesquisa teve como objetivo apresentar aspectos relevantes ligados à diversidade das culturas originárias, a partir do acervo de obras sobre literatura indígena que temos disponível na escola. Neste processo, realizamos investigações cênicas que puderam nos facilitar modos de perceber, sentir e articular significados, valorizando as diferentes relações entre pessoas numa sociedade. A ação teve como resultado a encenação do exercício intitulado “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar”, parafraseando importante fala da liderança Célia Xakriabá. Essa sistematização possibilitou com que as(os) participantes pudessem perceber que suas vivências estão enraizadas na cultura indígena, buscando assim uma “revisão” da construção cultural da imagem do “índio”, por meio dos usos e apropriações dessas culturas, desde os processos da colonização portuguesa à era contemporânea. Foi investigado não somente “no QUE as pessoas pensam sobre estes fundamentos, mas também COMO e PORQUE pensam assim”. PALAVRAS-CHAVE: Currículo; educação; formação de docentes e discentes, relações étnico-raciais e descolonização. 2 “Des-caravelização” de mentes foi um termo cunhado da ativista Aline Ngrenhtabare L. Kayapó, descendente do povo Aymara. Autora na obra “Nós: Uma antologia de literatura indígena” (Ed. Companhia das Letrinhas), ativista no Movimento Nacional de Indígenas Mulheres. Fundadora do Wairaísmo - corrente ancestral-filosófica que se vincula à resistência das mulheres indígenas no Brasil. É acadêmica do curso de Direito e, secretária de comunicação regional do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA) - 01/2022. 11 ABSTRACT The research presents a study and actions on curricular and methodological practices developed in Elementary School at EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Braga, in São Paulo (SP). The work presents itself as an important contribution to understanding and analyzing how processes about indigenous culture are carried out in formal education, from the perspective of teachers and students, expanding the theoretical and methodological bases of art education, through an action that aims to rebuild imaginary and guarantee the application of Law 11.645/08, which establishes the mandatory teaching of Afro-Brazilian and indigenous history and culture, formulating the debate on rights and access to educational policies. The research was based on the following methodologies: interviews, participant research, action research, content analysis and field research, divided into three moments organized in the form of Notebooks. The First Notebook concerns the experiences lived and observed at the “Acampamento Luta Pela Vida” in Brasília (DF), resulting from coexistence with indigenous leaders and movements from different parts of Brazil, momentary participation in their realities and rites, and indigenous reorganization in America Latin. The second notebbok brings results of training with teachers, from Law 11.645/08 and the sharing of my path in art education, in the constant search for a countercolonial education that would reverberate in me in the other teachers of the school context of daily work, like arrows To the wind. In the third and final section, we explain the project entitled: “The Theater and the Originating Peoples”, as a proposal to de-caravelize our minds. Thus, this research aimed to present relevant aspects related to the diversity of indigenous cultures, based on the collection of works on indigenous literature that we have available at school. In this process, we carried out scenic investigations that could facilitate ways of perceiving, feeling and articulating meanings, valuing the different relationships between people in a society. The action resulted in the staging of the exercise entitled “Before the Brazil of the Crown, there is the Brazil of the Cocar”, paraphrasing an important speech by Célia Xakriabá. This systematization allowed the participants to realize that their experiences are rooted in indigenous culture, thus seeking a "review" of the cultural construction of the image of the "Indian", through the uses and appropriations of these cultures, from the processes of Portuguese colonization to the contemporary era. It was investigated not only “WHAT people think about these fundamentals, but also HOW and WHY they think so”. Key-words: Curriculum; education; teacher training; racial/ethnic relationships; decolonization. 12 LISTA DE IMAGENS Imagem 01: Registro da Entrada de Solonópole/CE – 2021 ........................... 16 Imagem 02: Projeto Baobá Árvore Literária ..................................................... 21 Imagem 03: Plenária do Acampamento “Levante Pela Vida” em Brasília/DF .. 22 Imagem 04: Plenária do Acampamento “Levante Pela Vida” em Brasília/DF .. 22 Imagem 05: Nomes de Povos no Acampamento “Levante Pela Vida” em Brasília/DF........................................................................................................ 23 Imagem 06: Formação sobre Povos Originários .............................................. 25 Imagem 07: Oficina “O Teatro e Os Povos Originários” .................................. 26 Imagem 08: Frente e Entrada da EMEF Profª Célia Regina ............................ 29 Imagem 09: Ilustração produzida em Plenária do Acampamento “Levante Pela Vida” ................................................................................................................. 33 Imagem 10: Manifestação Indígena em Brasília/DF ........................................ 39 Imagem 11: Trilha da Ancestralidade no Sitio Três Irmãos ............................. 43 Imagem 12: Manifestação Indígena em Brasília/DF ........................................ 48 Imagem 13: Diálogos Indígenas – Encontro de Formação com Docentes, Discentes e Familiares ..................................................................................... 51 Imagem 14: Chicão Terena ............................................................................. 56 Imagem 15: Chirley Pankará ........................................................................... 58 Imagem 16: Valdir de Souza............................................................................ 59 Imagem 17: Budga Deroby Nhambiquara ....................................................... 60 Imagem 18: Eldo Shanenawa .......................................................................... 61 Imagem 19: Olívio Jekupé ............................................................................... 63 Imagem 20: Mirna Kambeba Anaquiri ............................................................. 64 Imagem 21: Joedson Nascimento ................................................................... 65 Imagem 22: Ingrid Sateré Mawé ...................................................................... 66 Imagem 23: Ismael Krahô ................................................................................ 68 Imagem 24: Nossas barracas no Acampamento “Levante Pela Vida” ............. 70 Imagem 25: Aula sobre Cosmovisão na EMEF Profª Célia Regina ................. 74 Imagem 26: Apresentação do Exercício Cênico: “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar” .................................................................................. 93 Imagem 27: Avaliação do Projeto “O Teatro e Os Povos Originários” ............. 93 13 Imagem 28: Processo de Construção do Exercício Cênico: “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar” ....................................................................... 95 Imagem 29: Avaliação do Projeto e Encenação do “O Teatro e Os Povos Originários” ..................................................................................................... 104 Imagem 30: Os Futuristas - Entrevista Especial Ailton Krenak ...................... 107 Imagem 31: Manifestação Indígena em Brasília/DF – 2021XII ...................... 146 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................... 16 1. IDENTIFICAÇÃO DA UNIDADE ESCOLAR EMEF PROF.ª CÉLIA REGINA ANDERY BRAGA..................................................................... 27 1.1 Características da população e comunidade................................. 27 1.2 Em busca dos Guaianases ou Guaianá.......................................... 30 2. CADERNO 1: O AUTOR COMO NARRADOR.................................... 33 2.1 Acampamento “Luta Pela Vida”: reflorestando mentes................ 33 2.2 Descobrindo o pé enraizado na cultura indígena......................... 42 2.3 Reverberações dos Encontros / Resultados – Soco no Tempo.. 46 3. CADERNO 2: PROFESSORAS(ES).................................................... 49 3.1 Projeto “Formação com Docentes”: Lei 11.645/08 e Flechada ao Vento.................................................................................................. 49 3.2 1º Encontro: Lei 11.645/08: Pindorama (Terra das Palmeiras) Kaê Guajajara e Território Ancestral..................................................... 51 3.3 2º Encontro: Desconstrução - conversas com lideranças Indígenas................................................................................................ 55 3.4 3º Encontro: Ancestralidades.......................................................... 69 3.5 4º Encontro: Audiovisual: “Ecologia de Saberes”......................... 71 3.6 5º Encontro: Dados e Estatísticas - Contrapondo reducionismos........................................................................................ 73 3.7 Reverberações dos Encontros / Resultados.................................. 77 4. CADERNO 3: ESTUDANTES.............................................................. 90 4.1 Projeto “O Teatro e Os Povos Originários” Rastro Atrás - Descaravelizando Mentes...................................................................... 90 4.2 Reverberações dos Encontros / Resultados.................................. 104 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS - Em busca de uma pedagogia contracolonial......................................................................................... 107 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................... 117 7. APÊNDICES........................................................................................ 119 Entrevistas em Brasília.......................................................................... 119 Material trabalhado na formação com Docentes................................. 119 Referências bibliográficas e webgráficas trabalhadas na Oficina “O Teatro e Os Povos Originários”....................................................... 120 Endereços de referências sobre Luta e Povos Originários................. 121 15 8. ANEXOS.............................................................................................. 123 Anexo A: Texto incluído no PPP da escola a partir das ações realizadas por este projeto......................................................................................... 123 Anexo B: Texto da Lei 11.645/2008....................................................... 128 Anexo C: Devolutiva do 4º Encontro com Docentes - Audiovisual “Ecologia de Saberes ”- Prof.ª Célia Regina Andery Braga....................... 130 Anexo D: Material de Apoio ao 5º Encontro............................................ 141 Anexo E: Paulo Freire - Saberes necessários à prática educativa........... 143 16 INTRODUÇÃO Sempre que volto à minha cidade de origem, Solonópole (CE) e ao meu núcleo familiar, regresso em busca de um novo sentido para a existência, portanto, essa pesquisa me reconecta ao tempo das primeiras histórias contadas ao pé do ouvido em casa e na escola, como artimanha confusa no contraponto entre as pessoas que contam e das pessoas que escutam tais narrativas. Tais histórias retratam uma batalha entre povos indígenas onde, no confronto, o sangue dessas etnias havia escorrido pelo rio que transpassa minha cidade e, a partir deste acontecimento, deu origem ao nome do povoado que ficou conhecido como Cachoeira do Riacho do Sangue, no Sertão Central do Ceará, mais tarde sendo renomeada como Solonópole, em homenagem a um personagem ilustre da cidade conhecido como Manoel Solon Rodrigues Pinheiro. Imagem 01: Registro da Entrada de Solonópole/CE – 2021 Fonte: arquivos pessoais Começo com essa história para dizer que esta pesquisa tem características de mergulho de dentro para fora, com o intuito de resgate bem específico para um processo artístico pedagógico de criação, que foi realizado com lideranças indígenas, docentes e discentes do Ensino Fundamental. 17 Pretende-se disponibilizar este material como estímulo a cumprir a Lei 11.645/08 que, mesmo sistematizada no livro “Currículo da Cidade – Povos Indígenas – Orientações Pedagógicas”, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, pouco se é implementada, ficando toda uma rede que poderia potencializar o trabalho sobre essas questões entregue à toda sorte de reducionismos, que nos transmitiram a partir de um ponto de vista da colonização sangrenta que este país perpetua até os dias atuais. O trabalho me faz intrincado nas trilhas de uma memória ancestral, que revisita um passado de outrora, seguindo rastros de grandes lideranças, dentre elas: Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, Davi Kopenawa, Kaê Guajajara, Célia Xakriabá, Ailton Krenak, além de outras e outros. Numa das muitas entrevistas que tive acesso, Krenak3 finaliza suas considerações com uma frase que ainda me ecoa4: [...] o que eu vou deixar para a próxima geração depois de mim? Você pode achar que acha isso em qualquer livrinho de autoajuda e de boas intenções, mas eu tenho sentido isso como uma urgência no meu osso, no meu corpo, se a gente não tiver responsabilidade sobre o que nós vamos deixar para os nossos filhos, no sentido imediato da existência, significa que como humanidade a gente faliu. Lembro-me que a primeira vez que escutei a palavra “índio”, foi muito cedo, na primeira infância, e já veio com todos os estigmas, fetiches e estereótipos perpassados há séculos. Já naquele momento, o que aprendi foi que “índio” tinha a ver com pobreza, fantasia, maldade, sangue, sujeira e gente do mal que queria roubar minha cidade das mãos de gente branca que só fazia o bem. Tudo isso numa infância sertaneja, que mostrava o programa “Xou da Xuxa”, exibido pela TV Globo entre 1986 e 1992, como um espaço de endeusamento à cultura branca europeia e, consequentemente, de exclusão de outros espectros da população nacional e sua encenação da famosa música “Brincar de Índio”. A partir disso, já se justifica o imaginário citado. 3 Ailton Alves Lacerda Krenak, conhecido como Ailton Krenak, é um autor, contador de histórias, liderança, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da Etnia Indígena Krenak. 4 Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-o8IunpqgXY. Acesso em: 25/03/2023. 18 Outro exemplo é a encenação da música “Curumim lê” da apresentadora e cantora Mara Maravilha, ambos os programas nos traziam ideais de branqueamento do Brasil e a ilusória democracia racial que naturalizavam as diferenças sociais. Ao narrar estes fatos, me vem à lembrança o cheiro de mato, de terra, de rio, de ventania, de sol escaldante, de chuva rara, de lama, de brincadeiras e sobretudo muita alegria. Mal sabia que essas memórias são o próprio sentido e significado da existência de toda arte e pedagogia de um processo de ensino e aprendizagem indígena. Sou oriundo de Solonópole, cidade sertaneja que tem uma distância de 269,7 km de Fortaleza, capital do estado do Ceará, tempo estimado de 4h30min de viagem, clima tropical quente, semiárido, com raras chuvas de janeiro a abril, relevo de serras secas e sertões, com vegetação de caatinga arbustiva aberta e densa, tem uma população estimada em 2018 de 18.291 habitantes e censo populacional em 2010 de 17.665 pessoas, segundo fontes do IBGE. O primeiro povoamento colonial na área do atual município, de acordo com alguns autores, se chamava ORIABEBÚ. Anteriormente, conhecido como “Riacho das Pedras”, esse rio teria adquirido tal nome devido aos confrontos mortais entre moradores do entorno, os quais teriam tingido suas águas de sangue. Oriabebu. Riacho do sangue chamou-se Oriabebu pelos índios (ou Rio das pedras). A denominação se deve ao efeito visual da terrível batalha travada entre os índios Tapuias e as forças do governo comandadas pelo bandeirante Paulista Matias Cardoso, em 23.10.1683, cujo sangue derramado tingiu as águas que fluíam. Pesquisado por Pecci Silva Maranhão, no livro “O Ceará”, do Instituto do Ceará em 22.10.1987. As hipóteses sobre qual conflito de fato teria ocorrido são várias: uma carnificina ocorrida entre indígenas defensores de Monte e Feitosa, famílias tradicionais do interior do Ceará, um combate entre indígenas genericamente chamados de “Tapuia” e a Bandeira de Matias Cardoso, no começo do século XVIII, ou mesmo uma briga motivada pela divisão das sesmarias (sistema português, adaptado no Brasil, que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção agrícola). Fiz essa consideração na tentativa de trilhar rastros de uma subjetividade sempre inconformada com uma história não resolvida, que me foi apresentada 19 ainda criança na escola, espaço de criação de referência muito importante que estrutura nossas crenças e valores que seguem adiante. Ao escutar e avaliar outro chamamento do Krenak, passei a rememorar, profundamente, minha trajetória de formação subjetiva e me fiz coragem para rever, entender e construir outros rumos no espaço institucional de atuação que infelizmente, ainda hoje, invisibiliza a existência plena de nossos antepassados; uma forma de abrir passagem para outros imaginários que por aqui estavam, passaram e ainda continuam por essas paragens. Há décadas, Krenak vem nos alertando sobre a construção da visão indígena no mundo, em especial a luta permanente dos povos tradicionais no Brasil5: A literatura que é veiculada nas escolas para as crianças de vocês, até hoje, não conseguiu sair do preconceito de sugerir que os índios são primitivos, tipo, tão primitivos que ainda não conseguiram evoluir pro estágio civilizado, que é uma babaquice absoluta, a menos que pra gente evoluir, a gente tivesse que poluir, envenenar, detonar, criar bandido, os mocinhos, cadeias, grades, patrulhas, vigilâncias, hospitais. A gente não tem essas instituições maravilhosas que a civilização criou, tipo presídio de segurança máxima, sequestro, sequestro relâmpago, sequestro rapidinho, assaltos, essas coisas a gente não conseguiu, a gente não teve capacidade de desenvolver, mas quem sabe, se a gente viver em perfeita cooperação com o ocidente, a gente consegue chegar no mesmo grau de delinquência e detonar o planeta junto com todo mundo, eu acho que a oportunidade de juntos termos uma visão crítica da coisa, me dá uma oportunidade de ouvir vocês e possibilita também que eu conte para vocês um pouquinho da visão que o meu povo tem sobre isso que aprendemos a chamar de civilização. Assim, em 2013, a Cia. Estável de Teatro, grupo que integro desde 2005, participou do 13º Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), em Transacreana/AC, no qual tivemos momentos de grande significância e convivência com o povo Huni Kuin. Viver essa experiência de dias, acampado, participando de rituais, estudando, dormindo, comendo junto e partilhando teatro (palavra que não tem muito sentido para os povos originários), me despertou um interesse enorme de olhar com mais seriedade para essa realidade invisibilizada como apagamento do tal projeto de nação. De 2014 a 2018, lecionei na Escola Estadual Marechal Deodoro, que tinha majoritariamente estudantes da primeira fase do Ensino Fundamental, filhos e 5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-o8IunpqgXY. Acesso em 25/03/2023. 20 filhas de imigrantes e refugiados latino-americanos, como bolivianos, peruanos e paraguaios, de forma que professorado e estudantes realizavam um esforço enorme na tentativa de superar barreiras culturais e idiomáticas, na maioria das vezes bem sucedidas. Em 2018, assumi cargo efetivo na EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Braga, como professor de Arte do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, mas por demanda escolar, fui locado em turmas do Fundamental I. Assim, em agosto de 2019, propus à coordenação um projeto dedicado aos povos originários, com atividades que remetessem ao dia 09 de agosto, em homenagem ao Dia Internacional dos Povos Indígenas. Nessa programação, foram realizadas ações de contação de histórias de diversos povos, exibição de documentários, brincadeiras e oficina de construção de instrumentos musicais indígenas com objetos recicláveis. Paralelamente ao projeto supracitado, participei de uma formação denominada “Educar para as relações étnico-raciais na perspectiva do currículo da cidade e das Leis 10.639/03 e 11.645/08”, na qual apresentei uma contação de histórias sobre a resistência de mulheres negras ativistas, a partir do enredo da Escola de Samba da Mangueira de 2019. Em novembro de 2019, propus na escola a realização do projeto “Novembro Negro”, em consonância com a Lei 10.639/2003, onde articulei um encontro de professoras(es) pesquisadoras(es) negras(os) para ministrar uma oficina de formação com docentes, gestão e coordenação em nossa Unidade. Nessa programação, desenvolvi uma ação de Capoeira, integralizando estudantes que cursam a modalidade na Fábrica de Cultura Cidade Tiradentes. No mesmo período, iniciei o curso de pós-graduação (especialização) em Cultura nas Aldeias Indígenas e Quilombolas, pela Faculdade Unificada do Estado de São Paulo (FAUESP), com proposições de visitas na Casa do Sítio da Ressaca, Museu Afro-Brasil, Aldeia Tenondé Porã (Parelheiros) e Território Indígena Jaraguá que infelizmente, devido à pandemia, foi cursado remotamente. E finalizando 2019, desenvolvemos o projeto “Sarau Literário”, objetivando aproximar estudantes ao acervo da sala de leitura, com obras sobre a temática “Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Para compor o cenário dessa 21 ação, foi proposto que cada discente da escola realizasse uma ilustração que faria parte da nossa “Baobá - Árvore Literária”, conforme imagem abaixo. Imagem 02: Projeto Baobá – Árvore Literária na EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Fonte: arquivos pessoais Sendo assim, essa pesquisa se propôs a dar continuidade às ações relatadas na EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Braga, demandando um esforço de reconstruir lacunas de uma história que permanece invisibilizada e que o capitalismo pretende que assim permaneça, pois abrir margem para um reconhecimento daquilo que foi sistematicamente silenciado é também correr o risco de ter que devolver terras pindorâmicas invadidas aos povos que lhes dizem respeito, bem como demarcar uma outra lógica, diferente dessa colonialidade que, infelizmente, teima em persistir e nos exterminar. A pesquisa é apresentada em forma de Cadernos onde se propõe relatar, em três momentos, as experiências vividas durante todo esse trajeto. O conteúdo está disponibilizado como “Cadernos Pedagógicos” e foi organizado a partir de investigações teóricas e de campo. Teremos registros de mediações feitas durante o estudo, incluindo esboços, descrições e comentários para esclarecer notas. É um trabalho de registro de todas as atividades realizadas, inspiradas em frases, músicas, filmes, documentários, leituras, conversas, entrevistas e livros com suas respectivas menções de origem. A cada Caderno, busco responder a muitas inquietações durante todo o percurso, tais como: “O que e como essas 3 (três) experiências me afetaram? O que fizeram comigo? O que contribuem para uma pedagogia contracolonial? O 22 que fazem para o mundo da educação, do teatro, da arte, etc.? E o que esse percurso de mestrado me ajudou como experiência de vida? O Primeiro Caderno intitulado “O Autor como Narrador”, diz respeito às experiências vividas e observadas no Acampamento “Luta Pela Vida” (conforme imagens 03 e 04), em Brasília, quando tive a oportunidade de conviver com lideranças e movimentos indígenas de diversas partes do país, participar momentaneamente de suas realidades e ritos, e me reorganizar quanto aquilo que os reducionismos me fizeram entender sobre o ser “índio”, numa América Latina diversa e desde sempre plural, que carrega tintas e cores muito específicas de cada povo e reivindica cosmovisões particulares em suas vivências. Imagem 03: Plenária do Acampamento “Levante Pela Vida” em Brasília/DF - 2021 Fonte: arquivos pessoais Imagem 04: Plenária do Acampamento “Levante Pela Vida” em Brasília/DF – 2021 Fonte: arquivos pessoais 23 Sendo assim, esse deslocamento me fez refazer todo o trajeto daquilo que internamente era incômodo e me possibilitou dar uma guinada nas subjetividades que me habitam. Nesta busca, uma imagem (imagem 05) me chama atenção na qual continha muitos nomes dos povos originários, trazendo a dualidade na demarcação escrita e simbólica, assim como o protesto de demarcação de terras indígenas. Imagem 05: Nomes de Povos no Acampamento “Levante Pela Vida” em Brasília/DF Fonte: arquivos pessoais O Segundo Caderno intitulado “Professoras(es)”, está organizado como formação com docentes, a partir da Lei 11.645/08, e o compartilhamento das flechadas ao vento que refizeram boa parte do meu percurso na Arte Educação, desta feita, um tanto mais consciente da busca constante por uma educação contracolonial que reverberasse para além de mim, mas também com demais docentes do contexto escolar de trabalho cotidiano. Foi um momento que nos oportunizou estreitar uma relação profunda de estudo e entendimento sobre questões diversas, a partir de culturas indígenas brasileiras, efetivar propostas e visibilizar essa área do conhecimento, na maioria das vezes criminalizada ou apresentada num modelo que só reproduz preconceitos, estigmas e exclusões ligadas a práticas subalternizadas. 24 Este momento da pesquisa nos possibilitou recontar histórias dessas culturas e também incentivar leituras decoloniais, conforme aponta Catherine Walsh apud OLIVEIRA & CANDAU (2010, p. 24): [...] a decolonialidade implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos historicamente subalternizados pela existência, para a construção de outros modos de viver, de poder e de saber. [...] é visibilizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas. A decolonialidade representa uma estratégia que vai além da transformação, da descolonização, ou seja, supõe também construção e criação. Sua meta é a reconstrução radical do ser, do poder e do saber. E, seguindo rastros sobre a visibilidade dessas lutas, foi elaborado um plano de aprendizagem dividido em 5 encontros sistematizados da seguinte forma: 1º ENCONTRO - “Lei 11.645/08: Pindorama (Terra das Palmeiras) – Kaê Guajajara e Território Ancestral”; 2º ENCONTRO - Desconstrução – Entrevistas com lideranças indígenas. O recorte dessa transcrição foi: Como se dá a Educação na Aldeia? Entrevistados: Cacique Chicão Terena (Edenilson Sebastião), Chirley Pankará (Chirley Maria de Souza Almeida Santos), Valdir de Souza, Budga Deroby Nhambiquara, Eldo Shanenawa (Eldo Carlos Gomes Shanenawa), Olívio Jekupé, Mirna Kambeba Anaquiri (Mirna Kambeba Omágua Yelê), Joedson Nascimento (Francisco Joedson da Silva Nascimento), Ingrid Sateré Mawé (Ingrid Silva de Assis Leitemberg) e Ismael Krahô (Ismael Ahprac Krahô); No 3º Encontro de formação de professoras(es), falamos sobre Ancestralidades a partir da provocação dos rastros ancestrais que nos habitam; no 4º Encontro realizamos uma prosa de reflexão a partir dos vídeos: “Ecologia”, “Pajerama” e “Brincar de Índio - Xou da Xuxa”, intitulado: Audiovisual - Ecologia de Saberes. Finalmente, no 5º encontro foi apresentado “Dados e Estatísticas - Contrapondo reducionismos”, sobre as realidades e luta indígena, encerrando com as reverberações e resultados dos encontros sugeridos e as devolutivas, a partir dos materiais devolvidos pelos docentes sobre as sequências pedagógicas e/ou tarefas formativas solicitadas. 25 Imagem 06: Formação sobre Povos Originários na EMEF Profª Célia Regina Fonte: arquivos pessoais No Terceiro e último Caderno, intitulado “Estudantes”, foi elaborado o projeto: “O Teatro e Os Povos Originários” como proposição de des- caravelização de mentes. Teve como objetivo apresentar aspectos relevantes ligados à diversidade das culturas indígenas, a partir do acervo de obras sobre literatura indígena disponível na sala de leitura da EMEF Profª Célia Regina Andery Braga, no contexto do Ensino Fundamental. O trabalho foi pensado para ser um espaço de expressão que se propusesse a apresentar criticamente rastros de sociabilidade, utilizando-se de diversos fundamentos, linguagens e jogos teatrais como forma de ampliar repertórios. Nesse processo, realizamos investigações cênicas que puderam facilitar modos de perceber, sentir e articular significados, valorizando os diferentes tipos de relações entre pessoas numa sociedade. Buscamos, também, fazer com que docentes e discentes pudessem perceber que suas vivências estão enraizadas na cultura indígena, mesmo sem saber, numa “revisão” da construção cultural da imagem do “índio”, por meio da apresentação dessas culturas, desde os processos da colonização portuguesa até a era contemporânea. Foi um percurso que nos possibilitou criar espaços de troca, tendo como fio condutor o teatro e aspectos amplos da arte imergindo do caos, das encruzilhadas, como semente de mundos diferentes, semente de mundos possíveis, dos mundos que queremos e podemos construir. 26 Os encontros foram desenvolvidos de forma a sistematizar atividades, dinâmicas e práticas na escola, tanto em sala de aula quanto nos demais espaços, quebrando estigmas de que o processo de ensino e aprendizagem se faz apenas em sala, mas também em ambientes ao ar livre (referendando o modo de ensinar dos povos originários), usando ainda as salas de vídeo e leitura, brinquedoteca, corredores, jardins, quadra e demais espaços externos da unidade escolar. O projeto teve como resultado a encenação do exercício: “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar”, parafraseando a fala da liderança indígena Célia Xakriabá. Imagem 07: Oficina “O Teatro e Os Povos Originários” na EMEF Profª Célia Regina Fonte: arquivos pessoais Sendo assim, este momento buscou contribuir para a ampliação das bases teóricas e metodológicas da arte-educação, por meio dessa pesquisa que teve como objetivo reconstruir imaginários e garantir a aplicação da Lei 11.645/2008, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena, ampliando o debate sobre direitos e acessos das políticas educacionais. 27 1. IDENTIFICAÇÃO DA ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL (EMEF) “PROF.ª CÉLIA REGINA ANDERY BRAGA”. Em 2009, teve início a construção de nossa Escola, localizada na Rua Henrique Adamus, nº15, Jardim Áurea, na Cidade Tiradentes, em São Paulo/SP. A escola começou a funcionar em janeiro de 2010, em dois turnos, e passou a atender os estudantes que estavam matriculados na EMEF Saturnino Pereira e EMEF Luís Roberto Mega, bem como estudantes que estavam fora da escola. A unidade foi estabelecida em um terreno de 2.460 m², sendo 2.205 m² de área construída, 1.430 m² de área pavimentada e 295 m² de área verde. Possui quadra poliesportiva com cobertura metálica e estacionamento para aproximadamente 15 carros. No ano de 2020, contamos com a matrícula de 717 estudantes, 23 salas e 46 educadores. Atendemos ao Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano) e ao Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano). 1.1 Características da população e da comunidade Nossa comunidade escolar é composta, na sua maioria, por famílias numerosas que possuem baixa renda, além de um alto índice de desemprego. Algumas famílias têm necessidade de alfabetização, sujeitando-se à economia informal (ambulantes, diaristas, etc.) e parte destas dependem de programas sociais. O bairro é formado por casas e condomínios construídos em regime de mutirão pelo CDHU, programa que atende com preferência a formação familiar composta por mães chefes de família (solteiras, divorciadas, viúvas e outros); mães que trabalham fora de casa, que necessitam de escolas e de assistência social para ajudar na criação e educação de seus filhos, os quais passam a maior parte do dia sozinhos em casa, alguns expostos nas ruas, sujeitos a drogas e evasão dos estudos. Ao redor do bairro, encontram-se algumas residências já existentes antes da formação do mesmo e algumas comunidades à beira da avenida, em condições precárias de moradia e higiene. O CDHU é um programa do governo com o objetivo de criar moradia e, segundo informações do próprio órgão, não tem nenhum envolvimento com a infraestrutura do bairro como educação e obras sociais, ocasionando assim uma 28 numerosa população, com necessidades de demanda escolar, programas de saúde, área de lazer, programas esportivos e até mesmo orientação de cidadania, bem como programas sociais de assistencialismo para aquelas famílias que estão com dificuldades financeiras. O bairro possui características urbanas próprias da periferia, onde o saneamento básico é prejudicado em alguns pontos, tais como falta de esgotos, coleta seletiva do lixo produzido; algumas ruas têm iluminação precária e outras não, assim como má pavimentação. A presença de órgãos públicos de assistência nessa área é pouquíssima, tornando ainda mais difícil a qualidade de vida da população. Uma parte de nossos estudantes tem problemas de saúde, alguns com necessidades de acompanhamento médico, mas os familiares e responsáveis alegam que, pelas condições das unidades básicas de saúde (UBS) e a falta de médicos, não conseguem atendimento e encaminhamento para serviços especializados. Vale ressaltar que em meados do ano de 2013 foi inaugurada a Fábrica de Cultura da Cidade Tiradentes, órgão vinculado ao Museu Catavento e mantido pela Secretaria Estadual de Cultura. Até então, a Fábrica de Cultura tem mantido parcerias com a nossa Unidade Escolar, onde alguns de seus integrantes divulgam, mensalmente, as atividades culturais e artísticas por meio de flyers nos murais disponíveis na Escola e, sempre que solicitados, em alguns eventos patrocinados pela nossa Unidade Escolar, com a presença de equipamentos eletrônicos e DJ’s. Essa parceria também contempla a utilização dos equipamentos da Fábrica de Cultura in loco, como teatro, bibliotecas, dentre outros. Outra parceria que tem sido bem sucedida é a apresentação anual da conclusão dos Trabalhos Colaborativos de Autoria (TCA) na Fábrica de Cultura, oportunidade que aproxima a família da escola num evento que costuma ter uma adesão muito expressiva da comunidade escolar. Percebemos, também, que muitas(os) estudantes e jovens matriculadas(os) em nossa Escola frequentam, fora do horário escolar, os projetos desenvolvidos pelo Mais Educação São Paulo6 e Fortalecimento das Aprendizagens. 6 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que 29 Durante o período pandêmico, a Unidade Escolar atendeu famílias que passaram por grandes perdas, dentre elas perda de renda, de familiares e de entes queridos. Para muitos, o recebimento da cesta básica e do Bolsa Família constituíram a única fonte de subsistência. Em 2022, a Unidade Escolar atende 156 famílias que são beneficiárias do Bolsa Família e cerca de 77 famílias que são beneficiárias do Transporte Escolar Gratuito (TEG). Imagem 08: Frente e Entrada da EMEF Prof.ª Célia Regina Fonte: arquivos pessoais É importante considerar que trata-se de uma comunidade periférica, majoritariamente negra ou mestiça, localizada numa região considerada “bairro- dormitório”, na qual muitos trabalhadores fazem grandes deslocamentos para ir e voltar de seus empregos em transportes públicos lotados, sendo muitos destes os trabalhadores que atuaram nos serviços considerados “essenciais” e/ou “linha de frente” durante o período pandêmico e que, por essa razão, estiveram por amplia a jornada escolar nas escolas públicas para, no mínimo, 7 horas diárias por meio de atividades optativas nos macrocampos: acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias; investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica. Fonte:http://portal.mec.gov.br/programa-mais- educacao/apresentacao?id=16689#:~:text=O%20Programa%20Mais%20Educa%C3%A7%C3 %A3o%2C%20criado,jornada%20escolar%20nas%20escolas%20p%C3%BAblicas%2C. Acesso em 25/03/2023. http://portal.mec.gov.br/programa-mais-educacao/apresentacao?id=16689#:~:text=O%20Programa%20Mais%20Educa%C3%A7%C3%A3o%2C%20criado,jornada%20escolar%20nas%20escolas%20p%C3%BAblicas%2C http://portal.mec.gov.br/programa-mais-educacao/apresentacao?id=16689#:~:text=O%20Programa%20Mais%20Educa%C3%A7%C3%A3o%2C%20criado,jornada%20escolar%20nas%20escolas%20p%C3%BAblicas%2C http://portal.mec.gov.br/programa-mais-educacao/apresentacao?id=16689#:~:text=O%20Programa%20Mais%20Educa%C3%A7%C3%A3o%2C%20criado,jornada%20escolar%20nas%20escolas%20p%C3%BAblicas%2C 30 maior tempo expostos à contaminação por Covid-19, sobretudo no período em que não havia imunização para a população em geral. O texto acima consta da última versão atualizada do PPP 2022 da Unidade Escolar EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Braga, ligada a DRE Guaianases, a qual fui um dos propositores do item “Atendimento às Leis 10.639/03 e 11.645/08” como forma de garantir a aplicabilidade das mesmas. 1.2 Em busca dos Guaianases Ou Guaianá Durante todo o período de pesquisa, tivemos a oportunidade de conversar com discentes, docentes, gestão e coordenação da EMEF Prof.ª Célia Regina Andery Braga sobre a região de Guaianases/Lajeado como um território indígena pertencente ao povo Guaianá, pois a Escola está ligada à Diretoria Regional de Educação de Guaianases e fica há 10 minutos dessa instituição. Para nos ajudar nesse percurso, recorremos ao artigo: “Em busca dos Guaianases” do autor e pesquisador Benedito Antônio Genofre Prezia, filósofo que se embrenhou no Conselho Indigenista Missionário (CIMI) pelas veredas da história indígena. Ao nos depararmos com o nome Guaianases, logo vem a pergunta: Por que foi dado esse nome ao bairro? Que indígenas eram esses? Viviam em qual região? Etc. E para responder a essas questões, Prezia nos convida a voltar ao século XVI, quando os portugueses aqui chegaram. Segundo o mesmo: Boa parte dos historiadores afirma que os indígenas que moravam no planalto paulista, onde está a cidade de São Paulo, eram de língua e cultura tupi. Basta ver os muitos nomes que ainda hoje encontramos em São Paulo, como Itaquera, Itaquaquecetuba, Itaim, Anhangabaú, Tamanduateí, Piqueri, Aricanduva e outros mais. Estes nomes de lugares, chamados topônimos, são tidos como “fósseis da linguística”. Perduram, mesmo quando o fato que deu origem a ele não existe mais. Assim, Tamanduateí (tamanduá: animal + eté: o verdadeiro, o grande + y/i: rio; rio do tamanduá grande, rio do tamanduá-bandeira). Sabemos que não há mais tamanduá em São Paulo e nem os campos onde viviam, mas o nome permaneceu. Entretanto, há nomes de origem tupi que são topônimos comemorativos, isto é, foram dados recentemente para se festejar algo, não sendo originais, não foram dados por pessoas que falavam tupi. É o caso do Ibirapuera. O Ibirapuera original ficava onde hoje é o bairro de Santo Amaro. Com o tempo, o nome tupi foi substituído pelo nome do santo protetor da Vila Portuguesa. Por ocasião dos festejos do IV centenário da fundação de São Paulo, em 1954, a prefeitura quis colocar um nome que lembrasse as origens indígenas da cidade e decidiu dar esse nome ao parque que abrigou 31 uma grande exposição. Guaianases foi também um nome comemorativo, dado ao bairro de Lageado pela prefeitura de São Paulo, através da Lei 252, de 27/12/1948. A pergunta permanece: quem eram os Guaianases? A história regional afirma que eram indígenas que viveram em São Paulo, no século XVI. Vamos checar esta informação. A partir dos relatos dos jesuítas, que viveram no planalto, fundando a missão de São Paulo de Piratininga, origem da cidade de São Paulo, descobrimos que os indígenas daqui se autodenominavam Tupi. Foi o que confirmei no estudo feito com a documentação de São Paulo e São Vicente (PREZIA, Benedito, os indígenas do planalto paulista nas crônicas quinhentistas e seiscentistas, 2010, p. 156-163). Apenas um cronista do século XVI, que morava na Bahia, Gabriel Soares de Souza, ao descrever os indígenas do litoral sul, identificou um povo com o nome Guaianá na capitania de São Vicente (SOUZA, Gabriel Soares de, Tratado descritivo do Brasil em 1587, 1987, p. 110). Mais tarde, em 1797, certamente com essa informação, tal nome apareceu no livro do beneditino frei Gaspar da Madre de Deus, que escreveu sobre as origens de São Paulo (Memórias para a história da Capitania de São Vicente [1797] 1975). A partir daí, alguns pesquisadores começaram a repetir essa informação, criando grande confusão histórica. Assim os Guaianá/Guaianases passaram a ser identificados com o povo de cultura tupi que aqui viveu no século XVI. Quase 100 anos depois, em outubro de 1888, o jurista João Mendes de Almeida, numa conferência na Sociedade dos Homens de Letras de São Paulo, questionou esse dado, afirmando que os indígenas do planalto não eram Guaianases e sim tupis. Estava formado um conflito acadêmico: um grupo passou a defender a tese dos Guaianases-Tupis, como Hermann Von Ihering, diretor do Museu do Ipiranga; outro grupo, liderado pelo historiador Capistrano de Abreu, passou a identificar os Guaianases como um povo de língua jê, vivendo na serra do Mar (Os Guaianases de Piratininga, In: Capítulos de História Colonial & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil, [1907] 1963, p. 244-248). Embora a segunda tese fosse a mais correta, prevaleceu a primeira, divulgada em vários livros, mantendo-se ainda hoje nos sites eletrônicos. É o que se vê na internet, como em A história do Ipiranga, ou na Biografia de Piquerobi, irmão do cacique Tibiriçá (Geni). A Wikipédia, por sua vez, traz que esse último cacique era do povo Tupinikim, cometendo outro deslize histórico. Sylvio Bomtempo, autor da história de São Miguel Paulista, retoma a tese do primeiro grupo, afirmando serem Guaianases os moradores daquela região (O Bairro de São Miguel Paulista, 1970, p. 19-24). Outros foram mais cautelosos, como Edith Porchat Rodrigues, que no seu dicionário histórico ao referir-se a Tibiriçá, escreveu que era cacique “guaianá ou tupi, sendo divergente nesse ponto as opiniões dos historiadores” (Informações históricas sobre São Paulo no século de sua fundação, 1956, p. 152). Portanto, em 1948, quando o bairro de Lageado passou a se chamar Guaianases, a intenção da prefeitura foi homenagear o povo indígena que teria morado no planalto paulista. Se os primeiros moradores de Piratininga eram os Tupis, quem seriam os Guaianá ou Guaianases? A partir de pesquisa documental, identifiquei dois povos que receberam esse nome na história de São Paulo: um povo que viveu no século XVI, na Serra do Mar, e que, por serem coletores, deslocavam-se por vasta região, que abrangia os atuais estados de São Paulo e Rio de Janeiro; outro povo, com nome semelhante, vai aparecer no século XVII, trazido do Paraná, sendo antepassado dos Kaingang, que ainda vivem no interior de São Paulo e nos estados do Sul. Assim sendo, podemos dizer que os Guaianás que vieram para São Paulo na metade do século XVII, devem ter permanecido por aqui, se miscigenando. E que eram aparentados aos atuais Kaingang. Em relação aos Guaianás que 32 conviveram com os Tupi de São Paulo, no século XVI, além do nome, pouca coisa tinha em comum com o grupo que veio do Paraná. (PREZIA, Benedito A., 2010, p. 1-5). Como são muitas as pesquisas, histórias e versões sobre o Povo Guaianá, após colocadas as questões acima, optamos falar sobre os povos indígenas que viviam num regime de nomadismo, deslocando-se constantemente de uma região para outra e, quando a região precisava se regenerar, migravam para outros lugares no sentido de deixar a terra renovar seus organismos vivos ou, ainda, se recompor após aquele período de estadia, pois quando a região precisava do descanso necessário deslocavam-se à procura de outros lugares que pudessem lhes oferecer pesca, caça e plantio para a sobrevivência do seu povo. 33 2. CADERNO 1: O AUTOR COMO NARRADOR 2.1 Acampamento “LUTA PELA VIDA”: reflorestando mentes “Arte Indígena contemporânea é uma armadilha para pegar bons curiosos. Não é um quadro, flecha ou cerâmica, é um feitiço para falar de um assunto sério que é a urgência ecológica”. Jaider Esbell7 No Brasil, são mais de 522 anos de dominação, catequização, apagamento, silenciamento, epistemicídio, ecocídio, genocídio, suicídio e farsa como regra da perpetuação deste projeto capitalista imundo, que apaga saberes, naturalizando violências sofridas por aqueles que não pertencem aos códigos epistêmicos modernos ocidentais: apropriação, roubo colonial e saque de riquezas por toda parte. A tragédia como farsa entre existência e significado é a dimensão abismática de suas realidades mantidas em estado de invisibilidade. E, para que tudo continue exatamente como está, nada melhor do que o silêncio dos meios de comunicação para produzir ecos ensurdecedores, que pouco ou nada contribuem para alterar essa realidade. A ilustração abaixo, produzida durante a plenária do Acampamento Levante pela vida em 2021, representa todo apagamento e silenciamento dos povos originários. Imagem 09: Ilustração produzida em Plenária do Acampamento “Levante Pela Vida” Fonte: arquivos pessoais 7 Jaider Esbell é um artista e escritor Macuxi. Desde 2013, quando organizou o I Encontro de Todos os Povos, Esbell assumiu um papel central no movimento de consolidação da arte indígena contemporânea no contexto brasileiro, atuando de forma múltipla e interdisciplinar, e combinando o papel de artista, curador, escritor, educador, ativista, promotor e catalisador cultural. Faleceu no dia 2 de novembro de 2021, em São Paulo. 34 Como complemento à enorme colcha de barbárie, aqueles mantidos sob o rótulo de civilizados (homens brancos), ainda andam por aí a se perguntar os porquês de tantas doenças, pragas e vírus, que tomaram conta do organismo como um todo. Essa é uma reflexão que se apresenta como relato de uma experiência de campo de um levante indígena e seus múltiplos olhares e movimentos, no Acampamento “Luta Pela Vida” realizado em Brasília. Assim, de antemão é importante frisar que essa escrita não tem nenhuma pretensão de fixar teorias ou reducionismos, ao contrário, aqui se pretende denunciar e propagar, bem próximo aos moldes da performance do artista Denilson Baniwa8, intitulada “Hackeando a 33º Bienal de Artes de SP 9”, em 2018, onde o mesmo apresenta a constatação de que nem nos livros em que se pretende divulgar breves relatos sobre história da arte, as culturas indígenas se apresentam sequer em brevidade. E para termos dimensão da urgência deste e outros levantes ocorridos em Brasília contra o PL 490, que regulamenta o marco temporal10, recorro à grande guerreira Célia Xakriabá11, na tentativa de contrapor o discurso vigente que predomina nas instâncias jurídicas e patriarcais eurocentradas. No perfil de sua rede social12 no Facebook, Célia lançou a importante reflexão, em 21/09/2021: No Brasil, quando falam que é muita terra para pouco índio, o que vemos é que é muita luta para poucas pessoas, 13% do território nacional! Enquanto 1% dos mais privilegiados possuem 21% das terras privadas, no ano de 2019 o total de área desmatada no bioma Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa, somaram 1.218.708 de hectares em todo Brasil. O desmatamento ilegal é o grande responsável pelos conflitos territoriais no país. A cada árvore que é cortada são corpos que são ameaçados, a motosserra que corta as árvores, corta a respiração do mundo. E, diante de todas essas ameaças, especialmente a do clima, é urgente dizer que são indígenas que estão na linha de frente na proteção dos territórios e de 8 Denilson Baniwa é um artista brasileiro, curador, designer, ilustrador, comunicador e ativista dos direitos indígenas. Conhecido como um dos grandes artistas contemporâneos da atualidade por romper paradigmas e abrir caminhos ao protagonismo dos indígenas no território nacional. É indígena do povo Baniwa. 9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MGFU7aG8kgI. Acesso em 25/03/2023. 10 “Marco temporal” consiste na tese que defende que os indígenas somente teriam direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial nesta época. 11 Célia Xakriabá é professora e ativista indígena do Povo Xakriabá, de Minas Gerais. Sua luta centra-se na reestruturação do sistema educacional, apoio às mulheres e à juventude dentro dos Povos Xakriabá. É uma importante militante indígena em prol das políticas públicas para toda nossa população. Foi eleita deputada federal por Minas Gerais, pelo PSOL, em 2022. 12 Link do perfil: https://www.facebook.com/profile.php?id=100050516348346. Acesso em 25/03/2023. https://www.facebook.com/profile.php?id=100050516348346 35 toda natureza. Os povos indígenas representam 5% da população no mundo, no entanto, são estes que com seu modo de vida protegem 82% da biodiversidade do planeta. E isso comprova que lutar pela DEMARCAÇÃO destes territórios indígenas é a saída para garantir a vida e a respiração de toda humanidade”. (XAKRIABÁ, sobre o Dia da Árvore). Neste acampamento, ficamos instalados em barracas de camping, outros em barracas improvisadas debaixo de lonas suspensas por armações de arames e barbantes em bambus, gravetos ou em tendas, ocupando a Praça da Cidadania, próxima ao Teatro Nacional, em Brasília/DF. Este movimento que articula múltiplas ações se deslocou até Brasília, principalmente, em busca de barrar a aprovação de projetos que consideram a “agenda anti-indígena13 ” do Congresso e do Governo Federal, assim como para acompanhar o julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a demarcação de terras indígenas organizado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e entidades regionais, nomeado como Acampamento “Luta Pela Vida”, que reuniu integrantes de 117 povos indígenas brasileiros. O local em que estávamos acampados ficava às margens do Eixo Monumental, no começo da Esplanada dos Ministérios. Tratou-se de uma movimentação para colocar mais pressão no bizarro clima político do país propagado pelo governo Bolsonaro, centrado na lógica de acumulação capitalista, que focou parte de seus esforços na natureza vista como “mina da fortuna econômica”, tão bem representa na letra da música “É Fogo14”, de Lenine e Carlos Rennó. Neste espaço havia uma tenda central, com um palco significativamente grande, no qual lideranças e personalidades políticas discursavam e/ou realizavam seus ritos. Ali também era o local de realização das plenárias sobre a conjuntura política, apresentações culturais com a exibição de danças e cantos tradicionais, além de produções de áudio visual, em sua maioria, dos povos presentes. 13 Agenda anti-indígena é uma lista dos principais projetos que ameaçam os direitos indígenas e artigos que analisam a conjuntura política nacional, sob influência da pressão de poderosos setores econômicos, dentre os quais destaca-se o agronegócio. 14 Link da canção: https://www.youtube.com/watch?v=MmZHXhMXhBY. Acesso em 25/03/2023. 36 Como medida de proteção à COVID-1915, a orientação era de que todas as delegações fizessem a testagem ou triagem para detecção e prevenção à doença, disponível em uma outra tenda. Havia também uma equipe de saúde, formada por profissionais indígenas, em parceria com instituições como a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e a UnB (Universidade de Brasília). As refeições foram produzidas por uma empresa contratada, com a ajuda de voluntários ligados ao movimento, sendo servidas pelo menos em 3 momentos ao dia, assim como grupos menores preparavam por conta própria o alimento, em cozinhas improvisadas no acampamento. Por lá, também foi montada uma estrutura para banho e instalados banheiros químicos. Na toada da respiração dos dias de acampamento, estivemos a observar o levante como vida pulsante, vinda de mais de 522 anos de luta, parida das entranhas da Mãe Terra para se encontrar entre parentes, naquele vão oco do Planalto Central, como resistência e proposição. É importante dizer que aqui passaremos por questões que nos conectam às diversas significâncias lidas como “ARTE” pelo poderio dominante, pois o que essa tal “civilidade” leu como dança, teatro, música e canto tem a ver com o mercado capitalista, entendendo-os como produto consumidor para usufruto de poucos. Atentos a essa armadilha, preferimos destacar como Arte o recorte e leitura das culturas ancestrais, ao qual nada se separa, em que tudo deve estar conectado ao todo, conhecido como vida e manifestação natural, porque nessas culturas toda dança, teatro e toda arte está em consonância, e respira com o ar cotidianamente, é a própria identidade, é a própria luz que ilumina, direciona os encantamentos e festeja toda diversidade. E para além de direcionar o olhar ao lugar da arte, preferimos também acompanhar atentos a todas as manifestações como uma chance de continuar 15 Segundo a Organização Mundial de Saúde, o coronavírus (COVID-19) é uma doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2. Antes da chegada da vacina, grande parte das pessoas que adoeceram em decorrência deste vírus apresentaram sintomas graves ou moderados, necessitando de atendimento médico. No interstício do ano de 2019 a 2023, o Brasil acumulou mais de 37 milhões de casos confirmados, com mais de 700 mil vítimas fatais. Com a liberação da formulação emergencial da vacina, que chegou tardiamente ao Brasil, em 2021, o número de infecções oscilou e a apresentação da forma grave da doença diminuiu drasticamente. 37 a celebração da vida com dignidade para os seres humanos, animais, minerais e espirituais. Por ali, corpos atentos ao chamamento urgente de convidar toda a humanidade para pensar em coletividade e no futuro comum de nossas próximas gerações, como se fosse a última ligação dos seres humanos com a natureza e toda vida em sua origem. Assim sendo, nosso olhar, como uma lente de câmera de áudio visual, captou momentos de um todo, de um movimento como dança, dança como luta, luta como canto, canto como teatro, teatro como vida e todas essas impressões que nos mantinham firmes e fortes em resistência. Mesmo diante dos cansaços que recaiam sobre nós, longas caminhadas em marcha, sol escaldante em toda parte, no tempo de vida ali ecoavam sons, ritmos e alertas sobre imposições de determinados “marcos”, que nada significam e a tudo reduzem, pois, a relação de quem lá estava nunca foi de propriedade e sim de coletivização e usufrutuário, fundamento basilar da nossa existência que a dita civilização não permite entender. A cada nova data marcada para legislar sobre o futuro dos povos originários do Brasil, novos pulsos dançantes, firmes entoadas de rezo e canto se reapresentavam em frente ao STF (Superior Tribunal Federal), com seus mais de seis mil indígenas e alguns não indígenas sentados em frente ao telão ou em movimento, aguardando o fechamento da questão esdrúxula deste marco temporal que quer definir o ano de 1988 como ano "um" da ocupação indígena, mesmo sabendo que o Brasil inteiro é território indígena, pois estavam aqui desde o primeiro momento em que os registros teimam negar. É necessário e urgente destacar que, ao longo dos séculos, muitos povos necessitaram mover-se em rezo, cânticos e danças pelo território, justamente para escapar da morte e das ameaças do colonizador, então, não faz qualquer sentido definir uma data do século XX para estabelecer direitos. Para além das inúmeras significâncias observadas ali, acompanhar todo o processo de como se dá a organização da multiplicidade de tantos povos é algo que, no mínimo, devolve o esperançar a qualquer projeto de país. Cada povo sem arredar o pé daquilo que lhes diz respeito, fazia sua chegança nas plenárias com a mesma radicalidade que imprimem em seus territórios. 38 A partir desta observação, é possível refletir que tudo ali era aproximação e encantamento político, social e cultural com viés artístico de dança, música, canto, rezo, coro, teatro e muito mais. Muitos instrumentos de luta sistematizados e organizados pelo cocar, maraca, penas, pinturas, arcos, flechas, colares, brincos, sementes, ossos e algo mais presentificados. Mesmo em pequenos momentos que poderiam ser interpretados como lazer, nas danças e rituais que poderiam ser lidos como Arte, assim como nas marchas e reuniões dos mais jovens, a socialização entre indígenas e não indígenas que ali apoiavam o movimento se dava como organização, manifestação, modos de ver e de pensar o mundo. “Parentes16” por toda parte contextualizavam tudo, muitas vezes sem o uso da palavra, assim como percebi um enorme respeito com as divergências e toda diversidade. A chegada das delegações de cada região do país era algo singular e especial, eram recebidos com a afetuosa presença e acolhida da liderança indígena Sônia Guajajara17. A entrada de cada povo no espaço reservado às plenárias vinha como vento e sopro e já firmava seu discurso ou rezo, seguindo os demais momentos que evocavam as mais diversas pautas sobre os poderes que regem essa ordem capitalista vigente e propunham discussões fundamentais que problematizavam os cinco poderes, tais como o executivo, legislativo, judiciário, popular e, não menos importante, o espiritual. A "Pajelança18” foi dedicada ao rito espiritual do pacto dos povos e seguiu com um espetáculo audiovisual indígena sobre memória. Por lá, tivemos a oportunidade de acompanhar as plenárias sobre a garantia dos territórios, seus 16 O termo “Parente” não significa que todos os indígenas sejam iguais e nem semelhantes. Significa apenas que compartilham de alguns interesses comuns, como os direitos coletivos, a luta histórica contra a colonização e pela autonomia sociocultural de seus povos diante da sociedade global. Cada povo indígena constitui-se como uma sociedade única, na medida em que se organiza a partir de uma cosmologia particular própria, que baseia e fundamenta toda a vida social, cultural, econômica e religiosa do grupo. Deste modo, a principal marca do mundo indígena é a diversidade de povos, culturas, civilizações, religiões, economias, enfim, uma multiplicidade de formas de vida coletiva e individual. 17 Sônia Bone de Souza Silva Santos, nome civil de Sônia Guajajara, é uma líder indígena brasileira e política, formada em Letras e em Enfermagem, especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão. Recebeu, em 2015, a Ordem do Mérito Cultural. Em 2022, foi eleita deputada federal pelo PSOL por São Paulo e, na sequência, convidada pelo presidente Lula para comandar o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI). 18 Pajelança refere-se a um conjunto de práticas, rituais e de representações da natureza e do corpo. É típica de cada povo, aplicada principalmente pelas(os) pajés. 39 modos de vida e produção, questões ligadas ao poder político e jurídico com suas PL’s, PEC’s, prazos, restrições de Raposa Serra do Sol e isolados etc. No primeiro momento, o movimento já se apresentou em vigília no Supremo Tribunal Federal como forma de demarcar presença na cidade e significância para o país. Acompanhamos felizes uma juventude aguerrida em luta, reivindicando suas retomadas como processo de reconhecimento de suas identidades, assim como o florescer do mulherio demarcando um protagonismo alinhado com a cura da terra mãe, que também clama por socorro e cuidados. Presenciar o deslocamento do movimento em marcha até o Supremo, foi um ponto que merece destaque, saímos da área onde estávamos instalados no Eixo Monumental e seguimos em marcha até a frente do prédio do STF, de onde acompanhamos a sessão por um telão instalado pelo movimento. Na marcha, ocupávamos as três faixas da pista, carregando cartazes com frases indicando protesto, a exemplo de "Fora Bolsonaro", “Nossa história começa antes de 1500” e "Nossa constituição não será rasgada", de modo que cada povo imprimia suas manifestações a seu modo, até se concentrar numa espera perversa e desrespeitosa, haja visto que o impacto do Marco Temporal para essas populações coloca o projeto de demarcações de terras indígenas em risco, assim como seus territórios em constante ameaça para, na sequência, receber a notícia do adiamento do julgamento por motivos de outras pautas consideradas mais relevantes e tempo inviável de análise das defesas. Imagem 10: Manifestação Indígena em Brasília/DF – 2021 Fonte: arquivos pessoais 40 Nas plenárias e vigília do acampamento, estiveram presentes artistas apoiadores, a exemplo do DJ Alok e da Cantora Maria Gadú, que se juntaram ao movimento como forma de reforçar a importância dessa resistência como luta de toda a população brasileira e não somente do movimento em específico. E assim, mesmo o Supremo desconsiderando a pauta urgente do movimento, as plenárias seguiram com a mesma força e garra debatendo sobre políticas públicas para os povos indígenas, campanha e protagonismo na eleição de 2022, sobre o sistema político brasileiro, candidaturas, parlamento indígena, ampliação de aliança com apoiadores, artistas, figuras notórias, pacto com movimentos sociais, organizações indigenistas e aliados da causa, finalizando toda a estadia com a produção e apresentação do documento síntese do Acampamento “Luta Pela Vida”. Durante toda a permanência, realizei conversas/entrevistas com diversas lideranças dos movimentos de várias partes do país. O roteiro de perguntas que conduziu as prosas foi elaborado a partir das seguintes questões: ✓ Apresentação do Projeto; ✓ Origem do povo de cada entrevistada(o); ✓ Onde vivem e como é o cotidiano na Aldeia ou espaço urbano que habitam; ✓ Apagamento e/ou utilização da língua de origem do seu povo; ✓ Relação política e espiritual a partir do Cacique, Pajé e/ou Xamã; ✓ Ritos e brincadeiras cotidianas na Aldeia; ✓ Como se realiza a educação na Aldeia e se existe uma escola indígena no território; ✓ Qual a relação do povo com o plantio e colheita; ✓ Como se sentem quando são tratados a partir do estereótipo que a cultura eurocêntrica impôs; ✓ Como as histórias dos antepassados são passadas para toda a Aldeia; ✓ O que entendem sobre “Folclore” e como enxergam essa área do conhecimento; ✓ Porque os povos, normalmente, se tratam como “Parentes”. 41 Sendo assim, apesar do retorno da maioria das delegações às suas aldeias e territórios, muitas lideranças e povos deliberaram acerca da continuidade do movimento em Brasília para acompanhar de perto as votações do PL 490, que a cada semana seguiu em adiamento, assim como para construir e fortalecer a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas com o tema: “As originárias reflorestando mentes para a Cura da Terra”. Importante, também, registrar a baixa presença dos que se colocam como não indígenas nesse território declaradamente indígena. E, como nada no capitalismo deve parecer ingênuo, sabemos que o que está em jogo é simplesmente o desejo de ampliar a fronteira do agronegócio e da mineração num país que virou exportador de riquezas em prol do lucro de poucos. Nestes dias de luta em Brasília, fiquei a refletir sobre essas mais de seis mil vidas naquele imenso vazio urbano que são as esplanadas da Capital Federal. Essa imagem está guardada na memória sempre como um impulsionar de vida e luta. Por aqui, ainda continuo a escutar ecos dos mais de 170 povos, com suas cores, seus cantos, suas danças, suas cerimônias tradicionais, incansáveis e incomparáveis. Foram dias de muita pressão, com a mídia de massas na quase completa ignorância ao acampamento, focando nas asneiras de um (des)presidente, pregando que a aprovação desse PL assassino “trará de volta a liberdade”. E assim seguiu o tabuleiro da política se mexendo, muitas vezes sem que soubéssemos o que está causando o movimento das peças ou os acordos de bastidores que mantinham toda multidão confusa, aguardando o firmamento de seus direitos ancestrais. Como eles mesmo dizem, “os governos passam e a resistência continua séculos após séculos”. A tese do marco temporal, se aprovada, pode reverter demarcações já definidas e inviabilizar outras tantas que estão em andamento, impedindo que estes povos possam pleitear viver no seu espaço tradicional. Com todos esses atravessamentos retornei a São Paulo, refletindo profundamente sobre essa experiência ancestral no corpo, nos ossos e na memória. E pensando que, apesar de tudo, todos os povos continuam a cantar, rezar, afiar arcos e flechas na multiplicidade do olhar da arte como lugar de 42 cultivo e luta de toda dança, canto e tempo possível. Assim retornei, carregando sementes e ferramentas de luta. 2.2 Descobrindo o pé enraizado na cultura indígena E nesse caminhar de dentro para dentro, sonhei que precisava conversar com a minha família sobre essa história mal resolvida. No dia seguinte, escrevi a cada familiar que pudesse me revelar rastros indígenas em nossa ancestralidade, todos retornaram respondendo não saber nada sobre este passado, mesmo nossos ancestrais primeiros terem tido sua origem num território do Povo Tapuia, numa Oriabebu (Rio das Pedras) esquecida no tempo. Entretanto, para minha surpresa, e quando já estava quase desistindo de buscar informações, soube através de uma tia-avó de 97 anos (a Tia Vilmar, mais conhecida como Uá), que uma prima de sua mãe (a minha bisavó) era declarada indígena, mas que infelizmente nada era sabido do seu passado. E foi então que, mesmo sem saber de quase nada, essa resposta foi suficiente para me tranquilizar, entender que a reconexão estava feita, num fio curto que aqui passo a desenrolar e que me faz criar a sensação de mais legitimidade para essa viagem que tenho trilhado, pois como diz a grande liderança indígena Almires Machado (do Povo Guarani), na obra Ymá Nhandehetama19: [...] qualquer pesquisa não pode ser reprodutora de mais invisibilidade ou mesmo propagadora de verdades de culturas que, desde sempre, se apresentam numa teia de complexidades e diversidades seculares, sem reconhecimento. Na sequência, embarquei para o meu Sertão Central do Ceará ao encontro dessa ancestral “Tia-Avó”, para escutar sua fala sobre este rastro ligeiro revelado, que muito me organiza e toca. No município de Solonópole/CE, adentrei as matas que me levariam ao Sítio Três Irmãos, local que me remete a muitas vivências e traquinagens de uma 19 Texto de Ymá Nhandehetama, no canal do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v= Xjn5GGRVCjo&t=124s. Acesso em 25/03/2023. 43 infância bem vivida, colorida e com muitos cheiros dos matos que me habitam internamente. Ao chegar, fui recebido numa alegria e felicidade enorme, pois estavam presentes a maioria das filhas e filhos da Tia Vilmar (Uá). Na ocasião, pedi autorização para registrar nossa prosa com toda a família, que falavam e riam pelos cotovelos, como se tudo aquilo nunca tivesse fim. A mais falante de todas, e que se colocou como porta voz do grupo, era a filha mais nova que fazia questão de jogar na roda palavra por palavra, sua memória contada, recontada e inventada a cada instante. No decorrer da prosa jogada ao centro da discussão, que vez ou outra nem dava para entender o que estava sendo dito, com todas as pessoas falando ao mesmo tempo, pois quando se junta esse povo todo haja alegria e fofoca boa de se compartilhar. Durante o encontro cheio de afeto, Tia Vilmar confirmou essa passagem de nossa ancestral e, assim, optei por transcrever parte dessa linda e significativa travessia: Imagem 11: Trilha da Ancestralidade no Sitio Três Irmãos – Solonópole/CE (Tia Vilmar “Uá” ao centro) e, ao lado, foto dela em 2012. Fonte: arquivos pessoais Filomena (filha da tia-avó): A Tia Joaninha, que era irmã de Vovó Maria de São José (conhecida como Veinha), dizia sim dessa prima que era índia e que ela queria muito bem. Ela fazia questão de ter um vestido dela guardado como lembrança. Quando a madrinha Joaninha morreu, ainda tinha um pedaço desse vestido guardado, acredita? Eu: Ela era indígena e prima legítima da minha bisavó? Filomena (filha da tia-avó): Era prima legítima. Antes, aqui em casa tinha um retrato antigo dessa velha, lembro que ela usava umas roupas parecidas com as roupas do povo cigano, era umas saias bem largonas, ela era bem magrinha, tinha uma cintura bem fininha e uns vestidos longos. O cabelo bem preto, preto, que chegava a brilhar e ela era bem bonita. Tinha gente índia na família, sim, mamãe disse e confirmou. Temos sim sangue de índio. É por isso que a gente tem 44 medo de gente. (Risos). Papai que dizia: “Vocês têm tudo sangue de índio, por isso que não gosta de gente”. Acho que deve ser por isso que eu não gosto de aglomeração. Eu: Então, se a Madrinha Joaninha tinha parente indígena e a minha bisavó, Maria de São José, também tinha parente indígena (elas eram irmãs), então todos nós também somos indígenas, porque descendemos dessas mulheres, certo? Filomena (filha da tia-avó): Sim. Papai que estava certo mesmo, todas nós somos cismadas com gente, ninguém aqui gosta de rua, só gosta de sítio. Um dia o Dr. Augusto disse assim: “Filomena, e se você fosse a um passeio do seu sonho, onde é que você queria ir?” Eu logo disse: “No deserto do Saara, pois lá não ia ver ninguém, só ia ver areia e mato”. Daí, o Dr. Augusto falou: “Mais uma pessoa que só vive na mata, ainda dizer que quer ir para um deserto”. E é isso mesmo que eu gosto, lugar que só vejo bicho e natureza. Eu: Filomena, você sabe dizer a que povo ela era ligada? Por que nessa região do Ceará, os povos indígenas eram mais conhecidos como Kariri, Tapuia etc.? Filomena (filha da tia-avó): Não sabemos não, porque nesse tempo não tinha essa linguagem, elas diziam que eram primas, primas lá da Maré, ali perto da cidade de Milhã, aqui no Ceará. Sei que moravam lá na Maré, porque a Madrinha Joaninha vivia indo pra lá visitar esse povo. Papai que dizia: “Vocês são tudo parente de índio mesmo, por isso que não gostam de gente”. Andava um monte de gente lá em casa, na casa velha e a gente se escondia tudo nos pés de cajueiro, lá nos matos, pra ninguém ver o povo que chegava. Quando a gente escutava o barulho do carro de longe, corria todo mundo para debaixo dos cajueiros e quando a gente vinha na estrada de Solonópole para os Três Irmãos e escutava a “zuada” de um carro se aproximando, ganhava a mata com medo. (Risos). Francimary (neta da tia-avó): Naquele tempo que vovó e vovô foram pra Fortaleza, chegaram aqui com uma história de que tinha um carro que carregava menino (criança), aí disseram logo: “Se vocês escutarem zuada de carro, corra tudo pra mata”. E quando diziam, lá vem um carro, a gente corria tudo para o meio do mato pra se esconder. (Risos). Eu: Tia Vilmar, a senhora conheceu essa parente indígena? Tia Vilmar (com voz fraquinha e ar de esquecimento): Não, mas eu lembro que tinha, me lembro até do vestido dela, da cor do retalho da roupa pelo retrato. Foi uma longa conversa carregada de delicadezas e preciosidades. Fiz questão de relatar ao grupo de docentes da escola que retornei dessa viagem atônito, espantado, pensando em minha migração do Nordeste para São Paulo, não como uma migração nordestina, mas como uma migração afro-diaspórica indígena, apagada de minha subjetividade, como quem apaga o direito de ser e existir originário. E assim, logo pensei numa fala de um grande mestre guerreiro Xukuru Tupinambá, Carlos José Ferreira dos Santos, mais conhecido como Casé 45 Angatu20, certa feita, em um de nossos encontros, parafraseando Euclides da Cunha, em seu clássico “Os Sertões”, nos disse que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, mas para Casé, a frase que talvez mais nos consiga aproximar de nossa realidade possa ser: “o sertanejo é antes de tudo um indígena (forte), obrigado a migrar para outros territórios”, que nunca se permitiu a escravização do capital, sempre na resistência e na luta incessante de toda sorte, para se manter vivo em profunda conexão com nossa Mãe Terra e o direito originário ancestral. Aqui, compartilhei essas passagens como forma e tentativa de aproximação, para que soubéssemos que falar dessas questões não é falar sobre algo externo, é falar sobre cada uma/um de nós, da construção de um Brasil a partir da negação e que, muitas vezes, a gente não fala porque não sabe dos sentidos e das histórias perdidas no tempo. Assim, percebi que esse movimento foi muito mais uma forma de me autorizar a estar mais profundamente conectado a essa pesquisa e, também, entender meu corpo como um lugar aculturado, domesticado, mas que mesmo produzido a partir dessas ausências, dentro ainda pulsa um território ancestral que grita por uma demarcação real e ancestral. Tenho acompanhado muitos debates a partir da temática da ancestralidade e refletido se, talvez, isso não possa ser o início da legitimação de uma pedagogia contracolonial presente, firmada nos passos e rastros daqueles que vieram antes de nós e que farão todo sentido para o nosso caminhar cotidiano. Tenho refletido se não estamos no caminho de uma pedagogia pautada mais no dissenso do que no consenso, preservando assim as tantas identidades culturais ainda invisibilizadas neste país. 20 Carlos José F. Santos ou Casé Angatu Xukuru Tupinambá, indígena e morador da Aldeia Gwarini Taba Atã - Território Tupinambá de Olivença. Historiador e Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Docente na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC – Ilhéus/BA) e na Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico- Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER/UFSB). 46 2.3 Reverberações dos encontros / resultados – soco no tempo Apesar de toda pesquisa e sistematização, é importante afirmar que ainda é tudo novo, tudo chegando pelo sopro do vento, é uma bagunça danada de se achar e se perder num movimento sem fim. É como se as peças de uma força motriz poderosa chegassem de mansinho pelo vapor, pela eletricidade, pela energia e pelas vontades, exigindo uma reparação, uma reconexão, uma remontagem daquilo que sempre existiu, mas que o neoliberalismo dominante impõe como algo moderno que, na verdade, nada mais é do que poderíamos chamar de apropriação. E, para conectar, sinto que preciso remontar como num jogo de quebra cabeça, numa tentativa quase insana de retomar e me recolocar nesse processo que hoje posso considerar de “Território Corpo Ancestral”. Nesse vai e vem de memórias, muitas vezes beirando a obviedade e outras também inventadas, assim como é a vida, muitas são as vibrações que hoje me habitam, reconhecendo rastros que me levam a pistas, por hora rasas, profundas e certeiras. E, se tem uma pergunta que a encontrei e não posso me desapegar daqui em diante, é sobre quais rastros ancestrais habitam em mim e em você? Até aqui, foram muitos os passos que continuarão adiante, que me remontam num tempo nada cronológico, mas que dá encaixe certinho e me faz reviver. Como uma “Flecha no Tempo”, tenho vivido para sentir e entender que mesmo a arma de fogo jamais superará as nossas famosas e tecnológicas flechas que nos dão a dimensão do apagamento sistêmico de nossas memórias coletivas, que nos lançam e acertam no coração do território ancestral, pulsando e vibrando novamente. Aqui, cito SIMAS e RUFINO (2019) que nos apresentam muito estofo para refletir sobre a montagem dessa farsa/nação brasileira nada cordial e sempre desleal, escrito na orelha do livro “Flecha no Tempo”, em 2019: [...] somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculências das oligarquias, chicote dos capatazes, cultura do estupro, naturalização da tortura e coisas do gênero. Acontece que, no meio de tudo isso e ao mesmo tempo, produzimos formas originais de inventar a vida onde amiúde só a mortificação 47 poderia triunfar. Um Brasil forjado nas miudezas de sua gente, alumbrado pela subversão dos couros percutidos, capaz de transformar a chibata do feitor em baqueta que faz o atabaque chamar o mundo. Posto isso, lembrei da fala de uma Guarani – uma Sateré Mawé – que certa feita no coração dessa Pindorama, Pyndoyby, renomeada Brasil, Brasília, numa entrevista concedida no Acampamento Luta pela Vida, me alertou: Parente, aceita o chamado, só isso, essa luta é nossa e você não é só um aliado, já te falei isso algumas vezes, você está buscando uma coisa que não dá mais para voltar, você tem que aceitar essa reconexão com a Mãe Terra, com a nossa ancestralidade, e é isso. Você sabe que não temos somente ancestrais indígenas, como têm também a ancestralidade dos quilombolas e dos não indígenas, e a gente não pode esquecer que num contexto histórico, nós tivemos uma aliança forte e profunda entre quilombolas e indígenas que se juntaram pela causa da resistência, pois naquele momento era todo mundo um só povo que estava lutando pela libertação. Então, hoje nós estamos aqui em Brasília, neste momento, num grande quilombo, numa grande aldeia e que no início da colonização era tudo assim, vamos fazer o exercício do imaginar. Imagine que os colonizadores estão neste momento fora desse nosso território, que a gente ocupou aqui e nos cercam, estamos numa maioria de indígenas, claro que hoje num contexto bem diferente e como estou sentindo e você também, a gente consegue vibrar um pouquinho daquilo que foi no passado e que ainda é, quando pisei nesse território, denominado Acampamento Indígena, nesse Levante Pela Vida, tenho certeza que todos os nossos ancestrais estavam e estão conosco, ancestrais de todo o mundo estão aqui com a gente e essa conexão é muito forte, é muito significativa. Estou falando contigo hoje, num contexto de pandemia, você sabe que nós vivemos um momento muito difícil, estivemos lá no STF (Superior Tribunal Federal) e voltamos tristes e chateados, porque a gente não aguenta mais, são mais de 521 anos nesse vai e vem, nesse não lugar, a gente sabe o quanto é difícil fazer tudo isso que a gente tá fazendo aqui, mas o mais importante é que estamos fazendo e encorajando mais pessoas em nossa caminhada. No percurso, víamos muitas pessoas aplaudindo e falando parabéns, dizendo que nos apoia, que apoia a luta, sabemos o quanto é difícil fazer com que as pessoas entendam que a luta não é só nossa, mas nós estamos à frente desse processo, porque sempre vai ter alguém à frente, mas não somos só nós que temos que pagar essa conta, e na verdade a gente não quer pagar essa conta, a gente gostaria que as pessoas entendessem que essa luta é justa e que essa causa também é delas. Sendo assim, quero aqui dizer das miudezas, pois elas me fortalecem e fazem apontar trilhas que nunca imaginei existir, mas que sempre estiveram. E, nesse percurso, me devolvem algo muito valioso; é como se tivesse tomado corpo no silêncio do tempo e me chegasse certeira, no alvo que precisava ser acertado. 48 Imagem 12: Manifestação Indígena em Brasília/DF – 2021 Fonte: Arquivos pessoais 49 3. CADERNO 2: PROFESSORAS(ES) 3.1. Projeto “formação com docentes” – lei 11.645/08 – flechada ao vento – (ver anexo B) “As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade do país”. Abdias do Nascimento Ao retornar de Brasília pulsando e vibrando toda uma trajetória ancestral, instalou-se uma sensação incômoda como um regresso a algo muito rico e profundo, uma sensação de ter ido a este encontro como um sujeito arrogante do conhecimento e ter retornado simplesmente humano. O fato de montar estadia, se banhar em locais improvisados, participar de ritos com a vizinhança de barraca, escutar das retomadas do sertão do meu Ceará, da região do Crato, sobre um povo que vem se reconhecendo e retomando sua ancestralidade Kariri, cavar a terra junto com aquela multidão, enfiar estaca, arrumar lenha para improvisar o fogo, se esquentar junto, preparar quitutes com parentes, seguir em marcha pelas ruas denunciando o genocídio sistêmico e estrutural dos povos originários, participar das plenárias, olhar encantado para as chegadas, entradas e saídas de cada povo presente nas assembleias, conversar sobre amenidades, experimentar o cachimbo Guarani, Petyguá21 (muitas vezes utilizado para a cura de doenças), comer junto, cantar, dançar, correr, se assustar e se proteger coletivamente, foi um marco para se perceber diferente e ser ouriçado a compartilhar, quase que como um narrador/mensageiro que volta com a tarefa urgente de contar. E assim, um tanto mais que profundamente fiz valer a Lei 11.645/08, que trata da obrigatoriedade da história de cultura africana, afro-brasileira e indígena no Currículo Escola