unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GEOVANA MARIA PINHEIRO SAHÃO EMÍLIA: UMA ESPÉCIE DE BOBO DA CORTE ARARAQUARA – SP 2021 GEOVANA MARIA PINHEIRO SAHÃO EMÍLIA: UMA ESPÉCIE DE BOBO DA CORTE Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientação: Profª. Drª. Karin Volobuef ARARAQUARA – SP 2021 GEOVANA MARIA PINHEIRO SAHÃO uma espécie de bobo da corte Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientação: Profª. Drª. Karin Volobuef Data da defesa: 17/05 /2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Karin Volobuef Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/ FCL-Araraquara. Membro Titular: Profa. Dra. Rosana Rodrigues da Silva Universidade do Estado de Mato Grosso. Membro Titular: Prof. Dr. Genivaldo Rodrigues Sobrinho Universidade do Estado de Mato Grosso. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A Luiz e Rosilene, meus pais, por doarem seus dias em dedicação a minha vida e de meus irmãos; AGRADECIMENTOS A Deus, sem sua graça, nada seria possível; À virgem Maria, que sempre cuidou de mim; À minha orientadora, Profa. Dra. Karin Volobuef, pelo exemplo de humildade, dedicação e paciência; Ao Prof. Dr. Genivaldo Sobrinho e a Profa. Dra. Rosana Rodrigues da Silva, pela leitura minuciosa e atenta que norteou o trabalho no Exame de Qualificação. Aos meus pais, os quais se esforçaram grandemente para que eu pudesse estudar; Ao meu esposo, meu companheiro de vida; Aos meus irmãos, Thiago e José, que eu tanto amo; À minha amiga Ana, por toda escuta atenciosa. À minha amiga Tarsila, que me hospedou em sua casa durante as disciplinas do mestrado. “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. (João Guimarães Rosa, 1994, p. 449) RESUMO Esta dissertação tem como objeto de estudo a narrativa Reinações de Narizinho (1931), do autor brasileiro Monteiro Lobato. O propósito da pesquisa realizada é buscar subsídios para entender melhor a contribuição desse autor, considerado um dos mais expressivos nomes da literatura infantil brasileira, o qual construiu narrativas do gênero repletas de humor e criatividade. Para realizar esse propósito a análise voltou-se para a personagem Emília, em Reinações de Narizinho (1931), focalizando especificamente os procedimentos cômicos utilizados pelo autor para provocar o efeito do riso no leitor. Por conseguinte, apontou-se os diferentes aspectos do cômico, e principalmente, a forma como eles foram desenvolvidos na construção da personagem Emília – figura chave na literatura infantil brasileira, que obteve reconhecimento internacional. A investigação ancorou-se na hipótese de haver grandes semelhanças entre a boneca e a figura do bobo da corte. Essas semelhanças permitiram a Monteiro Lobato usar Emília como porta-voz de seu pensamento crítico e como veículo das ideias, propostas e concepções que ele pretendia difundir junto ao público infantil juvenil, em termos de sociedade, cultura, educação das crianças e literatura. Palavras–chave: Literatura infantil. Cômico. Bobo da corte. Emília. Reinações de Narizinho. RESUMEN Esta disertación propuso un estudio acerca de la narrativa Reinaciones de Narizinho (1931), del autor brasileño Monteiro Lobato. El propósito fue buscar subsidios para entender mejor la contribución de ese autor, considerado uno de los más expresivos nombres de la literatura infantil brasileña, el cual construyó narrativas del género repletas de humor y creatividad. El análisis, que se volvió al personaje Emilia, en Reinaciones de Narizinho (1931), tuvo por objetivo señalar e identificar los procedimientos cómicos utilizados por el autor, para provocar el efecto de la risa en el lector. Por consiguiente, se señalaron los diferentes aspectos del cómico, y principalmente, la forma como fueron desarrollados en la construcción del personaje Emilia- figura clave en la literatura infantil brasileña, que obtuvo reconocimiento internacional. La investigación se basó en la hipótesis de que existen grandes similitudes entre el muñeco y la figura del bufón. Estas similitudes permitieron a Monteiro Lobato utilizar a Emília como portavoz de su pensamiento crítico y como vehículo de las ideas, propuestas y concepciones que pretendían difundir entre la niñez y la juventud, en materia de sociedad, cultura, educación infantil y literatura. Palabras-clave: Literatura infantil. Cómico. Bufón de la corte. Emilia. Reinaciones de Narizinho. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 9 2.0 COMO SURGIU A LITERATURA INFANTIL? ................................. 14 2.1 O escritor da literatura infantil e a arte ......................................................................... 17 2.2 A literatura infantil no Brasil .......................................................................................... 18 2.3 A literatura infantil pós Lobato ...................................................................................... 34 3 O CÔMICO NUMA CONJUNTURA NEGATIVA ................................... 39 3.1 O cômico em sua amplitude ............................................................................................. 42 3.2 As outras formas do cômico: a ironia ............................................................................. 45 3.3 As outras formas do cômico: a paródia .......................................................................... 47 3.4 As outras formas do cômico: a sátira.............................................................................. 50 3.5 As outras formas do cômico: a caricatura...................................................................... 52 3.7 O humor, para além do cômico. ...................................................................................... 53 3.8 O humor na literatura infantil ........................................................................................ 54 4 REINAÇÕES DE NARIZINHO, UMA CONSTRUÇÃO DE MONTEIRO LOBATO ........ 56 4.1 Reinações de Narizinho, um livro original. ..................................................................... 59 4.2 Uma relação entre criação e criador ............................................................................... 63 4.3 A personagem Emília e seus desdobramentos. .............................................................. 65 5 O BOBO DA CORTE. SERÁ MESMO UM BOBO? ................................................. 68 5.1 Emília uma espécie de bobo da corte: o corpo ............................................................... 72 5.2 Emília uma espécie de bobo da corte: a ingenuidade .................................................... 78 5.3 Emília uma espécie de bobo da corte: a loucura ........................................................... 81 5.4 Emília uma espécie de bobo da corte/ bufão: a fala ...................................................... 84 5.5 As revelações do bobo da corte ........................................................................................ 87 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 100 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 103 9 1 - INTRODUÇÃO A atual investigação situa-se na intersecção entre dois campos temáticos principais, o da literatura infantil e do humor, priorizando a contextualização prévia de cada um deles, a fim de efetuar uma análise do processo de composição do humor na narrativa infantil Reinações de Narizinho (1931), tomando como objeto central do estudo a construção da personagem Emília, presente no âmbito ficcional. Partindo da ideia de que a comicidade está incorporada à produção literária de Monteiro Lobato como traço característico e distintivo e que, ao empregar esse recurso em seu texto, o escritor procura tratar das contradições do homem, assim como subverter modelos que considera ultrapassados, tornou-se perceptível o humor, em seu uso, como discurso empenhado, que não se formata na gratuidade e sim, no uso consciente e atualizado dos modos de conceber a realidade, ocasionando o interesse principal desta pesquisa, pois, pelas palavras de Duarte (2006, p. 26), Visto que o humor desempenha na sociedade um papel social e político por meio de algumas funções básicas como o ataque ao estabelecido, à censura, ao controle social, traduzindo-se como um meio de fazer aflorar outros possíveis padrões escondidos e possibilitando descobrir quais as repressões de uma sociedade, Lobato, ao introduzir esse elemento em sua obra, procurou utilizá- lo justamente como meio de divergência e contestação ao meio social (e cultural) em que suas personagens estavam inseridas. Ao deixarmos de enxergar a atuação da personagem, na perspectiva ingênua e simplista (por meio da qual o riso eclodiria despropositalmente), empenhamo-nos em selecionar argumentos que combatessem a convicção da literatura infantil como restrita e menor. Uma vez que, de conhecimento dos estudiosos da área, essa esteve associada, desde seus primórdios, a um juízo de criança que necessitaria ser resguardada e instruída pelas grandes instituições, tal qual a escola, incumbida de uma formação ancorada em valores precisos, a fim de construir cidadãos desejáveis ao exercício da pátria e do trabalho. Desse modo, inicialmente discorremos acerca dos problemas da literatura infantil, atingindo os interesses que a circundam como veículo de princípios pedagógicos e moralizantes, decorrentes de um processo histórico, pelo qual a mentalidade moderna possibilitou a edificação de uma nova categoria social, mas não a reconheceu em sua complexidade. De feitio que focalizamos nas particularidades da infância, conferindo 10 prioridade às distinções e apreciações do grupo produtor e adquiridor de cultura, a fim de evidenciarmos as buscas, decorrentes do século XX, por um gênero desvinculado dos parâmetros didáticos e conhecimentos factuais, tendo em vista os critérios da criatividade, sensibilidade e prazer do leitor. Num segundo momento, a fim de auxiliarmos na compreensão das contribuições de Monteiro Lobato para o gênero, tornou-se imprescindível traçar o percurso temporal de desenvolvimento da modalidade no Brasil, selecionando, entre os conteúdos, as barreiras encontradas no país, onde as produções se deram na perspectiva de cópia dos modelos estrangeiros, até o momento em que o autor interviu com sua escrita revolucionária, infiltrada pelo riso vivo e constante, consoante explana Machado (2007, p. 123): Do universo lobatiano herdamos preciosas características que nos distinguem. A primeira é o respeito integral à inteligência da criança, a aposta na sua capacidade, a confiança em que ela está à altura e vai corresponder aos mais instigantes desafios [...] a segunda foi o estímulo para mergulharmos nas entranhas do Brasil [...], torna-se possível imergir na memória e nas variadas experiências nacionais, criando condições para que o espírito brasileiro se manifeste em histórias e personagens muito nossos, ligados às raízes folclóricas e à cultura popular, embebidos de nossos falares e da realidade histórica que nos circunda, mas sem com isso excluirmos contribuições anteriores e exteriores. De maneira especial, situamos algumas considerações a respeito do poder crítico- reflexivo do humor na vida da criança, revelando, na inversão e subversão da normativa vigorante, a aproximação questionadora e desmistificadora, indissociável do princípio. Doutra parte, abordamos uma reflexão situada na amplitude do universo cômico, o qual abrangeu, entre suas manifestações, o humor. Assim, principiando pela tradição Antiga, privilegiou-se uma discussão iniciada na apresentação do cômico em oposição ao domínio sério, para, a partir de então, expor a evolução do pensamento, até o momento em que foi compreendido e definido por si e enquanto tal, na valoração do próprio uso, deixando de excluir dos seus entornos o riso popular, da praça pública (de extrema importância para a nossa pesquisa). Neste percurso apresentamos brevemente as peculiaridades das concepções de alguns grandes teóricos - Aristóteles, Platão, Hobbes, Kant, Nietzsche, Bergson e Propp -, assinalando o interesse dos estudiosos pelos princípios do cômico e desvelando sua importância. Na trajetória, compreendemos a problemática das definições que apartaram do riso a capacidade de evidenciar as contradições entre as esferas de poder e o povo, transgredindo-as. 11 Ao longo da investigação, colocamos como considerável o entendimento, pelas palavras de Bergson, do caráter coletivo do riso, uma vez que somente é compartilhado ao grupal, quando os indivíduos compreendem o ensejo e partilham de valores semelhantes, sinalizando para a circunstância de que as motivações que levam adultos a rirem são diferentes das que inspiram a mesma atitude nas crianças, reforçando a sensibilidade autoral, necessária e operada por Monteiro Lobato. Entre tantas teorias e conceitos do cômico, a própria leitura atenta da narrativa de Reinações de Narizinho (1931) nos indicou qual melhor atingiria os objetivos propostos, mediante uma análise das falas e comportamentos da protagonista. Então, na terceira parte da dissertação, buscamos apoio nos estudos de Bakhtin acerca das obras de François Rebelais no contexto do riso popular, e nos concentramos na hipérbole das personagens e nos elementos rejeitados da cultura oficial, em que os heróis traduzem o triunfo sobre o universo unilateral medieval. Como destaca Bakhtin (2013, p. 71), [...] o riso, separado na Idade Média do culto e da concepção do mundo oficiais, formou seu próprio ninho não-oficial, mas quase legal, ao abrigo de cada uma das festas que, além do seu aspecto oficial, religioso e estatal, possuía um segundo aspecto popular, carnavalesco, público, cujos princípios organizadores eram o riso e o baixo material e corporal. Uma vez que consideramos haver semelhanças entre a figura e função do bobo da corte e da boneca de pano, no que diz respeito ao físico (vestimentas vibrantes, corpo grotesco, deformações) e performance (loucura, fala incontida, sinceridade, comicidade e caráter crítico), propomo-nos efetuar um estudo aprofundado acerca de cada uma dessas características a fim de comprovar as hipóteses que fundamentam o trabalho, interpostas nas interrogações: Há, verdadeiramente, uma semelhança entre Emília e os bobos da corte? Se sim, em quais aspectos eles se assemelham? Qual o efeito pretendido pelo escritor com sua construção? Quais valores evidenciaria, para então criticá-los, por meio de um narrador que expõe a boneca numa espécie de bufão? E que, para tais questionamentos pudessem ser investigados, necessitou-se uma aproximação entre personagem e autor, elencada pelas teorias de Antonio Candido e Michel Zéraffa. Apreendendo o parecer, do último, acerca da personagem do romance, Candido definiu-a numa relação com o escritor, de modo que as ideias selecionadas e trabalhadas, coerentemente, dariam origem ao ser fictício, o qual não se proporia na cópia fiel da realidade, nem em uma origem, totalmente, inventada. Assim, Emília associar-se-ia aos pensamentos de 12 Monteiro Lobato, tornando inevitável intercorrer sobre a lógica de escolha do escritor, no intuito de apreendermos a criação em sua completude. Entendendo, no entanto, que a obra não é uma interpretação direta da vida do escritor, mesmo que a ele remeta, como aponta as próprias ideias de Lobato. Monteiro Lobato foi empreendedor, escritor, mas acima de tudo grande reformista, pois buscava, em cada uma das ações, concretizar ideologias de um Brasil, não associado às ideias de atraso. Em certo momento, descrente da tentativa de escrever para adultos pessimistas, o autor descobre, nas crianças, uma solução para implantar seu ideário, sendo nessa modalidade que alcança sucesso e constrói a utopia brasileira, dentro do ambiente das histórias realista- fantásticas do Sítio do Picapau Amarelo, no conjunto Emília dá-se como sua grande porta-voz. A personagem que foi evoluindo, ao longo dos volumes do Sítio do Picapau Amarelo, ganhou vida e ficou conhecida por seu senso de liberdade, teimosia, determinação e, ao mesmo tempo, sonhadora, como evidenciado em Memórias da Emília (1936), quando ao viajar para Hollywood, torna-se celebridade mundial: – Dona Shirley está? – perguntei [...] – Shirley, corra!... Venha ver três fenômenos – [...] – Um anjinho, uma boneca e um sabugo de cartola [...] Shirley veio de galope [...] Abraçou-me dizendo: – Eu sabia que você acabava chegando até aqui. Ainda ontem disse a mamãe: “Qualquer coisa está me dizendo que Emília não tarda” (LOBATO, 1945, p. 92). Segundo Marisa Lajolo (2001), a excepcionalidade de Emília se inscreve, no momento em que ela começa a falar, definindo tudo ao seu modo: A gente nasce, isto é, começa a piscar, quem para de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – Viver é isso. É um dorme e acorda [...] A vida da gente neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; [...] pisca e ama; pisca e cria filhos. Por fim pisca pela última vez e morre. – E depois morre? Perguntou Visconde. – Depois que morre vira hipótese. É ou não é? O Visconde teve de concordar que era (LOBATO, 1945, p. 13). Assim, chama a atenção dos leitores, por se colocar como agente crítico e voz ativa das denúncias sociais, mas de forma divertida, através do humor e da esperteza, proporcionando uma leitura prazerosa ao público. Se Emília de início diverte, na sequência faz pensar. E, se quando ainda crianças, por ela nos deixamos encantar, no momento em que tornamos adultos, percebemos que o riso de 13 Emília não é ingênuo e, por isso, necessita de um estudo aprofundado, a fim de que sejam compreendidas todas as suas nuances, como nos proporemos a fazer, ao longo desta dissertação de mestrado. 14 2 - COMO SURGIU A LITERATURA INFANTIL? “Tudo é mistério nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar” (MEIRELES, C. 1951, p.36) De acordo com Fernando Azevedo (1953), o livro para crianças é uma elaboração dos povos modernos, posto que, na antiguidade, alentava-se a curiosidade por meio das histórias de origem folclórica, propagadas oralmente ou recitadas ao longo das canções de ninar, de forma que, como assinala Volobuef (1993, p. 112): O que comumente se denomina de conto de fadas ou conto da carochinha são histórias que constituem um legado da tradição oral popular: narrativas transmitidas de geração a geração durante um longo tempo antes de serem, afinal, coletadas e recolhidas em livros. Com isto, os autores desses contos de fadas populares (ou Volksmärchen), bem como a época de sua criação, tornaram-se incógnitas irrecuperáveis. E a prolongada difusão oral no seio do povo mais simples faz destas obras um fruto e um bem da coletividade. Assim, pautada na tradição oral, a literatura infantil somente concebeu-se como gênero no final do século XVII, mediante a ascensão do núcleo familiar burguês, que reivindicou uma distinta concepção de família e infância. Durante a Idade Média, a sociedade era regida pelos feudos, sistema no qual as terras eram passadas dentro de uma descendência de herdeiros, interiormente aos casamentos desprovidos de afeto. Nessa estruturação, segundo Lajolo e Zilberman (1999), a criança não recebia diferença no trato, em relação ao adulto. No entanto, com as transformações decorridas, o pequeno adquiriu lugar de relevância e começou a ser visto como detentor de necessidades próprias, já que na nova ideia parental, introduziu-se a estimação dos laços afetivos entre os membros e o encargo, recebido pelos pais, de responsabilizarem-se pela disposição física e mental dos filhos, propiciando o desejo e surgimento “de objetos industrializados (o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da ciência (a psicologia infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que ela é destinatária.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 17). Nesse contexto, a Literatura Infantil desenvolveu-se por meio da obra de Charles Perrault, com seus contos amparados na tradição oral, em conjunto aos outros influentes escritores ingleses: Lewis Carroll, George MacDonald, Oscar Wilde, Dickens e Charles Kingsley, Defoe e Swift (os dois últimos conhecidos por obras escritas para adultos, mas que 15 fizeram sucesso com o público infantil) e os importantes autores estrangeiros: Hans Christian Andersen, Jacob Ludwing, Jules Verne, os irmãos Grimm, Fénelon, Wilhelm Carl e La Fontaine. Contudo, apesar da tentativa de concepção e particularização da faixa etária, muitos entenderam a infância de forma idealizada ou nem a reconheceram como um novo grupo emergente, de forma que, embasados em pilares preconceituosos, subscreveram-na erroneamente, de acordo com Penteado (2011, p. 119): Apesar da existência de registros merecedores de esforços isolados, no século XVII, em que se considerava a criança como indivíduo, a maioria dos cronistas da literatura infantil observa que, durante todo o século e em boa parte do século seguinte, as crianças eram vistas diversamente ou como almas condenadas, que precisavam ser salvas através do rigor de ações piedosas, ou como adultos em potencial, que deveriam ser preparados exaustivamente com essa única finalidade. Tendo as crianças como almas condenadas ou adultas em potencial, o ideário tornou propósito aliado inicialmente ao caráter didático/pedagógico do texto infantil, o qual se forjou como instrumento controlador e propagador das normas que enalteciam as ideologias dominantes, manipulando/silenciando a liberdade de expressão dos menores e servindo a igual suporte para transmitir os princípios “adequados”. De maneira que, ignorada a destinação da obra e considerados os conteúdos e formas preferidos pela intencionalidade do adulto e autor, foram julgadas e selecionadas as temáticas “mais úteis e convenientes” à consciência do público infantil, que, na maioria das vezes e em desacordo à ciência pedagógica, dispensou o tido por recomendável e interessou-se pelo despretensioso. Como acrescenta Zilberman (1982, p. 18): Enquanto isto, como a criança verdadeira era ilhada, porque tornada alheia aos meios de produção, e comprimida pelos mais velhos, que assim asseguravam seu prestígio e dominação, foi elaborada uma série de atributos, os quais revestiram a qualificação dos pequenos e reproduziram ideologicamente sua diminuição social: a menoridade, a fragilidade física e moral, a imaturidade intelectual e afetiva. Desse modo, ao dispor com base na historicidade e confundir livros escritos para crianças com Literatura Infantil, a maioria supôs/supõe a última fatalmente um gênero inferior, ao compará-la às outras literaturas, podendo ser denotado no lacônico espaço a ela destinado dentro das universidades e da academia, sendo: “Como se a menoridade de seu público a contagiasse.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 11). 16 Esta avaliação pejorativa incorre, de acordo com Peter Hunt (2010), por questão de “status” do leitor que se entrevê como parte da ilusória postura intelectualista e, por isso, deseja segregar o literário, definindo a literatura como inigualável, pretenciosa, difícil e, portanto, inacessível ao público infantil. Esse, propagando críticas absolutas, busca apropriar-se do texto, posto não considerar os valores estilísticos situados sob juízos qualitativos distintos dos da literatura tradicional, nem compreender a indispensável proposição do gênero infantil para oferecer acessibilidade e dispensar “cânones”, dado que a criança não é revestida da teoria para a padronização interpretativa, incomodando as visões puristas e dogmáticas que acercam os departamentos literários, conforme afirma Hunt (2010, p. 48-49): É óbvio que uma grande parcela dos livros para criança é de valor insignificante segundo qualquer critério “literário” tradicional; mas não está claro para mim se essa proporção é sequer mais alta do que para a literatura “adulta”. Supor que a literatura infantil seja de algum modo homogênea é subestimar sua diversidade e vitalidade. É uma triste reflexão sobre a universidade que a própria riqueza, diversidade e vitalidade da literatura infantil tenha atuado contra sua aceitação. A literatura infantil (e seu estudo) atravessa todas as fronteiras genéricas já estabelecidas, históricas, acadêmicas e linguísticas; ela requer contribuição de outras disciplinas; é relevante para uma ampla classe de usuários, apresenta desafios singulares de interpretação e de produção. Entendido o ensejo, queremos enfatizar que a literatura infantil forma um veio próprio, distinto das demais obras literárias brasileiras, uma vez que possui elementos próprios e singulares em vista de seu público-alvo definido. Mesmo assim, também queremos acentuar muito fortemente que, em nenhum aspecto, essa literatura para crianças é inferior ou menos importante do que as outras. Prova disso são os(as) diversos(as) escritores(as) e poeta(isas) renomados da literatura brasileira adulta que também escreveram textos voltados ao público infantil, ao avistarem sua importância no mercado editorial e na consciência do jovem leitor. Um desses autores é Graciliano Ramos, o qual redigiu para o novo público, quando já bem sucedido em seu ofício nacional e aclamado pelos críticos da literatura para adultos. Dentro da escrita para o grupo infantil juvenil, o autor alagoano narrou, em A terra dos meninos pelados, (1939) a história de um garoto que sofria preconceitos por parte das outras crianças. Além de outros dois títulos para a mesma comunidade: Pequena história da república (1940) e Histórias de Alexandre (1944), reforçando a ideia de Hunt (2010, p. 48) de que: A suposição de que a literatura infantil seja necessariamente inferior a outras literaturas – para não falar que é uma contradição conceitual – é, tanto em 17 termos linguísticos como filosóficos, insustentável. Implica também uma improvável homogeneidade entre texto e abordagem autoral, uma perspectiva ingênua da relação entre leitor e texto e uma total falta de entendimento tanto das habilidades da criança leitora como da forma como os textos operam. Nesse meio tempo, porém, diversos eventos já corroboraram não só a qualidade estética da literatura infantil, como o seu reconhecimento pela crítica acadêmica. Basta citarmos que a ANPOLL, Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística, arrola, entre seus Grupos de Trabalho, o GT Leitura e Literatura Infantil e Juvenil. 2.1 - O escritor da literatura infantil e a arte Muito da dubiedade existente no campo da Literatura Infantil reside no descompasso hierárquico de ser lida pela criança, mas escrita e elegida por um adulto. E, para completar, este adulto escreve e escolhe não para a criança que ele mesmo foi, mas para aquela que deveria ter sido. Como resultado, muitos desses escritores adultos pecam por escrever para um ideal de criança, em vez de escrever para crianças de verdade. Por esses motivos, o autor não se torna sensível ao universo infantil que algum dia já existiu dentro dele. Assim, é comum haver um desequilíbrio, muitas vezes acirrado, entre transmissor e receptor. O efetivo sucesso da literatura infantil – concretizado na transformação da criança sem hábito ou gosto por ler em criança leitora – ainda vai mancando atrás desse seu objetivo. Como afirma Meireles (1979, p. 27), a complicação está em: [...] saber o que há, de criança, no adulto, para poder comunicar-se com a infância, o que há de adulto, na criança, para poder aceitar o que os adultos lhe oferecem. Saber-se, também, se os adultos sempre têm razão, se, as não estão servindo a preconceitos, mais que à moral; se não há uma rotina, até na Pedagogia; se a criança não é mais arguta, e sobre tudo mais poética do que geralmente se imagina. Por conseguinte, o livro infantil, se entendido no campo artístico da literatura, sucumbe ao teor moralizante e evidencia o viés lúdico, ao oferecer um enredo mirado dentro do universo que tem por centro a expectativa da criança, como ser particular que não compartilha das referências do adulto. Quando a literatura infantil é construída dessa forma, ela emancipa o leitor e o faz questionar convencionalismos, expondo novas perspectivas sociais, educacionais e políticas, de acordo com Lígia Cademartori (1986). 18 Desse modo, a criança torna-se a apreciadora e delimitadora das obras que conseguem alcançar a execução do enredo interessante e prazeroso, dado que o bom livro é aquele que atrai a atenção da criança, em vista disso, de acordo com Zilberman (1982, p. 14): [...] explicita-se a duplicidade congênita à natureza da literatura infantil: de um lado percebida sob a ótica do adulto, desvela-se sua participação no processo de dominação do jovem, assumindo um caráter pedagógico, por transmitir normas e envolver-se com sua formação moral. De outro, quando se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio de acesso ao real, na medida em que lhe facilita a ordenação de experiências existenciais, através do conhecimento de histórias, e a expansão de seu domínio linguístico. A poetisa Cecília Meireles, em Problemas da literatura infantil (1951), afirma que, ao contrário do que muitos indivíduos ponderam, a criança é um ser sensível à arte literária e aos elementos técnicos que compõem o livro, preposição fundamental à compreensão do autor, o qual deve negar-se a oferecer qualquer conjunto de palavras ordenadas e insignificantes como suficientes para o interesse do público assinalado, uma vez que esse aprecia narrativas ricas de conteúdos humanizados e escritores que utilizam a palavra com maestria, ao adentrarem em seu universo. Entre os livros do século XIX que agradaram ao gosto infantil cabe mencionar os contos folclóricos coletados pelos Irmãos Grimm, com a edição da coletânea dos contos de fadas (confundidos com a literatura infantil em si), os quais permitiram acercar caminhos e elementos que comporiam a predileção textual das crianças. Fora os materiais reunidos pelos Grimm, verifica-se, entre as crianças, a apreciação do gênero fantástico e dos ambientes exóticos. Regina Zilberman e Ligia Magalhães (1987) vão afirmar que o acesso à fantasia pela criança compensa seu desprestígio social em relação ao controle exercido pelo adulto sobre ela e a harmonia desse descompasso é utópica. Dessa forma, a fantasia aciona a imaginação do leitor e, nesse plano, a criança realiza aspirações que é impossibilitada de operar na realidade. Assim, o fantástico preenche as lacunas próprias dessa faixa-etária, fase propícia ao desconhecimento do real, de modo que o improvável e o inesperado, arquitetados dentro da imaginação, auxiliam sua compreensão de mundo, o que é comentado por Ceccantini (2004, p. 98): Concebida assim, a fantasia seria um dos elementos do processo de emancipação da criança, resultando a obra literária infanto-juvenil em uma contribuição importante para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e 19 emocional da criança e do jovem, ao possibilitar-lhes a compreensão de si mesmos. Outro procedimento, o qual comprovou a aptidão do público, foi o emprego de personagens infantis como protagonistas no enredo. Esse recurso tornou possível que o jovem leitor se identificasse e se sentisse parte das aventuras narradas. Essa identificação entre personagem e criança, segundo Nelly Novaes Coelho (1991), faz com que a segunda seja levada, inconscientemente, baseada nas vivências e características da primeira, a resolver suas próprias situações. Ademais, é importante evidenciar o gosto dos pequenos pela tradição oral, a qual enviesou, nos textos, uma linguagem aproximada do folclore narrado pelos contadores de história, sem grandes rebuscamentos ou acréscimo de ornamentos. Essa linguagem é próxima da consciência infantil, a qual começa a empreender na construção de uma linguagem simbólica (dos dois aos quatro anos), a fim de operar com os elementos linguísticos de forma lúdica e a intuir conceitos abstratos (dos quatro aos sete anos), segundo Piaget (1978). Nessa inicialização da compreensão atua de modo auxiliar a ilustração, com o objetivo de proceder a ampliação das possibilidades de construção do sentido textual, dentro do princípio artístico e estético. Tal componente é recorrente nos livros infantis, posto concretizar aspectos, os quais possam não ter sido apreendidos apenas por meio das ideias letradas, possibilitando ao leitor “enxergar o verbal a partir de uma outra ótica e criar novas imagens a partir da interação com o que vê/lê. E essas novas imagens permitem a passagem a um novo “estado das coisas”, o deslumbramento que provoca a fratura na cotidianidade e atrai o olhar” (GREIMAS, 2002, p. 26-27). 2.2 - A literatura infantil no Brasil “A criança é a humanidade de amanhã. No dia em que isto se transformar num axioma - não dos repetidos decoradamente, mas dos sentidos no fundo da alma - a arte de educar as crianças passará a ser a mais intensa preocupação do homem” (LOBATO, M. 1959, p. 249) Data do final do século dezenove, primeiros anos da República e implementação da Imprensa Régia, o momento em que começaram a ser produzidos livros para crianças do Brasil. A inauguração ficou por conta de Alberto Figueiredo Pimentel, que publicou os Contos da 20 carochinha (1894), nos quais se encontram as traduções e adaptações de alguns contos populares da tradição oral europeia. Assim, segundo Lajolo e Zilberman (1999, p. 24), Como sistema regular e autônomo de textos e autores postos em circulação junto ao público, a história da literatura brasileira para a infância só começou tardiamente, nos arredores da proclamação da República, quando o país passava por inúmeras transformações. Entre elas, a mais visível foi a mudança da forma de governo: um velho imperador de barbas brancas cedeu o comando da Nação a um marechal igualmente velho, de barbas igualmente brancas. Era a República que chegava, trazendo consigo e legitimando a imagem que o Brasil ambicionava agora: a de um país em franca modernização. Antes dessa época, não havia sido introduzida ainda a prática de escrever para o público infantil no país e, por conseguinte, inexistia um legado a dar sequência. Por isso, as primeiras publicações foram coletâneas com contos maravilhosos (contos de fadas da tradição folclórica) traduzidos de material europeu. Também saíram obras dos acervos destinados ao público adulto em adaptações para crianças. Entre esses últimos podemos mencionar: As aventuras do celebérrimo barão Munchhausen, publicada em 1891, As viagens de Gulliver em 1888 e Robinson Crusoé em 1885, adaptados e traduzidos por Carl Jansen. Em território brasileiro, os escritos iniciam-se conjuntamente à demanda por modernização do país e o desejo da burguesia por gerir a formação de cidadãos civilizados, a fim de ascender socialmente como classe. De tal modo, a tenacidade cultural impele o ofício de publicação dos livros e materiais didáticos, (organizados a fim de operarem dentro de um sistema educacional escolar e domiciliar) para o público infantil juvenil, como forma de sanar parte das solicitações emergentes e remover o atraso ocasionado pelos modelos políticos anteriores. Nesse momento, os materiais, engendrados por Olavo Bilac, deixaram-se conhecer como correspondência ao novo gênero. “Nos moldes de nossa tradição de transplante cultural, também aqui, como não poderia deixar de ser, o desenvolvimento da literatura infanto-juvenil se liga às necessidades crescentes de escolarização, decorrentes da industrialização/urbanização e do aumento populacional” (MAGNANI, 2001, p. 86). Na tentativa de publicar uma literatura infantil verdadeiramente brasileira, o projeto cedeu espaço à divulgação dos livros carregados de nativismo e ufanismo, confinados à exaltação da natureza e, segundo Regina Zilberman (1982), uma diversidade brasileira limitada aos nomes de capitais dos vários estados. Dessa forma, como assinala Lajolo e Zilberman (1999, p. 39): 21 Como se disse antes, a produção e circulação no Brasil desta literatura infantil patriótica e ufanista se inspira em obras similares europeias. Vale a pena observar, por outro lado, que o programa nacional de uma literatura infantil a serviço de um determinado fim ideológico é bastante marcado por um dos traços mais constantes da literatura brasileira não- infantil: a presença e exaltação e da paisagem que, desde o romantismo (ou, retroagindo, desde o período colonial), permanece como um dos símbolos mais difundidos da nacionalidade. O propósito ideológico de culto à nação passou também pelo desejo de criação da língua nacional ideal, a qual se fundamentou na obsessão vernácula e desprezo a tudo que não se constituía dentro dos parâmetros formais da linguagem. Esse rigor impôs, dentro da literatura infantil, a severidade e busca por perfeccionismo linguístico, de modo que, consoante Lajolo e Zilberman (1999, p. 43): São inúmeros os textos desse período nos quais a língua portuguesa, como tema ou pretexto para poemas e histórias, transforma-se em símbolo pátrio, equivalente à bandeira, à história ou a heróis do Brasil. Novamente o exemplo procede de Bilac: o poema “Língua portuguesa”, onde a última flor do Lácio, como ele mesmo proclama, ostenta todas as seduções da figura materna, da tradição cultural do Ocidente, do valor ideológico de uma classe que precisa inventar e divulgar uma representação sólida e ufanista do país. Contudo, em direção contrária a esse modo recorrente de escrever literatura para crianças, na época, destacou-se José Bento Monteiro Lobato, autor comprometido com a arte executada por meio de uma linguagem simples e compreensível ao público infantil juvenil. Tido como pré-modernista (e nunca se assumir como adepto do Movimento Modernismo em si), Lobato estreou na Literatura Infantil, por meio do livro Narizinho arrebitado (1921) e assim seguiu com a produção em série, numa saga de aventuras distintas, as quais repetiam os mesmos personagens e espaço, até sua última história da coletânea: Os doze trabalhos de Hércules (1944). Mediante as palavras de Arroyo (2010, p. 281): Embora estreando na literatura escolar com Narizinho arrebitado, Monteiro Lobato trazia já com seu primeiro livro as bases da verdadeira literatura infantil brasileira: o apelo à imaginação em harmonia com o complexo ecológico nacional; a movimentação dos diálogos, a utilização ampla da imaginação, o enredo, a linguagem visual e concreta, a graça na expressão- toda uma soma de valores temáticos e linguísticos que renovava inteiramente o conceito de literatura infantil no Brasil, ainda preso a certos cânones pedagógicos decorrentes da enorme fase da literatura escolar, fase essa expressa, geralmente, em um português já de si divorciado do que se falava no Brasil. 22 Preocupado com a arte brasileira, Lobato rompeu com os modelos dos primeiros escritores (influenciados pelos padrões culturais advindos dos colonizadores), os quais retratavam uma brasilidade pitoresca, e findou a representatividade nacional. Em lugar disso, empenhou-se pela valorização do ambiente rural (detido no imaginário popular), pela divulgação do folclore local, pela utilização de personagens nacionais e pelo abrasileiramento dos contos de fadas estrangeiros. Seu propósito - como afirmado em correspondência a Godofredo Rangel, ao deixar transparecer sua intencionalidade em escrever histórias que interessassem aos pequenos - era incutir, de forma persuasiva, seu ideário libertário/ progressista na mentalidade infantil (adultos do amanhã), o que é atestado abaixo nas palavras do próprio Lobato (1951, p. 293): Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. Do escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé de Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as crianças possam morar. Não ler e jogar fora, sim morar, como morei no Robinson e n’Os Filhos do Capitão Grant. Desse modo, a publicação em vários volumes da série Sítio do Picapau Amarelo, além de ser sucesso de vendas, inovou a literatura para crianças no Brasil, uma vez que agradou de forma unânime ao gosto infantil, no momento em que evidenciou o lugar privilegiado que a criança detinha no imaginário do escritor, o qual intuía o menor como: “um ser onde a imaginação predomina em absoluto" (LOBATO, 1959, p. 250). Os enredos nos mostram uma situação em que as personagens infantis não são postas sob o mando da dominância paterna, mas, pelo contrário, revelam-se como crianças emancipadas, detentoras de pensamento crítico e atitude questionadora, as quais interrogam os adultos, igualitariamente, acerca das verdades dadas como imutáveis. Isso corrobora a perspectiva de reflexão da criança enquanto ser vivo não ideal. Diferentemente das narrativas moralizantes ainda em voga, as histórias voltam-se primordialmente para a função de entreter o pequeno leitor e diverti-lo, por meio das sentenças humorísticas e coloquiais. Assim, os netos de dona Benta constroem aprendizados a todo o momento, pelas próprias experiências lúdicas, sem necessitarem da formalidade do ambiente escolar. E tais conhecimentos transformam-se em senso crítico, permitindo, aos menores, liberdade de pensamento e expressão, diante de uma matriarca avó democrata que acolhe as distintas opiniões e, como infere Yunes (apud Penteado, 2011, p. 158): 23 Esse modo de representar os personagens infantis é mais um aspecto da luta contra ideológica de Lobato [...]. O que está em questão não é tanto o incentivo à desobediência das crianças, mas o estímulo da sua independência face aos adultos e à sua possibilidade de recusar os valores e modos de ação por eles oferecidos, buscando outros. A espacialidade central das aventuras narradas, mais que um ambiente físico, formata metaforicamente o espaço de ligação com a infância e o universo particular que a rodeia. Conjuntamente à revelação do modelo de nação ideal (de acordo com o pensamento de Lobato), a qual investe em petróleo (poço de Visconde), livros e permite que as mulheres detenham um papel de superioridade em relação à atuação masculina, dentro da família não tradicional. Certamente Lobato não foi o primeiro a contribuir para a formação da literatura infantil brasileira. Afinal, antes dele já havia uma literatura destinada à expansão escolar, na qual era possível encontrar histórias de qualidade, como, por exemplo: Alma infantil (1912), de Francisca Júlia e Júlio Silva. Tampouco, podemos dizer que o escritor foi o primeiro a introduzir os elementos do folclore e a abrasileirar os textos nacionais, pois nisso foi antecedido por Viriato Correia e Carmen Dolores, que são exemplos de artistas precedentes nestes quesitos. Contudo, se Lobato não inventou a literatura infantil brasileira, responsabilizou-se por fazer com que as crianças apreciassem o gênero, dado que os livros anteriores eram pequenos, com extensos textos e poucas ilustrações, distintamente da sua primeira obra acessível às crianças “A menina do narizinho arrebitado” (1920), livro grande e composto por diversas imagens coloridas. Imagem 1- Capa da primeira edição do livro Alma infantil (1912), de Francisca Júlia e Júlio Silva. 24 Fonte: Disponível em: Acesso em: 21 de janeiro de 2021. Imagem 2- Capa da primeira edição do livro A menina do narizinho arrebitado (1920), com ilustração de Voltolino. 25 Fonte: BRERO (2003. p. 235) O livro A menina do narizinho arrebitado (1920), que mais tarde daria origem a Reinações de Narizinho (1931), foi divulgado sob o seguinte anúncio: “o melhor presente de Natal para crianças: livro de figuras de formato grande, com sessenta estampas a quatro cores, desenhadas por Voltolino. Preço 3$500 (Aos revendedores, desconto de 25 xxx) A venda na 26 “Revista do Brasil” e casas de brinquedo. RUA DA BOA VISTA, 52, sobrado. Para o interior mais $500 para o porte”, no jornal Correio Paulista. Imagem 3- Em 21 de dezembro de 1920, o Correio Paulistano anuncia: A menina do narizinho arrebitado (1920). Fonte: Disponível em: Acesso em: 21 de janeiro de 2021. A ideia de comercializá-lo em lojas de brinquedos teve o impacto de uma grande inovação, reforçando a mensagem do livro como lazer. A história, citada por Clarice Lispector, em Felicidade clandestina (1971), demonstra clareza e consciência, por parte do autor, acerca da existência de um leitor, o qual necessitaria ser exaustivamente estimulado, no propósito de não abandonar a leitura, em troca das demais ofertas da vida cotidiana. Assim, o texto pontua um diálogo com o público, quando, já no início, realiza o movimento de aproximação entre leitor e narrador, no uso da expressão “Naquella 27 casinha branca” (LOBATO, 1920, p. 7), transmitindo, no “apontamento”, a ideia da presença espacial e narrativa do ledor. Também há uma intencional simulação das sugestões que seriam elencadas pelo interlocutor, acerca dos possíveis apelidos de Narizinho, seguida da correção, responsável por conferir crédito ao leitor “Chama-se Lucia, mas ninguém a trata assim. Tem apelido. Yayá? Nenê? Maricota? Nada disso. Seu apellido é ‘Narizinho Rebitado’” (LOBATO, 1920, p. 7). O escritor fortalece o vínculo com os menores, no uso de uma cultura mais imediata à faixa etária. E, para isso, recorre aos aero grilos, fazendo referência aos aero planos, atração e moda da época, juntamente com as festas venezianas e o cinema mudo da atriz Annette Kellerman, a “rainha do mar” e nadadora, que ficava horas dentro d’água. Em seus filmes, o oceano mostra-se repleto de jardins e fadas, memorando-nos o reino das águas claras. Imagem 4- Ilustração do aero grilo elaborada por Voltolino e disposta no livro A menina do narizinho arrebitado (1920). Fonte: LOBATO (1920, p. 37) Imagem 5- Ilustração da festa veneziana elaborada por Voltolino e disposta no livro A menina do narizinho arrebitado (1920). 28 Fonte: LOBATO (1920, p. 36) Nas primeiras publicações, Lobato testa a aceitação do livro frente a diferentes públicos, buscando consolidar a protagonista (que mais tarde deixaria de ser personagem central). Com isso, Narizinho oscila entre criança e adulta, e ora é descrita de cabelos escuros “Menina morena, de olhos pretos como duas jaboticabas” (LOBATO, 1920, p. 3), ora aparece loira, nas ilustrações de Voltolino. Destarte, até chegar em Reinações de Narizinho (1931), a história passa por variadas e frequentes transformações. Dispondo, na versão final, um rompimento com os primeiros livros, que elencavam explicitamente “lições”, que deveriam ser aprendidas e os padrões de moralidade do gênero, empregados como reforçadores dos comportamentos definidos e aceitáveis à criança. Desta maneira, ainda que Reinações de Narizinho (1931) tenha sido utilizado para fins educacionais nas escolas, marcou um processo de transição na história do gênero, por suas características artísticas, as quais davam importância ao prazer sentido pelo leitor e conseguiam atingir o público pelo entretenimento listado, tanto no projeto gráfico, que era diferenciado dos demais, quanto no conteúdo, que transmitia a ideia de uma grande brincadeira (reinação), da qual deveria fazer parte também aquele que lia. 29 E, nessa ruptura, exerceu papel fundamental e revolucionário a personagem Emília, pelo seu humor ácido, que inovou em vários patamares. De um lado, Emília desafia o leitor, forçando-o a pensar e a desenvolver um senso crítico, ou seja, a boneca de Lobato cindiu com o leitor ingênuo. De outro, ela se contrapõe à figura da personagem infantil idealizada, típica de uma tradição de obras voltadas às crianças. Exemplo dessa tradição é a protagonista de Heidi, a garota dos Alpes (1880), de Johanna Spyri. A personagem Heidi representa a idealização do ser criança, construída e embasada nos valores de gentileza, empatia, simplicidade, felicidade diante das adversidades e submissão aos mais velhos. Suas práticas sinalizam para aquilo que era esperado dos menores - uma vivência religiosa e educacional -, mas que não correspondem aos comportamentos efetivos das crianças reais. Emília, ao contrário, age e fala como criança de carne e osso: Lobato não esconde suas más inclinações e erros. Como qualquer criança, a boneca fala o que vem à cabeça; é autoritária, egoísta e injusta; e muitas vezes acaba criando situações embaraçosas ou ofensivas devido à falta de polidez, conhecimentos ou capacidade de avaliar e respeitar as ideias e sentimentos alheios. Heidi, em contraposição, é marcada pela postura de deferência. A órfã, que é levada a viver com o tio Alm (um senhor rabugento), após a Dete receber uma proposta extraordinária de emprego em Frankfurt, está sempre disposta a seguir as regras que os outros lhe impõe, sem hesitações, como se percebe na cena com Peter, o menino que morava nos Alpes, concede a ela: “–Pare de pular, é hora da refeição – disse Peter –, agora sente-se e coma. Heidi se sentou”(SPYRI, 2019, p. 24). Essa atitude de Heidi é totalmente contrária à conduta da boneca, que nunca cede aos imperativos facilmente, sem contestar ou se opor, fato comprovado no trecho em que Narizinho pede um pouco da macela à Emília, procurando escapar de um assalto, e tem a concessão negada: Sem nada compreender daquilo, Tom Mix foi dando o que ela pedia. Narizinho, então, chamou Emília de parte e cochichou-lhe ao ouvido qualquer coisa. A boneca não gostou, pois bateu o pé exclamando: – Nunca! Antes de morrer!... Tanto Narizinho insistiu, porém, que Emília acabou cedendo, entre soluços e suspiros de desespero. Depois, erguendo a saia até os joelhos, espichou uma das pernas sobre o colo da menina. Esta, muito séria, como quem faz operação da mais alta importância, desfez-lhe a costura da barriga da perna e despejou toda a macela do recheio no alforje de Tom Mix (LOBATO, s/d, p. 166). 30 A menina dos Alpes compartilha dos princípios de solidariedade, dividindo prontamente seus alimentos e pertences com os mais necessitados: Heidi pegou a tigela e bebeu o leite e, assim que a colocou vazia no chão, Peter se levantou e a encheu outra vez. Então ela partiu um pedaço de pão e ofereceu ao companheiro o restante, que ainda era maior do que o pedaço de Peter, junto com a grande fatia de queijo dizendo: – Pode ficar, tenho o suficiente. Peter olhou para Heidi, incapaz de falar de tanto espanto. Ele hesitou por um momento, não podia acreditar que fosse verdade, mas como ela continuou segurando o pão e o queijo e Peter não os pegou, ela os colocou em seus joelhos. Ele viu então que ela realmente não iria comer. Ele pegou a comida, assentiu em agradecimento e aceitou o presente. Foi a refeição mais esplêndida que tinha tido desde que se tornou um pastor de cabras. Heidi continuou observando as cabras (SPYRI, 2019, p. 24). Trata-se, na verdade, de algo realmente penoso aos menores, que em uma primeira etapa são egocêntricos, assim como Emília, que inventa uma mentira para não repartir o cavalinho (brinquedo) com Pedrinho, o episódio resulta em briga: – Passe para cá o meu cavalo! –continuou o menino, fechando uma terrível carranca de Barba Azul. – Não sei do “seu” cavalo; só sei do “meu”. – Eu disse que dava o cavalo se a idéia fosse boa, mas a idéia saiu como o seu nariz e quero o meu cavalo. – Pois vá querendo! Pedrinho perdeu a paciência. Xingou-a de cara de coruja seca (o pior insulto que havia para a boneca) e deu-lhe um beliscão (LOBATO, s/d, p. 242). Seguindo a comparação, notamos que Heidi é contrária aos maus-tratos dos animais, de modo que, diante das desobediências, nunca recorre à agressividade, contendo seus primeiros impulsos. Entre as cenas que poderiam ser citadas, lembramos aquela em que a cabra Greenfinch salta para o abismo e é barrada por Peter. Ele impede a morte da cabra mas, assim, coloca a si mesmo em situação de perigo. Quando o incidente termina, Peter está furioso e dispõe-se a punir o comportamento do animal com uma grande surra, mas Heidi imediatamente intervém e não permite que ele faça isso: – Não, não, Peter, não bata nela, veja como está assustada! – Ela merece - resmungou Peter e mais uma vez ergueu o cajado. Então Heidi se atirou contra ele e gritou, indignada: – Você não tem o direito de tocá-la, vai machuca-la, deixe-a em paz! Peter olhou surpreso para a pequena comandante cujos olhos escuros estavam flamejantes, e, com relutância, soltou o cajado (SPYRI, 2019, p. 27). 31 Demonstrando uma conduta oposta à de Heidi, Emília não consegue segurar seu furor ao descobrir que Rabicó comeu seus croquetes. Ela bate no porco sem piedade para dar-lhe uma lição. – Quem mais senão Rabicó? Vai ver que está aqui pelo quarto, escondido debaixo da cama. Emília deu busca e logo descobriu o ladrão num canto, ressonando de papo cheio. – Espere que te curo! – gritou ela, passando a mão na vassoura. E pá! pá! pá!...desceu a lenha no lombo do gatuno, enquanto Narizinho se rebolava na cama de tanto rir, pensando consigo: “se antes de casar é assim, imagine-se depois!” (LOBATO, s/d, p. 160). A tia Dete decide enviar a neta para Frankfurt, para que ela ali receba educação formal e religiosa. Heidi não que ir, mas é levada contra sua vontade. Uma vez que na instituição, a menina é submetida a castigos de reclusão pela senhorita Rottermeyer porque suas atitudes são vistas como desviantes dos valores da metrópole. Durante esse período, apesar de Heidi entristecer-se, acata todas as ordens de forma silenciosa, sem protestos: –Vou lhe desculpar por ter feito isso porque é a primeira vez, mas não me deixe saber de uma segunda vez – disse a senhorita Rottermeyer apontando para o chão. – Durante a aula você tem que ficar quieta e participar. Se não fizer isso, terei de amarrá-la à cadeira. Entendeu? – Sim – respondeu Heidi –, mas certamente não me moverei de novo. – Pois agora havia entendido que era uma regra ficar sentada enquanto estava aprendendo (SPYRI, 2019, p. 63). A boneca, pelo contrário, rebela-se perante punições e não perde nunca a oportunidade de manifestar seu desagrado ou divergência. Isso pode ser ilustrado no momento quando, ao tentar trapacear em um sorteio, é repreendida por tia Nastácia, o que leva dona Benta a dar “palmadinhas” na personagem, como forma de correção: – Ché, que fiasco! – exclamou tia Nastácia pendurando o beiço. Nunca vi ação mais feia. Eu, se fosse dona Benta, não deixava que essa cavorteiragem fosse passando assim sem mais nem menos. Dava umas palmadinhas nela, ah, isso dava mesmo! Onde se viu querer empulhar a gente dessa maneira? Credo! Emília, cada vez mais furiosa, botou-lhe um palmo de língua, ahn! (LOBATO, s/d, p. 238) Heidi, em Frankfurt, faz companhia para Clara, detentora de uma deficiência física. As duas tornam-se grandes amigas e nunca brigam, sendo frisada a grande alegria que Heidi trazia para a vida da colega: 32 – E esta é nossa garotinha suíça. Venha apertar a minha mão! Isso! Agora, me diga, você e Clara são boas amigas ou se irritam e brigam e voltam a brigar na primeira oportunidade? – Não, Clara é sempre gentil comigo – respondeu Heidi. – E Heidi – disse Clara rapidamente – não tentou brigar nenhuma vez. – Que bom, fico feliz em saber – disse o pai se levantando da cadeira (SPYRI, 2019, p. 78). Em Reinações de Narizinho (1931), igualmente nos deparamos com a cumplicidade entre Emília e Narizinho, mas diferentemente da apresentada acima, não temos um relacionamento modelar e sem brigas, pelo contrário, há várias passagens, no texto, que indicam um desentendimento entre ambas, como no episódio em que Narizinho engana Emília acerca da aposta de uma corrida, apenas para ter um minuto a sós com Rabicó: – Não achei graça nenhuma! – foi dizendo Emília logo que a menina chegou. Nem parece coisa duma princesa (Emília só a tratava como princesa nas brigas). – Pois eu, Emília, estou achando uma graça extraordinária na sua zanguinha! Sua cara está que é ver aquele bule velho de chá, com esse bico... Mais zangada ainda, Emília mostrou-lhe a língua e dando uma chicotada no cavalinho tocou para a frente, resmungando alto: – Princesa!... Princesa que ainda toma palmadas de dona Benta e leva pitos da negra beiçuda! E tira ouro do nariz...Antipatia!... (LOBATO, s/d, p. 166). No livro de Johanna Spyri, a protagonista tem receio de falar a verdade, temendo causar má impressão na avó: – Agora me conte, Heidi, qual o problema? Você está com problema? Mas Heidi, com medo de que, se contasse a verdade, a avó a considerasse ingrata e então deixasse de ser tão gentil com ela, respondeu: – Não posso lhe contar (SPYRI, 2019, p. 85). Nada poderia ser mais diferente de Emília, que não tem qualquer preocupação com aquilo que os outros poderiam pensar de suas palavras. A sinceridade é a “marca registrada” da boneca. Ela não só fala a verdade, como profere sentenças que nenhum ser humano teria coragem de pronunciar: Emília não tirava os olhos da cabeleira do fabulista. O coitado morava sozinho naquelas paragens e com certeza nem tesoura tinha, pensava ela. De repente teve uma lembrança. Abriu a canastrinha e, tirando de dentro a perna de tesoura, ofereceu-a ao sábio, dizendo: – Queira aceitar este presente, senhor de La Fontaine. O fabulista arregalou os olhos, sem alcançar as intenções da boneca. – Para que quero isso, bonequinha? Para cortar o cabelo... 33 – Oh! – exclamou o fabulista, compreendendo-lhe afinal a idéia e sorrindo. Mas não vês que a tua tesoura tem uma perna só? Emília que não se atrapalhava nunca – respondeu prontamente: – Pois corte o cabelo dum lado só. Narizinho interveio. Puxou-a dali e disse ao fabulista que não fizesse caso visto como a boneca sofria da bola (LOBATO, s/d, p. 266). O narrador se refere à Emília como sendo interesseira e gananciosa, uma vez que ela costuma reter os objetos e não gostar de presentear ao próximo: “Emília era muito interesseira. Gostava de receber presentes, mas não de dar. O único presente que deu em toda sua vida foi aquele pito. Mesmo assim, mais tarde, quando se lembrava do pito vinha-lhe o suspiro” (LOBATO, s/d, p. 225). Em vez disso, Heidi é retratada como exibindo desprendimento das coisas materiais e sendo inclinada a doar coisas, ou seja, a pequena sempre coloca a necessidade dos outros acima da sua: – Ah, eu tenho muito dinheiro, vovó – gritou ela, contente, saltitando pelo quarto de satisfação –, e agora sei o que vou fazer com ele. Você vai ter um pãozinho branco fresco todo dia e dois no domingo. Peter pode trazê-los de Doerfli. – Não, não, criança! – respondeu a avó. – Não posso deixá-la fazer isso, o dinheiro não foi dado a você com esse objetivo. Você tem que dar ao seu avô e ele lhe dirá como você vai gastá-lo. Mas Heidi não seria impedida em suas gentis intenções, e continuou pulando, repetindo em tom de exultação (SPYRI, 2019, p. 116). Não só há uma enorme distinção entre os comportamentos, falas e a disposição geral da boneca e de Heidi, mas também diverge o modo como as demais personagens se pronunciam acerca delas. Emília é considerada uma faladora de asneiras por Narizinho, que chega mesmo a ver nela um ser sem coração: “– Coração, vovó. Pois não vê? Emília não tem nem uma isca deste tamainho...” (LOBATO, s/d, p. 183). Por outro lado, Heidi é chamada de “querida criança” (SPYRI, 2019, p. 36), pela avó, que ainda afirma que era “tão prazeroso ouvi-la falar” (SPYRI,2019, p. 37). Conforme os vários exemplos elencados acima demonstram, Heidi e Emília encontram-se na contramão uma da outra. Lobato trouxe, assim, efetivas e inquestionáveis mudanças para o gênero da literatura infantil brasileira. É bem verdade que, apesar de tudo, as obras de Spyri e Lobato possuem pontos de intersecção: os dois autores desenvolveram enredos nos quais se explora a aprendizagem informal da criança, a qual vive no campo, próxima aos avós. Nos bastidores desse ponto de intersecção está uma concepção pedagógica mais livre e autônoma (já que se dá fora dos limiares de qualquer instituição oficial) e, ao mesmo tempo, 34 inserida em um contexto afetivo (a criança está cercada de familiares em vez de uma professora profissional). Contudo, os pontos em comum não conseguem amenizar o peso das muitas e significativas diferenças. A protagonista estrangeira não se envolve em brigas, não faz birras e diante das adversidades, apenas roga a Deus por ajuda e soluções. Heidi, com seu perfil exemplar de candura e aquiescência, parece mais um modelo de criança a ser seguido, do que uma criança verdadeira. Enquanto personagem, Heidi não manifesta qualquer das dificuldades, problemas ou medos próprios da infância. Já Emília, de Reinações de Narizinho (1931), tornou- se figura marcante e querida aos leitores, porque, assim como eles, apresenta altos e baixos, que às vezes divertem, mas em outras ocasiões incomodam. O livro mais antigo, de Spyri, é uma espécie de “manual de instruções”. A voz da personagem principal é sempre um acato às imposições e pouco se escutam suas vontades. Em Monteiro Lobato a situação é oposta: temos a voz da criança em primeiro plano. Emília foge aos padrões, apresenta algo de criança, mas vai além. Intelectualmente faz perguntas difíceis e é capaz de compreender praticamente tudo, no entanto detém a irreverência e liberdade de uma criança menor, a qual não se submete às limitações. Seu comportamento ímpar, com reações típicas, desafia as convenções do pensar habitual. A boneca é sinônima do novo, do desafio, por isso, está sempre surpreendendo ao leitor. Reinações de Narizinho (1931), como já dito, apresenta uma grande brincadeira (da qual faz parte o leitor), dado que sua matéria são aventuras prescritas pela imaginação das personagens, sendo o sítio a elaboração infantil do espaço onde tudo é possível, na junção dos dois polos – campo e cidade –, sendo que Pedrinho vem da cidade, enquanto Narizinho sempre viveu no sítio. A mescla dessas duas vivências – que faz confluírem as práticas típicas da área rural com os saberes urbanos – resulta em um mundo ficcional que agrega tradição e modernidade, além de representar muitos dos aspectos que marcam o horizonte cultural da população brasileira na primeira metade do século XX. 2.3 - A literatura infantil pós Lobato O sucesso alcançado pelas obras de Monteiro Lobato fez deslanchar o interesse das editoras pelo mercado livresco destinado à criança. Com isso, o gênero da literatura infantil encorpou-se e ganhou aderência no espaço cultural brasileiro. Para completar, isso trouxe consigo um aumento progressivo da produção de obras para o público mirim. 35 Ao tornar-se meio de profissionalização e oportunidade de renovação da literatura nacional, a escrita destinada à infância, em conjunto com a amplificação da rede escolar, despertou o interesse e a adesão de escritores da década de 1930, dentre eles: Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Malba Tahan, Viriato Correia, Vicente Guimarães, Ofélia Fontes, José Lins do Rego, Jerônimo Monteiro, Luís Jardim, Lúcio Cardoso, Maria Lúcia Amaral, Cecília Meireles, Guilherme de Almeida, Maria José Dupré e Jorge de Lima. Esses escritores e poetas já produziam obras para adultos em gêneros dos mais variados, desde narrativas fantásticas até histórias de cunho realista. Essa dicotomia gerou duas respostas por parte da população leitora. De um lado, aqueles em prol do realismo, por acreditarem que ele permitiria ao leitor conhecer a história de sua pátria dentro dos brios nacionalistas, rogativa governamental da Era Vargas. Por outros, aqueles viam na fantasia um meio emancipatório, de resistência. Essa visão persistiu até a década de 1940, ganhando ainda mais relevância com a Reforma Educacional, a qual embasava o currículo do ensino básico sob os conhecimentos da vida nacional e o exercício das virtudes morais e cívicas, adequando o discente para o convívio familiar e social. Por meio dos princípios formativos que privilegiavam certa “literatura” capaz de comprometer-se com a instrução pragmática e informativa, abdicando das “mentiras” da ficção, consideradas como nocivas aos menores, e da reformulação no plano da linguagem, o qual passou a ocorrer sob o artífice da infantilização, de modo que as personagens apresentavam diminutivos (desnecessários!) em suas falas. Em meio a tais limitações, alguns escritores seguiram diretrizes próprias, mantendo-se ao espírito da arte, entre eles: Edy Lima, Elos Sand, Renato Sênega, Maria José Dupré, Lúcia Machado de Almeida, Maria Lúcia Amaral, Camila Cerqueira, Odette de Barros e Mário Donatto. De acordo com Coelho (1991, p. 247): [...] nos anos 40, surge um tipo de literatura para crianças e jovens que procura eliminar, de sua gramática narrativa, as “irregularidades”, o extraordinário e o maravilhoso que sempre caracterizaram a Literatura Infantil. Fadas, bruxas, duendes, talismãs, gênios, gigantes, castelos, princesas ou príncipes encantados, etc. foram sistematicamente combatidos como “mentiras”. Defendia-se o princípio de que os contos de fadas ou maravilhoso em geral falsificavam a realidade e seriam perigosos para a criança, pois poderiam provocar em seu espírito uma série de alienações como: perda de sentido do concreto, evasão do real, distanciamento da realidade, imaginação doentia, etc. Na década de 1950, sob o governo de Juscelino Kubitschek e seu Programa de Metas “avançar cinquenta anos em cinco”, o Brasil demandou modernização com todos os esforços e viu, nas mídias, o apelo visual, para propagar o construto. Nessa mesma época, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos recorreram aos produtos culturais midiáticos, como meio de exportação 36 da sua ideologia, ou seja, a capitalista. No Brasil isso trouxe a introdução, em território nacional, das histórias em quadrinhos (popularizadas com o nome de “gibi”), capitaneada pela tradução da HQ americana “O Pato Donald”. Pivô das ideias capitalistas é o personagem Tio Patinhas, milionário avarento que só pensa em dinheiro e tudo está disposto a sacrificar quando surge oportunidade de aumentar sua fortuna. O gibi motivou polêmica entre os habituados com os enredos tradicionais, pois foi considerado perigoso, por “incentivar a preguiça no ato de ler”. Feijó nos explica a questão (1997, p. 7): Para muitos psicólogos americanos, era, junto com o tal de rock and roll, a causa da juventude transviada. Para os professores mais conservadores, uma preguiça mental, um meio de desestimular a leitura e empobrecer a cultura dos estudantes. Para os filósofos, uma forma de propaganda política ou de reforço de certos valores ideológicos. Para os leitores, porém sempre foi apenas uma maneira superlegal de se divertir e também de se informar. No entanto, mesmo que combatida por certas camadas de leitores, foi inegável o sucesso do gênero no país. As editoras logo perceberam no gibi uma fonte de lucro notável para a cultura de massa. Exemplos de periódicos das “HQs” nacionais do período são: Pinguinho, Vida Infantil, Cirandinha, Tiquinho etc. Na década de 1960, mudanças políticas influenciaram diretamente a literatura nacional. Com o país assolado por um cenário de violência e repressão política, instaurado pelo golpe governamental, ocorreu o cerceamento da liberdade coletiva e a censura dos meios artísticos (livro, música, teatro, cinema). As obras passaram a ser conferidas e inspecionadas sob a suspeita de serem subversivas pelas autoridades apoiadoras do Ato Institucional Número Cinco, que se utilizou dos mandados de prisão e exílio, a fim de forjar o interdizer cultural. E, diante de tal quadro, muitos escritores e ilustradores avistaram, na Literatura Infantil, o refúgio para manifestarem suas ideias, sem serem banidos, em virtude do gênero ser esquecido pelos poderes ditatoriais. No mesmo período, no plano educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional buscou democratizar o ensino, postulando o nível fundamental como obrigatório. Tal medida enfatizou a importância da leitura no currículo desses anos e acelerou a demanda pelos livros infantis, os quais insuflaram suas cifras na década de 1970. Nas palavras de Coelho (1991, p. 257), O mais importante para o problema que aqui nos ocupa (a Literatura Infantil) é a ênfase dada à leitura, nos currículos e programas de 1.º e 2.º graus, 37 elaborados segundo as diretrizes propostas. A leitura, como habilidade formadora básica, aos alunos durante o processo de aprendizagem. Inclusive, o texto literário passa a servir de ponto de partida para o estudo de gramática ou da língua em geral. Com isso, se altera pela base o ensino tradicional, eminentemente teórico. Nos anos 1970, em resposta à grande demanda, um conjunto de artistas cooperou para a elaboração dos projetos inovadores na arte infantil. Eles então incorporaram ao gênero a ficção científica e o romance policial, modalidades mais apreciadas tendo em vista que as obras seriam para leitores infantis, excluindo o alto teor de violência. Assim, a partir da década de 1970, ocorreu uma consolidação e apuramento estético da Literatura Infantil, com inúmeras obras de alto valor literário. Nesse processo, ela se desprendeu dos objetivos didáticos, amadureceu seus conteúdos, refinou seus recursos estéticos. E tratou de utilizar-se dos enredos que testemunhavam o cotidiano da criança, despertavam a curiosidade e incentivavam o olhar intimista para os problemas existenciais. Em outras palavras, a literatura infantil tornou-se mais arrojada, multifacetada e sensível ao universo das crianças. Dentre as obras criadas nessa época, destaca-se, por exemplo, A bolsa amarela (1976), de Lygia Bojunga, a qual possibilitou, ao leitor, conhecer e lidar com suas emoções, o que lhe permite conhecer-se melhor: “O ato de leitura contribui para uma dialética entre o mundo do texto e o texto do leitor e a compreensão de si mesmo, dado que a compreensão de si é a narrativa, pois compreender-se corresponderá à apropriação da história da nossa própria vida” (JARDIM, 2003, p. 218). A vida íntima de Laura (1974), de Clarice Lispector, é outra obra que merece destaque. Revestindo-se do universo intimista, próprio da escritora, o livro formata-se, ludicamente, na forma de um jogo interrogativo, suscitando a imaginação e a criatividade do leitor. Nele, a autora aproxima-se do público, conforme estabelece uma interlocução com ele, a fim de, e promove a identificação do leitor com a história da galinha Laura e, consequentemente, a superação dos problemas introspectivos, conforme expõe Manzo (1997, p. 175): Em suas histórias infantis, Clarice frequentemente solicita seus leitores-mirins a adivinhar coisas, inventar histórias, responder perguntas. E embora a trama de seus livros feitos para crianças seja, invariavelmente, bastante escassa, esse despojamento é compensado pela vivacidade de uma voz que se faz tão íntima, que se torna impossível para o leitor ficar indiferente a seus apelos. 38 Essas poucas obras que comentamos neste capítulo evidenciam um aspecto que, para nossa pesquisa é central: a partir da obra de Monteiro Lobato, a Literatura Infantil ganhou um impulso fundamental para retraçar a compreensão de seu público-alvo, reprogramar seus objetivos e alcançar novo patamar literário. Lobato foi, assim, figura-chave de nossas Letras, colaborando para a consciência crítica, mas também para o aprimoramento do gosto literário de inúmeras gerações. Esse testamento literário continua profícuo até nossos dias. 39 3 - O CÔMICO NUMA CONJUNTURA NEGATIVA A comicidade ou o cômico têm sido objeto de estudos em várias áreas de conhecimento humano. Englobando desde as manifestações individuais do risível até as distintas manifestações na literatura, teatro e outras artes, os estudos também trataram questões envolvendo o que faz o ser humano rir, como o homem ri e qual o papel e impacto do riso em nossa fisiologia, psicologia e relações socioeconômicas. Ligado à zombaria e sátira, por exemplo, o riso relaciona-se com as intenções de rebaixamento e expressão de desdém, conforme já analisaram Platão e seus contemporâneos. Platão julgou o riso como responsável por apartar o homem da verdade, pelo falso prazer que ele concede aos seres humanos. Conforme expõe Alberti (1999, p. 44-45), para Platão, o cômico rebaixa o homem, atestando sua baixa estatura intelectual, uma vez que nasce da efervescência das paixões: Combinando as observações de A República e de Filebo, podemos concluir que o conceito negativo que Platão faz do riso e do risível é determinado, em última análise, por sua concepção da filosofia como prazer puro e única forma de apreensão da verdade, em oposição à ilusão característica das paixões. O riso e o risível seriam prazeres falsos, experimentados pela multidão medíocre de homens privados da razão. Entretanto, ambos devem ser condenados mais por nos afastarem da verdade do que por constituírem um comportamento medíocre. Filebo é um diálogo escrito por Platão no séc. IV a.C. Desse diálogo participam Sócrates e mais dois interlocutores. De acordo com Leite (2016), Sócrates expressa sua opinião sobre o riso, considerando-o como uma afecção localizada entre o prazer e a dor. O prazer, na visão socrática, viria quando um invejoso presencia o infortúnio do invejado, e esse infortúnio alheio enche o invejoso de um sentimento de alegria. A dor viria da própria inveja que, para Sócrates, é uma moléstia da alma, causando permanente sofrimento ao invejoso. Dessa forma, o riso seria um mal a ser evitado, já que a raiva, cobiça e insatisfação do invejoso – sentimentos que estão na raiz do cômico – podem acarretar violentas e negativas transformações, ou prejuízo, à alma de quem ri de seu semelhante. De maneira análoga a Platão, o filósofo Aristóteles, ao qual a cultura ocidental, inclusive a Teoria Literária, tanto deve, descreveu, em A poética (escrita no século IV a.C.), a matéria cômica em consequência das ações humanas que não atingiram idealmente o princípio virtuoso e, assim, as falhas, próprias dos sujeitos inferiores, ficaram relegas às comédias. 40 Aristóteles entendeu que os grandes crimes não são vistos como engraçados e, portanto, não despertam o riso - ficando reservados às tragédias. As pessoas, no entanto, tendem a rir dos “pequenos” desvios e falhas. Consequentemente, o pensador definiu a comédia como a imitação (mímese) daquilo que é inferior, daquilo ligado aos vícios ou faltas menores, responsáveis pela feiura e desarmonia. Nas palavras de Aristóteles (1987, p. 32), A comédia é como dissemos, uma imitação de caracteres inferiores, não contudo em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora, tal como, por exemplo, a máscara cómica é feia e deformada, mas não exprime dor. Na visão do filósofo, o cômico, fundamentalmente, não deveria implicar dor ou destruição. Em outras palavras, o riso diante da ação criticável não significaria a chancela ou deferimento daquele vício que originou a ação ridícula (incorreta). O cômico, assim, não possuiria um caráter nocivo, uma vez que, para Aristóteles, a comédia necessitaria obedecer à moral social, orientando-se ao bem comum dos seres humanos integrados na polis ou cidade Estado. Em consequência, se o riso tido como finalidade (ou telos) da comédia se apoiava nos princípios éticos, estabeleceu-se uma diferença entre o riso provocado pelo comediante e outros tipos de riso, os quais buscam ridicularizar e gerar dor em sua vítima ou objeto. Nesse sentido, estão fora da comédia as ações descomedidas e os excessos que levam a graves desequilíbrios. No entender de Aristóteles (1999, p. 8), essas ações descomedidas estimulariam não o riso, mas a gargalhada, e a ela estariam mais propensas as pessoas rudes e incultas: É característico de um homem de tato dizer e escutar aquilo que fica bem a uma pessoa digna e bem educada; pois há coisas que ficam bem a tal homem dizer e escutar a título de gracejo; e os chistes de um homem bem-educado diferem dos de um homem vulgar, assim como os de uma pessoa instruída diferem dos de um ignorante. Alguns séculos depois de Aristóteles, o inglês Thomas Hobbes concebeu o riso sob o ponto de vista do sentimento de superioridade que confere a quem ri. Para Hobbes (1983), quem ri de outrem está angariando para si um senso de imponência, uma autoglorificação vã e vazia – já que emerge da insegurança e das paixões de quem ri. Hobbes entende que aquele que ri salienta a fraqueza do outro para, em contraposição, erigir uma pretenciosa imagem de si mesmo, uma vez que se considera isento daquela fraqueza. Desta maneira, o riso seria provocado “pela visão de alguma coisa deformada em outra pessoa, devido à comparação com 41 a qual subitamente aplaudimos a nós mesmos” (HOBBES, 1983, p. 36). Assim, o ridículo estariafundado na autoexaltação e na negação de compaixão pelo próximo. Immanuel Kant, em meados do século XVIII, concebe o riso como ato de anulação súbita do entendimento. Para ele, há uma distinção entre o racional e o sensível, por meio da qual a convicção do belo se associa à razão, enquanto as realizações sensoriais, das quais fazem parte o riso, se ligam ao âmbito sensível, dispensando os julgamentos. De tal modo que o riso não seria relacionado à razão, mas tido apenas como formulador de situações agradáveis. Assim, o prazer advindo despertaria o relaxamento do entendimento, em consequência de não encontrar o que delineava sua expectativa: na impossibilidade de dar continuidade ao pensamento “o riso é um efeito resultante da maneira como a tensão da espera é reduzida a nada” (MINOIS, 2003, p. 420). Em seu livro, Kant (1993, p. 177) considera que: [...] a música e a matéria para o riso são duas espécies de jogo com ideias estéticas ou também com representações do entendimento, pelas quais enfim nada é pensado e as quais só podem deleitar pela sua alternância, e contudo vivamente. [...] a vivificação em ambas é simplesmente corporal, embora elas sejam suscitadas por ideias do ânimo, e que o sentimento de saúde constitui por um movimento das vísceras correspondente àquele jogo o todo de uma sociedade despertada para um deleite tão fino e espirituoso. Próximo à ideia anterior, Schopenhauer (2005) fundamenta sua teoria do risível, sob o princípio da incongruência, constituída nos aspectos cognitivos do cômico, em direção à vontade intuída, que no âmbito corporal, torna-se visível. Para o autor, o riso encontraria-se no contraste entre a premeditada expectativa forjada no moralmente aceito e a manifestada realidade. Ao atentar para a relação entre o riso e a razão, Schopenhauer (2005) concebe o primeiro no abismo entre o conceito e sua realização, quando incorre a violação dos padrões normativos que expõem o fenômeno perceptível das incongruências do conhecimento cognitivo humano, frente às representações intuitivas. Outro filósofo que se ocupou do riso foi Nietzsche. Para ele o riso não tem apenas um aspecto cognitivo, mas liga-se também a aspectos sensitivos, pois é “efeito da intuição diante dos conceitos inadequados, apontando os erros e as contradições como motivos de alegria” (LEITE, 2016, p. 26). Conforme discute Thiago Ribeiro M. Leite (2016, p. 88), Nietzsche analisa o riso sob a ótica dos equívocos humanos, disparates e incongruências, assim como dos critérios valorativos, do senso de superioridade/inferioridade, das relações de poder. Assim, o riso não é apenas diversão e alegria, mas também arma com poder de destruição. A relevância 42 do riso, no entendimento do filólogo, reside na capacidade de fazer com que o homem se reconcilie consigo mesmo, intuindo libertar-se, a partir da dor, nele transfigurada em alegria, por meio da vivência do cômico. O filósofo nutria a ideia da capacidade do risível congregar em si uma potencialidade transgressora: Na consciência da verdade uma vez contemplada, o homem vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo de ser [...]. Neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a arte; só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre horror e o absurdo das representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. (NIETZSCHE, O Nascimento da Tragédia, §7) Em suma, conforme sintetizado por Leite (2016, p. 149), o riso pode ser alegre ou mordaz, cínico ou cheio de humor, e entre suas motivações podem estar o amor à vida, o desprezo por algo ou alguém, uma postura niilista. Sua amplitude é, pois, algo a ser considerado. 3.1 - O cômico em sua amplitude “E que seja tida por nós como falsa toda verdade que não acolheu nenhuma gargalhada” (NIETZSCHE apud ALBERTI, 2002, p. 15) Entender a tradição clássica é fundamental para entrar no gênero cômico e nos autores que refletiram sobre o tema. Para alguns, o cômico centra-se na contrariedade binária assumida com a seriedade, com o racional e o trágico: “uma propõe-se a imitar os homens, representando- os piores, a outras melhores do que são na realidade” (ARISTÓTELES, 1964, p. 263). Para Sylvia Telarolli Leite (2001), no entanto, isso significa empobrecer sua relevância social e ausentar as motivações de um riso, o qual expõe os descompassos e as contradições entre as esferas do poder e a população. Assim, na divisão promulgada por Aristóteles entre o riso exposto, por meio dos vícios fortes (próprio dos bufões vulgares), na intenção de atacar o outro, e daquele não nocivo, encontrado no desnudamento dos defeitos advindos por meio dos vícios fracos, assume a existência de uma distinção problemática, a qual subentende o menosprezar do riso popular, nomomento em que separa o riso polido, daquele desenfreado. 43 As pessoas que tendem para o excesso na ânsia de gracejar são consideradas bufões vulgares, esforçando-se para provocar o riso a qualquer preço; seu interesse maior é provocar a gargalhada, e não dizer o que é conveniente e evitar o desgosto naquelas pessoas que são objetos dos seus gracejos. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, § IV) A inconsciência teórica, de acordo com Propp (1992), percorre, ainda, as obras de escritores como Johannes Volkelt - que contrapõe o riso vulgar, relacionado aos movimentos corpóreos, ao riso sútil, próprio das comédias exemplares -, e a teoria do século XIX, a qual distingue o termo em duas esferas, o cômico-fino/alto e cômico-grosseiro/baixo, presente nos palhaços de circo e nos entretenimentos dos bufões, que se utilizaram das ações desgovernadas, consequentes das práticas fisiológicas involuntárias; palavreados chulos, obtidos no descontrole sobre a boca; e obscenidade, expressa nos sentimentos, até então, recônditos. Propp, em suas considerações, revela uma base social para as distinções entre tipos de riso e de cômico: “o aspecto refinado da comicidade existe para as pessoas cultas, para os aristocratas de espírito e origem. Enquanto o segundo aspecto é reservado à plebe, ao vulgo, à multidão” (PROPP, 1992, p. 23). Em vista disso, ele considera o desmembramento perigoso, já que “no desconsiderado campo do ‘cômico baixo’ ou ‘vulgar’, “enquadra-se parcela expressiva dos nossos clássicos: Aristófanes, Molière, Shakespeare, Gógol etc.” (PROPP, 1992, p. 22). Em viés distinto ao que se pode inicialmente atestar, o cômico diz respeito a um universo complexo e abrangente, o qual é ligado, não mais estritamente, à oposição comédia/tragédia e suas subdivisões. Destarte, ressignificado em sua trajetória, rejeita o posto periférico e adquire relevância, quando se nega como desprezível/negativo e dissocia-se das matrizes intelectuais que o opunham aos pensamentos sérios e sublimes, passando a ser investigado: “antes de mais nada, por si e enquanto tal” (PROPP, 1992, p. 18). E, conforme Santini (2007, p. 8), É justamente na imagem de um conjunto heteróclito, abarcando elementos díspares sob seus denominadores, que a palavra “cômico” passa a designar, em sentido amplo, todas as realizações ligadas ao risível e não apenas o gênero comédia, a que se referia o grego komikós. Do chiste à ironia, o cômico alarga- se e o hiato que se desenha entre uma e outra realização dentro do conjunto ora é considerado em estudos que se dedicam à exploração das particularidades de cada manifestação, ora é deixado à mercê de interpretações superficiais, alheias à complexidade da discussão. Henri Bergson, em O riso (1987), formata a tese constituída na relação entre a vida e a arte, a qual pressupõe que o risível se dá no contraste entre a rigidez mecânica e a 44 maleabilidade orgânica, ao desviar a intenção premeditada, por meio da distração. Assim, o engenhoso aplacado, quando se sobrepõe ao vivente, natural, é motivador do riso, porque desperta o surpreendente e o inesperado, que foge ao padrão. “O que há de risível num caso e noutro, diz Bergson, é certa rigidez mecânica, quando seria de se esperar a maleabilidade atenta e a flexibilidade de uma pessoa” (JOHANSON, 2012, p. 83). Dessa forma, o risível se daria na incapacidade de perceber a vida, quando o “ser” prende-se nos automatismos inflexíveis, assim, o riso assumiria caráter de punição ao comportamento desviante, dentro da concepção moralizante, aqui encaminhada. Continuamente, ao situar o risível no que nele há de antropológico, Bergson (1987) presume a insensibilidade de quem ri como fundamental para tornar o riso possível, de feitio que a ausência do sentimento empático, para com o alvo, dá-se necessária para o efeito da comicidade. Juntamente a esses pressupostos, o autor situa o caráter coletivo do riso que não é absorvido como obrigatório ou natural, na medida em que só faz sentido e coexiste na instância grupal, dado a manifestação atingir caráter de compartilhamento, por perpetuar significâncias coletivas. Assim, rir de certa circunstância e não de outra residiria nas motivações históricas, sociais e nacionais do conjunto e privilegiaria os interesses, ao avantajar uns e não outros. Seguindo em uma direção análoga a Bergson, Vladimir Propp, quase cinquenta anos depois, salienta e reforça em seu estudo crítico, Comicidade e riso (1970), a relação do cômico com o riso (eminente ao homem) e o caráter punitivo do último. Ao assegurar abrangência dos recursos cômicos, o autor comenta que podem se tornar motivo de riso as diversas manifestações morais, intelectuais e físicas da vivência humana, as quais não tangem o domínio do sofrimento. Cabem aqui aquelas experiências humanas que, sob o âmbito artístico e ante a fantasia, despertam o riso, por meio de determinados procedimentos que, segundo Propp, atribuem vida ao inorgânico ou não humano, quando lembram determinada circunstância da cotidianidade do homem. Assim: “Se de repente um cão enorme e forte se põe a fugir de um gato pequeno e valente, que se volta contra ele por estar sendo perseguido, isto provoca o riso porque lembra uma situação possível também entre os homens” (PROPP, 1992, p. 38). Ainda segundo Propp: [...] nas obras humorísticas de qualquer gênero o homem nos é mostrado naqueles aspectos que são objeto de zombaria também na vida. Às vezes é bastante simples mostrar o ser humano tal qual ele é, representá-lo ou apresentá-lo; mas isto nem sempre é o bastante. É preciso descobrir o que é engraçado e para isso existem alguns procedimentos determinados que devem 45 ser estudados. Esses procedimentos são os mesmos na vida e na arte. Às vezes, é o próprio indivíduo que revela involuntariamente os lados cômicos de sua natureza, de suas ações; outras, ao contrário, quem o faz propositalmente é quem zomba. (PROPP, 1992, p. 29) Tais procedimentos incluiriam permanentemente, na esfera cômica, o riso de zombaria ou derrisão, posto como um fator que desnuda os defeitos humanos, colocando-os à mostra perante o espaço público ou compartilhado: “o riso é a punição que nos dá a natureza por um defeito qualquer oculto ao homem, defeito que se nos revela repentinamente” (PROPP, 1992, p. 44). Entretanto, apartado do domínio da comicidade, explicita-se um segundo gênero, o “riso bom”, que envolve compaixão e piedade, ao estabelecer certo envolvimento emocionalmente com a matéria risível, aparentando uma contradição na teoria de Propp, que volta a operar com as divisões, as quais ele mesmo havia questionado. 3.2 - As outras formas do cômico: a ironia O cômico, se pensado como gênero, procede a distintas modalidades, as quais se distinguem entre si, ora de modo drástico e ora sutilmente, a depender dos elementos comparativos. Dentre essas modalidades inclui-se a ironia, a qual se esquiva de definições muito específicas ou fechadas, posto que sua significação sofreu transformações ao longo dos períodos assumindo significações distintas, a começar pelos diálogos de Platão. Neles, de acordo com Alberti (1999), Cícero a concebe como procedimento retórico utilizado pelos interlocutores envolvidos no diálogo, através da operação de enunciar algo distinto do acatado na mente, a fim de respaldar aquele, o qual seria refutado futuramente. Segundo Silva (1994/1995), o recurso seria aplicado em cooperação à busca pela verdade universal e a univocidade ideal das palavras, numa interlocução em que tais desejos ainda não tivessem sido saciados, pois, uma vez alcançados, dispensariam o recurso, visto que tais circunstâncias não coexistiriam. Deste modo, como explicado por Silva (1994/1995, p. 246): Quando a verdade e a univocidade se instalarem, a ironia socrática terá que ser desalojada. Em outros termos, a ironia socrática (embora não seja método) concorre para a busca da verdade e da univocidade da linguagem, mas só pode conviver com elas enquanto virtualidades. Estas duas são um ponto de chegada almejado, mas ainda não alcançado. 46 Já Aristóteles considerou a “eironeia” um artifício retórico que consiste em o falante – assumir (apenas aparentemente!) uma postura autodepreciativa, reconhecendo sua própria (suposta) ignorância e enaltecendo a sabedoria do interlocutor, para que, pouco a pouco, o interlocutor se conscientize da ignorância e reconheça a superioridade de conhecimentos do primeiro falante. Essa ironia é, assim, um recurso retórico dissimulador já que recorre a um uso enganoso da linguagem. Na Europa Moderna, a palavra recebeu novas correspondências de sentido, sendo desenvolvida como figura de linguagem utilizada primordialmente no intuito de zombar de alguém, pelo uso do elogio sobreposto por intenção satírica. No entanto, no final do século XVIII, a ironia ganhou novos rumos. Para Bergson (1987), enquanto o humor se destina a descortinar uma verdade, analisando os sentidos mais sutis ou profundos de uma afirmação, a ironia joga com falsas aparências. Ou seja, a ironia disfarça-se, pretendendo afirmar algo quando, em verdade, busca fazer entender exatamente o contrário. Nas palavras de Bergson (1987, p. 68): A mais geral dessas oposições seria talvez a do real com o ideal: do que é com o que deveria ser. Ainda aqui a transposição poderá ser feita nas duas direções inversas. Ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser precisamente o que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam ser. É o caso do humor. O humor, assim definido, é o inverso da ironia. Ambos são formas da sátira, mas a ironia é de natureza retórica, ao passo que o humor tem algo de mais científico. Enquanto Bergson a distinguiu do humor, André Jolles (1976) utilizou-se da noção de distância entre aquele que ri e o alvo do ridículo, para encaminhar sua definição de ironia, segundo a qual ela é oposta à sátira. Para o Jolles, a sátira promove a mais extrema distância entre duas instâncias, enquanto a ironia representa uma cumplicidade, mesmo que fingida entre os dois sujeitos. Assim, de modo sintetizado, a ironia, enquanto processo atribuído, explicita inversões sutis nos sentidos textuais e depende da apreensão interpretativa do leitor, que deve decifrar a intencionalidade autoral decodificando-a, sem sua cumplicidade e capacidade de reconhecimento das competências linguísticas e condicionantes culturais/ideológicas envolvidas ela não acontece. Linda Hutcheon (2000) vê a ironia como procedimento relacional e compartilhado, cujo sentido efetivo só se viabiliza dentro de um cenário de um intrínseco pertencimento cultural. Por conseguinte, a validação do conteúdo como irônico perpassa pelos 47 posicionamentos compartilhados reciprocamente entre os membros de certo grupo. Pois, de acordo com Hutcheon (2000, p. 34), [...] a ironia pode ser provocativa quando sua política é conservadora e autoritária tão facilmente quanto quando sua política é de oposição e subversiva: depende de quem a está usando/atribuindo e às custas de quem se acredita que ela está funcionando. Tal é a natureza transideológica da ironia. A ironia é justamente uma das marcas da personagem Emília. Faz parte do jogo expressivo da boneca, sendo frisada pelo narrador, numa das provocações entre ela e Visconde. Os dois personagens, que se ajudavam mutuamente e prezavam pela companhia um do outro, entram em desentendimento no momento em que Emília, após ter recebido uma provocação, afirma não ligar para vegetais. Quando a boneca expressa indiferença, revela o contrário, posto responder à ofensa e chatear-se com o episódio, dando importância à voz do amigo, ainda que o coloque na categoria vegetal (inferiorizando-o ao equipará-lo a algo como nabos ou cenouras): – A senhora Emília é um animal artificial que não está classificado em nenhuma zoologia. [...] Emília olhou para o visconde com um arzinho de soberano desprezo. – Não ligo a vegetais – disse ironicamente – que antes de serem viscondes andavam jogados no chão, perto do cocho das vacas, sujos de terra e outras coisas, sem cartola nem nada... O visconde é muito importante, mas treme de medo cada vez que passa perto da vaca mocha... (LOBATO, s/n, p. 188). Assim, a ironia é recurso muito significativo para nosso entendimento da boneca Emília. Na medida em que se trata de recurso sofisticado, que lida com camadas diferentes de significado, a ironia colabora para compor Emília enquanto personagem complexa: tanto do ponto de vista intelectual quanto do ponto de vista emocional e afetivo. Ou seja, ela não apenas é inteligente e esperta como também possui uma gama diversificada de sentimentos e emoções. 3.3 - As outras formas do cômico: a paródia A paródia, assim como os outros gêneros, caminhou por uma longa trajetória histórica durante a qual foi definida e redefinida de muitos modos. A paródia foi no início atestada como uma forma simplista e meramente parasitária, configurada como plágio grotesco pelos autores românticos, que a entendiam como avessa e destituída de originalidade e criatividade. Contudo, sua condição marginal foi suplantada por teóricos da corrente Formalista, que a entenderam dentro de construtos menos adversativos quando a definiram no jogo 48 intertextual da linguagem, permitindo a evolução literária, ou seja, a renovação artística, mediante o resgate da tradição. Norteando-se por essa concepção rejuvenescedora da paródia, Bakhtin descreveu-a no universo dialogal, ao declarar que: “todo enunciado é concebido em relação a outros enunciados” (BAKHTIN apud MAZZI, 2011, p. 30). No âmbito literário, o estudioso russo entendeu-a como recurso possibilitador de inversão textual, pelo qual se têm, por consequência, a crítica e ironia velada, por meio de uma intenção autoral, que se opõe ao modelo original. Assim, segundo as palavras de Bakhtin (1993, p.