UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E ENGENHARIA Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento LUÍS GUILHERME COSTA BERTI A COMUNICAÇÃO DA LUTA PELA PACHAMAMA ENTRE OS POVOS ORIGINÁRIOS E OS COLONIZADORES DA AMÉRICA: ANÁLISE DAS OBRAS “OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO” (1970) DE DARCY RIBEIRO E “ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO” (1970) DE DEE BROWN TUPÃ - SP 2023 LUÍS GUILHERME COSTA BERTI A COMUNICAÇÃO DA LUTA PELA PACHAMAMA ENTRE OS POVOS ORIGINÁRIOS E OS COLONIZADORES DA AMÉRICA: ANÁLISE DAS OBRAS “OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO” (1970) DE DARCY RIBEIRO E “ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO” (1970) DE DEE BROWN Projeto de pesquisa da Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento apresentado à Faculdade de Ciências e Engenharia da Unesp Campus de Tupã. Área de Concentração: Agronegócio e Desenvolvimento Linha de Pesquisa: Desenvolvimento e Meio Ambiente Orientador: Prof. Dr. Nelson Russo de Moraes Coorientadores: Prof. Dr. Renato Dias Baptista Prof. Dra. Luciana Ferreira Leal TUPÃ – SP 2023 Ficha catalográfica Faculdade de Ciências e Engenharia - Câmpus de Tupã - Rua Domingos da Costa Lopes, 780, 17602496, Tupã - São Paulo www.tupa.unesp.br/pgadCNPJ: 48.031.918/0031-40. Berti, Luís Guilherme Costa B543c A comunicação da luta pela Pachamama entre os povos originários e os colonizadores da América: : Análise das obras “Os Índios e a civilização” (1970) Darcy Ribeiro e “Enterrem meu coração na curva do rio” (1970) Dee Brown. / Luís Guilherme Costa Berti. -- Tupã, 2023 113 f. : il., tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Engenharia, Tupã Orientadora: Nelson Russo de Moraes Coorientadora: Renato Dias Baptista 1. Cosmovisão. 2. Epistemicídio. 3. Direito dos Povos Indígenas. 4. Dee Brown. 5. Darcy Ribeiro. I. Título. http://www.tupa.unesp.br/pgadCNPJ Impacto potencial desta pesquisa A presente pesquisa reveste-se de relevância social, sobretudo, no âmbito da comunicação – por intermédio de documentos -, dos quais relatam acerca da colonização, bem como, a resistência originária. A temática se desvela sensível, tendo em vista o contexto histórico da américa, no qual o genocídio indígena se fez fato social. Posto isto, o estudo há de averiguar o passado, assim como, a relevância do território para junto dos povos originários. Potential impact of this research This research is of social relevance, especially in the context of communication – through documents -, which report on colonization, as well as original resistance. The theme is sensitive, given the historical context of America, in which indigenous genocide became a social fact. That said, the study must investigate the past, as well as the relevance of the territory for traditional peoples. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Tupã CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: A COMUNICAÇÃO DA LUTA PELA PACHAMAMA ENTRE OS POVOS ORIGINÁRIOS E OS COLONIZADORES DA AMÉRICA: ANÁLISE DAS OBRAS "OS ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO" (1970) DE DARCY RIBEIRO E "ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO" (1970) DE DEE BROWN AUTOR: LUÍS GUILHERME COSTA BERTI ORIENTADOR: NELSON RUSSO DE MORAES COORIENTADOR: RENATO DIAS BAPTISTA COORIENTADORA: LUCIANA FERREIRA LEAL Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Mestre em Ciências, pela Comissão Examinadora: Professor Associado NELSON RUSSO DE MORAES (Participaçao Virtual) Departamento de Comunicação Social / Faculdade de Arquitetura Artes Comunicação e Design - FAAC - UNESP - Bauru/SP Prof.ª Dr.ª ANGELICA GOIS MORALES (Participaçao Virtual) Departamento de Gestão, Desenvolvimento e Tecnologia / Faculdade de Ciências e Engenharia - FCE - UNESP - Tupã/SP Prof. Dr. ALCEU ZOIA (Participaçao Virtual) Programa de Pós-graduação em Educação / Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT - Sinop/MT Tupã, 08 de dezembro de 2023 Faculdade de Ciências e Engenharia - Câmpus de Tupã - Rua Domingos da Costa Lopes, 780, 17602496, Tupã - São Paulo www.tupa.unesp.br/pgadCNPJ: 48.031.918/0031-40. http://www.tupa.unesp.br/pgadCNPJ Dedico esta dissertação ao Criador o qual há de revigorar-me e auxilia-me a fim desbravar os meus intentos. Ademais, agradeço aos meus familiares os quais me concederam incentivo, amparo, força e coragem. Posto isto, celebro meus ancestrais que pisaram no chão no qual exerço minha caminhada. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Nelson Russo de Moraes pela dedicação em orientar-me, pelo partilhar de sua sapiência e oratória fortemente inspiradora, bem como, paciência em todo o trajeto. Agradeço ao Prof. Dr. Renato Dias Baptista pelo acolhimento, reflexões, reuniões e fazer-me contemplá-lo tal qual grande pesquisador da América Latina. Ressalto a Profa. Dra. Luciana Leal pela disposição e conhecimento vasto na metodologia da Análise de Discurso. Aos grupos de pesquisa GEDGS Unesp, sobretudo, a ramificação “RedeCT”, na qual partilha saberes enriquecedores. Estendo os agradecimentos a todos os funcionários da instituição FCE Unesp Tupã. 'O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.' Portaria nº 206, de 4 de setembro de 2018 Dispõe sobre obrigatoriedade de citação da CAPES Art. 1º Os trabalhos produzidos ou publicados, em qualquer mídia, que decorram de atividades financiadas, integral ou parcialmente, pela CAPES, deverão, obrigatoriamente, fazer referência ao apoio recebido. Para fins de conclusão, agradeço aos meus familiares e amigos que incentivaram ao máximo este projeto. “Aquela campanha lembra um reflexo para o passado. E foi, na significação integral da palavra um crime. Denunciemo-lo” (Euclides da Cunha). BERTI, Luís Guilherme Costa. A comunicação da luta pela Pachamama entre os povos originários e os colonizadores da América: Análise das obras “Os Índios e a civilização” (1970) Darcy Ribeiro e “Enterrem meu coração na curva do rio” (1970) Dee Brown. 2023. 113 folhas. Dissertação (Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento) – Faculdade de Ciências e Engenharia, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Tupã, 2023. RESUMO O presente estudo tem por escopo deslindar acerca do processo colonizatório nos sítios da América – compreende-se a América do Norte e do Sul. Dito isto, há de ser empregado o método de análise de discurso literário (ADL) de Maingueneau, no que tange a comparação de documentos literários, vide: “Os índios e a civilização” e “Enterrem meu coração na curva de um rio”, sendo de autoria de Darcy Ribeiro e Dee Brown, respectivamente. Ambos os documentos abordam o processo de marginalização dos povos ameríndios, sendo a resistência o fio condutor das obras. Salienta-se, portanto, o objeto do estudo: revisitar a sociabilidade da colonização americana e as lutas pela Pachamama. A partir disso, emerge a provocação norteadora: como são comunicados os violentos processos de tomada de terras ameríndias pelos colonizadores sob o prisma das obras supraditas? Não obstante, a decoloniedade culminar-se-á enquanto variável singular nas obras. PALAVRAS-CHAVE: 1. Cosmovisão 2. Epistemicídio 3. Direitos dos Povos Originários 4. Dee Brown 5. Darcy Ribeiro. BERTI, Luís Guilherme Costa. The communication of the struggle for Pachamama between the native peoples and the colonizers of America: Analysis of the works “The Indians and civilization” (1970) Darcy Ribeiro and “Bury my heart in the bend of the river” (1970) Dee Brown. 2023. 113 leaves. Dissertation (Master's Degree in the Graduate Program in Agribusiness and Development) – Faculty of Science and Engineering, São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, Tupã, 2023. ABSTRACT The present study aims to unravel the colonization process in the sites of America - including North and South America. That said, Maingueneau's method of literary discourse analysis (ADL) should be used, with regard to the comparison of literary documents, see: The Indians and Civilization and Bury My Heart at Wounded Knee, being authored by Darcy Ribeiro and Dee Brown, respectively. Both documents address the process of marginalization of the Amerindian peoples, with resistance being the common thread of the works. Therefore, the object of the study is highlighted: revisiting the sociability of American colonization and the struggles for Pachamama. From this, the guiding provocation emerges: how are the violent processes of taking over Amerindian lands by the colonizers communicated under the prism of the aforementioned works? Nevertheless, decoloniality will culminate as a singular variable in the works. KEYWORDS: 1. Cosmovision 2. Epistemicide 3. Rights of Indigenous Peoples 4. Dee Brown 5. Darcy Ribeiro. ..... LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Memorial Nacional do Monte Rushmore ..................................................58 Figura 2 – Nuvem Vermelha ...................................................................................... 87 Figura 3 – Gerônimo.................................................................................................. 87 Figura 4 - Touro Sentado ........................................................................................... 88 Figura 5 – Indígena Vanuíre ...................................................................................... 90 Figura 6 – Ailton Krenak ........................................................................................... 91 Figura 7 – Raoni ....................................................................................................... 92 Figura 8 - Remoção Indígena .................................................................................. 107 SIGLAS ADL – Análise do Discurso Literário CF – Constituição Federal IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística SPI – Serviços de Proteção aos Índios PCB – Partido Comunista Brasileiro – SP OIT – Organização Internacional do Trabalho LISTA DE TABELAS Tabela 1 .................................................................................................................... 24 Tabela 2 .............................................................................................................................. 49 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 15 2. FRICÇÃO INTERÉTNICA: QUANDO COLIDEM DUAS VISÕES DE MUNDO .... 20 2.1. IDENTIDADE E PERTENÇA: RELAÇÃO ACERCA DA EXISTÊNCIA E TERRITÓRIO ............................................................................................................ 32 2.2. EPISTEMICÍDIO: O SILÊNCIO DOS NATIVOS .......................................... 37 3. METODOLOGIA .................................................................................................... 45 3.1. CORPUS DA PESQUISA................................................................................... 45 4. ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DE UM RIO ................................ 56 4.1. ÍNDIOS E A CIVILIZAÇÃO ................................................................................ 60 5. FIO CONDUTOR: RESISTÊNCIA ORIGINÁRIA .................................................. 61 5.1. COMUNICAÇÃO DOS POVOS ORIGINÁRIOS................................................. 66 5.2. CONTEXTUALIZAÇÃO ACERCA DAS PROBLEMÁTICAS JUNTO DOS POVOS ORIGINÁRIOS ............................................................................................. 71 5.3. EVOLUÇÃO DAS LEIS BRASILEIRAS SOBRE OS POVOS ORIGINÁRIOS .. 76 5.4. LEIS INDÍGENAS ESTADUNIDENSES: REPRESENTATIVIDADE.................. 78 6. PENSAMENTO DECOLONIAL ENQUANTO FRUTO DA ANÁLISE ................... 79 7. O AVESSO DA DIÁSPORA INDÍGENA: LIBERTAÇÃO ATRAVÉS DO ATO DE EXISTIR .................................................................................................................... 86 7.1. SAGA MERCANTILISTA ................................................................................... 93 7.2. COEXISTIR: A EXTERIORIDADE PARA A CONFLUÊNCIA ........................... 94 7.3. RESILIÊNCIA E REEXISTÊNCIA ...................................................................... 95 7.4. DO PANORAMA JURÍDICO AO CATIVAR INDÍGENA .................................... 97 7.5. SIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO ......................................................................... 103 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 108 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 114 15 1. INTRODUÇÃO A cunhagem Pachamama se faz oriunda da cultura andina na qual compreende a Terra enquanto divindade provedora e fértil, tendo em vista o esmero para com seus proventos – aqueles que nela habitam -, quando representada pelos Incas, a título de exemplo, fora cultuada com o escopo de celebrar a fecundidade. O arquétipo de grande mátria se tornara sacro, visto que mama alude a condição materna e Pacha o elemento do tempo e espaço enleados. Ademais, a etimologia da palavra cultura advém de cultivo, indicando, portanto, o tênue processo dos nativos no exercício de cultivar e cativar a terra, haja vista o lugar tornar-se sagrado. Insta ressaltar que o vínculo indígena com a terra perpassa pelas mais distintas etnias, embora, a presente dissertação debruça-se nos territórios do oeste americano, no qual figuravam os povos Apaches, Sioux, Navajos e afins. Também há de ser averiguado os grupos étnicos brasileiros, nos quais, faz-se oportuno ressaltar, os Tapuias, Kaingang, Krenak, Guarani, Xavantes e congêneres. Através das documentações fabuladas por Darcy Ribeiro e Dee Brown a significação de ambiente necessitar-se-á de novas e plurais reflexões. A dissertação advoga em prol da efetivação dos direitos fundamentais tipificados na Constituição Federal brasileira de 1988. Nesse sentido, destacam-se a existência de países plurinacionais (são reconhecidas diferentes nações presentes no mesmo território, tendo, inclusive, seus direitos assegurados constitucionalmente), vide: Bolívia e Equador. Frisa-se o caso equatoriano em que a própria natureza ou meio-ambiente é tutelada juridicamente. Para além disso, faz-se pertinente citar a Constituição da Bolívia, na qual é calcada sob o princípio da Harmonia (Natureza/Ambiente), enquanto dispositivo jurídico realizado a partir da cosmovisão ameríndia. Insta frisar, portanto, que as ideias de comunidade, como também de afetividade constam como variáveis indispensáveis para a construção do princípio de Harmonia com a Natureza. Marcel Mauss, antropólogo francês, tece a obra “As teses corporais” (Mauss, 1974), na qual versa que o corpo se refere a uma extensão e expressão singular de cada comunidade. O autor endossa a concepção de Harmonia com a Natureza em que o ser humano e o ambiente fundir-se-ão. Elucida-se a recente noção de corpo, embora desde tempos imemoriais – ou tempo profundo conforme há de ser mencionado -, a figura corpórea fez-se 16 indispensável para a relação do ser humano com o mundo sensível/imaterial, como também para manutenção da ordem e sociabilidade inerente a cada comunidade. Ressalta-se a relevância dos cronistas, dentre os quais, Hans Staden (1974) e Martius (1981), em que discorrera que os povos indígenas utilizavam o corpo como forma de aproximação com a divindade, em síntese, o corpo humano origina-se e nutre-se da terra, haja vista a existência do vínculo da humanidade com o cosmo (terra, mundo). A exemplo, lança-se luz as ritualísticas ou procedimentos intrínsecos a cada comunidade a qual expunham expressões sociais, destacando-se: realizações de sacrifícios que têm por finalidade o alinhamento entre os povoamentos e a territorialidade, sendo analisadas pelos cronistas da época como situações cruéis, bárbaras ou selvagens. Para além disso, os rituais complexos detêm o escopo da manutenção e ordem na comunidade, além da cosmovisão que singulariza o espaço trajando-o de particularismo histórico. Ao endossar do explanado, menciona-se Leonardo Boff: Somos seres humanos nascidos do húmus, somos a própria terra, os seres humanos são uma única realidade complexa, não vivemos sobre a terra, somos a própria terra, aquela que chegou a sentir, a pensar, a amar, e hoje está alarmada. (Boff, 2002, p.100). No que tange a concepção simbólica da Pachamama destaca-se a mitologia andina na qual versa sobre a relação entre tempo e terra. Faz-se necessário citar que com o transcorrer do tempo a expressão sofrera modificações, haja vista os aborígines da língua Kolla-suyu que antes do contato com os espanhóis colonizadores alcunhavam a divindade por PachaAchachi; após a inserção da figura de Nossa Senhora, oriunda do catolicismo presente na colonização, a expressão Achachi fora substituída por Mama. Ressalta que para a configuração do mito que concebe a divindade da Pachamama se mostra indispensável a presença do tempo enquanto elemento que vincular-se-á a terra ad aeternum. De acordo com o mito o tempo se desvela o responsável pela variabilidade e relevância das estações e por extensão pela fecundidade da terra, como também o tempo há de absorver e gestar a vida dos seres para com o universo. Salienta-se que o presente estudo perpassa pelos documentos de Dee Brown e Darcy Ribeiro, no qual intenta em equilibrar o sistema natural e garantir o direito humano ou fundamental à vida. Adverte-se, portanto, que salvaguardar os 17 territórios cultivados e tutelados pelos povoamentos indígenas configuram-se em ativações de direitos a existência. Intenta-se para a contribuição a elucidação no que tange a comunicação do processo de tomada de terras ameríndias pelos colonizadores, nos mais distintos sítios da América. Para esse fim, salienta-se a comparação das obras: “Enterrem meu coração na curva de um rio” e “Índios e a Civilização”, cuja autoria remonta a Dee Brown1 e Darcy Ribeiro, respectivamente. Frisa-se que a narrativa, a qual discorre sobre o oeste estadunidense, mostra-se imbuída de valores singulares e particularismos históricos dos povos nativos para com a transformação que sobrevinha. Porquanto, a obra traja-se da memória subterrânea, isto é, aquela que fora ocultada pelo cursar das eras e que emerge para contrapor as narrativas oficiais. A proposta inaugural de um debate coaduna com a premissa de escovar a história a contrapelo a fim de desvelar-se as sujidades (Benjamim, 1994, p. 225). Dessa forma, quando se faz o exercício de escovar a história revela-se a necessidade de rememorar o passado e perscrutar os escombros que foram olvidados outrora. Além do mais, no tocante aos indígenas brasileiros, dos quais, não detinham como hábito produzir registros (manuscritos ou outra forma de comunicação) acerca de sua cosmovisão, culminara-se, portanto, no apagamento histórico-social daquelas populações. Ressalta-se, aliás, que a memória se faz oriunda do relato dos sujeitos que tece sobre o passado, narrando acerca da comunidade e da coexistência com os familiares – aludindo ao vínculo afetivo comunitário (Moreira; Gomes, 2019, p. 371). Nessa toada, é sabido que a literatura se caracteriza como extensão da realidade. Posto isto, diversos autores afirmam que são os livros fotografias dos aspectos objetivos e subjetivos em diferentes tempos e espaços, os textos literários 1 Dorris Alexander Brown, amplamente reconhecido como Dee Brown nascera em Louisiania (29 de fevereiro de 1908 – 12 de dezembro de 2002) fora romancista e entusiasta da história norte-americana. O autor detém como magnum opus a obra Enterrem meu coração na curva de um rio, na qual versa sob o panorama dos povos originários no que tange ao sanguinolento processo de tomadas de terra, a colonização do Velho Oeste. Nesse sentido, por intermédio de acervos e documentações históricas, das quais tinha contato por ocupar-se como bibliotecário, rememora e apresenta a grande massa grupos étnicos, dentre os quais, convém citar: Sioux, Navajos, Apaches, entre outros. Exercera funções de bibliotecário (Biblioteca da Universidade de IIIionois onde graduou-se como mestre e tornou-se docente) também empregou atividades de repórter. Enquanto bibliotecário desempenhou papel relevante no Departamento Americano de Agricultura de 1934 e 1942, ademais, atuara no Departamento de Guerra, além de figurar no exército durante a Segunda Guerra Mundial. Ressalta-se o emprego da atividade de literato, sobretudo, momento no qual retorna ao Arkansas, dedicando-se a literatura, mormente, a fabulação de livros infantis. 18 podem contribuir para a compreensão da sociedade humana e de fatores a ela relacionados pelo autor Tavares: um movimento às vezes vertiginoso, Freud se apropria de uma palavra de uso relativamente comum em alemão (pelo menos em seu uso adjetivo- adverbial), empresta-lhe um estatuto conceitual, transporta-a por variadas searas linguísticas e filosóficas, examina a experi0ência literária que melhor a engendra, escrutina a vivência real que ela recorta, para, ao final, devolver a palavra à língua, mas desta vez com o selo perene da psicanálise. (2019, p.7). Assentado isto, emerge o problema norteador da presente dissertação: como são comunicados os violentos processos de tomada de território sob a luz das obras: “Enterrem meu coração na curva de um rio” e “Os Índios e a Civilização”? Nessa direção, o estudo analisa os seguintes objetivos periféricos: Posto isto, verifica-se o Objetivo do estudo:  Revisitar a sociabilidade no período da colonização americana e as lutas pela Pachamama. Nesta toada, os Objetivos Periféricos:  Compreender a fricção interétnica no período da colonização;  Perscrutar os documentos de Brown e Ribeiro sobre o processo colonizatório de povos originários;  Circunscrever a resistência territorial ante a luz dos direitos no que tange aos povos originários;  Apresentar líderes originários norte-americano e brasileiros. Perscruta-se, no entanto, o objeto da análise, haja vista a justificativa da pauta se dá na produção de conteúdo científico, bem como a contribuição no fortalecimento do Estado Democrático de Direito no qual detém como basilar a dignidade humana, assim como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos e a decoloneidade na epistemologia e no exercício da vida. Por conseguinte, a presente dissertação detém como fulcro temática de suma relevância que perdura como problema em voga na contemporaneidade, isto é, as raízes do colonialismo estão fincadas na sociedade hodierna de forma estrutural. Para além disso, destaco situações, das quais, provocaram profundas comoções sociais, sendo, indispensável o exercício intelectual, vide: o impasse contemporâneo no que alude a demarcação de terras indígenas, assim como o recente processo de invisibilidade dos povos Yanomamis, além da asfixia dos direitos referentes aos 19 respectivos povos; a difícil acessibilidade dos povos originários para com a saúde no cursar da pandemia do COVID-19, dentre outros. Por intermédio dos clássicos literários que abarcam o assunto, os documentos comungam da mesma indagação: o colonialismo findou-se ou transmutara-se, mantendo-se, portanto, velado nos dias que cursam? A análise almeja a lucubração da questão social indigenista, bem como potencializar a concepção de decoloneidade. Ademais, a dissertação há de ser ordenada da seguinte forma:  Explanação acerca da comunicação existente dos povos originários – sobretudo a comunicação para com o território/espaço -, prezando pela reinvindicação dos direitos dos povos originários, bem como pela representatividade ante a sociedade homogênea;  Abordagem dos problemas dos quais sobrepujam os povos originários, tanto na contextualização clássica e histórica, quanto ao reflexo contemporâneo e estrutural do colonialismo;  A pedra angular filosófica da decoloniedade – pensamento promulgado com profusão na América Latina -, muito embora reflita a todos os países dos quais perpassaram pela colonização; Vale ressaltar, que se mostra basilar a Análise do Discurso Literário, sendo, necessário realizar o exercício de transitar entre a historicidade e a narrativa, fundindo-a, além de possibilitar a transformação social. Sua proposta, como já disse, recusa a indagação “de como ir do texto ao contexto, ou de como ir do contexto ao texto”, na medida em que concebe o texto literário como uma forma de gestão do contexto, ou ainda, como um espaço em que se pode perceber o modo como o escritor gere a constituição e a legitimação de seu posicionamento no campo literário – no interdiscurso, portanto. (Mussulim, 2011, p. 1465). Preliminarmente sob a averiguação profunda da Análise de Discurso Literário, o presente estudo há de se lançar luz a temáticas pertinentes, tais quais enfatiza-se a relação com a território, revestida da acepção não utilitarista e, perpassando pelo respeito e pela manutenção dos saberes, memórias e conhecimentos ancestrais, conjunto de costumes e hábitos alcunhado por éthos. Trata-se de uma análise complexa, posto isto, faz-se perceptível a relevância do estudo. Em outras palavras o estudo há de transitar entre o contexto para o texto. Paralelamente, flanar entre a materialidade para a literatura. 20 2. FRICÇÃO INTERÉTNICA: QUANDO COLIDEM DUAS VISÕES DE MUNDO Transcorre nuances espaciais advindas entre o contato dos ameríndios junto da terra. O saber científico inquire sobre a chegada dos povos originários na América, como também na influência inferida por tais povos na transformação do espaço. Amiúde, compreende ser oportuno desconstruir o paradigma de Pré-História da América e História da América, uma vez que tais concepções tornam estanque o processo temporal de construção das comunidades pré-coloniais. Insta lançar luz na concepção de história profunda – Deep History -, concebida pelo arqueólogo Gamble (2013), na qual alude para a sistematização do desenvolvimento dos povos ameríndios junto do solo americano. O conceito é cunhado a partir da ideia do tempo profundo – Deep Time -, presente em disciplinas, tais quais, a Geologia. Dito isto, salienta-se que o tempo profundo se refere a uma busca em detectar o principiar da dispersão da hominização na América. Desse modo, a história profunda aponta para a presença humana tecida a partir de comunidade em tempos remotos, problematizando, portanto, a noção simplista em gerar um marcador social na história a partir do fenômeno da colonização. Ailton Krenak (1992), endossa, que a América, se trata, apenas, de uma memória recente. Harari (2020), célebre historiador, destaca em sua obra “Sapiens: Uma breve história da humanidade” uma variável que figura na seara do conceito de história profunda. O autor destaca a modificação no ambiente pelos homens que edificaram a Revolução Agrícola. Ressalta-se que: Pessoas que visitam a (...) Floresta Amazônica acreditam que estão penetrando em áreas virgens, praticamente intocadas por mãos humanas. Porém isso é uma ilusão. Os coletores estiveram lá antes de nós e provocaram mudanças notáveis mesmo em florestas mais cerradas e nos desertos mais desolados. (Harari, 2020, p. 74). Posto isto, sublinha-se que o povoamento oriundo da hominização modificara, inclusive, a ecologia, sendo, portando, cunhado cosmovisões para a existência e usufruto do homem junto ao território. Grosso modo, o tempo profundo rompe com o paradigma eurocêntrico de Pré-História Colonial e História Colonial. 21 Segundo a literatura especializada, datar de maneira assertiva a chegada dos ameríndios na América, sobretudo, nos Estados Unidos e no Brasil, haja vista ser o escopo do estudo, mostra-se uma tarefa árdua e tortuosa, visto que a arqueologia depende da preservação do sítio, principalmente, a preservação da matéria orgânica, sendo, diferente nos mais diversos lugares. Constata-se dois elementos básicos indispensáveis para a validação de novas descobertas arqueológicas: presença de artefatos indubitavelmente humanos; e o controle da cronologia do fato novo. Além da variável geográfica, constata-se a necessidade de fomento das pesquisas, incentivo que se alterna em consonância com a localidade. No entanto, faz-se preciso lançar luz no sítio ou ocupação Clóvis2. A localidade figura no Novo México, oeste americano, - região a qual perpassa a narrativa de Dee Brown -, com a datação estimada entre onze mil e onze mil e quinhentos anos atrás. Neste sentido, os documentos de Dee Brown e Ribeiro, aqui analisados, direcionam a necessidade da revisão dos conceitos históricos – pré-colonial e pós- colonial -, para um devido assentamento da história indígena, isto é, a temporalidade profunda, haja vista atinar o fato de que as “(...) famílias grandes que já viviam aqui” (Oliveira, 2012; Franchetto; Heckenberger, 2001; Fausto; Heckenberger, 2007; Fausto, 2000; Machado, 2017; Neves, E., 1997, 2015; Silva; Noelli, 2016; Silva, 2014). Nota-se, portanto, necessário realizar uma linha cronológica para elucidar o fio condutor do estudo, a resistência. Há de discorrer acerca do tempo profundo – época na qual figuravam as comunidades dos povos ameríndios -, bem como a fricção interétnica advinda do período colonial. Contudo, percebe-se a escassez de materiais que indiquem o principiar do povoamento humano no território americano. Trata-se de um conteúdo inconclusivo, uma vez que depende de variáveis culturais diversas e a metodologia de estudo depende das condições territoriais. Muito embora, a percepção de tempo profundo remonta a ancestralidade dos povos originários, conforme admoesta o indígena Ailton Krenak (1992, p. 201): Nos lugares onde cada povo tinha sua marca cultural, seus domínios, nesses lugares, na tradição da maioria das nossas tribos, de cada um de nossos povos, é que está fundado um registro, uma memória da criação do mundo. 2 A Teoria Clovis refere-se a vinda em uma única vaga, por intermédio da Beríngia se encontrando submersa sob o estreito de Behring. 22 Nessa antiguidade desses lugares a nossa narrativa brota, e recupera os feitos de nossos heróis fundadores. Conforme forme versa Krenak desvela-se responsável por gestar uma memória da criação do mundo. Desse modo, a relação junto da terra que gera, acolhe e sustenta faz com que os indígenas cunhem e se relacionem com o conceito de Pachamama. O desenvolvimento cultural, presentes nos documentos avaliados, se apresentam como evidencia indubitável do tempo profundo. Nesse teor, Zafaronni (juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos), fundamenta em seu livro La Pachamama y el humano (2011), a ótica dos direitos do animal humano (humanidade), animal não-humano (mamíferos, anfíbios, aves e afins) para com a natureza, sendo, portanto, pioneiro em analisar sob o prisma da uniformidade a humanidade, os animais e o ambiente. A coexistência, segundo Boff (1999), trata-se de temáticas suprimidas em âmbito acadêmico. O jurista da corte interamericana, sublinha as Constituições do Equador e da Bolívia, tendo em vista o caráter intercultural e descentralizado. Posto isto, perpassa em dezesseis capítulos a relação do ser humano para com os outros animais e o ambiente. A episteme jurídica é apresentada sob o paradigma da pluriversalidade e plurinacionalidade ao discorrer em consonância com o sentido de Pachamama. Entretanto, destaca-se que ao menos nos países supraditos a Pachamama é titular de Direitos Fundamentais. Faz-se digno de nota a crítica de Zafaronni a Descartes, responsabilizando o filósofo acerca do despropósito argumentativo no que tange a simetrização entre os animais não humanos a máquinas por não constituírem alma. Para além disso, diversos povos foram subalternizados, uma vez que a condição de humanos lhes eram questionadas. Além do mais, no que alude a preservação da mátria Pachamama rememora-se que na história do judiciário brasileiro consta o Código Civil de 1916, no qual institui normativas para com os animais não-humanos, haja vista serem colocados em posições de subordinação para com os seres humanos (Abreu, 2015). No que toca a Constituição Federal de 1988, destaca-se o artigo 225, em que tipifica a responsabilização do Poder Público proteger a Fauna e a Flora, esmerando, portanto, a conservação ecológica. 23 Salienta-se, portanto, que tais rompimentos de paradigmas são calcados no conceito da Pachamama, uma vez que a concepção andina há de promover a proteção e a salvaguarda ecológica para todos que nela convivam. Destarte, o autor Arne Dekke Eide Næss, advoga, ainda, a instauração de novos ramos no universo jurídico, dentre os quais, destacam-se: o Direito Ambiental, isto é, aquele que tutela penalmente temáticas acerca do meio ambiente, como também, a ecologia ambientalista e a profunda, sendo que a primeira trata-se em considerar o ser humano enquanto titular dos direitos e responsável em esmerar pelo ambiente; e a profunda – a qual rompe paradigmas e endereça a humanidade a outro estágio consciencial -, reconhece a natureza como titular de seus direitos, de forma autônoma, independente da vontade humana. A ecologia profunda alinha-se com o pensamento de Ailton Krenak, haja vista, o líder originário arguir que a natureza se trata de uma cosmovisão, isto é, a forma com que os povos indígenas fabulam o mundo, conforme supracitado. Posto isto, compreende-se a interação dos povoamentos originários junto ao ambiente. A compreensão de natureza alude a conjuntura de elementos que se revestem de caráter natural (Castro, 2007). O cultivo com o natural se revela parte do éthos indígena, tendo em vista o admoestado por Weber (1994) no qual instrui que as sociabilidades são constituídas por intermédio de várias ações sociais movidas por um mesmo escopo, ou seja, o mesmo conjunto de significados e sentidos. Desta feita, os povos originários atuam de maneira mútua com o território - ausente do viés mercantilista -, remonta a uma relação de matéria e espírito (Diocese, 2000). Salienta- se, portanto, que a variável essencial do tempo profundo se mostra o arcabouço dos saberes tradicionais advindos de tempos imemoriais. Conforme exposto o estudo enveredou-se no Tempo Profundo da América, além do mais, o elo entre os povos originários para com a natureza e, por fim, a fricção interétnica na qual fora responsável pela modificação do ambiente natural que advêm de processos de exploração da civilização eurocêntrica. Dito isto, segue o gráfico ilustrativo no qual demonstra a transformação do tempo profundo rumando para fricção interétnica. 24 Tabela 1 – Etapas de Inteiração Fonte: Elaborado pelo autor O fenômeno da reciprocidade dos povos originários para com a natureza fez com que as comunidades desenvolvessem os saberes tradicionais, sendo, inclusive, vigente até os dias que correm. Com o advento da fricção interétnica (colonização) os conhecimentos eurocêntricos impuseram-se aos povos que já figuravam o território americano (Eudave, 2016). Conforme há de ser admoestado nos próximos capítulos o fenômeno colonizatório culminara em um silenciamento dos nativos. Os autores Castro-Gómez e Grosfoguel advogam: a superioridad asignada al conocimiento europeo en muchas áreas de la vida fue un aspecto importante de la colonialidad del poder en el sistema-mundo. Los conocimientos subalternos fueron excluidos, omitidos, silenciados e ignorados. (2007, p.20). Desse modo, compreende-se o silenciamento existencial dos povos nativos, como também, partira dos eurocêntricos ações sociais movidas com escopo diverso, sobretudo mercantilista, em consonância com o versado por Weber, citado outrora. Afirma-se, deveras, que por intermédio do processo colonial inaugurado do século XV, os Estados europeus enviesaram uma maneira supremacista de conhecimento. No contexto da aurora da colonização em face do continente americano, insta trazer à baila: a exploración y colonización de otras regiones por países de Europa que se inició en el siglo XV condujo rápidamente a la apropiación, por los principales imperios europeos, de las tierras y recursos naturales de los pueblos indígenas. (...) Los pueblos indígenas fueron sucesivamente despojados de sus tierras, su ciencia, sus ideas, su arte y su cultura. (Comisión de Derechos Humanos, 1993, par.18). Assimilar (processo social em que grupos adquirem características culturais externas) os nativos no contexto civilizatório, em suma, era a argumentação proposta para findar os embates acerca da resistência indígena para com seus os Deep Time Contato Fricção Interétnica 25 invasores. Muito embora, se evidencia com clareza a dissemelhança acerca do estruturalismo social entre as duas formas de existência. O choque de culturas é esmiuçado por diversos sociólogos, todavia, lança-se luz, a priori, em Ferdinand Tönnies (1887), autor que elencara características distintas nos conceitos de comunidade e sociedade, além de explanar acerca do atrito interétnico, culminado pela realização do procedimento civilizatório de maneira abrupta, sendo, desse modo, inviável a manutenção do ambiente natural dos povos originários. Nessa toada, sob o desígnio de manter os conhecimentos e comportamentos tradicionais, desvela-se uma característica dos povos originários – a preservação ambiental -, singularidade mantida até os dias que correm -, trajando-se da alcunha de guardiãs da floresta, visto que dentro de sua extensão territorial há a preservação de 80% da biodiversidade, apesar de serem comunidade minoritária, tendo em vista que cinco por cento da população mundial é indígena, em consonância com dados emitidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Tal informe expõe o principal elemento que distingue os grupos étnicos para a presente análise: o manejo dos nativos para com o território. A teoria da sociabilidade de Tönnies (1887), versa sobre a assimetria de formas de vida entre os dois grupos. Para os povos originários a manifestação existencial se dá através da afetividade, ao passo que os colonizadores mantêm suas relações por intermédio do contratualismo. Porquanto, a ideia de assimilação cultural se dá no fato de diluir em conta gotas as diversas etnias a fim de que todas estivessem sob a égide do contratualismo. Para além disso, enfatiza-se que as coletividades originárias tecem o elo afetivo, inclusive, para com o próprio território. Dito isto, faz-se pertinente trazer à baila o autor Darcy Ribeiro3 a fim de iluminar a confluência de fundamentações entre a literatura posta em análise e a 3 Darcy Ribeiro exercera função de antropólogo, educador, sociólogo, escritor e político brasileiro. Convém sublinhar que no cursar de 1940 desempenhara função de etnólogo no Serviço de Proteção ao índio (SPI). Em 1952 coordenara a seção de pesquisas da (SPI). Na Universidade de São Paulo graduou-se em Ciências Social, além de especializar-se em antropologia. Ademais, fora responsável por inaugurar o Museu do Índio, bem como, realizara para a UNESCO uma análise sistemática dos impactos e processos de assimilação dos indígenas no século XX. Para além disso, lecionara Etimologia Brasileira e Língua Tupi na Faculdade Nacional de Filosofia, e Antropologia na Escola Nacional de Getúlio Vargas. Empregara pesquisas empíricas junto aos povos originários de Maranhão, Mato Grosso e Goiás. Coordenara projetos de erradicação ao analfabetismo. Por conseguinte, fora cofundador da Universidade Federal de Brasília, alçando oposto de reitor entre os anos de 1961 e 1962. Ressalta-se que o antropólogo brasileiro fora laureado com os títulos de Doutor Honoris Causa da Sorbonne, como também da Universidade de Compenhague, a Universidade Do Uruguai, além da Universidade de Brasília. Figurara a Academia Brasileira de Letras ostentando a cadeira de nº 8, bem como, se faz patrono da cadeira nº 28 do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros. Para 26 corrente decolonial, visto advogarem o pensamento de que são as comunidades germinadoras de seus saberes, gozando de singular autonomia. Nesse aspecto, destaca-se que são os povos originários feitores de sua própria história; não sujeitos dependentes da vontade dos invasores. O antropólogo brasileiro propõe relatar o encontro entre os povos, principalmente, sob a mediação do SPI, o qual tinha como propósito a pacificação entre os dois grupos. Ademais, Ribeiro discorrera como a relação afetou efetivamente no avanço e na formação brasileira, além de explicitar os graus de contato. Nesse sentido, o antropólogo fundamenta acerca das denominadas etapas de inteiração, sendo, portanto, os indígenas integrados na sociedade brasileira, tendo em vista a concepção de integração ou aculturação. Fundamenta-se que as fricções interétnicas remontam a colisão acerca dos povos originários para com os agrupamentos de expansão. Convém ressaltar que tal conceito mostra-se calcado na luta de classes – pauta que há de ser abordada nos próximos capítulos -, além da fricção interétnica ocorrer por intermédio da assimilação ou integração social. Para fins de elucidação, os indígenas necessitariam de obras mercantilizadas, enquanto a sociedade homogênea tratar-se-á do uso da mão de obra indígena. O escopo da fricção interétnica se dá na edificação de um padrão para com o contato entre a expansão da civilização homogênea para com os povos originários, com intuito de ocasionar previsibilidade nas relações entre povos nativos e a expansão mercantilista. Faz-se oportuno trazer à baila o dado conteúdo: Chamamos “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflituais, assumindo esse contato muitas vezes proporções “totais”, i.e., envolvendo toda a conduta tribal e não-tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto, essa “situação” pode apresentar as mais variadas configurações (...) Desse modo, de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão aspectos específicos. (Oliveira. 1962, p. 86). Para além disso, de acordo com o admoestado pelas obras supracitadas os povos originários imergem num sistema social que os tornam sobrantes. Não raro, os direitos dos povos indígenas são asfixiados pelo modo de produção e de existência fins de conclusão, destaca-se as obras do autor: “A formação do Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”, tal qual, discorre acerca da temática indígena com a obra “Os Índios e a Civilização”. 27 que se desvela discrepante para com o cotidiano desses povos. Sobre isso, destaca- se: Contudo, pode-se dizer, preliminarmente, que o destino das sociedades indígenas, enquanto sociedades, é o de sua descaracterização progressiva, na medida em que vão sendo integradas às economias regionais. (Oliveira, 1962, p. 87). Nota-se, sobremaneira, quando Ribeiro discorre sobre assimilação: a marginalidade cultural, ou seja, os conflitos mentais decorrentes da interiorização de valores não somente diferentes, mas opostos uns aos outros: os valores e as normas tribais e os da sociedade nacional. (Ribeiro, 2017, p. 347). Faz-se nítido a problemática no que tange a aferição e a unificação de duas formas de fabular existências tão distintas. Nesse sentido, os povos originários perpassam por uma situação de submissão – não omissão -, perante as determinações pela sociedade mais poderosa, a nacional. Insta destacar que o autor Cardoso de Oliveira (1960), sugere o conceito de cultura de contato, na qual abarca características harmônicas para a instauração da coexistência entre múltiplas etnias. Menciona-se Barth: é no interior de uma determinada cultura de contato que poderemos nos propor a buscar soluções para problemas de caráter geral, como o grau de sistematização e consistência entre diferentes valores (Barth, 1966). Ao fragmentar “Os Índios e a civilização” Darcy Ribeiro aborda os processos de violências, conflitos, como também a cosmovisão empregada pelos indígenas brasileiros. A cosmovisão trata-se da maneira subjetiva de ver o mundo; tendo relação inata com o existencialismo, em consonância com o tipificado no dicionário Oxford. Se mostra digno de ênfase que a civilização remonta a concepção de Estado – admoestando a ideia de Rousseau acerca do pacto social, bem como o contratualismo -, ideia cara para a edificação de um Estado Democrático de Direito. Aproveitando o ensejo, faz-se oportuno perscrutar ainda mais o sociólogo Ferdinand Tönnies, no qual aponta para divergência acerca da formação de grupos sociais, tendo em vista que a relação civilizatória se desvela calcada no contratualismo, característica na qual transmutam os vínculos concretos a um derretimento dos sólidos traço permanente da modernidade (Bauman, 2001, p. 12), à medida que a ancestralidade propõe a solidez dos laços sociais e culturais. A fricção interétnica decorre do contato dos povos originários com o avançar avassalador da sociedade eurocêntrica. Nesse ínterim, é sabido que o 28 processo de fricção fora comunicado, sobretudo nas narrações de Brown e Ribeiro, mediante o conflito com as frentes de expansão (pastoril, silvícolas e agrícolas) fenômeno principal para a dissipação dos nativos. Tal problemática se mostra complexa, uma vez que duas populações são postas defronte uma da outra com culturas e potências de agir inteiramente antagônicas. Esse fenômeno se dá por simetria – mas, não ontologia -, com a manifestação social da luta de classes presente na noção marxista. No que tange a literatura comparada, o estudo, extrai um fragmento textual, no qual comunica a ideia de fricção interétnica ou atrito social. Trata-se do capítulo intitulado A guerra de Nuvem Vermelha em seu principiar Dee Brown transmite a ideia da fricção. Segue o fragmento textual: “Quando povos entram em choque, é melhor para ambos os lados se reunirem sem armas e conversar sobre isso, e encontrar algum modo pacífico de resolver”. Tal frase fora proferida por Cauda Pintada, membro do povo Sioux brulés. (Conviviam nas reservas indígenas juntos com siox oglala, brulés e cheyennes). O próprio indígena compreende a circunstância bélica dos povos, mas que estavam unificados no mesmo território, os entornos das Black Hills. O nativo propõe o diálogo enquanto forma de resolução, não obstante o próprio título capitular aponta para o desfecho brutal do episódio. Nesse norte, Dee Brown relata o crescimento do fluxo de emigração rumo ao Oeste, além disso e, de modo agravante, a sociedade americana intentava propor a assinatura das lideranças indígenas a fim de pôr em prática a construção de passagens de trilhas, ferrovias; sobretudo, a inserção de estradas no território dos povos nativos. A partir disso o autor delineia a concepção de fricção interétnica empiricamente. Com postura distinta de outras lideranças indígenas, Nuvem Vermelha4 resistira quanto a anuência de um tratado em que o seu povo não poderia compreender. Vale sublinhar a estranheza e o mal-estar que o progresso civilizatório americano causara aos indígenas. A principiar pelo trem que os nativos alcunharam como Cavalo de Ferro, terminologia que indicava a potência e voracidade, por sua vez, dispersando a caça, alimentação típica dos indígenas. Ademais, a inserção de emigrantes no Oeste americano fizera com que a violência preponderasse, visto que os nativos eram estereotipados como bárbaros, selvagens e involuídos ante a civilização americana. Em face da resistência de Nuvem Vermelha nota-se as tentativas de convencimento para que os indígenas assentissem e, em contrapartida, 4 Foi um líder e guerreiro indígena. Ficara afamado ao atuar na alcunhada Guerra de Nuvem Vermelha. 29 recebessem mantimentos alimentícios, pólvoras e outros artefatos e utensílios valorosos a sobrevivência indígena. Além do mais, a obra destaca líderes que combateram com intrepidez a invasão e o avanço civilizatório ao defender bravamente seu povo. No discorrer da análise sondar-se-á a atuação veemente dos chefes nativos, vide: Nuvem Vermelha líder dos siox oglala, Touro Sentado, Cavalo Doido e afins. Ao passo em que há de ser comparado as obras supraditas mostra-se nítido, a fissura proporcionada pela inserção abrupta oriunda do avançar civilizatório – compreendendo o crescimento populacional, a exploração por recursos naturais, a utilização de aparatos tecnológicos -, culminando na impossibilidade da coexistência. Consequentemente, a obra de Dee Brown intenta “em armar uma narrativa da conquista do Oeste Americano segundo suas vítimas, usando suas palavras sempre que possível” (Dee Brown, 1980, p.14). Nesse norte, Darcy Ribeiro também se ocupa em comunicar o processo de extermínio dos povos originários, bem como, a dizimação paulatina de sua formação comunitária. Desta feita, a forma de comunicação destas disputas revela também o conflito existente entre as narrativas oficiais e as narrativas periféricas. Salienta-se que Brown recorre a profusos documentos dos quais comunica a ocupação dos migrantes e emigrantes na fronteira oeste dos Estados Unidos. A localidade era considerada selvagem, ou seja, wilderness, e em virtude da instalação de linhas férreas, deu-se a suposta cruzada em busca do ouro nos arredores da região montanhosa, culminando no infortúnio existencial dos nativos. Os búfalos – base alimentar e nutricional dos povos originários -, foram extintos e o espaço abruptamente usurpado para a fruição dos novos moradores. Ulteriormente, após a comprovação de ouro nas Black Hills pelo general Custer5 ocorrera uma invasão massiva dos mineiros brancos, reduzindo a liberdade dos povos originários a ínfimas reservas. Os tratados que propunham a pacificação eram constantemente violados em consonância com a vontade dos estadunidenses. As obras analisadas apontam que a colonização implica na propositura de um comportamento supremacista e dominante. Os processos colonizatórios geraram profundas mazelas, tais quais, a ocultação da expressão cultural, histórica, além da imposição dos costumes eurocêntricos. Não obstante, a literatura explicita que a missão colonizatória detinha 5 George Armstrong Custer fora um oficial do exército norte americano que atuara, tanto na Guerra Civil, quanto na Guerra Indígena. 30 caráter moral e divino, ao passo que a dizimação era legitimada por um suposto progresso de humanização. Nessa toada, o sustentáculo arguitivo da colonização remontava a ideia de salvar os nativos de seu estado de barbárie (Bauman, 2013, p. 14). No que se refere a invasão, o pedagogo Freire, sentenciara que toda dominação implica numa invasão, não apenas física, visível, mas às vezes camuflada, em que o invasor se apresenta como se fosse o amigo que ajuda. No fundo, a invasão é uma forma de dominar econômica e culturalmente ao invadido (Freire, 2005, p. 173-174). Por conseguinte, em face das análises bibliográficas faz-se notório que o fenômeno de colonização se dá na invasão física, territorial e um exercício de ostracismo cultural e existencial do colonizado. Desse modo, no que tange ao processo colonizador fora realizado o exercício da desumanização dos indivíduos, despindo-lhes de valores e direitos, negando-lhes a condição de sujeito. Portanto, evidencia-se o procedimento de invisibilidade social – epistemicídio -, e por conseguinte a ausência da representatividade indígena ante a invasão da sociedade imperante. Ainda, no que diz respeito a fundamentação basilar para a colonização compreende-se que o respaldo se calca em princípios calvinistas, nos quais advertia a escolha de Deus para com seus eleitos, portanto, o exercício de subalternização para com os povos originários alude a superioridade branca, isto é, o poder americano estava equiparado ao ímpeto da Divina Providência. Sublinha-se, ainda, que os estadunidenses compreendiam que ocupar os espaços dos povos bárbaros a fim de civilizá-los, configuraria no destino manifesto dos americanos. Faz-se pertinente abrir- se um parêntese para a efetiva compreensão do que fora exposto. O destino manifesto fora talhado por Jhon Louis O ’Sullivan6 fomentando a crença da expansão das Treze Colônias, rumando ao oeste, ainda, acreditava-se que o povo americano fora escolhido para civilizar o continente. Nota-se um fragmento textual de Pececilo (2005, p. 57-58), onde discorre acerca da temática: A expansão territorial era racionalizada e explicada não por interesses materiais, mas pelo dever que os norte-americanos tinham de espalhar e afirmar seu espírito e visão, sintetizados no par democracia/república. Aí, a combinação de cruzada e interesse, também característica de toda a política externa norte-americana, encontrou sua primeira expressão. 6 Jhon L. Sullivan fora um colunista e editor no qual cunhou a terminologia “destino manifesto”. Detinha como escopo a anexação do Texas, bem como, do Oregon Country. 31 Entrementes, o estado social belicoso instaurado para o extermínio indígena era considerada ação altruísta dos americanos em face dos povos considerados selvagens. Porquanto, tanto Brown, quanto Ribeiro comungam de um movimento em prol do pensamento decolonial – fenômeno que se instaura quando há a possibilidade efetiva da atuação de agrupamentos ou sujeitos dos quais detiveram a sua existência olvidadas outrora -, destarte, faz-se sabido que a modificação do locus, do qual se encontra o sujeito modificar-se-á a produção de saber, isto é, a produção epistemológica ou narrativa está intrinsicamente vinculada ao espaço e ao sujeito que transmite o discurso: O lugar epistêmico étnico-racial/sexual/de gênero e o sujeito enunciador encontram-se, sempre, desvinculados. Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistêmico étnico-racial/sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem gerar um mito sobre um conhecimento universal verdadeiro que encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar epistêmico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia. (Grosfoguel, 2010, p. 459). Desta feita, Darcy Ribeiro tipificara uma classificação para com os povos ameríndios, sendo, portanto, necessário destacar que apesar de distintos e plurais há a delineação quanto as características básicas, bem como, as problemáticas de desenvolvimento. O antropólogo denomina como Configurações Histórico-Culturais. Ante o exposto, faz-se possível pontuar as simetrias quanto as formações comunitárias, assim como, para com o processo de extirpação do modo de vida. O autor debruçou-se na análise das tipologias extra europeias, sendo mui relevante para compreender a formação sociocultural da América Latina. Ante ao exposto, extrai-se da obra de Ribeiro a tentativa de atenuar a fricção interétnica com a implementação do SPI. Assim como existiam as comissões de pacificação nos Estados Unidos, no Brasil sob a tutela de Rondon e seus princípios positivistas o SPI exercera um serviço científico no que tange a descoberta de novas regiões, como também na assimilação cultural dos indígenas, isto é, trazê-los cada vez mais próximos da sociedade brasileira. O dístico da guarnição de Rondon era “morrer se preciso for, matar nunca”. A concepção de identidade e produção cultural em que o homem se funde junto ao território há de ser averiguada no capítulo subsequente, como também a 32 elucidação do valor que advém do pertencimento, tendo em vista que na identidade contém uma característica de valoração. 2.1. IDENTIDADE E PERTENÇA: RELAÇÃO ACERCA DA EXISTÊNCIA E TERRITÓRIO Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. (Krenak, A. Ideias para adiar o fim do mundo) No que diz respeito a identidade indígena faz-se necessário retomar a concepção de cosmovisão, isto é, o pertencimento gerado a partir das relações para com o respectivo território. Sobre o pertencimento se mostra necessário mencionar que os mais distintos grupos étnicos concebem um singular modo de vida, sendo assim, remetem-se a particularidades de povos extra europeus, sendo, o sustentáculo das obras analisadas. Assentado isto, faz-se preciso elucidar o particularismo histórico sob a lente do antropólogo Franz Boas, especialmente na obra “Primitive Arte” (1927), no qual sustenta que se faz possível compreender determinado povo ao perscrutar assiduamente e sistematicamente o comportamento diário talhado por impulsos psíquicos, sendo, necessário, elencar os costumes alimentares, comportamento diário, ritualística que compõe a identidade e singularidade de cada povo. Sopesando a premissa de que cada povo se imbui de uma caracteriza por calcar-se em dada pedra angular – o particular território -, afirma-se, no entanto, a autonomia pertencente a identidade específica e pertencimento dos povos para com o locus. A afirmação coaduna com a compreensão da autodeterminação de cada povo. Ademais, Boas, disseca a variável cultural como fenômeno que pode surgir de sistemas simples a éthos indubitavelmente complexos, apontando para a riqueza do sistema de cada etnia. Para longe desse povo a variável cultural perde a essência ou significação. Desta feita, a educação ou episteme mostra-se vinculada a germinação da identidade. O antropólogo Boas rompera o paradigma ao fundamentar que o aspecto da cultura não se desvela estanque ou padronizada para todos os povos – como pensavam os antropólogos de outrora -, todavia, compreender 33 sistematicamente a cultura e como mostra-se intrinsicamente vinculada a determinado povo. Ao refletir acerca da identidade mostrar-se-á indispensável rememorar que a colonização americana detém características de racionalização e heteronormatividade das relações sociais, desenvolvidas por intermédio de despotismo e maneiras de oprimir os colonizados. Para além disso, versa-se em consonância com (Silva et al., 2022, p. 2): o sofrimento psíquico é de ordem política, ao se considerar que o êxito da colonização se deu não somente por colonizar territórios geográficos, mas pela conquista de territórios-existências, a penetração de subjetividades negras, que introjetaram (...) modos de ser, estar, sentir e perceber o mundo. Compreende-se como território o resultado da confluência acerca do gênero humano com o espaço. Valendo-se disso, frisa-se que os saberes - incluindo os conhecimentos tradicionais -, são dilatados e dissipados se mostrando imprescindíveis para a construção de um sistema que possa identificar a totalidade desses processos, concebendo, portanto, a concepção de território. Outrossim, conceber a semântica das terminologias como território ou espaço se faz incumbência complexa, tendo em vista não se tratar de um significado estanque, fixo ou acabado. As variáveis que perpassam o manejo do homem com a terra corroboram para que a definição se alterne ante os mais plurais grupos sociais, bem como relata Dee Brow, no que tange ao capítulo alcunhado A guerra para salvar os búfalos, o autor transcreve a fala de Satana, chefe dos kyowas, no qual remonta a dissimetria de valor que cada grupo coletivo concebia ao mesmo território: Esses soldados cortam minha madeira, matam meu búfalo e, quando vejo isso, meu coração parece partir; fico triste... Será que o homem branco se tornou uma criança que mata sem se importar e não come o que matou? Quando os homens vermelhos matam a caça, é para que possam viver e não morrer de fome. (Brown, 1980, p. 211). Ademais, o meio de viver supramencionado por Brown denota a interação que os povos originários desenvolveram junto de seu território, exercício que possibilita a fabulação da singular forma de existência, culminando na pertença. À fins de compreender o espaço evoco o ilustre pensador Milton Santos, o qual instrui sobre a totalidade espacial e estrutural: 34 O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida (...) o espaço deve ser considerado como um conjunto de funções e formas que se apresentam por processos do passado e do presente (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções. (Santos, 1978, p. 122). Ressalta, ainda, que o espaço, assim como instrui Milton Santos, refere-se ao lugar de produções identitárias e, portanto, de pertença. Desse modo, o espaço se ostenta por ser o responsável em gerar uma conjuntura de significados e representações. Para além disso, Santos discorre acerca do fator social imperante também no conceito de espaço. Insta salientar, Moraes (2005), no qual discorre que “a valorização simbólica do espaço é um momento de sua valorização material, sendo a apropriação e a produção do espaço, processos guiados por interesses e valores materiais e simbólicos, cuja dialética cabe desvendar” (Moraes, 2005: 23). A premissa de que o espaço deva ser trajado como um sistema de totalidade se faz válida. Portanto, o espaço é o local resultante de diversas condições sociais. Dessa forma, faz-se oportuno destacar que o espaço é dividido por duas categorias: social e geográfica. O último alude ao espaço organizado pelo homem que vive e reproduz em sociedade, enquanto o espaço social remonta ao lugar no qual tece a vida e a morada. O autor ainda discorre sobre a diferenciação de território para com espaço. Em consonância com Santos (1978) é a “utilização do território pelo povo cria o espaço”, mostrando que o espaço antecede o território. Entrementes, o território refere-se a um dado específico, uma área. Não obstante, o território não há de ser apenas limites fronteiriços, portanto, o território poderá ser limitado, construído ou destruído sob relações e manifestações de poder. Conceitos que se fazem presentes nos livros, quando empregada a análise de discurso. No tocante a transmutação do espaço para território, a qual a obra norte- americana alvidra faz-se possível notar que para os estadunidenses (invasores) se trata de uma região geográfica, sendo, a qual que compõe montanhas, cânions, desertos e manadas de búfalos, além da perseguição para com o vil metal. Entrementes, para os nativos (povos originários) o Oeste reveste-se de edificações arquetípicas e simbólicas, das quais compõe articulações culturais, narrativas, 35 germinadas a partir da aplicabilidade de ações dos nativos. Nessa toada, tal conceito coaduna com o célebre pensador Milton Santos em sua fração textual supracitada. Vale lançar luz ao elemento identitário. A cosmovisão presente nos espaços sociais tecidos pelos indígenas carrega uma variável fundamental, a ancestralidade. Percebe-se a ancestralidade como o dinamismo cultural. A ancestralidade que se faz oriunda da cosmovisão, visto que o tempo tece o espaço, enquanto na territorialidade (espaço) se desvela na verticalidade do tempo. Com o entrelaçar acerca do tempo e espaço faz-se gênese da ancestralidade. No que toca a ancestralidade brasileira, admoesta o célebre Nei Lopes (2021, p. 9): “(...) a negação da importância cultural (...) na formação brasileira apesar de esse segmento, (...) ter sido o que mais influiu na formação da civilização brasileira e de outras nas Américas”. O autor discorrera acerca dos africanos da nação Bantu, todavia, o trecho adequa-se aos povos originários. A liberdade se dá como um exercício; exercício de realizar escolhas. Em um fragmento textual Brown denunciara como era tolhido essa atitude (Brown, 1980, p. 83) quando transcreve o pronunciar de Chaleira Preta, líder Cheiene do Sul: "Nossos antepassados, moravam todos nesse território; não sabiam fazer mal a ninguém; depois morreram e foram não sei para onde. Todos nós perdemos o caminho”. Nesse embate interétnico faz-se pertinente destacar que o conceito de identidade contém duas instâncias: a social e a pessoal. A decodificação da terminologia identidade, se desvela interdisciplinar, muito embora, o estudo recorrerá nas disciplinas de sociologia e antropologia. A identidade pessoal e social ostenta um caráter reflexivo, como também comunicativo, tendo em vista que pensa as relações sociais como um código de categorias basilares, dentre as quais guiam e desenvolvem determinadas relações. Logo, admoesta-se que a identidade interétnica se dá “quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam” (Oliveira, 1976, p. 5-6). Desse modo, ora Brown, ora Ribeiro versavam sobre uma singularidade que engendrava na identidade étnica formada, sendo, portanto, um contato interétnico, culminando na fricção interétnica. Importante trazer à baila o estudo realizado por Claude Lévi-Strauss, alcunhado modelo consciente. Refere-se a existência de uma consciência etnocêntrica operante e vigente, a qual desvela-se pautada por valores, dos quais desembocariam em uma ideologia. Logo, a identidade é o resultado da ideologia – corpo de valores e costumes. Partindo dos estudos Frederik Lehmam (apud Oliveira, 36 1976, p. 106-107), nota-se que a partir do momento em que os indivíduos se autointitulam membros de uma dada comunidade, isto é, uma categoria étnica “elas estão tomando posições em sistemas de relações intergrupais culturalmente definidos (...). Estes sistemas de relações intergrupais (...) compreendem categorias complementares complexamente interdependentes”. Suplementando o pensamento supradito de Milton Santos (1978) em que afirmara que “a utilização do território pelo povo cria o espaço”, há de pesar a angularização literária de Brown e Ribeiro, na qual acrescenta-se a variável cultural, em outras palavras, o manejo do território resulta no particularismo inerente de cada povo, desse modo, a cultura há de ser o invólucro que caracteriza toda e qualquer etnia. Ao comparar a literatura há nitidamente três pilares que sustentam a resiliência indígena ante a fricção interétnica: resistência cultural, resistência política (autonomia e auto governança), reconhecimento particular, enquanto membro de uma comunidade indígena. Parafraseando a distinta afirmação cartesiana, faz-se possível discorrer sou, logo existo. Frente a abrupta invasão civilizatória os povos originários reivindicavam – assim como nos dias que correm -, o direito de ser. O líder indígena, Ailton Krenak, sugere o emprego do termo lugar ao invés de território, tendo em vista a condição de pertença dos povos originários para com o meio-ambiente. Não obstante, diversos grupos indígenas, sobretudo, os que figuram nos altiplanos andinos comungam da mesma cosmovisão, no qual o homem não se dissocia do espaço, sendo utilizado a termologia Pacha (mundo, cosmo, universo) e Mama (mãe, criadora) em que todos os seres coexistem do mesmo lugar. Insta destacar que para os povos originários os territórios aludem ao microcosmo, ou seja, a expressão manifesta do mundo, o lugar habitado trata-se de um tecido social preenchido pela cultura. O silogismo utilizado equivale a Terra ao corpo, projetando sobretudo o corpo feminino “uma mãe capaz de parir, prover e sustentar a vida das diversas comunidades” (Quintero, 2019:15). Concebe-se a ideia por intermédio de diversas comunidades de uma Terra enquanto ser vivo que gesta e sustenta, culminando, portando numa amálgama indissolúvel de ser-humano e natureza. Para a maior parte dos povos originários a Terra se desvela como o signo de uma mãe ancestral. Transcende-se o conceito moderno-colonial de território Pátria (inclusive por tratar-se do prisma território 37 nacional-estatal) para uma fundamentação decolonizadora de lugar Mátria. Para tanto, Gutiérrez (2016), debruça-se ao elucidar sobre o tecido social e depara-se com a seguinte problemática: qual o modo de conceber a Pátria ante à necessidade do reconhecimento de uma Mátria? ¿Acaso tenemos que resignificar el concepto de Patria por el de Matría? (…) Matría en contraposición a Patria como lo sugirió Gonzáles y Gonzáles (1983;15), consiste en sustituir el “racional mundo del Padre” por el del mundo del terruño, el mundo pequeño y sentimental de la madre. Así la referencia a sociedades Otras apunta a la recuperación y construcción del comportamiento colectivo del cuidado de la vida. (Gutierrez, 2016:29). A cosmovisão na qual remonta a Pachamama trata-se do co-pertencimento, isto é, lugar em que tudo há de confluir, tendo em vista a plena integração, em síntese, diz respeito ao espaço em que tudo há de viver. Para fins de compreensão o presente estudo disserta, majoritariamente, acerca de três formas de território (abordados nos livros de Dee Brown e Darcy Ribeiro), vide: a abordagem em voga nas escolas anglo-saxônicas, como também nas correntes francesas em que o território se mostra conceito geográfico para o estabelecimento de relações de poder, além de perscrutar a dimensão simbólica dos territórios para os povos originários, trajando-lhes de característica identitárias. Ademais, a abordagem que talha a ideia de corpo-território, mui utilizadas pelos povos originários que lucubra o território como Mãe Terra, isto é, àquela que germina, sustenta e esmera. Por fim, trago à tona a concepção do antropólogo Arturo Escobar, o qual propõe o território como espaço de vida. 2.2. EPISTEMICÍDIO: O SILÊNCIO DOS NATIVOS Minha luta é pela divulgação da cultura indígena. Resistência pela educação e, literatura infantil. Daniel Mudurunku As estratégias dos invasores a fim de efetivar o processo de tomada de terras e realizar a assimilação dos povos originários com fins de transmutar a comunidade nativa em civilização revestida de variáveis eurocêntricas perpassa pela efetiva compreensão e análise da cultura originária. Aliás, a fricção interétnica, supramencionada, há de ser compreendida, em síntese, como colisão de distintas 38 manifestações culturais. No que tange ao continente sul-americano, requer-se a menção dos campos epistemológicos que lançam luz sob as perspectivas acerca das civilizações pré-colombianas ou dos povos originários, - antropologia, sociologia, história -, e em todas as searas faz-se evidente o processo paulatino do silenciamento populacional. Alguns autores empregam a terminologia de colonialidade epistemológica, concepção que alude a uma etnia, enquanto, aspecto estrutural para edificar a lógica de mundo moderno/dominante. Deste modo, sendo a etnia pedra angular para germinar o mundo contemporâneo, o racismo, enquanto forma de segregação de saberes opera como fator essencial na hierarquização do conhecimento (Reis, 2022, p. 2). Nesse sentido, a filósofa Linda Alcoff, debruça-se na análise de raças, epistemologias e, existencialismo, denunciando, deveras, a tendência do prevalecimento de saberes em detrimento a outros: é realístico acreditar que uma simples “epistemologia mestre” possa julgar todo tipo de conhecimento originado de diversas localizações culturais e sociais? As reinvidicações de conhecimento universal sobre o saber precisam no mínimo de uma profunda sobre sua localização cultural e social. (Alcoff, 2016, p. 131). Em uma sociedade em que se hierarquiza saberes e valores qual há de ser a régua que mede a relevância epistemológica? Além do mais, esse pendor epistemológico não há de silenciar os considerados inferiores? Finalmente: esse fenômeno não excluirá a ponto de extinguir o éthos doutro? Tais reflexões direciona o estudo para a temática do epistemicídio. Desta feita, o sociólogo português intui acerca de um sistema de apagamento do outro, sobretudo, se o for, diverso: o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista (...) tanto no espaço periférico, extra-europeu e extra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais). (Santos, 1995, p. 328). Nesse bojo, as diferenças étnicas hão de se transformar em desigualdades que articulam as singularidades dos povos, calcado no prisma eurocêntrico, na qual 39 os povos não brancos eram submetidos à sujeição dos grupos que atuavam como supremacistas, além de sumeter-se a violência imposta nas missões civilizatórias. Faz-se relevante mencionar que uma das características da segregação dos povos há de ser na hierarquização dos saberes, a imposição da monocultura, isto é, tudo que figura “fora das suas fronteiras está o não-ser, o nada, o bárbaro, o sem- sentido” (Dussel, 1986, p. 11). Os indivíduos que são excluídos e marginalizados aos limites do sem-sentido têm os direitos violados, sendo desumanizados e subalternizados. Desse modo, em confluência com Boaventura de Sousa Santos, alcunha o epistemicídio como um processo sistemático de anulação epistêmica de grupos subalternizados, sendo silenciados, uma vez que rejeitam a capacidade intelectual, além de negar e silenciar os seus conhecimentos tradicionais. Nesse sentido, em face da problemática do epistemicídio como compreensão do silenciamento dos povos nativos, emerge enquanto contrapartida os conceitos de ecologia dos saberes e multiculturalismos, tratados também por Sousa Santos. No que tange a ecologia dos saberes, ressalta-se a concepção de identidade e diferença enquanto formas de representação. Os teóricos dos Estudos Culturais, tais quais Tadeu Tomaz da Silva e Stuart Hall (2000, p.73-102), reestruturam o conceito de representação considerando as variáveis de identidade e diferença. Faz- se compreensível afirmar que a representação se dá como um instrumento de significação. Assentado nisto, compreende-se que a identidade é determinada a partir daqueles que detêm o poder, da maneira de questionar a identidade e a representação equipara-se a indagar os meios de gestação que lhes hão de sustentar. Posto isto, a autoidentificação e produção de consciência perpassa, indubitavelmente pelos meandros de fabulação de identidade. Portanto, devemos pensar na cultura como aplicabilidade da prática demarcatória, sendo, responsável pela produção de saberes e formação de identidade ou consciência social. Desta feita, rememora-se o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, no domínio epistemológico ofertado, sobretudo, a ciência moderna a qual mostrou-se terreno fértil para a revolução tecnológica que avassala com os povos de pensamento não científico ocidental, tal qual, os indígenas das Américas e os africanos escravizados, fazendo o sociólogo português fundamentar que o epistemicídio é a outra face do genocídio. Se não se revela como a outra face, ao menos, apresenta-se como instrumentalização para a concretização da violência. Segundo Sousa Santos a injustiça cognitiva de não reconhecer outras 40 formas de conhecimento se mostra agravada quando a partir dessa invisibilidade é calcado outra forma de propor existência. Segue o trecho em que o pensamento é talhado: No lixo cultural produzido pelo cânone da modernidade ocidental para descobrir as tradições e alternativas que dele foram expulsas; escavar no colonialismo e no neocolonialismo para descobrir nos escombros das relações dominantes entre a cultura ocidental e outras culturas outras possíveis relações mais recíprocas e igualitárias. (Santos, 2001, p. 18). A partir dessa conjuntura social é tecida a Ecologia dos saberes na obra “A gramática do tempo” (2006). Nesta obra o autor se debruça na análise de seis países - dentre os quais figuram o Brasil -, com a característica comum do embate entre a globalização neoliberal em face da globalização contra hegemônica. O autor fundamenta que o epistemicídio é edificado sob cinco paradigmas: a monocultura do saber; a monocultura do tempo linear; a lógica da classificação social; a lógica da escala dominante e a lógica produtivista. Tais lógicas contribuem para a materialização da condição de ausentes para determinados agrupamentos sociais, sobretudo, por tais lógicas se calcarem na supressão de saberes. Em face disso o autor propõe cinco ecologias que há de atuar em contraposição com as lógicas supraditas. A começar pela ecologia dos saberes. Alude-se da pluralidade dos saberes remontando, portanto, nas pluralidades de conhecimentos e a necessidade da harmonia constituindo, portanto, em ações. A ecologia de saberes é um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer. Assentam em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que clama sê-lo são as menos neutras; 2) a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. (Santos, 2006, p.154). Além do mais, a ecologia remonta os exercícios produzidos pelos seres humanos, sejam entre si, sejam entre as mais distintas formas de vida, implicando em mais de uma forma de saber. Para além disso, o autor ressalta outras lógicas emancipatórias, tais quais, destacam-se: a ecologia das temporalidades; a ecologia dos trans-escalas; lógica das produtividades. Compreende-se as ecologias como um sistema progressivo de criação e renovação, pelo qual culmina, no reconhecimento e autoconhecimento. Posto isto, as cinco ecologias tratam-se de meios de “agregação 41 da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas” (Santos, 2006, p. 105). Dessa maneira, as ecologias relacionam-se com a concepção identitária, sobretudo, no que diz respeito a emancipação dos saberes e reafirmação existencial. Entretanto, faz-se oportuno destacar que os saberes dialogam transversalmente com a cultura que o grupo social pertence. Em consonância com Silva (Silva, 2022, p. 357), as construções epistemológicas pós-coloniais implicam na desconstrução de conhecimentos a partir da pós-modernidade. Faz-se notório o alinhamento entre o diálogo de Santos com o fenômeno de comunicação nas literaturas supracitadas. Quando Brown discorre acerca da feitura das malhas férreas – fragmento oriundo da Revolução Industrial e modernização científica ocidental -, os indígenas norte-americanos reivindicavam os seus costumes ancestrais, exigindo o retorno dos antigos costumes, dentre os quais, o autor enuncia: “poucos desses índios consideravam o território do Rio Powder como seu lar” (Brown, 1980, p. 130), além do mais, alguns líderes como Nuvem Vermelha destacara “essas estradas afugentaram toda a nossa caça” (Brown, 1980, p. 130). Esses fragmentos textuais implicam na teoria de Santos, pela qual os saberes e hábitos dos nativos são subalternizados por uma epistemologia mestre. Não obstante, no que alude a aplicabilidade da decolonialidade se revela indispensável trazer à tona a concepção de matriz pluriversal a fim de romper o conceito de saber uno, isto é, universal. Compreende-se que as violações de direitos humanos explanados por Ribeiro e Brown foram concebidas, uma vez que conduta dos povos originários eram considerada selvagens, ou bárbaras. Tal alcunha denuncia a crença de que os povos originários tratavam-se de seres involuídos ou não civilizados, sobretudo, um óbice para o progresso. A gênese do pensamento pluriversal se dá com o reconhecimento de saberes não universalistas, posto isto, destaca-se que os conhecimentos pluriversais se mantém de maneira cruzada e, não de forma hierarquizada. Nessa toada, compreende-se o processo evolutivo de transformação de arenas democráticas para com os conhecimentos universais, vide, universidades que atuam dessa maneira. Faz-se necessário mencionar obras, tais quais, “O Manifesto pós-colonial”, com fulcro nos pensamentos de Costa (Silva, 2022, p. 357), além do mais, trago à baila, o grupo de pesquisa “RedeCT”, no qual exerce labor louvável no que tange a pesquisas científicas interdisciplinares junto a comunidades originárias e tradicionais. Dessa forma, se faz relevante o processo de decolonização do saber, mormente, nas 42 instituições que concebem as mais variadas formas epistemológicas, bem como na universidade. Em consonância com (Silva, 2022, p. 358), os saberes pluriversais tendem a reflexionar para a seara pós-colonialista “o universalismo etnocêntrico, o eurocentrismo teórico, o nacionalismo metodológico, o positivismo epistemológico e o neoliberalismo científico contidos no mainstream das ciências sociais”. Além do mais, pontua-se que o processo de decoloniedade não se restringe a desconstrução de sua lógica ou de sua formação epistemológica, porém alude ao reconhecimento de uma pluralidade de saberes, rompendo, portanto, o pensamento abissal ou fronteiriço predominante. Faz-se oportuno, novamente, invocar Boaventura de Sousa Santos com a reflexão do pensamento com a obra Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, na qual deslinda e aponta a urgência da validação da diversidade de saberes para a devida construção de conhecimento. Com fins didáticos Santos instrui que as epistemologias do sul tratam-se de um conhecimento instaurado para lá do Norte global, responsável pelos saberes tradicionais. Dessa maneira, é uma forma de dilatar a compreensão política e imagética das mais distintas maneiras de existência. De acordo com Santos, as epistemologias do sul referem-se a um local epistêmico; não territorial, tendo em vista a dizimação de marcadores sociais que estigmatizam os indivíduos, sobretudo, como seres visíveis e invisíveis. Essa segregação comportamental também é diagnosticada em “Índios e a Civilização”. O antropólogo destaca diversas vezes a noção de assimilação para com os povos nativos. Nota-se que o fenômeno social de assimilação, trata-se da diluição do éthos indígena para a efetiva inserção na sociedade. Desse modo, compreende-se haver um vácuo existente entre os fabuladores da epistemologia do Norte Global para com os que figuram em outras searas existenciais. Para além disso, a construção dessas dissemelhanças se dá por intermédio do não reconhecimento do outro, isto é, evocando as palavras do sociólogo português, Santos (2010, p.32), “as distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social e dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha”. Nesse sentido, Darcy Ribeiro (2017, p. 332) tece um valioso conceito ao tratar dos fatores que porventura abalavam o corpo étnico dos povos originários, tais 43 quais: a migração que conduzira o povoado para um habitat ou locus estranho daquele em que se dava outrora; a dominação na qual desembocava no desmantelamento de uma totalidade conteudista de mitologias e crenças. Nessa pauta, reporta que a cultura indígena aponta a uma comunhão com o todo, além de que, as narrativas míticas diziam respeito a maneiras de representação e comunicação pela qual guiava o homem na direção do bem viver. Os povos originários da América partilham do pensamento mítico ou cosmológico acerca do território. Desta feita, com a fricção civilizatória imposta, o corpo mítico há de se desmembrar e o pensamento cosmológico se endereçar-se-á ao método sistemático eurocêntrico. Ademais, o antropólogo brasileiro denuncia que a conduta dos invasores detinha o escopo de destribalizar (não se faz pertinente o emprego do anacronismo em virtude da utilização de terminologia defasada) ou propelir os povos originários a margem da sociedade hegemônica instaurada. A fins de ilustração nota-se o caso dos Kaingang paulistas que se depararam com a robustez da civilização dominante. É sabido que foram os indígenas assolados por confusões mentais, visto que esse cenário belicoso “caracteriza a destribalizarão como processo psicológico” (Ribeiro, 2017, p. 347). Para além disso, eram acometidos pela conturbação mental, haja vista a desconstrução cultural edificada para com os povos indígenas, nos quais detinham a interiorização de valores excludentes, sendo, portanto, diferente uns dos outros, isto é, “os valores das normas tribais e os da sociedade nacional” (Ribeiro, 2017, p. 347). Ao debruçar acerca das obras comparadas faz-se pertinente trazer à baila a queixa de Satanta: “Há muito tempo essa terra pertencia a nossos antepassados esses soldados cortam minha madeira; matam meu búfalo” (Brown, 1980, p. 211) Os povos originários em toda a extensão territorial depararam-se com violações, movimentos em que esvaziavam os saberes tradicionais, visando, outorgar a ideologia da exclusão, como bem pontuara o filósofo Dussel. Para além disso, faz-se indispensável destacar que a “humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo vivo que é a terra” (Krenak, p. 11, 2019) Como antídoto a esse sistema predatório o reconhecido líder originário Ailton Krenak discorre: Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir 44 nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, para salvar a nós mesmos. (Krenak, 2019, p. 44). O líder indígena corrobora o pensamento ao discorrer “já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades” (Krenak, 2019, p. 15). Além disso, o autor propõe a possibilidade de partilhar do mesmo espaço. A premissa da coexistência há de apontar ao multiculturalismo. Compreende-se que a pauta acerca da diversidade se estende por todos os rincões do planeta. Nessa toada, faz-se necessário mencionar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, na qual admoesta em seu artigo primeiro que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” (ONU, 1948). Entrementes, o fulcro do estudo se dá na visibilidade, bem como no reconhecimento de todos os seres humanos, tal qual, toda a forma de fruir a existência. Além disso, a dissertação assenta-se também nas ideias do multiculturalismo. Destaca-se que uma das maneiras de fomentarem a identidade dos povos originários se dá no fato de reconhecer os seus hábitos e costumes a fim de “desenvolverem uma firmeza cultural e ratificação em relação à sua própria língua, costumes e territórios” (Baptista; Ustarez, p. 33). Moldam seu próprio mundo social hierárquico e "autoritário" a partir da perspectiva modernizadora ou sob a "democracia étnica", como dizem os intelectuais indígenas, cujo núcleo 34 | Volume 1 tradicional é a comunidade camponesa original e sua expressão territorializada. (Rojas, 2009, p. 71-72 apud Baptista, Ustarez, p. 33-34). Destarte, o multiculturalismo - supracitado -, aponta para a existência de num mesmo Estado haver uma nítida diversidade de comunidades, como também de tradições e biomas extremamente plurais. De acordo com Laraia (1986) em sua obra Cultura um conceito antropológico desvela que a cultura se desenvolveu em consonância com o aparato biológico, deste modo, a cultura alterna em compasso com o bioma e com o particularismo histórico de cada povo. Diante outras definições oriundas da obra de Laraia (1986, p. 31) faz-se menção que Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente 45 transmitidos). Na hermenêutica antropológica a cultura trata-se de sistema de sentidos para com as manifestações e construções de cada comunidade. Nesse norte, o multiculturalismo refere-se à pluralidade de culturas em constante interação, todavia, não há de se subalternar, isto é, as culturas mantêm-se no mesmo patamar. O conceito revela-se como possível solução no processo de assimilação como mencionado nos casos dos indígenas brasileiros, dos quais, tiveram de dissolver seu modos vivendi a fim de integrar a uma sociedade tida como civilizada e homogênea. Tal abordagem figuram nas obras, tanto de Brown, quanto de Darcy Ribeiro. 3. METODOLOGIA 3.1. CORPUS DA PESQUISA A abordagem do estudo se mostra puramente qualitativa, haja vista ser calcada em registros documentais e bibliográficos, mormente, acerca dos escritos de Dee Brown e Ribeiro. Refere-se ao estudo documental, uma vez perscrutar analiticamente obras, das quais, não foram avaliadas outrora. Salienta-se que para a edificação do estudo fora efetuada uma seleção prévia dos materiais a serem submetidos a análise, bem como fora efetuada a Análise do Discurso Literário – o conceito há de ser discriminado neste capítulo -, por fim, a análise detém como pretensão frutificar-se no fio condutor de ambas obras, a decoloneidade. A análise de cunho qualitativo se mostra sustentáculo da pesquisa bibliográfica, tendo em vista ser inerente da mesma. Postula-se a abordagem qualitativa como um eficaz instrumento para a compreensão de vínculos sociais, construídas a partir de diferentes ambientes e versadas em documentos. Dito isto, enfatiza-se que o crivo no qual resultou a seleção de ambos documentos – “Enterrem meu coração na curva de um rio” e “Índios e a Civilização” - , se dera pelo processo de comparação documental, haja vista os diferentes lugares da América afligir pela mesma problemática. 46 Assentado isto, fora delineado a razão pelo qual foram selecionadas as documentações de Dee Brown e Ribeiro, sendo, indispensável, mencionar que o resultado da análise tende a endereçar a corrente filosófica da decoloneidade. No que toca aos documentos, compreende, tratar de todo e qualquer tipo de material escrito, tais quais, relatórios, memorandos, obras literárias, científicas, jornais, revistas e afins. Para fins de compreensão, admoesta-se que os documentos se tratam de caráter primário quando produzidos pelos indivíduos que participam da ocorrência. Nesse sentido, os dados secundários tratam-se de materiais produzidos por indivíduos que não figuraram no momento da ocorrência. Salienta-se, portanto, que os dados secundários são os analisados na presente dissertação, visto que nem Dee Brown, tampouco Darcy Ribeiro foram atuantes diretamente durante o fenômeno colonizatório. Ressalta-se que a análise se dá pela angularização da obra histórica- literária, no caso de Brown “Enterrem meu Coração na Curva de um rio”, assim como no livro de Darcy Ribeiro, “Os Índios e a Civilização”, o qual discorre de forma antropológica a fricção gerada pelos contatos indígenas junto dos civilizados – sendo enfatizado a interdisciplinaridade do conteúdo. Dessa maneira, pode-se notar a consequência que o contato entre povos distintos há de acarretar. Ambos abordam temáticas similares com profundo impacto social, haja vista a ocupação da ONU em promover e fomentar Cidades e Comunidades Sustentáveis, além do estudo perpassar pela Declaração Universal dos Povos Originários. Compreende-se que a Análise do Discurso Literário de matriz francesa, representada por Maingueneau (2006, p. 8), envolve a variável da historicidade como um dos elementos da linguística, sendo que o discurso escrito floresce da fértil materialidade existencial. Sabe-se que realidade alimenta o discurso, seja literário, jornalístico ou ensaístico. Dessa maneira, foram eleitas ambas as obras para serem submetidas a Análise do Discurso Literário, sejam perscrutadas e avaliadas de maneira analítica, tendo em vista aquilo que versa Nogueira (2001, p. 4): É importante referir desde já que a Análise do Discurso não é apenas método(s). É também uma perspectiva sobre a natureza da linguagem e da sua relação com questões centrais das ciências sociais. Mais 47 especificamente, a Análise do Discurso representa um conjunto relacionado de abordagens ao Discurso, abordagens que acarretam não só práticas de recolha de dados e de análise, mas também um conjunto de assunções metateóricas e teóricas. Em consonância com Maingueneau (2006, p. 136) figuram três instâncias da aplicabilidade dos saberes, a exemplo das instâncias, transcreve-se: pessoa, escritor, e o inscritor, dialogando transversalmente, segue-se: A denominação “a pessoa” refere-se ao indivíduo dotado de um estado civil, de uma vida privada. “O escritor” designa o ator que define uma trajetória na instituição literária. Quanto ao neologismo “inscritor”, ele subsume ao mesmo tempo as formas de subjetividade enunciativa da cena de fala implicada no texto (aquilo que vamos chamar adiante de “cenografia”) e a cena imposta pelo gênero do discurso: romancista, dramaturgo, contista... O “inscritor” é, com efeito, tanto enunciador de um texto específico como, queira ou não, o ministro da instituição literária, que confere sentido aos contratos implicados pelas cenas genéricas e que delas se faz o garante. Convém ressaltar a reflexão acerca da Formação Discursiva, além de ser responsável por projetar e representar as informações sob o viés discursivo ou textual. Além do mais, a Análise do Discurso Literário intenta buscar a essência dos conceitos e ideias que figuram no texto, partindo da premissa de que a produção discursiva (textual ou oral), tratando-se da atuação da ideologia para com o inconsciente – indivíduo. Nessa toada, enfatiza-se que o espaço associado, compreende-se enquanto cenário originador para forjar o discurso. Além disso, a depender do gênero – elencando-se manifestos, entrevistas, documentos, escritos acerca das artes -, pelo qual será instaurado contribui com a dimensão criativa. Dito isto, o autor regula a obra por intermédio do contexto espacial “por meio da qual o criador negocia a inserção de seu texto num certo estado do campo e no circuito de comunicação” (Maingueneau, 2006, p. 143). Desta feita, as obras entram em consonância com as normas do campo/espaço. Enfatiza-se a funcionalidade: colocar em perspectiva um texto, seu perfil com referência ao que poderíamos chamar de a Opus, isto é, a trajetória de conjunto em que cada obra singular assume um lugar. Com efeito, ser escritor é também gerar a memória interna dos próprios textos e atividades passadas e reorientá-las em função de um futuro. Quanto mais se enriquece a Opus, tanto mais importante se torna essa função de regulação. (Maingueneau, 2006, p. 143). Outrossim, o “elo que liga as significações de um texto as suas condições sócio-históricas, não é secundário, mas constitutivo das próprias significações” 48 (Pêcheux, 1971, p.147). Mostra-se oportuno sublinhar que o conceito da Formação Discursiva se faz essencial para a Análise do Discurso Literário, visto que se mostra nítido o procedimento da feitura do discurso, além de pontuar as regularidades ideológicas, àquelas provindas da materialidade para o desenvolvimento efetivo do discurso. Segundo Maingueneau (2006), a Análise do Discurso Literário faz com que se engendrem a partir das “obras aos espaços que as tornam possíveis, onde elas são produzidas, avaliadas, administradas” (p.43). Portanto, destaca-se que a escola da Análise do Discurso Literário traja a sociedade – no que toca o espaço/tempo -, com ideias linguísticas. Em suma, compreende-se que a variável eixo – espaço, do qual alude ao tempo histórico se faz a partir do método analítico dessa disciplina. Nesse sentido, frisa-se que Michael Pêcheux que desenvolvera princípios que simetrizavam a língua/sujeito/história, portanto, mostra-se o discurso como lugar de observação dessa relação com espaço e tempo. Destaca-se que a análise do discurso se reveste do particularismo histórico, tendo, inclusive, o Brasil como forte representante de lugar de representação. Desse modo, insta trazer à baila, Saussurre (1916), no qual admoesta que a língua se mostra como um fato social. Destarte, desvela-se como ressignificação do que é social, das quais, vincula-se o vernáculo com a exterioridade, bem como, a exterioridade com o inconsciente. Conceitua-se a análise do discurso, ao descontruir dicotomias, formata a língua para a linguística, entrementes, a língua não é fechada em si mesmo, se mostra dependente de outras variáveis, tais quais, o tempo e a sociedade. A Análise do Discurso Literário alude uma desterritorialização epistemológica e, nesse movimento o sujeito do saber vincula-se ao campo (histórico-social), seu objetivo e método. Esse método alude a uma valorosa e inovadora epistemologia. Em consequência para M. Pêcheux (1969), sabe-se que não se limita a uma aplicação, todavia, a informatização com uma atuação heurística, isto é, ramo da histórica vinculado a fontes de pesquisas e documentos. A noção de