unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP PATRÍCIA HELENA BAIALUNA A CLEPSIDRA E O LABIRINTO: FIGURAÇÕES DO EXÍLIO EM CAMILO PESSANHA E MÁRIO DE SÁ- CARNEIRO ARARAQUARA – S.P. 2009 PATRÍCIA HELENA BAIALUNA A CLEPSIDRA E O LABIRINTO: FIGURAÇÕES DO EXÍLIO EM CAMILO PESSANHA E MÁRIO DE SÁ- CARNEIRO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Letras na área de Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Soares Junqueira Bolsa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ARARAQUARA – S.P. 2009 PATRÍCIA HELENA BAIALUNA A CLEPSIDRA E O LABIRINTO: FIGURAÇÕES DO EXÍLIO EM CAMILO PESSANHA E MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Letras na área de Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Soares Junqueira Bolsa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Data da qualificação: 13/03/2009 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Renata Soares Junqueira Membro Titular: Maria Lúcia Outeiro Fernandes Membro Titular: Paola Poma Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS A minha orientadora, Profª Drª Renata Soares Junqueira, pela paciência, motivação e dedicação incansável à leitura e correção de meus textos, assim como pela orientação sempre construtiva e entusiasmada. A minha família, pelo apoio e amor incondicionais que sempre me dedicaram, encorajando- me e acreditando em minhas capacidades. Ao CNPq, pelo auxílio financeiro de grande valia. A Deus, por me ter concedido viver em uma época tão abençoada pela busca do conhecimento, em um país livre, e entre pessoas especiais que fazem meu viver feliz. BAIALUNA, P. H. A clepsidra e o labirinto: figurações do exílio em Camilo Pessanha e Mário de Sá-Carneiro. Araraquara, 2008. 104 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. RESUMO O presente estudo se propõe a investigar, dentre as manifestações poéticas de um determinado período da literatura portuguesa, o motivo do exílio. O momento literário a que nos restringimos é o que compreende as escolas simbolista- decadentista e a geração de Orpheu, também conhecida como primeira geração modernista. Como representantes dos dois principais movimentos abrangidos pela transição entre os séculos XIX e XX, escolhemos dois dos poetas de maior projeção para uma leitura um pouco mais cuidadosa dos textos poéticos. Tanto em Camilo Pessanha (representante do Simbolismo) como em Sá-Carneiro (uma das figuras centrais da geração de Orpheu), analisamos de que formas o eu-poético manifesta o sentimento de não pertencer ao mundo, de haver perdido algo, algum momento, ou a si mesmo, enfim: a sensação de estar ele, o Poeta, tal qual exilado em seu próprio viver. PALAVRAS-CHAVE: Poesia, Portugal, exílio, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro. SUMÁRIO Introdução........................................................................................................................8 1. O exílio no fin-de-siècle..............................................................................................10 1.1 A ausência e a dor....................................................................................................10 1.2 Auto-exílio: a Torre de Marfim..............................................................................15 1.3 Passos do Simbolismo em Portugal........................................................................29 1.4 Em Orpheu, transição para a modernidade..........................................................33 2. Camilo Pessanha, o Simbolismo em Portugal.........................................................41 1.1 Fé e morte.................................................................................................................46 1.2 Exilado em si............................................................................................................54 1.3 O exílio na Clepsidra...............................................................................................62 3. Mário de Sá-Carneiro: o sonho e o delírio..............................................................65 1.1 Eu: castelo em ruínas..............................................................................................74 1.2 Elevação e queda......................................................................................................80 1.3 Eu, sujeito-objeto.....................................................................................................84 Conclusão: O Poeta e o alhear-se da própria existência............................................93 Bibliografia.....................................................................................................................99 Abstract.........................................................................................................................104 Eles tristes, das praias do desterro, Os olhos longos e arrasados de água Estendem para aqui... Cravado o ferro Da saudade têm n´alma; e é negra mágoa A que lhes ralha os corações aflitos, É a maior da vida – são proscritos, Dor como outra não há, é a dor que os mata! “Os exilados”, Almeida Garrett 8 Introdução Ao nos debruçarmos sobre a produção de poesia em Portugal, considerando a abrangência do período que compreende desde as manifestações dos movimentos romântico, simbolista e decadentista – os que perpassam o século XIX -, é sem grandes dificuldades que observamos a recorrência do tema do exílio (se é que podemos chamá-lo tema, como discutiremos logo em seguida a fim de esclarecermos o conceito tal como o compreendemos e desejamos utilizar neste trabalho). A investigação a que aqui nos propomos diz respeito justamente a esse fenômeno que amiúde se faz ver na poesia do período de transição entre os séculos XIX e XX. Identificando suas diferentes faces dentro de cada movimento literário e tendo como corpus textos poéticos de diversos autores, pretendemos compreender suas motivações, relacionando-as ao momento histórico, social e principalmente literário em que se encontram. Depois desse breve estudo do exílio, achamos por bem nos ater à sua manifestação na obra de dois dos maiores expoentes da poética moderna portuguesa: em Camilo Pessanha, buscamos uma melhor compreensão do exílio para o Poeta simbolista, uma vez que o autor tão bem incorpora os traços que são consensualmente atribuídos àquela escola; já investigando a poética de Mário de Sá-Carneiro, o intuito primeiro é o de indicar, comparativamente, as ligações do pré-modernismo com as escolas literárias do século anterior ao seu, mostrando, assim, o quanto a Geração de Orpheu, introdutora do modernismo em Portugal, ainda teve de transição entre as heranças oitocentistas e o modernismo das Vanguardas; procuraremos também apontar possíveis paralelos dessa poética com a de Pessanha, para, finalmente, concluir nosso estudo sistematizando as diversas formas que toma o exílio na produção dos dois poetas em menor âmbito, e nas duas escolas sob uma perspectiva ampliada. 9 O título de nosso estudo adianta, de certo modo, algumas das faces do exílio que apontaremos adiante: a Clepsidra, relógio de água que dá nome à principal obra de Pessanha, representa o exílio no tempo, o volver de olhos para um passado de gozo, contrastando com a dor do presente. O labirinto, por outro lado, muito bem representa a busca de si mesmo, constante na obra de Sá-Carneiro. É no caos interior que o poeta de Orpheu busca as razões de seu existir, ou o alívio para o sofrimento que essa existência lhe causa. 10 1. O exílio no fin-de siècle 1.1 A ausência e a dor Se procurarmos fazer um percurso remissivo investigando as aparições do exílio – considerando as diversas formas que pode tomar –, veremos que essa diacronia remonta às próprias origens da literatura. Faz-se mister delimitar, desde este ponto, como abordaremos o motivo do exílio e em que formas o consideraremos. Embora frequentemente se denomine tema aquilo de que trata determinado texto, preferimos nos valer da concepção apresentada por Wolfgang Kayser, segundo a qual devemos considerar o exílio como motivo, em oposição ao assunto. E que seria, então, o motivo de um texto literário? “Por motivo da ação entende-se o impulso para realizar essa ação”1. No entanto, esse é o uso corrente que fazemos da palavra motivo. Pouco adiante, à página 57 do mesmo texto, o autor continua: O motivo é uma situação típica que se repete e, portanto, cheia de significado humano. Neste carácter de situação reside a capacidade dos motivos de apontar um “antes” e um “depois”. A situação surgiu, e a sua tensão exige uma solução. Os motivos são dotados de força motriz, o que justifica afinal a sua designação de “motivos” (derivado de “movere”).(KAYSER, 1976, p.57) Sendo, portanto, “uma situação típica, que se pode repetir indefinidamente”2, o motivo constitui-se de uma dada condição que gera o impulso para determinadas formas de manifestação literária, inclusive dentro do gênero lírico. Deste modo, usaremos o termo por 1 KAYSER, W. Análise e interpretação da obra literária. Trad. de Paulo Quintela. 6ª edição portuguesa totalmente revista pela 16ª alemã. Coimbra: Arménio Amado Editor, Sucessor, 1976. P.56. 2 Ibid, p.57. 11 considerá-lo mais apropriado ao que compreendemos como exílio enquanto postura do eu- poético, já que com freqüência não se trata de tema explícito do poema. É bastante abundante a literatura crítica que trata do exílio: se levarmos em consideração o alijamento do autor como fato biográfico, seremos conduzidos à reflexão acerca do papel do artista na sociedade, sua aceitação e por que tantos têm sido, ao longo da história, condenados ao degredo. No entanto, não faremos grande uso desses copiosos ensaios, pois não pretendemos encetar uma pesquisa das conseqüências do exílio como fato biográfico do artista. O exílio que focaremos será aquele que se encerra na obra poética como postura existencial do eu-poético. Quanto àquele, ou seja, o que relaciona o exílio do poeta, como fato biográfico, à sua produção literária, ofereceremos como exemplo, apenas à guisa de revisão bibliográfica, o estudo de Paulo Franchetti no capítulo que trata de Camilo Pessanha. Se desde a literatura clássica o exílio aparece sistematicamente na poesia, é porque está ligado a motivos líricos por excelência, a saber, a saudade, o sofrimento e o sentimento de incompreensão. Sobre estes se faz desnecessário dissertar: são temas universais da poesia, e desse modo podemos identificar o exílio desde os mitos gregos3, as novelas de cavalaria medievais (uma vez que o cavaleiro é andante, vive apartado de sua terra natal), e perpassando, de algum modo, praticamente todas as escolas literárias. Se a idéia primeira do exílio refere-se ao espaço, no qual o eu-poético, olhando ao seu redor e vendo-se em local estranho, sente a necessidade de “cantar” o seu lugar de origem – geralmente em tom melancólico -, também é das mais produtivas a forma do exílio relacionada ao tempo. Nesta manifestação, a oposição que se estabelece é entre o tempo passado e o tempo presente; o passado representa alegria e paz, enquanto o presente representa a perda daquelas, resultando em dor, saudade, e muitas vezes tédio (esta face do exílio pode ser vista também 3 Para exemplo, ver o capítulo “Migrações e emigrações. As viagens. O exílio” em QUEIROZ, M. J. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. 12 com grande recorrência no Romantismo português, que não analisaremos em detalhe neste estudo). Em sua obra O ar e os sonhos, Gaston Bachelard postula: Ora, a vida espiritual caracteriza-se por sua operação dominante: ela quer crescer, quer elevar-se. (...) Em outros termos, as imagens poéticas são operações do espírito humano na medida em que nos aliviam, em que nos soerguem, em que nos elevam.(BACHELARD, 1990, P.42) Bachelard considera a própria imagem poética como recurso de superação da realidade, e alívio da mesma. Se a imaginação do poeta deve lhe ser uma viagem, veremos como um motivo lírico pode nos mostrar uma outra dimensão daquilo que nos diz o autor, já que o exílio, tal como procuraremos recortá-lo, poder-se-ia sucintamente definir como o sentimento do poeta de estar afastado de algo, situação que implica alguma forma de desagrado. Neste capítulo estudaremos, ainda que um tanto en passant, os respectivos usos do tema do exílio no período que nos interessa, isto é, a passagem do século XIX para o XX. Dentro de cada movimento do período, procuraremos extrair as formas poéticas utilizadas, bem como diferenciar as faces que o exílio toma, tendo por base textos poéticos de diversos autores do período. Apoiando-nos neste corpus, pretendemos comparar, e desse modo melhor definir, as escolhas de cada movimento literário. Se uma das maiores fontes da poesia é a dor, entende-se por que o motivo ( e muitas vezes mesmo tema) é tão recorrente na literatura, e especialmente na poesia oitocentista. Partindo de uma abordagem que relacione a produção artística de um período com os demais aspectos da sociedade em que ela se insere, compreenderemos algumas das características da arte do século XIX tendo em vista a sociedade européia da época, em franca modernização. A substituição do trabalhador pelas máquinas era crescente; também o era a importância do lucro gerado pelas novas indústrias, tomando o capitalismo cada vez maior corpo. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente nos meios de transporte, a nova 13 sociedade ganhava uma dinâmica bastante diferente de épocas anteriores. Nessas novas condições, não podia deixar o homem de refletir sobre seu papel nesse mundo renovado, e em contínuo desenvolvimento. Assim, o poeta, pensador do mundo e da existência por excelência, trouxe às palavras os seus sentimentos e impressões diante da sociedade. Tão numerosas e variadas como são as transformações sociais do século XIX, são também as características da arte que atravessa esse século; foi, sem dúvida, bastante rico em variedade de formas e tons, bem como de relevância dos artistas do período que ganharam projeção. Ao relacionar as condições econômicas e sociais, de modo geral, à produção literária do século XIX, não visamos, contudo, defender que a arte seja simplesmente um produto de seu meio. Em muitos momentos da história da literatura, em âmbito mundial, é inevitável estabelecer uma ligação entre ambos; no entanto, cremos que tais fatores de contexto não são capazes de restringir a criação de uma obra de arte em termos de características ou estilo. Não poucos pensadores refletiram sobre a nova sociedade européia do século XIX. No campo da filosofia, foram de fundamental importância e influência o pensamento dos irmãos Schlegel e de Arthur Schopenhauer. Partindo da Alemanha, essas filosofias percorreram toda a Europa e além, consoantes com as manifestações artísticas cujas motivações buscavam explicar. Focalizando primeiramente a questão da busca da unidade, tão cara aos românticos, centrou-se a segunda na inutilidade de todas as ações, na frustração que decorre de toda concretização de um ideal, e, em conseqüência desses fatores, em um pessimismo primordial e inevitável. Se procurarmos relacionar ao exílio essa inútil busca, que sempre finda em frustração e melancolia, encontraremos como possível leitura a perda do ideal4 – que, se existia para os românticos, já se percebe utópico para os simbolistas e decadentistas; ainda que o mantenham, percebem continuamente a impossibilidade de atingi-lo. A distância do ideal, que pode ser uma 4 Para os românticos um dos principais ideais era a busca por uma unidade, “afã de totalidade e integridade”, como cita Benedito Nunes em seu texto “A visão romântica”. In: GUINSBURG, J. O Romantismo. 14 terra imaginária, a pureza do passado infante, a ilusão de uma musa adorada, ou, em segunda instância, o encontro de uma unidade absoluta e primordial, resulta em dor e desalento que conferem à forma poética os tons mais melancólicos. Em geral, é em meio a essa melancolia que surge a sensação de apartamento e o desejo de fuga. Esse anseio pode se dar em dois momentos. O primeiro momento é aquele em que o Poeta, ao observar o mundo que o cerca, não se sente parte do mesmo, como se pertencesse a outro mundo e neste estivesse degredado. Dentro dessa face do exílio encontram-se numerosas manifestações poéticas de autores como Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca e outros, que estudaremos adiante. Esse afastamento do real não é disparado por alguma razão que o incite ao eu-poético; é primário, involuntário, fazendo parte da consciência que o eu-lírico tem de si e do mundo. Em um segundo momento, diante da desilusão, do desânimo ou do sentimento de não- pertencimento acima descrito, por exemplo, a saída que o Poeta encontra para se esquivar de tal sofrimento é a fuga para um mundo por ele criado, o mundo de sua criação artística, a recordação do passado, os paraísos artificiais, o ópio, apenas para listar alguns dos mais recorrentes escapes. Esse escape da realidade, que na Geração de Orpheu - aqui representada por Mário de Sá-Carneiro - tem um caráter de desintegração do sujeito, posterior à sua busca por si mesmo e sua identidade, consideramo-lo como parte do dito exílio em um segundo momento, aquele que decorre de uma motivação para que o eu-poético queira se afastar da realidade e da consciência. Vejamos então como essas manifestações se dão entre os simbolistas. 15 1.2 Auto-exílio: a Torre de Marfim É tarefa árdua e até mesmo vã tentar estabelecer delimitações para os domínios de um ou outro movimento artístico. Podemos, porém, identificar na história literária certas indicações de que novas propostas passam a fazer parte do cenário artístico, seja desenvolvendo ou questionando os valores instituídos. Na segunda metade do século XIX, a escola realista, bem como a corrente naturalista de Zola, veio, se não pôr fim, diluir o Romantismo na Europa como ideário já ultrapassado. Negando todas as principais características românticas, os realistas inundaram os gêneros literários5 de objetividade e retratos da sociedade e do ser humano sob o prisma menos romantizado que poderiam conceber. No entanto, obedecendo ao movimento dialético que muitos estudiosos vêem como inerente à sucessão dos movimentos literários – mas que não aceitamos aprioristicamente -, as técnicas e concepções realistas também foram questionadas já no último quartel do século XIX. A França assistiu, por volta da década de 1870, ao surgimento de figuras que lançariam a pedra fundamental da poesia dita moderna. Mais que precursores do Simbolismo, são considerados fundadores da modernidade Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé. Embora não sejam vistos propriamente como poetas simbolistas, esses artistas forneceram o alicerce não apenas para a escola sucedânea, mas para conceitos e aspirações poéticas que se estenderiam até a contemporaneidade. Edmund Wilson muito bem descreveu as transformações relativas a esse período: Todo aquele mundo vaporoso, confuso e magnífico do romantismo havia sido resolutamente ordenado e reduzido; mas, então, o ponto de vista objetivo do naturalismo e a técnica mecânica que lhe era própria 5 Em especial o drama e o romance. 16 principiaram a tolher a imaginação do poeta, a se demonstrar inadequados para expressar o que ele sentia. O leitor começa a dá-lo a perceber. Huysmans descrevia Leconte de Lisle como o “sonoroso homem das ferragens”: lembramos as censuras de Wordsworth a Pope. A literatura desloca-se outra vez da baliza clássico-científica para a romântico-poética. E esta segunda reação, no final do século, esta contraparte da reação romântica em fins do século anterior, ficou conhecida em França por simbolismo.(WILSON, 1985, P.35)6 Para comentar, ainda que de modo sucinto, as transformações que estimularam os artistas acima citados nas artes, convém-nos retroceder até o período em que florescia o Romantismo, e no qual Swedenborg lançava suas idéias filosóficas e tinha-as adotadas pelos românticos. Sintetizando todas as filosofias ocultistas do passado,7 Swedenborg resumiu e popularizou muitas noções místicas paralelas. De fato, os românticos apossaram-se da mística e, assim como simbolistas e surrealistas viriam a fazer, buscaram analogias e sugestões no infinito. Bem antes de Baudelaire, Swedenborg falou a respeito de Correspondências, como vemos em Resumindo, todas as coisas que existem na natureza desde a menor à maior são correspondências. A razão por que são correspondências é que o mundo natural, com tudo o que ele contém, existe e subsiste a partir do mundo espiritual, e ambos formam a Divindade.8 Não apenas conceitos, mas também temas e técnicas se desenvolveram desde o Romantismo até o que se tornaria o Simbolismo. A busca agora, porém, não se dava através de elevação supra terrestre, mas no mergulho ao caos interior. É essa postura de auto-insulamento que nos interessa: os infinitos mistérios da alma humana eram o que o poeta simbolista sondava, e, diante da impossibilidade de se retratar o momento de uma alma, melhor se prestava à comunicação o símbolo que o retrato. “Baudelaire mostra como a realidade exterior 6 WILSON, E. O castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1985. P.35. 7 Ver “O Swedenborguismo e os românticos”, in BALAKIAN, A. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. Pp.17-18. 8 Apud BALAKIAN, 2000, p.18. 17 produz a mais íntima correspondência com a vida interior do poeta quando se encarna nas formas estruturais de sons musicais” (BALAKIAN, 2000, p.36). Deste modo, entremeiam-se as questões do símbolo como sugestivo do complexo estado de alma do poeta, da musicalidade tão apregoada pelos poetas simbolistas, e ainda da correspondência entre o mundo exterior e interior, ou, em outras palavras, natural e divino. Contudo, se o Simbolismo em muitos aspectos foi, como disse Edmund Wilson, poslúdio da reação romântica, também há entre os dois movimentos oposição. Lemos ainda em Wilson: “De qualquer modo, é sempre, como em Wordsworth, a sensibilidade individual ou, como em Byron, a vontade individual, que preocupam o poeta romântico; ele inventou uma nova linguagem para exprimir-lhes o mistério, o conflito e a confusão”9. Fernando Guimarães diz, por sua vez, a respeito do simbolismo, haver uma “”abolição do dogma da personalidade”. Assim, é afastada a tentação de o escritor “exprimir o que sente”, passando a sentir “por um certo número de Outros””.10 E se o sujeito é despersonalizado – característica da modernidade, segundo Hugo Friedrich -, antes está para exprimir os mistérios da alma humana que para as particularidades do indivíduo. Para se transmitir ao leitor o incomunicável, o símbolo exercia a função de sugerir, o que, juntamente com as evocações sensoriais que se alcançavam através do uso de várias – e muitas vezes simultâneas – sinestesias, instigava no leitor um novo estado de alma. O poema era, portanto, um processo inacabado, do qual o leitor tomava parte ao produzir em si novos e complexos estados de alma através das evocações. Dizia Verlaine que as “palavras que implicam emoção são mais poderosas ao comunicar a emoção do que as palavras que as designam”11. Esta idéia explica a preocupação simbolista com a forma poética, em especial com o vocabulário empregado. Enquanto alguns, 9 WILSON, 1985, p.30. 10 GUIMARÃES, F. Poética do Simbolismo em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1990. (Temas Portugueses). P.10. 11 Apud BALAKIAN, 2000, p.53. 18 à maneira de Baudelaire, optaram por vocábulos raros, incomuns, correspondentes aos estados de alma não-ordinários que desejavam evocar, ou ao incomum, ao novo a que de modo geral aspiravam, outros, à Verlaine, procuraram dar às palavras mais comuns, já “gastas” pelo uso, significados e sensações inusitadas. Através de novos usos, as palavras ganhavam nova vida, livravam-se da “ferrugem” adquirida por tão repetido uso, à medida que sugeriam um mergulho na interioridade do eu-poético. Vejamos as palavras de Fernando Guimarães concernentes a esses traços simbolistas: O objetivo era passar do cursivo – que tanto poderia ser o da escrita como o da leitura – a algo que se aproximasse de uma secreta inscrição ou de uma voz potenciadora de múltiplos e fugitivos sentidos (...). A procura dos “raros vocábulos” (...) poderia ser um desses caminhos. (...) Mas este caminho não era o único, pois o inverso seria também possível: partir de palavras vulgarizadas, do léxico comum, mas torná-las dificilmente apreensíveis por todos. (GUIMARÃES, 1990, PP.17-18) Sendo então a subjetividade – ainda que despersonalizada, distinta daquela apregoada pelos românticos - um pilar da arte simbolista, é compreensível que a postura do eu-lírico fosse uma atitude de fechamento em si, um isolamento em que procurava desvendar as obscuridades de sua alma. Essas obscuridades eram o que tentava o poeta simbolista ilustrar em sua poesia; antes já dissera Baudelaire que “há uma certa glória em não ser compreendido”. Para melhor esclarecer a questão da despersonalização do sujeito moderno, transcrevemos, do mesmo Fernando Guimarães: O eu ausente – ou que afirma, pelo menos, a sua ausência – acaba por representar o próprio excesso com que, através de imagens, essa paisagem emblemática ascende ao poema envolvida, por vezes, por uma notação ornamental, luxuosa, cheia de sumptuosidade. É o que não raro acontece – pois já no Decadentismo o luxo se revelou como o que há de mais exterior à intimidade humana – com os poetas que, em pleno Modernismo, reduziram o que havia de mais subjectivo ou exclusivamente subjectivo na poesia, mediante aquela intelectualização das emoções ou emocionalização das idéias que, desde o tempo de A Águia, Fernando Pessoa aconselhava. (GUIMARÃES, 1990, P.49) 19 Outra razão pela qual o Poeta simbolista assumiu tal postura foi a visão, que se oferecia a seus olhos, da sociedade de então. Em Portugal, foi o século XIX que assistiu às transformações econômicas e sociais decorrentes da industrialização, as quais no século anterior já se viam na Inglaterra. Com o crescente uso de máquinas nos processos produtivos, além da disseminação de novas tecnologias, a vida do cidadão europeu de modo geral ganhou nova dinâmica. Atingindo todas as classes sociais (embora em diferentes aspectos), as mudanças fizeram com que muitos questionassem o papel do ser humano nessa nova sociedade, uma vez que vinha sendo cada vez mais substituído pelas máquinas. Os valores também mudavam, atingidos por um capitalismo que nada poupava em seus objetivos de obter cada vez maior lucro. No período que corresponde na história portuguesa à monarquia constitucional, mais especificamente na segunda metade do século XIX, notam-se os primeiros sinais de uma transformação que, em outras partes da Europa, já há muito se via. A. H. de Oliveira Marques descreve algumas dessas transformações, relacionadas ao processo de industrialização, e como atingiram diversos segmentos da sociedade portuguesa: La expansión econômica del país resultó em gran parte de la política gubernamental de desarollo de la red de transportes y comunicaciones. La construcción de carreteras, vías férreas, puertos, conexiones telegráficas, etc., constituyó el objetivo supremo de gran número de ministérios, sobre todo a partir de 1851. (OLIVEIRA MARQUES, 1974, P.19) 12 O autor em seguida relata de modo detalhado as principais mudanças que se deram em vários âmbitos da sociedade, como a indústria propriamente dita, o comércio, finanças, justiça, governo, população, igreja, educação, entre outros. Mais adiante, na mesma obra, o autor descreve, à página 91, os sintomas da crise que atingia o sistema monárquico: 12 OLIVEIRA MARQUES, A.H. Historia de Portugal. Vol. II: de las revoluciones liberales a nuestros dias. Lisboa: Palas Editores, 1974. P.19 20 “La estabilidad alcanzada entre 1870 y 1890 fue seguida por uma profunda crisis de carácter político, económico y financiero. Las contradicciones de la monarquia constitucional comenzaban a ser evidentes para todos. Su ideología había dejado de ejercer atracción sobre las generaciones más jóvenes (...)”. O atraso do desenvolvimento de Portugal com relação a outros países ficou mais evidente à medida que os anos avançavam, principiado o século XX. A população lusa era ainda em grande parte rural; o número de propriedades agrárias diminuiu de forma bastante lenta: Em 1910 había em Portugal cerca de 1300 mil propietarios rurales, número que se mantenía sensiblemente igual dieciséis años más tarde. Em el panorama general europeo, el país contaba, así, con um porcentaje de propietarios de tierra mucho más elevado que em otras naciones, especialmente Bélgica, Francia o Inglaterra. (OLIVEIRA MARQUES, 1974, p. 152) Ainda com relação à tardia chegada da industrialização em Portugal, diz A.H. de Oliveira Marques: La revolución industrial de los siglos XVIII y XIX se reflejó moderadamente em Portugal, país mal provisto de hierro, carbón y otras matérias primas básicas que siempre tenia que importar. El número de fábricas, la producción de artículos manufacturados y el personal obrero empleado tuvieron cifras muy bajas a comienzos del siglo XX, sobre todo em comparación com otros países de Europa (...). (OLIVEIRA MARQUES, 1974, p. 153) No primeiro quartel do século XX a indústria se desenvolveu consideravelmente, sobretudo a produção de conservas de peixe; contudo, embora sinais de progresso pudessem ser vistos, seu ritmo era bastante lento. O país tinha, como obstáculo, um déficit de infra- 21 estrutura, especialmente no campo dos transportes, que limitava o desenvolvimento industrial13. Embora a finalidade da tecnologia seja beneficiar o homem, trazendo conforto e facilitando sua vida, o que se viu no final do século XIX foi uma onda de pessimismo assolando a Europa. Chamada por vezes de “espírito do século”, a sensação de estar a sociedade passando por uma decadência pode ser vista em vários níveis da produção artística e filosófica da época. É o momento em que o pensamento de Arthur Schopenhauer alcançará maior difusão: toda aspiração traz necessariamente uma frustração; qualquer coisa que deixe o plano da idealização para o plano concreto trará para o idealizador infelicidade. Assim, nenhum esforço no sentido de atingir objetivos vale a pena, e a única forma de fugir a esse sofrimento intrínseco a todo desejo é se livrar de todo desejo. O estado de inércia que só pode ser alcançado através da pura contemplação artística tiraria o indivíduo do mundo de dores em que todos viveríamos, isolando-o no mundo da arte. Diz o filósofo: “(...) o conhecimento que tenho da minha vontade, embora imediato, é inseparável do conhecimento que tenho do meu corpo”14. De modo que a morte, decomposição da carne, seria também a dissolução da vontade do indivíduo, fonte de seu sofrimento. Quanto a este, vejamos suas palavras: Todo querer procede de uma necessidade, isto é, de uma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para cada desejo que é satisfeito, dez pelo menos são contrariados; além disso, o desejo é demorado, e suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta, parcimoniosamente medida. (...) A satisfação de nenhum desejo pode conseguir contentamento durável e inalterável. (...) Enquanto a nossa consciência está preenchida pela nossa vontade, enquanto estamos subjugados pelo impulso do desejo, pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele faz nascer, enquanto somos súditos do querer, não existe para nós nem felicidade duradoura, nem repouso. (SCHOPENHAUER, 1985, PP.205-206) 13 OLIVEIRA MARQUES, 1974, p.156 14 SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p.111. 22 E como poderia o homem, então, livrar-se de tal condição, alcançando alguma paz e felicidade? Libertando-se de suas próprias vontades: É que, com efeito, desde o momento em que, libertos do querer, nos absorvemos no conhecimento puro e independente da vontade, que entramos num outro mundo, em que não existe mais nada daquilo que solicita a nossa vontade e nos abala tão violentamente. Esta libertação do conhecimento subtrai-nos a essa perturbação de uma maneira tão perfeita, tão completa como o sono e o sonho: felicidade e infelicidade dissipam-se, o indivíduo é esquecido; já não somos o indivíduo, somos puro sujeito que conhece (...) É, enfim, esta beatitude da contemplação liberta da vontade que derrama sobre tudo que é passado ou longínquo um encanto tão prestigioso e que nos apresenta esses objetos numa luz tão favorável; aí enganamos a nós mesmos. (SCHOPENHAUER, 1985, pp. 207-208) Vejamos como Schopenhauer vê na obra de arte fonte oposta, ou seja de prazer (estético): (...) devemos conceder a todos os homens esse poder de separar as idéias das coisas e por esse fato elevarem-se momentaneamente acima da sua personalidade. O gênio tem apenas a vantagem de possuir esta faculdade num grau muito mais elevado e de gozá-lo de uma maneira mais contínua; pode aplicar a tal modo de conhecimento toda a reflexão necessária para reproduzir numa criação livre o que conhece através deste método; esta reprodução constitui a obra de arte. É através dela que ele comunica aos outros a idéia que concebeu. (...) A obra de arte é apenas um meio destinado a facilitar o conhecimento, conhecimento que constitui o prazer estético. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 204) E concluindo, com relação ao prazer estético: (...) esta condição, como vimos, consiste em libertar o conhecimento que a vontade subjugava, em esquecer o eu individual, em transformar a consciência num puro sujeito que conhece e liberto da vontade, do tempo, da relação. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 209) Vemos que esse pensamento, pelo menos em certa extensão, foi aceito e influenciou os pensadores e artistas do fim-de-século, pois é mote recorrente da poesia simbolista, por exemplo, a fuga para paraísos artificiais, as “Torres de marfim” criadas pelo Poeta para se 23 isolar do mundo, enfim, o refúgio que se tornou a artificialidade e a arte de modo geral para o decadente.15 O delírio dos sentidos também não deixa de ser uma forma de evasão do real. Este aspecto foi, certamente, um dos mais empregados na poesia simbolista em todo o mundo; exemplifiquemos com um soneto do brasileiro Teófilo Dias, considerado um dos precursores do movimento no Brasil: A NUVEM Sulcas o ar de um rastro perfumoso Que os nervos me alvoroça e tantaliza, Quando o teu corpo musical desliza Ao hino do teu passo harmonioso. A pressão do teu lábio saboroso Verte-me na alma um vinho que eletriza, Que os músculos me embebe, e nectariza, E afrouxa-os, num delíquio langoroso. E quando junto a mim passas, criança, Revolta e crespa, luxuosa trança, Na espádua arfando em túrbidos negrumes, Naufraga-me a razão em sombra densa, Como se houvera sôbre mim suspensa Uma nuvem de cálidos perfumes! A origem do inebriante sentimento amoroso do Poeta neste caso vem da observação da amada em seu passar. O “rastro perfumoso” que ela deixa atrás de si em seu harmonioso andar “alvoroça [os nervos]” do Poeta, e o contato de seu beijo “afrouxa[-lhe] os músculos”. Todo o soneto, desde a visão da moça a passar, sua trança sobre as espáduas, e seu “lábio saboroso”, é uma sucessão de arrebatamentos dos sentidos, que o eu-lírico tenta comunicar através de rica adjetivação e verbos que transmitem essas sensações, como “os nervos me alvoroça e 15 O homem do fin-de-siècle, participante do chamado “espírito decadente”, foi frequentemente assim chamado. Ver MORETTO, Fúlvia M. L. (Org). Caminhos do decadentismo francês. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1989. (Textos, 9). 24 tantaliza”, “um vinho que eletriza” e “os músculos me embebe, e nectariza”. As aliterações também contribuem para o caráter sensual do poema; os sons sibilantes, que perpassam todo o soneto, sugerem a suavidade da moça em seu caminhar, assim como o “rastro perfumoso” que ela deixa. Poderíamos relacionar esse poema à tradição, que se foi estabelecendo – desde Cesário Verde, passando por Baudelaire e sendo retomada muitas vezes depois –, da figura feminina conhecida por femme fatale. Trata-se, assim como no poema de Teófilo Dias, de uma mulher que passa e hipnotiza o eu-poético, prende seu olhar e o seduz. Enlevado pela visão, o Poeta a abstrai, interioriza, e dentro desse interior se perde, em meio ao turbilhão de sensações que lhe são despertadas; deixar-se levar, delirante, pelos próprios sentidos pode ser considerado, portanto, como uma maneira de sair do patamar da realidade e adentrar o do sonho, ou do irreal. Como já comentamos, o Simbolismo começou a aparecer com as transformações fundamentais que primeiramente foram lançadas pelos franceses Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. Sobre seus princípios começou a se estabelecer e difundir o movimento simbolista. Hugo Friedrich, em sua Estrutura da lírica moderna, listou algumas dessas transformações, tratando de cada um dos três poetas acima. Vejamos, de maneira bastante sucinta, quais novidades o autor atribuiu a cada um dos “fundadores da lírica moderna”. Depois de brevemente contextualizar o cenário artístico em que floresceriam as bases da modernidade, remetendo às suas raízes desde a arte romântica, Friedrich foca em separado as obras e características de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. Do primeiro, destaca a “disciplina espiritual e a clareza de sua consciência artística”16, para em seguida enumerar, entre os pilares que moldam sua obra, a despersonalização do sujeito moderno, explorando a 16 FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Tradução de Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978. (Problemas atuais e suas fontes, 3). p. 36. 25 “poesia em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal”17; em seguida, mostra como Baudelaire estabeleceu, em sua poética, uma estética do feio, como mostrou o aspecto de ruína do Cristianismo no momento que vivia, o “prazer aristocrático de desagradar” e a idealidade vazia. Quanto a esta, uma das de maior relevância na obra do poeta, diz respeito à meta de ascensão do Poeta, que, não apenas distante, é vazia: “a fuga é sem meta, não vai além da excitação dissonante”18. Este aspecto de fuga do real, que aproximamos da leitura do exílio que buscamos neste trabalho fazer, é mostrado de uma interessante perspectiva por Friedrich: O desconcertante de tal modernidade é que está atormentada até à neurose pelo impulso de fugir do real, mas se sente impotente para crer ou criar uma transcendência de conteúdo definido, dotada de sentido. Isto conduz os poetas da modernidade a uma dinâmica de tensão sem solução e a um mistério até para si mesmos. (FRIEDRICH, 1978, P.37) Citando ainda, entre outros aspectos, o da linguagem como instituída de magia – e aí sua ligação com a musicalidade da lírica – e o da fantasia criativa, prossegue Friedrich, já sobre Rimbaud, a mostrar a desorientação do Poeta moderno, a anormalidade desejada por ele, e a ruptura da tradição que, em Rimbaud de maneira explosiva, insurge-se contra a herança cristã ou contra qualquer limite: a fantasia é mandatória, invertendo a ordem do espaço. Poesia abstrata, por vezes em forma de monólogo, a de Rimbaud também se concentra na magia da linguagem com todas as “possibilidades de combinações das sonoridades da língua e das oscilações associativas dos significados das palavras”19. A caracterização que o autor faz da obra de Mallarmé, resumida em um único parágrafo, transcrevemos aqui: Também em Mallarmé constatamos: ausência de uma lírica do sentimento e da inspiração; fantasia guiada pelo intelecto; aniquilamento da realidade e 17FRIEDRICH, 1978, p.37. 18 Ibid., p.48. 19 Ibid., p.91. 26 das ordens normais, tanto lógicas como afetivas; manejo das forças impulsivas da língua; sugestionabilidade em vez de compreensibilidade; consciência de pertencer a uma época tardia da cultura; relação dupla para com a modernidade; ruptura com a tradição humanística e cristã; isolamento que tem consciência de ser distinção; nivelamento do ato de poetar com a reflexão sobre a composição poética, predominando nesta as categorias negativas. (FRIEDRICH, 1978, p.95) Desta maneira, Hugo Friedrich resume algumas das características de base da modernidade poética, as transformações com relação à arte passada às quais voltaremos amiúde a nos referir. Antes de nos voltarmos às manifestações simbolistas em Portugal, transcrevemos, neste ponto, uma das definições que nos dá Edmund Wilson a respeito do movimento de modo geral. A que, exatamente, se propunha o simbolismo? Ao falar de Poe, já chamei a atenção para a confusão entre as percepções dos diferentes sentidos e para a tentativa de aproximar os efeitos da poesia dos da música. E eu deveria acrescentar, no tocante a este último ponto, que a influência de Wagner sobre a poesia simbolista foi tão importante quanto a de qualquer poeta: ao tempo em que a música romântica mais se havia aproximado da literatura, esta era atraída para a música. Também já me referi, em conexão com Gerard de Nerval, à confusão entre o imaginário e o real, entre as nossas sensações e fantasias, de um lado, e o que efetivamente fazemos e vemos, de outro. Era tendência do simbolismo – aquela segunda oscilação do pêndulo para longe de uma visão mecanicista da natureza e de uma concepção social do homem – fazer da poesia uma questão de sensações e emoções do indivíduo, mais ainda do que fora o caso no romantismo: na verdade, o simbolismo acabou, algumas vezes, fazendo da poesia assunto tão privativo do poeta que ela se tornou incomunicável ao leitor. A sutileza e dificuldade peculiares do simbolismo são indicadas pelo próprio nome deste. (WILSON, 1985, p.43) A partir da década de 1870 já se começaram a ver os primeiros sinais da nova escola. Em Portugal esses sinais convivem, até a década de 1890, com algumas manifestações remanescentes do Realismo. Esse período foi, portanto, de transição entre a proeminência dos postulados das duas escolas, marcado pela simbiose dos mesmos. Na poesia portuguesa, dois dos maiores nomes entre os principais colaboradores na formação da modernidade literária são Antero de Quental e Cesário Verde. Este último, ainda 27 em meados do século XIX, em meio ao pleno desenvolvimento da escola realista, deixou como herança à poesia do porvir sua obra contendo várias das tendências que viriam a florescer mais tarde. De um poema por muitos considerado obra-prima da lírica portuguesa, “O Sentimento dum Ocidental”, destacamos algumas estrofes. Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia, Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. O céu parece baixo e de neblina, O gás extravasado enjoa-me, perturba; E os edifícios, com as chaminés, e a turba Toldam-se duma cor monótona e londrina. O eu-lírico, já nos é adiantado nas primeiras estrofes, é um sujeito que anda pela cidade nas últimas horas do dia. Esvaindo-se a luz e acendendo-se as luzes artificiais a gás, as ruas ganham novas cores, que avivam os sentidos do Poeta e lhe trazem sentimentos de melancolia e soturnidade. A ausência da luz do sol começa a fazer-se sentir em um misto de tristeza e enjôo, um mal-estar despertado pelo que há de mais comum na paisagem noturna: “as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia”. Não é só o “gás extravasado” da iluminação pública que o enjoa, mas todos esses elementos que o conduzem ao “desejo absurdo de sofrer”. Esse desejo, embora paradoxal, não ficou sem frutos na lírica. Se o relacionarmos à apologia da Dor que vemos em Pessanha e Sá-Carneiro, veremos que, embora alcunhado de realista, Cesário Verde deixou como herança o gérmen de posturas do eu-lírico que seriam revisitadas por poetas futuros. Na segunda estrofe, ao passo que a paisagem se faz consoante com a sensação de mal- estar do Poeta, tomando o céu aparência lúgubre, “os edifícios, com as chaminés”, e até mesmo as pessoas indistintas da turba tomam essa característica monocromática, apagada; pouca cor e, se não podemos dizer pouca vida, uma vida que é ao Poeta alheia, monótona. 28 E evoco, então, as crônicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais. Diante da paisagem sem viço em meio à qual se vê, o eu-poético, em atitude não muito diversa da dos românticos, estabelece nesta estrofe o contraste entre as glórias passadas – sejam no que se refere à sua pátria, ou à poesia, aludindo ao livro de Camões salvo de um naufrágio – e o presente inglório. Notemos que, nesta estrofe de evocação do passado, todos os elementos contribuem para uma representação heróica daqueles outros tempos; os mouros, baixéis e heróis, as soberbas naus, e até mesmo a forma heróica como é contado o episódio do naufrágio do qual Camões logrou salvar seu Lusíadas. Bem diz o Poeta no último verso, esses tempos não voltarão, e o que se oferece aos seus olhos parece bem diferente. E eu desconfio, até, de um aneurisma Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, Chora-me o coração, que se enche, e que se abisma. O desprazer que o vagar pela cidade traz ao eu-poético confunde-se com mal-estar físico. Sentindo-se mórbido, o que vê agora são prisões e uma velha igreja, edifícios que, por si só, contribuem com o sentimento melancólico e a tristeza que lhe enchem o coração, o qual “chora[...] se enche e se abisma”. O desalento, senão desgosto pelo que vê, causa-lhe mal-estar tal qual aneurisma. E nestes nebulosos corredores Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores. 29 O mal-estar evolui em náusea, agora que passa pelos “ventres” das tabernas. Entre corredores escuros, o Poeta não encontra, na vida noturna de tais lugares, atrativos para tirá-lo de seu desconforto; antes, apenas observa, alheio, os “tristes bebedores” que saem, cambaleantes a cantar. Poema misto de elementos realistas e modernos, com este pôde Cesário Verde, na segunda metade do século XIX, contribuir para a formação da lírica moderna portuguesa 1.3 Passos do Simbolismo em Portugal Tendo o processo de modernização inaugurado pelos franceses repercutido em toda a Europa, e juntando-se a esse fator as idéias de vários filósofos que eram difundidos na época, como Hartmann e Schopenhauer, o cientificismo era deixado cada vez mais de lado, e as características “antipositivista, antinaturalista e anticientificista” do Simbolismo vinham pregar “o retorno à atitude psicológica e intelectual assumida pelos românticos, e que se traduzia no egocentrismo”20. Cultuando os mistérios e a anarquia da vida interior, fez-se uso da intuição e da sugestão “a fim de comunicar o que verbalmente não se diz”.21 O caos e as vaguidades da alma seriam mais facilmente evocáveis através da música; daí o apreço simbolista pela composição sonora da poesia, bem como a aclamação de Richard Wagner como verdadeiro artista, aquele capaz de unir música e literatura, perscrutando de forma mais efetiva os complexos estados da alma humana. Em Portugal considera-se como marco do início do Simbolismo no país a publicação de Oaristos, de Eugênio de Castro, em 1890, cujo prefácio ousado e voltado às novas tendências com as quais o autor teve contato em Paris não corresponde ao tom de sua poesia 20 MOISÉS, M. A literatura portuguesa. 33ª edição. São Paulo: Cultrix, 2005. P.209. 21 Ibid., p.210. 30 em geral. Embora mais propenso à contenção que à livre expressão, em muitos momentos seus poemas se assemelham aos dos românticos: Quantas saudosas figuras Dos meus tempos de menino, Não as varreu a vassoira, Que anda nas mãos do Destino! Esta primeira estrofe do poema “Sombras que passaram” retoma o tema romântico da saudade da infância, tão explorado também por outro simbolista de laivos românticos, António Nobre, bem como mostra o sentimento de perda e da inexorabilidade da passagem do tempo, que encontraremos também em Clepsidra, de Camilo Pessanha. As imagens da infância citadas nos dois primeiros versos são expandidas ao longo das estrofes seguintes do poema; o eu-lírico evoca as personagens e lugares que fazem parte de sua memória, sua casa, as pessoas que via de sua janela, músicas, o encantamento causado pelos animais, e tudo isso ele contrasta na última estrofe com o vazio do presente: Na rua, agora, nem sombra Das apagadas delícias! Desta janela, só vejo Automóveis e polícias. A visão que tem de sua janela é, no presente, uma visão da modernidade, e da mudança que esta trouxe à sociedade. O encantamento e as pessoas, que ele minuciosamente descreve nas estrofes intermediárias, com suas roupas e gestos, deram lugar às máquinas – automóveis – e a policiais que, diferentemente das personagens da infância, não têm, no olhar do Poeta, identidade ou rosto. Outro poema de Eugênio de Castro em que o sentimento de perda está presente, embora com outro matiz, é o soneto “A fonte abandonada”, que transcrevemos: 31 Eras um altar, ó fonte, e eras uma toca! Minha mão nessas silvas se lacera; Emmudesce; e a trepadora hera, Ali, dum fuste o capitel desloca... Mas que ouvi eu? Da sebe desemboca Um par de noivos, que na senda austera Passam entre clarões de primavera, Ébrios, a desmaiar, presos p´la boca. De enlevados que vão, nem dão por mim, Que na chama d´amor, que neles arde, Outra chama revejo que morreu, E que os vejo correr pelo jardim, Qual mísero aldeão, passando à tarde Num campo que algum dia já foi seu... Contando uma cena que se passa à beira de uma fonte, em meio às virações primaveris de um ambiente externo, a visão do casal apaixonado leva o Poeta à recordação de um amor passado. A primeira quadra do poema apresenta o espaço da fonte, entre plantas (“silvas” e “heras”), em que está o eu-lírico. A segunda quadra introduz a visão do “par de noivos” que vêm da sebe, iluminados em sua paixão pelos “clarões de primavera”, “ébrios” a se beijar. Tão enleados vão que não percebem a presença do eu-lírico que os observa; este, à parte da cena, isolado na posição de mero espectador da felicidade alheia, sente-se “mísero” como aldeão que perdeu seu campo, o que nos sugere que teve, outrora, os mesmos regozijos amorosos, e estes ficaram em seu passado. Seja pela perda da inocência da infância ou dos amores da juventude, o sentimento predominante do eu-poético é o de perda, que implica muitas vezes a presente sensação de vazio, tédio, afastamento, saudade. Exilado da alegria, o Poeta se volta para o passado, procurando as visões de um tempo em que era mais feliz. Desta breve leitura observamos que a poesia de Eugênio de Castro, embora tida como poesia inaugural do movimento simbolista em Portugal, ainda tem muito de Romantismo. Não deixa de ser, contudo, oposta à corrente realista-naturalista que predominava no cenário lusitano, mas carece de várias das características da lírica moderna que listamos pouco acima; 32 apresenta, contudo, o motivo do exílio tal qual relacionamos ao período compreendido pelo Simbolismo, Decadentismo e primeira geração modernista. Outro poeta português do período que também tematizou a saudade, como citamos pouco acima, foi Antônio Nobre, em especial a saudade de uma infância pura, campesina e devota. Como exemplo dessa Saudade, transcrevemos um de seus mais conhecidos sonetos, sem título, apresentado pelo número 4: Ó Virgens que passais, ao Sol-poente, Pelas estradas ermas, a cantar! Eu quero ouvir uma canção ardente, Que me transporte ao meu perdido Lar. Cantai-me, nessa voz onipotente, O Sol que tomba, aureolando o Mar, A fartura da seara reluzente, O vinho, a Graça, a formosura, o Luar! Cantai! Cantai as límpidas cantigas! Das ruínas do meu Lar desenterrai Todas aquelas ilusões antigas Que eu vi morrer num sonho, como um ai... Ó suaves e frescas raparigas, Adormecei-me nessa voz... Cantai! A exaltação à pureza, típica de Anto, se mostra neste poema desde a invocação que faz a partir do primeiro verso: às Virgens, que na última estrofe são chamadas “frescas raparigas”. A “canção ardente” que o Poeta pede das vozes das Virgens é a que seja capaz de “[transportá- lo] ao [seu] perdido Lar”. Na segunda estrofe ele diz como deve ser essa canção: as imagens que associa ao Lar são a do “Sol que tomba”, a de um Mar “aureolado” pelos fulgores do mesmo Sol, a de uma farta e reluzente “seara” – imagem da plantação, essencialmente campestre -, além dos elementos todos do quarto verso: “O vinho, a Graça, a formosura, o Luar!”. A cantiga a ser entoada pelas “raparigas” deve ser desenterrada “das ruínas do [seu] Lar”, o que denuncia pertencerem ao passado todas aquelas imagens de gozo e paz da segunda 33 estrofe. Enterradas pelo tempo, são ruínas tal qual o tempo que com elas ficou para trás; são “ilusões antigas”, que o eu-lírico “[viu] morrer num sonho, como um ai”, muito semelhante ao que o mesmo poeta diz em um outro poema22: Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam azeite... Um dia, os castelos caíram do Ar! Diz-se de outro modo a mesma coisa: em sua infância e juventude, o Poeta vivia de ilusões, isolado da realidade em sua “Torre”, torre esta que, feita de “leite”, é símbolo de inocência pueril. Ainda neste passado de inocência, as “oliveiras [...] davam azeite”; se as oliveiras de agora já não dão azeite, tal figura mostra a esterilidade da vida do Poeta, sem frutos, sem ilusões – castelos que “caíram do Ar”. 1.4 Em Orpheu, transição para a modernidade Como vimos, as bases da modernidade poética já estavam presentes na arte simbolista, que se apropriou de alguns dos princípios e formas preconizados pelos franceses a partir da década de 1870. Em Portugal, no entanto, o Simbolismo não ostentou cores assim tão modernas. A audácia inovadora do prefácio de Eugênio de Castro ao seu Oaristos não foi condizente com o teor de sua poesia; para os demais poetas do período, o retorno à forma não significou necessariamente rever os conceitos estabelecidos de forma poética, nem trouxe grandes inovações, mas sim frequentemente a obsessão por uma musicalidade que se restringia ao nível mais superficial da linguagem do poema, isto é, à rima, à métrica e às figuras de linguagem como assonâncias e aliterações. O poeta que consideramos merecedor de maiores 22 O poema é “Lusitânia no bairro latino”. 34 louros entre os do período considerado simbolista em Portugal é Camilo Pessanha, e a ele dedicaremos o próximo capítulo. O início do século XX trouxe mais que rumores de guerras à Europa: foi nas suas duas primeiras décadas que as vanguardas se fizeram ecoar por todo o continente e além. Na classe intelectual, sempre em contato com os eventos relacionados à arte nos demais países europeus, rapidamente as idéias se disseminavam e, muitas vezes, tomavam formas particulares nos diferentes países em que floresciam. Em Portugal, as duas primeiras décadas do século foram um período de acentuadas crises: Como es obvio, las crisis económicas mundiales repercutieron em Portugal. Pero el país conoció también crisis propias, localizadas, a vezes más graves que las que le llegaban de allende las fronteras. Así, la crisis internacional de 1913-1914, que se liquidó com la guerra, se sintió moderadamente em Portugal. (...) La Primera Guerra Mundial (...) trajo consigo uma expansión general del comercio y de la industria a partir del primer semestre de 1915. Pero también causó perturbaciones económicas y sociales mucho más graves, motivadas por la escasez de productos alimentícios, la inflación, la actividade revolucionaria, las tentativas inhábiles de dirigismo económico estatal, etcétera. 23 Em meio a esse cenário social tumultuado, dois poetas teriam notável presença no cenário literário português das décadas de 1910 e 20; tiveram eles contato com as novidades dos países vizinhos. Fernando Pessoa, de formação inglesa, e Mário de Sá-Carneiro, conhecendo Paris por ocasião de um malogrado curso de Direito a que se propusera, trouxeram suas experiências da arte estrangeira para Lisboa, que em grande atraso estava com relação a outros países em termos de modernidade artística. Junto com um grupo de outros literatos e intelectuais, como Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho (diretores do primeiro número), publicaram a revista Orpheu, na qual, apesar de o nome sugerir forte ligação com o Simbolismo, criticavam Portugal – ainda preso ao saudosismo romântico e às convenções formais - com textos que tiveram má recepção por 23 OLIVEIRA MARQUES, 1974, p.158 35 parte do público. O teor modernista da publicação, resultante das personalidades que nela figuravam, tornou-se inegável quando, ao surgir o segundo número, constaram como diretores os nomes de Pessoa e Sá-Carneiro. E que fizeram estes e outros para que fossem vistos como acintosos pelos demais? Embora não se prestassem a chefiar nenhuma escola, ousaram erguer a bandeira da independência, tocando em pontos mais que estabelecidos da convenção literária. Desde os princípios que regem a criação literária à forma e ao conteúdo, contestaram o senso comum da época e alteraram a relação escritor-sociedade,24 conscientes da proposta modernizadora que traziam. Conseqüência do avanço que representavam as obras de Pessoa e Sá-Carneiro em relação ao seu tempo foi a demora que tiveram para alcançar repercussão pública; excetuando- se as acaloradas discussões e o entusiasmo gerados pela publicação de Orpheu, a obra em si dos ditos poetas não alcançaria grande projeção senão mais tarde. Com o suicídio de Sá- Carneiro em 1916, suspendeu-se o terceiro número da revista que vinha sendo preparado, e assim encerrou-se a história da publicação. Ficaram, pois, Fernando Pessoa e Almada Negreiros a traçar seus caminhos individuais naquela sociedade pouco receptiva à profundidade das inovações que traziam. O desregramento dos sentidos e a música nova propostos por Sá-Carneiro – que melhor veremos no terceiro capítulo–, e a riqueza e multiplicidade dos heterônimos de Pessoa, aos quais não bastariam poucos parágrafos para uma justa, ainda que sucinta descrição, tiveram, nos anos – ou poderíamos dizer décadas – seguintes que ser descobertos pelos intelectuais que vinham surgindo, já com as novas propostas da revista Presença. Desse modo, figuram os dois nomes como os de pioneiros na 24 MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia da Presença. Lisboa: Moraes editores, 1972. p.18. Embora pudéssemos explorar este ponto na nossa investigação do exílio na poesia da época, novamente optamos por estudá-lo no universo do poema, como situação do eu-poético, e não do autor, embora esta perspectiva também pudesse ser bastante produtiva. 36 tentativa de incluir Portugal no processo de modernização que atingia as artes de modo geral nas décadas anteriores e posteriores à virada do século. Vejamos, pois, o que produziram alguns dos poetas da época de Orpheu, começando pelo soneto sem título de Ângelo de Lima: Pára-me de repente o pensamento Como que de repente refreado, Na doida correria em que levado Ia em busca da paz do esquecimento. Pára surpreso, escrutando, atento, Como pára um cavalo alucinado Ante um abismo súbito rasgado: Pára e fica e demora-se um momento. Pára e fica; na doida correria Pára à beira do abismo e se demora: E mergulha na noite escura e fria Um olhar d´aço que essa noite explora; Mas a espora da dor seu flanco estria E ele galga e prossegue sob a espora. Observando primeiramente as características formais do poema, vemos que o uso que Ângelo de Lima faz da forma do soneto não difere muito do de seus pares: contido, obedecendo às leis da métrica e rimando, inicia as três primeiras estrofes com a palavra “pára”, cujo sentido é reforçado pela retomada da idéia de uma parada brusca em que o pensamento se depara com o abismo, tal como o cavalo; a repetição das paradas equivale à demora do cavalo/pensamento perante a escuridão do abismo que surge à sua frente (“Pára à beira do abismo e se demora”). Essa correspondência entre a forma e o conteúdo/idéia expressa era parte dos convencionalismos poéticos de então; neste aspecto, Ângelo de Lima não traz nenhuma novidade – nem por isso sendo seu soneto diminuído em valor e interesse. Traz sim, contudo, certo presságio ou adiantamento de algo que seria um dos pilares da poesia dos dois maiores nomes da geração de Orpheu; tanto em Fernando Pessoa (principalmente nos poemas 37 em que assina seu próprio nome) como em Sá-Carneiro a sondagem das zonas obscuras da alma será largamente explorada. Fernando Guimarães afirmou, com relação a Ângelo de Lima, que tem sido (...) em demasia colado aos poetas dessa mesma geração [de Orpheu], embora uma mais aturada análise das características temáticas e estilístico-formais da sua obra nos permitisse aproximá-lo antes dos simbolistas. Aliás em poucos poetas portugueses foi levado tão longe o modo de privilegiar os significantes, a significação divergente ou plurissignificação, um ínsito sentido gnósico, a compreensão simbólica anteposta à explicitação temática – características que não deixam de demarcar o Simbolismo em relação ao Decadentismo. (GUIMARÃES, 1990, p.8) Mas voltemos ao soneto: segundo o eu-poemático, seu pensamento ia em “correria” buscando “a paz do esquecimento”, quando se depara surpreso (5º verso) com um súbito abismo. Aí pára e se demora; observa; tem diante de si “noite escura e fria” – o mistério de si mesmo à beira do qual chegou o pensamento. Comparado a um cavalo que corria disparado e vê-se forçado a brusca parada, o pensamento não mergulha no abismo, mas é chamado de volta à corrida pela “espora da dor [que] seu flanco estria”. Essa espora – dor – o conduz de volta à galgada: tira o pensamento das zonas sombrias do eu interior, trazendo-o de volta à sua correria. Esse tema da autognose, que tão recorrente viria a ser entre os de Orpheu, traz uma fagulha de modernidade ao bem-comportado soneto de Ângelo de Lima. Um dos poucos nomes femininos destacados na história da literatura portuguesa de até então é o de Florbela Espanca. Embora alheia aos eventos literários que agitavam Lisboa na sua época, vivendo pacatamente em Matosinhos (Norte de Portugal), publicou numerosos poemas e ainda alguns contos em periódicos da região. Massaud Moisés considera-a autora do interregno entre as gerações de Orpheu e da Presença. Tendo trazido a lume sua obra entre 1919 e 1931 (Charneca em Flor, As máscaras do Destino e O dominó preto, já póstumos), 38 achamos de especial interesse apresentar ao menos um dos seus poemas. O fato de estar Florbela à parte de seus pares da época mais aumenta que diminui o interesse por sua obra tão particular. Vejamos então um dos seus sonetos, forma eleita pela poetisa para quase todos os seus textos: FUMO Longe de ti são ermos os caminhos, Longe de ti não há luar nem rosas; Longe de ti há noites silenciosas, Há dias sem calor, beirais sem ninhos! Meus olhos são dois velhos pobrezinhos Perdidos pelas noites invernosas... Abertos, sonham mãos cariciosas, Tuas mãos doces plenas de carinhos! Os dias são Outonos: choram... choram... Há crisântemos roxos que descoram... Há murmúrios dolentes de segredos... Invoco o nosso sonho! Estendo os braços! E ele é, ó meu amor pelos espaços, Fumo leve que foge entre os meus dedos... A ausência do amado, marca de muitos dos poemas de Florbela, aparece também neste. Tal ausência é, para a Poetisa, sinônimo de tristeza e sofrimento, de perda de tudo o que é belo e bom no viver (1ª estrofe). Longe do amado, metáfora de um amor idealizado, mas nunca atingido pelo eu-poético, os seus “[olhos] abertos sonham mãos cariciosas”, as “mãos doces” do amado, tão distantes da sua realidade. Todos os elementos externos se transmutam, à maneira dos românticos, em reflexos da tristeza do eu-lírico: os “crisântemos roxos que descoram” são nada mais que a própria poetisa na sua dor a esmorecer, percebendo que o seu amado, seu ideal, não passa de sonho (13º verso), que, tal como fumo, esvai-se por entre os seus dedos. A idealização de um amado ou do próprio amor é traço marcante da poética de Florbela Espanca. Nessa busca, em que a Poetisa amiúde recorre à sensualidade como apelo convidativo 39 ao “Prince Charmant” de sua imaginação, ela se depara sempre com o vazio deixado pela não- realização desse ideal. Vive, portanto, uma quimera: afasta-se da realidade, pois a cada vez que com ela se depara encontra inexoravelmente a Dor. À medida que lemos os seus poemas, vemos que alimenta seu ideal até certo ponto, mas a repetitiva desilusão faz com que essa esperança de encontrar o tal amado aos poucos se desvaneça, dando lugar ao pessimismo e à falta de razão ou vontade de viver. Assim, pois, vive o eu-poético de Florbela em um mundo de amores concebido, descontente com os amores oferecidos – ou não - pela realidade. Perder esse afastamento significa desilusão, e desejo pela morte. Não poderíamos deixar de transcrever aqui ao menos um poema de Fernando Pessoa. Vejamos, pois, Cerca de grandes muros quem te sonhas. Depois, onde é visível o jardim Através do portão de grade dada, Põe quantas flores são as mais risonhas, Para que te conheçam só assim. Onde ninguém o vir não ponhas nada. Faze canteiros como os que outros têm, Onde os olhares possam entrever O teu jardim como lhos vais mostrar. Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém, Deixa as flores que vêm do chão crescer E deixa as ervas naturais medrar. Faze de ti um duplo ser guardado; E que ninguém, que veja e fite, possa Saber mais que um jardim de quem tu és - Um jardim ostensivo e reservado, Por trás do qual a flor nativa roça A erva tão pobre que nem tu a vês... Todo de versos decassílabos, com três estrofes de seis versos cada, o poema tem como traço formal marcante a contenção. Com um esquema de rimas estabelecido, não há espaço no 40 texto para liberdades ou inovações no que diz respeito à forma poética. Vejamos, pois, se isto se relaciona de alguma maneira com o que é trazido no campo do conteúdo. Sendo o eu-lírico uma voz que pouco ou nada de si imprime ao texto, estabelece com o leitor contato no intuito de aconselhá-lo; e o conselho que dá é justamente para que se feche em si, que cerque o que tem de mais “nativo”, de mais subjetivo e espontâneo, de modo que se parta em dois: aquele que é visto pelos outros e aquele que não o é. Do que é visto, diz-se ser qual jardim, através de cujas cercas só consigam enxergar o que de mais decorativo foi ali plantado. O que o eu-poético diz para seu leitor-aconselhado é que proteja sua interioridade, guarde aquilo de si que não deve ser exposto a olhos alheios. Considerando o homem como ser de profundidade, diz o Poeta que esta deve ser cultivada, e que permita lhe brotem as flores mais selvagens, ou mesmo as ervas daninhas. O cuidado que teria um jardineiro só deve ser empregado nos níveis do eu com os quais os outros têm contato. Assim, o homem duplo, para conhecer sua parte mais íntima, suas zonas mais profundas e imaculadas pelo cultivo social, deve se voltar para dentro de si mesmo, para as partes de sua alma escondidas do olhar invasivo do outro. Do mesmo modo com que preconiza a ocultação do verdadeiro eu sob a aparência de um jardim metafórico, a forma com que o poema é elaborado mostra a maneira de fazê-lo; sob a forma contida e cultivada dos versos decassílabos, rimados, flores oferecidas à vista do leitor, está o eu-lírico, voz que não se identifica ou revela. Para que se pudesse descobri-lo, dever-se- ia perpassar os limites da cerca de suas palavras, ir, além das flores, até a erva pobre desconhecida dele próprio. Mas veremos essa questão do encontro de si mesmo mais adiante, debruçando-nos sobre a poesia de Sá-Carneiro. Antes, porém, vejamos a de um de seus mestres. 41 2. Camilo Pessanha, o Simbolismo em Portugal Como vimos no primeiro capítulo, o fato literário que indica o início do desenvolvimento do Simbolismo em Portugal é a publicação de Oaristos de Eugênio de Castro em 1890, mais pelo prefácio, no qual o autor sai em defesa das “novas idéias” que se difundiam pela Europa – especialmente a partir da França – do que pelo conteúdo da obra em si. Por não ter, em sua obra, sido condizente com os ideais então modernos que apregoou, Eugênio de Castro é didaticamente considerado pertencente ao Simbolismo antes por razões cronológicas e de discurso que pela possibilidade de extrair de seus textos grandes novidades para a época. Por outro lado, grande parte dos críticos vê em Camilo Pessanha um dos únicos poetas portugueses que realmente deram vazão às tendências lançadas pelos franceses que citamos no capítulo 1. Neste capítulo procuraremos, através da leitura de cinco dos poemas de Clepsidra, identificar e analisar alguns traços simbolistas e, por extensão, dos primórdios da modernidade poética em Portugal. No capítulo 6 de sua obra O Simbolismo, Anna Balakian estabelece três alicerces sobre os quais, a seu ver, estabeleceu-se a estética simbolista; são estes “a ambigüidade da comunicação indireta, a associação com a música e o espírito decadente” (BALAKIAN, 2000, p.81). A primeira relacionamos à elevada carga simbólica que predomina nos textos da escola – e que lhe deram mesmo o próprio nome. A intenção do poeta não é comunicar de forma direta, mas sim evocar, através de sugestões, as sensações que o simples discurso não seria capaz de produzir. A autora, na mesma obra, no capítulo que dedica a Baudelaire, cita a definição do poeta para o processo de criação artística: “o estímulo afeta os sentidos, os 42 sentidos afetam a mente; o resultado é a linguagem, produzida por uma vigilância supra- racional da mente” (BALAKIAN, 2000, p.37). Idéia precursora da que seria tomada pelos surrealistas para descrever o ato poético, a descrição do processo feita por Baudelaire direciona o foco para o estímulo dos sentidos, como sendo este o gerador da linguagem poética. Se as sensações não são sempre compreensíveis, é natural que a linguagem usada também não o seja. A mesma idéia de hermetismo da poesia seria utilizada até a exaustão por muitos modernistas. O retorno à interioridade também se liga à questão da “comunicação ambígua”.25 Anna Balakian diz, agora se referindo àquele que foi, em grande parte, responsável pelo desenvolvimento e difusão do Simbolismo: Mallarmé sugere que a sensualidade interior, graças à sua intensidade e arrojo, pode compensar o caráter fútil e fugaz da experiência física. Os simbolistas procurarão este mesmo tipo de refúgio para fugir da realidade aberta e tediosa. (BALAKIAN, 2000, p.64) O mergulho interior se presta, portanto, ao encontro da própria sensualidade, e, mais que isso, oferece ao poeta asilo da realidade dentro dessa sua sensualidade. Por isso a centralização no ego, que para os decadentistas atinge níveis extremos. Se a realidade circundante não apraz os olhos críticos e sensíveis do poeta, ele se fecha em si e em suas próprias sensações, exilando-se do real que é a fonte de sua insatisfação. A associação com a música não deixa de se relacionar à questão citada acima, da comunicabilidade das sensações. A linguagem musical seria um grande recurso para se dizer o que é indizível; mais que a linguagem falada ou escrita, já contaminada pela racionalidade, a música é intrinsecamente fonte de evocação de sensações. A associação da música com a linguagem seria, por sua vez, a que maiores chances ofereceria ao poeta de sugerir o que quisesse. Deste modo, a musicalidade foi um dos traços mais marcantes da poesia simbolista, e 25 Mais que ambígua, diríamos ser a comunicação incerta, pois, se depende do que é suscitado no leitor, abrange a mais vasta gama de possibilidades. 43 da de Pessanha. Utilizando-se dos aspectos formais do texto poético – como rima, métrica e a própria musicalidade das palavras –, o poeta simbolista explorou a música como aliada em seu processo de sugestão. O espírito decadente, apontado por Anna Balakian como o terceiro pilar sobre o qual se sustenta a estética simbolista, está presente na maior parte do que se produziu artisticamente no final do século XIX e início do seguinte. Por alguns considerado escola literária distinta, mas na maior parte dos estudos abarcado pelo Simbolismo, o Decadentismo deu o tom à arte finissecular através da postura desgostosa do poeta diante de uma sociedade em franca decadência. Por que considerariam os artistas sua sociedade como decadente? Como já abordamos no primeiro capítulo, ao tratar do exílio na arte simbolista de maneira geral, o pessimismo, a “nevrose” e desejo de refúgio na contemplação estética surgiram da constatação de que a sociedade se transformara, modernizara-se, e o papel do homem – e especialmente do artista – era discutível nessa nova conjuntura. O espírito do decadente é, portanto, o de alguém que não se vê inserido na sociedade; o olhar crítico do artista sobre a mesma transforma-se em pessimismo. Questionando o futuro dessa sociedade, decide, ao invés de engajar-se, afastar-se tanto quanto possível dos aspectos triviais e mundanos da vida. Comumente representado pelo personagem de J. K. Huysmans em À Rebours, o homem decadente encontra na apreciação artística sua única fonte de prazer, procurando cercar-se desse universo à parte até que não mais se lembre do real e de todas as preocupações a ele relacionadas. A busca por esquecer-se da realidade conduz o Poeta a uma atitude narcísica: na tentativa de ignorar o que ao redor se passa, ele se fecha dentro de si. Ao contrastar a banalidade da vida burguesa com a profundidade de sua vida interior, um mundo fictício começa a ser cultivado. Essa postura, de negação da realidade e desvio do foco para as 44 questões da alma, pode de fato ser encontrada em vários dos textos de Pessanha, como veremos adiante. Nascido em Coimbra em 1867, Camilo Pessanha estudou Direito e formou-se em 1891. Antes disso já iniciara a sua vida literária, escrevendo poemas e colaborando com alguns periódicos, como a revista O Intermezzo e o jornal de província O Novo Tempo.26 Mudou-se para Macau, colônia portuguesa na China, em 1894, para trabalhar como professor do ensino secundário. Como tantos outros, viciou-se em ópio ao viver no Oriente, fato relacionado à sua morte em 1926. Ainda em Macau, passa a trabalhar, a partir de 1900, como Conservador do Registro Predial, ao passo em que continuou publicando alguns poemas, sempre em periódicos. Desta forma, não deixou um volume propriamente dito com sua obra poética; este ficou a encargo do amigo João de Castro Osório, que recolheu alguns dos poemas que Pessanha guardava, memorizados, e publicou, em 1920, a primeira edição de Clepsidra. Várias outras edições seriam lançadas futuramente, com algumas modificações (ortográficas, por exemplo) e alguns textos adicionados à primeira edição27. Além deste relativamente parco volume, publicou-se na década de 1940 um conjunto de artigos que Pessanha escreveu acerca da cultura chinesa, o qual se intitula China. Ao invés de apresentar as características gerais da poesia de Camilo Pessanha para então analisar alguns poemas, optamos pelo percurso inverso: partiremos de algumas leituras para então estabelecermos, no final deste capítulo, alguns dos pontos mais marcantes de Clepsidra. Antes, porém, julgamos importante revisar uma das mais renomadas obras da bibliografia crítica de Pessanha; vejamos o que escreveu, a respeito da poética em questão, Paulo Franchetti em um de seu estudos. Nostalgia, exílio e melancolia busca, como diz o próprio autor, identificar as principais atitudes líricas presentes na obra de Camilo Pessanha. Mencionando recorrentemente ao longo 26 Cf. MOISÉS, M., 2005, p.222 27 Sobre as diferentes edições de Clepsidra, ver a edição crítica, comentada por Paulo Franchetti, que se encontra na bibliografia ao fim deste estudo. 45 do texto a emigração do poeta a Macau, Franchetti inevitavelmente relaciona-a à constância do tema do exílio na Clepsydra, bem como em diversos trechos de cartas de Pessanha a amigos e pares literatos. A primeira fundamentação que o autor oferece para a repetição do tema é um sentimento de perda que está na base da obra poética de Pessanha; perda de referências, em virtude da mudança para Macau e conseqüente ausência do cenário natal. Esse sentimento de perda traz ao Poeta a consciência de que é impossível apreender as experiências e mantê-las. Essa consciência, ligada à vontade de acumular os afetos e sensações (vontade que nunca é satisfeita), reforça a sensação de inutilidade do esforço de fixação das imagens e sensações.28 Se o afastamento é sinônimo de depressão, opõe-se à euforia do enraizamento, ou proximidade da terra-mãe. Estar no solo natal seria, até mesmo, a origem de toda inspiração poética, o que faria de Camões, à vista de Pessanha, um grande herói da nacionalidade, já que estando aquele afastado de seu Portugal por longos anos, conseguiu não apenas encontrar a inspiração poética como direcioná-la para a exaltação de sua nação distante. A essa noção de perda, que Franchetti vincula ao conceito de saudade, opõe ele um outro conceito, o de nostalgia; seria este o desejo de retorno posterior à sensação de perda ou subtração. Através da análise de vários dos sonetos da Clepsydra, Franchetti aponta nos textos poéticos elementos que os liguem aos conceitos que intitulam seu estudo, além das imagens poéticas escolhidas pelo poeta para representar, por exemplo, o desenraizamento, o desejo projetado em figuras míticas ou da natureza, ou a angústia frente à instabilidade do real. A supressão desse desejo de retorno que leva o Poeta ao lamento seria a atitude melancólica, a qual Franchetti principia a definir através dos estudos de Freud quanto à mesma. Revolta impotente do persistente desejo de reintegração, a melancolia triunfaria ao suspender completamente o desejo do Poeta, e essa postura nos remete novamente ao pensamento de 28 Desta temática é um dos mais conhecidos sonetos de Pessanha: “Imagens que passais pela retina”. 46 Schopenhauer. Assim, “a morte é um estado mais feliz porque é o único em que o corpo está livre da dor e da vontade.” (p.127). Porém, “o ideal não é a morte, mas a consciência de estar morto. (...) Essa é uma nota inovadora em Pessanha: a idealização da morte como um momento de consciência desprovida de sensações” (128), por ser “uma espécie de limbo, zona furta-cor entre a existência e a inexistência (...), zona intermédia” (139).29 Conclui o autor, afinal, que a própria vida é sentida como exílio, e que este acaba por se apagar diante do olhar melancólico, que apaga, por sua vez, o desejo de retorno e, assim, a consciência de afastamento da origem. Passemos, então, aos textos poéticos. 1.1 Fé e Morte A questão do pessimismo do Poeta, que continuamente vimos investigando, está estreitamente ligada ao sentimento de perda. Perda de um tempo passado, apartamento de um lugar desejado, perda da alegria ou da esperança, enfim: de muito se vê privado o eu-poético. Quanto a este último aspecto (comum, por sua vez, a toda uma época, e não exclusivo de Pessanha), o da perda da alegria – que pode, por sua vez, significar a perda da inocência ou da crença −, podemos vê-lo recorrentemente entre os poetas que expressam os sentimentos do fin- de-siècle. Em Camilo Pessanha não deixa de aparecer, e, para melhor analisarmos tal postura, veremos como ela se realiza em dois dos sonetos de Clepsidra. SONETO DE GELO Ingênuo sonhador – as crenças d´oiro Não as vás derruir, deixa o destino Levar-te no teu berço de bambino, Porque podes perder esse thesoiro. 29 As páginas citadas referem-se a FRANCHETTI, P. Nostalgia, exílio e melancolia, leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. 47 Tens na crença um pharol. Nem o procuras, Mas bem o vês luzir sobre o infinito!... E o homem que pensou, − foi um precito, Buscando a luz em vão – sempre às escuras. Eu mesmo quero a fé, e não a tenho, − Um resto de batel – quizera um lenho, Para não affundar na treva immensa, O Deus, o mesmo Deus que te fez crente... Nem saibas que esse Deus omnipotente Foi quem arrebatou a minha crença.30 A partir do plano mais superficial da leitura do poema depreendemos a mensagem do Poeta ao interlocutor a quem se dirige; este, sendo (segundo as palavras do Poeta) crente, deveria assim permanecer. O “conselho” do Poeta é para que o outro não perca sua fé. Quanto à composição formal do poema, faz-se de versos decassílabos, com o ritmo alternando entre 2-6-10 e 3-6-10 para a sílaba tônica, e tem esquema de rimas também estabelecido: ABBA, CDDC, EEF, GGF. No âmbito da forma ainda havemos de considerar Pessanha entre seus pares, trazendo, ao menos no que concerne à versificação, pouca ou nenhuma novidade. Quanto ao mais, o uso da forma do soneto, não apenas aqui, mas na maior parte dos poemas que compõem a Clepsidra, faz-nos considerar que o gérmen da modernidade, que se encontra na poesia de Pessanha, dá-se antes por questões da linguagem poética que pela forma em si – métrica, rimas, a forma do soneto, estas consideravelmente contidas, dentro de parâmetros considerados clássicos -, além do desenvolvimento dos temas. No primeiro verso do poema, o eu-poético se dirige ao “ingênuo sonhador”, admoestando-o a não deixar derruírem suas preciosas (“de oiro”) crenças. A possibilidade de que as perca, diz o Poeta, significaria certamente sofrimento para o “sonhador”; antes, deveria este deixar-se levar pelo destino – condição mais feliz que a do descrente. “Tens na crença um farol”. Estabelecendo tal comparação, o Poeta liga a crença à luz, ao mesmo tempo em que diz, nos dois últimos versos da segunda estrofe, que, ao pensar (ao invés de crer), o homem vive em escuridão, sempre 30 Optamos por manter a ortografia da edição crítica preparada por Paulo Franchetti. 48 buscando debalde essa luz que não se procura, mas se pode ver “luzir sobre o infinito”. O farol, guia que lhe orienta a vida, “nem [é procurado]”. Seria, portanto, espontâneo à natureza de uns, dádiva divina concedida, mas apenas àqueles que não o deixam de lado para buscar seu guia na razão. E por que seria a racionalidade sinônimo de dor para o eu-poético? No primeiro terceto é apresentada a razão do Poeta para semelhante postura: sua própria experiência, e uma certa frustração por “[querer] a fé, e não a [ter]”. Esta fé, representada em seguida pelo batel ou lenho,31 (verso 10) é o que conduz o homem em meio à “treva imensa”, no mar de escuridão de que se vê cercado. Estes versos revelam, assim, como o Poeta vê a condição do homem descrente no mundo: cercado de escuridão, prestes a “[afundar] na treva imensa” (verso 11), ora salvo por sua fé, e isso faz dele, e de qualquer outro que se entregue ao pensar – e não ao acreditar – um precito, condenado ao sofrimento, enquanto o crente, por sua vez, é salvo da amargura pela própria fé. Por sua vez, a fé, ora representada pela luz, ora pela embarcação – ambos símbolos daquilo que guia −, pode ser facilmente perdida – ou arrebatada, como é o caso do eu-poético. Na última estrofe do soneto, ele atribui a perda de sua crença a Deus, o mesmo que concedeu ao outro ser crente. De que forma poderia Deus ter-lhe tirado a fé? A idéia parece, em primeiro momento, paradoxal; podemos esclarecê-la, contudo, se admitirmos uma postura inicial, de crente, por parte do eu-poético, que consideraria a capacidade de pensar como um dom atribuído aos homens pela divindade. Se partirmos de tal idéia, seremos levados a pensar que a descrença do Poeta não é a que duvida da existência de um Deus que rege o mundo e concede aos homens o pensar e o ter fé; a descrença, antes, é com relação à possibilidade de se encontrar alguma felicidade nesta vida – ou em qualquer uma, como, por exemplo, a vida post mortem admitida pelo que tem fé. 31 Ambos designam uma espécie de embarcação. 49 Nesta leitura, havemos de encontrar no soneto, como tom que rege o texto de modo geral, a postura pessimista de um eu-poético que, uma vez tendo deixado suas crenças “ingênuas” para buscar a luz através da razão, só encontrou trevas. Vê-se abandonado pela crença, e, assim, foi também deixado pela esperança. O próprio título do poema não pode ser ignorado: sem calor – que provém da mesma fonte que a luz −, na aridez de seu modo cético de ser, o Poeta tem uma vida de frieza e desilusão. A desesperança enregela sua alma, e é essa mensagem “de gelo” que ele passa a seu ouvinte, o “ingênuo sonhador”. Tais considerações, em conjunto com a análise de outros poemas de Clepsidra, permitir-nos-ão mais adiante tecer algumas hipóteses quanto à natureza da crença, da esperança e do futuro na obra de Camilo Pessanha. Vejamos por ora como se desenvolve a idealidade em outro soneto. ESTATUA Cancei-me de tentar o teu segredo: No teu olhar sem cor, - frio escalpello, - O meu olhar quebrei, a debatel-o, Como a onda na crista d´um rochedo. Segredo d´essa alma, e meu degredo E minha obsessão! Para bebel-o, Fui teu lábio oscular, n´um pesadelo, Por noites de pavor, cheio de medo. E o meu osculo ardente, hallucinado, Esfriou sobre o mármore correcto D´esse entreaberto lábio gelado... D´esse lábio de mármore, discreto, Severo como um tumulo fechado, Sereno como um pélago quieto. Embora prevaleçam neste soneto os decassílabos com tônicas em 2 – 6 – 10 ou 3 – 6 – 10, três versos fogem a esse padrão: são o segundo e o terceiro da primeira estrofe, com tônicas dúbias entre 2 – 4 – 6 - 10 e 4 – 6 – 10, e o terceiro da terceira estrofe, que aceitaria uma leitura 50 ainda mais destoante, 1 - 5 – 7 – 10. O esquema de rimas, por sua vez, é de impecável simetria: ABBA, ABBA, CDC, DCD. Vejamos, pois, brevemente adiante, em que extensão se relacionam a forma, a “mensagem” e o título. Embora neste soneto o eu-poético também dirija a voz a alguém, esse outro não é tão facilmente discernível enquanto figura humana ou idéia. Sabemos que é para o Poeta um segredo pelo qual é obcecado, e que não se lhe revelou nem diante das mais fervorosas tentativas. Inamovível qual estátua, lá ficou o mistério não-revelado, e a frustração do Poeta depois das malogradas tentativas. Frio e sem cor como a morte, duro como rocha sobre a qual arrebentam as ondas (1ª estrofe), sobre esse segredo debateu o eu-poético seu olhar perscrutador. Os versos que se seguem, a saber, os dois primeiros da segunda estrofe, são, por sua vez, o mistério do leitor, ao mesmo tempo em que nos abrem possibilidades de interpretar o texto. É-nos então dito que o segredo é a obsessão do Poeta, e também seu degredo. O que poderia ele tanto buscar, que fosse a razão pela qual se vê de algum modo degredado? Os versos seguintes: “Fui teu lábio oscular, n´um pesadelo, / Por noites de pavor, cheio de medo”. Amedrontado, foi o Poeta encontrar, em meio a um pesadelo, o Mistério cujo não-se-revelar o desespera. O próprio encontro causou-lhe medo, e ainda assim foi, alucinado, tentar tocar o Segredo, cuja frieza esfriou o ardor de sua busca, representado pelo calor de seu beijo. A frieza marmórea do Mistério, no entanto, não é completamente hermética; se por um lado é um lábio “de mármore, discreto”, “correto” e “gelado” o que se oferece ao beijo do Poeta, por outro lado é um lábio “entreaberto”, tal como a Morte, cuja compreensão foge ao alcance humano, mas que sempre oferece a fenda pela qual se penetra – sem retorno. Trata-se, inclusive, daquele verso que já citamos como destoante do esquema rítmico do poema; de cadência diferenciada, as tônicas são mais próximas entre si e concentradas mais ao final do verso. 51 Misteriosa, profunda e escura como um túmulo ou pélago,32 a Morte tece o fio que conduz as imagens de que o soneto é composto: o pesadelo, o pavor, o “olhar sem cor”, a frieza marmórea, a severidade, e o mistério que é a obsessão do eu-poético. E como poderia ser então seu “degredo”? O ardor com que busca encontrar a Morte revela a inclinação do eu-poético pelo encontro de algo além do que sua realidade lhe oferece, ou melhor, a “desinclinação” para uma vida voltada ao trivial que ele pode tocar ou compreender. Sentindo a existência de verdades mais profundas e obscuras, busca-as como o exilado que sonha com a terra natal; ainda que o sonho seja, na verdade, pesadelo, medo e desconhecido, não deixa de ser aspiração. A vida é, portanto, o exílio, o que nos leva à conclusão de um lugar de origem fora da vida terrena. Com relação às escolhas formais do poeta, sabemos que, em alguns de seus textos, encontramos laivos da aceitação de tendências inovadoras, como, por exemplo, a abolição do clássico alexandrino ou até mesmo alguns poemas de versos livres. Não é, contudo, o caso deste soneto; a rigidez da forma, bem como a sistematicidade da métrica, melhor condizem com a idéia sugerida, a saber, a da impossibilidade de se chegar ao conhecimento dos mistérios da Morte enquanto ainda aqui se vive. O profundo e obscuro mistério não se dá a conhecer, não se abre, é antes rígido e fechado como um túmulo. Essa sensação de desajuste à vida é o que consideramos leitmotiv da poética moderna, especialmente dos primórdios da modernidade, com o Simbolismo e o Decadentismo, e não há grande dificuldade em se perceber a causa de tal sensação por parte do poeta. Sobre o descontentamento com a realidade já comentamos; trazemo-lo agora e adiante através da leitura direta de alguns textos poéticos de relevo na época. Conseqüência desse desajuste e infelicidade é, portanto, o desejo de escape, cujo primeiro exemplo apresentamos através do soneto “Estátua” (outros serão vistos a seguir). A 32 Mar profundo, abismo marítimo. 52 possibilidade de fuga para outro lugar se dá aqui pela Morte; outras possibilidades ainda há, e poderíamos até mesmo considerar a crença ou inocência do soneto anterior dentro da gama de variações desse mesmo sentimento, já que o crente, de certa forma, ao consolidar sua fé, cria um mundo à prova das desilusões realistas.33 Bastante evidente na literatura romântica – e, por extensão, gótica −, a Morte se fez presente na arte desde seus primórdios. Tomada por diferentes perspectivas dentro dos sucessivos movimentos literários, tem sempre estado no imaginário do artista, assumindo diferentes faces. Ora vista como castigo por uma vida iníqua, ora como alívio de um viver de sofrimentos, é um dos temas universais da arte – e em especial da poesia −, ao lado do amor. No período que nos propomos estudar, a recorrência da Morte como tema se dá com tal intensidade que, ao nos depararmos com ela no soneto de Pessanha, parece-nos relevante ocupar-nos com algumas disposições gerais sobre o tema. Nas linhas gerais em que se delineou o movimento romântico, desenvolveu-se a questão do platonismo com a impossibilidade de realização da união amorosa em vida. Como no clássico caso do jovem Werther, de Goethe, diante da inexorabilidade do destino que lhe impedia a união com sua amada Lotte, o sentido de viver esvaiu-se e a morte figurou como única saída possível do tormento em que vivia; alívio, portanto, de um viver doloroso. Poderia ainda ser, semelhantemente, esperança de que a união do casal, inviável na terra, pudesse se dar na vida futura, no mundo post mortem, em que os aguilhões das convenções sociais fossem desfeitos. O Simbolismo, ao repaginar muitos dos temas e tendências românticos, trouxe novamente com a Morte um aspecto de espiritualidade, ou poderíamos dizer transcendência, que o Realismo lhe negara. Ao buscar um sentido além do tangível ao qual não se conforma, o Poeta simbolista lança-se sobre os mistérios de sua existência; para melhor compreender sua 33 Embora esta seja uma possibilidade de fuga do real mostrada pelo eu-poético, lembramos que esta não é a sua própria posição, mas sim a do crente com quem ele estabelece diálogo no poema. 53 humanidade, volta costas à sociedade. Não é na observação ou compreensão da sociedade que antevê melhor entendimento de sua condição, mas sim nos recônditos mais ocultos de sua própria alma. Ligada intrinsecamente ao mistério da vida, a Morte é parte desse segredo que se guarda do homem / Poeta. Ao escrever sobre o movimento simbolista, Edmund Wilson, citando Gérard de Nerval, refere-se à [...] confusão entre o imaginário e o real, entre as nossas sensações e fantasias, de um lado, e o que efetivamente fazemos e vemos, de outro. Era tendência do simbolismo – aquela segunda oscilação do pêndulo para longe de uma visão mecanicista da natureza e de uma concepção social do homem – fazer da poesia uma questão de sensações e emoções do indivíduo, mais ainda do que fora o caso no romantismo: na verdade, o simbolismo acabou, algumas vezes, fazendo da poesia assunto tão privativo do poeta que ela se tornou incomunicável ao leitor. (WILSON, 1985, p.43) Assim, a obra do poeta simbolista não é painel da sociedade, nem do homem no que oferece às vistas alheias: é espelho do caos que lhe vai no interior, da mistura das mais nebulosas sensações que encontra nas zonas profundas de seu espírito sensível. Na tentativa de refugiar-se do mundo dentro da riqueza que vê dentro de si, exila-se dos aspectos práticos ou triviais da vida cotidiana dentro de um universo de mistério infinito que sua sensibilidade e seu refinamento estético criam. Sobre essa sensibilidade fala José Carlos Seabra Pereira, no capítulo dedicado ao Decadentismo na sua obra Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa: “O que parece caracterizar primariamente o Decadentismo é um estado de sensibilidade. Este é, em simultâneo, o próprio do homem finissecular desgostado de si mesmo e da civilização em crise aberta” (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 22). Nem por isso poderíamos, contudo, inferir ser Pessanha um decadentista; é sabido que as tendências que se manifestaram na arte finissecular não se estancaram dentro de determinadas escolas, mas atingiram, de maneiras e intensidades diferentes, a arte e os artistas de todo o período. 54 Embora não tão hermética quanto a poesia de Mallarmé, a de Pessanha se nos apresenta, neste aspecto, como abertura de possibilidades de interpretação, ou melhor, como impossibilidade de haver uma ou outra interpretação definitiva. Por adotar a sugestão ao invés da idéia claramente comunicada, vem sendo considerada entre as maiores manifestações do Simbolismo em Portugal. 1.2 Exilado em si Não apenas na Morte ou na riqueza do interior de