PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ADRIANA FERREIRA SERAFIM DE OLIVEIRA AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA LEGISLAÇÃO E NOS DEPOIMENTOS RIO CLARO/SP 2018 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO Tese apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Educação. ADRIANA FERREIRA SERAFIM DE OLIVEIRA AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA LEGISLAÇÃO E NOS DEPOIMENTOS Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leila Maria Ferreira Salles Coorientador: Prof. Dr. Jorge Luís Mialhe Rio Claro/SP 2018 Tese apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Educação. Oliveira, Adriana Ferreira Serafim de As políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher na legislação e nos depoimentos / Adriana Ferreira Serafim de Oliveira. - Rio Claro, 2018 261 f. : il., figs., gráfs., quadros, mapas Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientadora: Leila Maria Ferreira Salles Coorientador: Jorge Luís Mialhe 1. Violência – Aspectos sociológicos. 2. Violência doméstica. 3. Políticas públicas. 4. Violência contra a mulher. 5. Casa abrigo. 6. Reflexos da violência doméstica. I. Título. 303.6 O48p Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP - Adriana Ap. Puerta Buzzá / CRB 8/7987 Para meu pai, Júlio P. de Oliveira (in memoriam) que me inspirou a buscar o entendimento das construções sociais prevalentes e nem sempre as seguir, mas optar pelo que acalma a alma. AGRADECIMENTOS Gratidão aos familiares pelo apoio aos meus objetivos e aos amigos e amigas que com suas atitudes perante a vida me inspiraram a refletir sobre a desigualdade de gênero ainda vigente nas sociedades. Agradecimentos às mulheres importantes na minha vida, aqui inominadas, as quais transformam sonhos em realizações, transpõem obstáculos cotidianos, preconceitos sociais e profissionais, àquelas de onde originei e para as que vierem, para as jovens que colhi no caminho da docência, para as irmãs que a vida trouxe. Àquelas que gerenciam sua autonomia, entretanto, dedicam tempo para amar. Àquelas que demonstram os anos idos, mas são movidas por sua criança interior plena de anseios e esperanças. Às que são mágicas porque proferem palavras que dão sentido à vida e fazem com que tudo valha a pena. Agradeço em especial a minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Leila Maria Ferreira Salles pelas orientações, sabedoria e ensinamentos na área de Educação quanto à percepção do fenômeno violência em sociedade e a desigualdade de gênero, fatores que construímos um entendimento descolado do que apenas a lei determina, e no mesmo sentido à Prof.ª Dr.ª Joyce Mary Adam por inicialmente acreditar na minha capacidade de desenvolver pesquisas na área das ciências humanas. Gratidão ao meu coorientador, Prof. Dr. Jorge Luís Mialhe, pelas orientações e profícuas aulas de História e aos demais professores do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da UNESP – câmpus Rio Claro e da Faculdade de Educação da UNICAMP – câmpus Campinas, pelas memoráveis aulas e ensinamentos, os quais foram inspiradores dos estudos aos saberes nos campos da Sociologia, História, Filosofia e Psicologia. Os agradecimentos estendem-se aos funcionários da UNESP – câmpus Rio Claro quanto ao atendimento administrativo e informações prestadas, como também aos meus colegas de sala de aula pela companhia e parceria no compartilhar das angústias, dos seminários, das leituras e interpretações dos textos acadêmicos. Por fim e na mesma relevância, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (CAPES-MEC) pela concessão da bolsa de estudos na modalidade sanduíche para custear as pesquisas junto à Universidade Complutense de Madrid na Espanha, à Prof.ª Drª Maria Concepción Fernandez Villanueva pela dedicação, orientação dos estudos de gênero e violência junto à Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia e ao Prof. Dr. José Antônio Tomé Garcia pela orientação quanto à legislação a respeito do enfrentamento à violência doméstica pelo Estado espanhol junto à Faculdade de Direito. Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas… Intervalo…. Nada… (PESSOA, 2011, p. 57) RESUMO Esta pesquisa estudou, mapeou e investigou as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil, na legislação e nos depoimentos. Para tanto, analisamos conforme o entendimento dos autores visitados, o poder simbólico masculino exercido nas sociedades, os movimentos feministas, as conquistas das mulheres em termos de legislação internacional e nacional, a concepção de violência, de violência de gênero, de violência doméstica e as políticas públicas implantadas, tais como, as delegacias de polícia próprias para o atendimento das mulheres, os centros de referência para aconselhamento e encaminhamento dessas vitimadas e as casas abrigo para acolhimento das mulheres e sua prole, as quais não contam com outra opção para afastarem-se do lar e do agressor. O estudo estendeu-se à cidade de Madrid, na Espanha, junto às Faculdades de Direito e de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense, para o estabelecimento de um comparativo entre as ações estatais brasileiras e espanholas diante da violência contra as mulheres. A pesquisa foi desenvolvida interdisciplinarmente, valendo-se da metodologia de abordagem qualitativa por permitir esclarecer fatos importantes para o entendimento do fenômeno violência, possibilitando que algumas mulheres abrigadas e que estiveram anteriormente acolhidas, fossem entrevistadas e oferecessem sua visão sobre a violência que sofreram e suas consequências. Palavras-chave: Políticas públicas. Violência contra a mulher. Reflexos da violência doméstica. ABSTRACT This research studied, mapped and investigated the public policies to combat the violence against women in Brazil, in the legislation and in the testimonies. In order to do so, we analyzed the male symbolic power exercised in societies, feminist movements, women's achievements in terms of international and national legislation, conception of violence, gender violence, domestic violence and the public policies, such as, the Police Stations for the care of women, the centers of reference for counselling and referral of these victims and shelter´s houses for women and their children, who don´t have other option to move away from home and the aggressor. The research extended to Spain, in Madrid, at the Complutense University at the Colleges of Law and Political Science and Sociology, for the establishment of a comparison between Brazilian and Spanish states actions on violence against women. The research was developed interdisciplinary and used the qualitative methodology for clarifying important facts for the understanding of the phenomenon of violence, allowing that some women sheltered and that were sheltered had been interviewed and offer their vision on violence that they suffered and their consequences. Keywords: Public policy. Violence against women. Reflections of domestic violence. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Judite decapitando Holofernes – Artemísia Gentileschi (1614-1620) .................. 44 Figura 2 – Sessão do Conselho de Estado, presidida pela Princesa Leopoldina – Georgina de Albuquerque (1885-1962) ............................................................................................... 52 Figura 3 – Municípios onde estão instalados os Juizados Especializados em Violência Doméstica e Familiar ......................................................................................................... 122 Figura 4 – Mapa da Espanha ............................................................................................. 141 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Instituições responsáveis pelo atendimento à mulher vítima de violência ........ 115 Gráfico 2 – Centros de referência da mulher por regiões do Brasil .................................... 116 Gráfico 3 – Casas de acolhida por regiões do Brasil .......................................................... 117 Gráfico 4 – Estatística de violência contra a mulher por regiões do Brasil ......................... 129 Gráfico 5 – Inquéritos policiais no TJSP em 2016 .............................................................. 131 Gráfico 6 – Termos recorrentes na legislação – Espanha .................................................. 177 Gráfico 7 – Tipo de violência sofrida pelas entrevistadas ................................................... 196 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Formas de violência e âmbitos de manifestação ............................................... 58 Quadro 2 – Atendimentos nos Centros de Referência à Mulher ........................................ 111 Quadro 3 – Delegacias de Defesa da Mulher em São Paulo ............................................. 118 Quadro 4 – Delegacias de Defesa da Mulher no interior e litoral do estado de São Paulo . 119 Quadro 5 – Municípios com Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher .. 122 Quadro 6 – Centros de referência à mulher no município de São Paulo ............................ 124 Quadro 7 – Unidades de saúde para atendimento de vítimas de violência sexual ............. 125 Quadro 8 – Centros de referência da mulher no estado de São Paulo .............................. 126 Quadro 9 – Casas abrigo no estado de São Paulo ............................................................ 127 Quadro 10 – Número de UFAMs ....................................................................................... 152 Quadro 11 – Número de casas de acolhida por especialidade .......................................... 155 Quadro 12 – Termos recorrentes nos tratados internacionais ............................................ 161 Quadro 13 – Termos recorrentes na legislação brasileira – violência doméstica ............... 165 Quadro 14 - Ações - PNPM - enfrentamento da violência de gênero ................................. 169 Quadro 15 – Termos encontrados na legislação espanhola............................................... 173 Quadro 16 –- Nome atribuído às entrevistadas de acordo com a cidade e o abrigo aonde estiveram acolhidas ........................................................................................................... 183 Quadro 17 – As entrevistadas segundo idade, escolaridade, cor, estado civil, trabalho e renda ................................................................................................................................. 192 Quadro 18 – As entrevistadas segundo o parentesco com o agressor, tempo de relacionamento, número de denúncias e tempo de permanência em abrigos .................... 193 Quadro 19 – Os filhos das entrevistadas, idade, escolaridade e o parentesco com o agressor .......................................................................................................................................... 194 Quadro 20 - Campos científicos e explicações do comportamento violento ....................... 216 LISTA DE SIGLAS CDESC Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais CEDAW Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CEJIL Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional CF/1988 Constituição Federal de 1988 CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos CLADEM Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CNJ Conselho Nacional de Justiça COMESP Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar CRAM Centro de Referência à Mulher CRAS Centro de Referência e Assistência Social CRAVI Centro de Referência e Apoio à Vítima CREAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social CSW Comissão de Status da Mulher DDM Delegacia de Defesa da Mulher DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos ECA Estatuto da Criança e do Adolescente IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada MEC Ministério da Educação e Cultura MRE Ministério das Relações Exteriores OAS Organization American States OEA Organização dos Estados Americanos ONU Organização das Nações Unidas PIDCP Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos PIDESC Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PMSP Prefeitura Municipal de São Paulo PNPM Plano Nacional de Políticas para as Mulheres SDH Secretaria de Direitos Humanos SEPPIR Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SPM Secretaria de Políticas para Mulheres STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TJ Tribunal de Justiça TRF Tribunal Regional Federal UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESP Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13 1.1 Percurso metodológico da pesquisa ....................................................................... 18 1.1.1 Procedimentos ......................................................................................................... 20 1.1.1.1 Revisão da bibliografia .......................................................................................... 20 1.1.1.2 Análise documental ............................................................................................... 20 1.1.1.3 Pesquisa de campo ............................................................................................... 22 1.1.2 Descrição do local da pesquisa de campo ................................................................ 25 1.1.3 Análise e tratamento dos dados: documentos e entrevistas semiestruturadas ......... 34 1.2 Estruturação da pesquisa teórica e de campo ........................................................ 36 2 A CONCEPÇÃO DE VIOLÊNCIA, VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ....................................................................................................................... 38 2.1 A sociedade, o poder simbólico e a dominação masculina ................................... 39 2.2 Estudos feministas e de gênero ............................................................................... 47 2.3 O conceito de violência e de violência simbólica ................................................... 53 2.4 Violência de gênero e violência doméstica ............................................................. 56 2.5 Os filhos como vítimas de violência doméstica ...................................................... 61 2.6 Fatores desencadeantes da violência de gênero e doméstica .............................. 64 2.7 Violência, violência de gênero e violência doméstica: considerações ................. 66 3 O ESTADO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEUS FILHOS E FILHAS ................................. 68 3.1 As políticas públicas e os direitos das mulheres no transcorrer dos séculos XX e XXI .................................................................................................................................... 68 3.1.1 A conexão entre as conquistas femininas em termos de direitos e a história da educação superior feminina no Brasil .................................................................................. 69 3.1.2 Direitos humanos, direitos fundamentais e as conquistas das mulheres nas décadas de 40 a 60 no século XX ...................................................................................................... 74 3.1.2.1 A menção à mulher no tratado internacional – A Carta das Nações Unidas de 1945........................................................................................................................................76 3.1.2.2 O período da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e da Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948 ou Carta de Bogotá ................ 80 3.1.3 Os direitos conquistados pelas mulheres a partir da década de 1960 ...................... 83 3.1.3.1 O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 ................................. 83 3.1.3.2 O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 .... 84 3.1.3.3 A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 e o legado para o Brasil . 84 3.1.3.4 A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - 1979) e a Constituição Federal de 1988 ................................................. 87 3.1.3.5 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará de 1994 .................................................................. 92 3.1.3.6 Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher – 1995 .............................................................................................................................. 96 3.1.3.7 Protocolo de Palermo de 2000 .............................................................................. 98 3.1.3.8 A legislação e o acolhimento de crianças e adolescentes com suas mães ............ 99 3.2 Os serviços especializados para o enfrentamento da violência de gênero e doméstica ......................................................................................................................... 100 3.2.1 Os serviços especializados para o enfrentamento da violência doméstica no Brasil .... ............................................................................................................................... 106 3.2.1.1 Serviço especializado – Disque 180 .................................................................... 106 3.2.1.2 Serviço especializado - Delegacias da Mulher ..................................................... 107 3.2.1.3 Serviço especializado – Varas Judiciais para Violência Doméstica ..................... 108 3.2.1.4 Serviço especializado - Centros de Referência da Mulher ................................... 110 3.2.1.5 Serviço especializado - Casas abrigo .................................................................. 111 3.3 A distribuição geográfica no território brasileiro desses serviços especializados .. .................................................................................................................................. 113 3.3.1 A distribuição geográfica dos serviços especializados no estado de São Paulo ..... 118 3.3.1.1 Distribuição geográfica das Delegacias de Defesa da Mulher ............................. 118 3.3.1.2 Distribuição geográfica dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher no estado de São Paulo ......................................................................................... 121 3.3.1.3 Os Centros de referência no estado de São Paulo .............................................. 123 3.3.1.4 As casas abrigo no estado de São Paulo ............................................................ 127 3.4 As políticas públicas do Estado brasileiro: concepções e a relação com os três poderes............................................................................................................................. 132 4 O ESTADO ESPANHOL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEUS FILHOS E FILHAS .............................................. 140 4.1 A legislação espanhola sobre violência contra as mulheres e violência de gênero .................................................................................................................................. 140 4.1.1 Considerações sobre o Estado espanhol ............................................................... 140 4.1.2 O tratado internacional, Convênio de Istambul de 11 de maio de 2011 sobre prevenção e luta contra a violência contra a mulher e a violência doméstica ...................................... 143 4.1.3 A Lei orgânica 1/2004 de 28 de dezembro sobre medidas de proteção integral contra a violência de gênero ......................................................................................................... 145 4.1.4 A Lei orgânica 3/2007 de 22 de março de 2007 para a igualdade efetiva de mulheres e homens ........................................................................................................................... 148 4.2 Serviços de atendimento à mulher vítima de violência de gênero na Espanha . 151 4.2.1 Serviço especializado – disque 016 ........................................................................ 151 4.2.2 Serviço especializado – Unidades de Família e Mulher - UFAM ............................. 152 4.2.3 Serviço especializado – Varas judiciais .................................................................. 154 4.2.4 Serviço especializado – casa de acolhida .............................................................. 154 4.3 Algumas considerações sobre as políticas públicas do Estado espanhol ......... 156 5 SEMELHANÇAS E DESIGUALDADES ENTRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS E ESPANHOLAS QUANTO ÀS REDES DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA ....................................................................... 160 5.1 Análise da legislação internacional e brasileira em relação à violência de gênero e doméstica ...................................................................................................................... 160 5.2 Análise da legislação internacional seguida pela Espanha e da legislação espanhola de enfrentamento à violência de gênero e doméstica ................................ 172 5.3 Semelhanças e desigualdades entre as políticas públicas brasileiras e espanholas ....................................................................................................................... 177 5.3.1 Quanto aos tratados internacionais, textos internacionais e às legislações brasileira e espanhola .......................................................................................................................... 178 5.3.2 Quanto às redes de proteção e atendimento às vítimas de violência de gênero e doméstica .......................................................................................................................... 179 6 O QUE A FALA DAS MULHERES REVELA ............................................................... 182 6.1 As entrevistadas ...................................................................................................... 183 6.1.1 Antônia ................................................................................................................... 183 6.1.2 Helena .................................................................................................................... 184 6.1.3 Mercedes ............................................................................................................... 186 6.1.4 Aparecida ............................................................................................................... 186 6.1.5 Sandra.................................................................................................................... 187 6.1.6 Joana ..................................................................................................................... 188 6.1.7 Amélia .................................................................................................................... 189 6.1.8 Marta ...................................................................................................................... 190 6.2 As entrevistadas e seus filhos ............................................................................... 191 6.3 Os depoimentos das entrevistadas ....................................................................... 195 6.3.1 A violência sofrida e as explicações para ela.......................................................... 195 6.3.2 A rede de apoio ...................................................................................................... 205 6.3.3 A ida e a vida das mulheres no abrigo .................................................................... 207 6.3.4 A vida das crianças e adolescentes no abrigo ........................................................ 212 6.4 As políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e as redes de atendimento e proteção .................................................................................................. 213 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 219 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 230 APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO DO TCLE ..................................................................... 249 APÊNDICE B – ROTEIRO DA ENTREVISTA ................................................................... 250 APÊNDICE C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE) ........ 251 ANEXO A – AUTORIZAÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ............................................. 255 ANEXO B – CORREIO ELETRÔNICO Nº 1 DE ÓRGÃO DO GOVERNO ESPANHOL .... 256 ANEXO C – CORREIO ELETRÔNICO Nº 2 DE ÓRGÃO DO GOVERNO ESPANHOL .... 258 13 1 INTRODUÇÃO No amanhecer do século XXI, o espaço das mulheres nas sociedades ainda não está definido totalmente por elas mesmas, embora a humanidade em sua história conte com ícones femininos, as mulheres ocupam posições pré-determinadas por gerações cunhadas pelos ideais do patriarcado. Conforme a moral vigente nas sociedades formadoras da sociedade internacional, as mulheres possuem maior ou menor mobilidade de gerirem suas vidas em consonância com seus anseios. A flexibilidade dos costumes culturais e sociais possibilita o rompimento da construção social secular de que o lugar das mulheres nas sociedades é determinado pela natureza, destinando-as aos cuidados domésticos e por exceção, permitindo alguns acessos aos espaços públicos e profissionais, o que determinava de pronto que alguns cursos profissionalizantes e universitários, como consequência, empregos, fossem destinados naturalmente aos homens. No afã de investigar a efetividade da rede pública de atendimento e proteção às mulheres vitimadas por violência em razão do gênero e a violência às mulheres em âmbito doméstico, esbarramos com a história da posição da mulher nas sociedades e da educação feminina, como também as construções sociais prevalentes acerca dos valores patriarcais, fatos justificantes para a investigação acadêmica em questão. Desse modo, a presente pesquisa estudou, mapeou e investigou as políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica na legislação e nos depoimentos. Dentro das políticas oferecidas pelo Estado brasileiro, a pesquisa de campo voltou-se para o estudo dos serviços oferecidos pelas casas abrigo e a percepção de mulheres abrigadas sobre essa política. Paralelamente, o estudo desenvolveu-se na Espanha, na cidade de Madrid onde a legislação e as políticas públicas oferecidas pelo Estado espanhol no enfrentamento da violência contra a mulher foram pesquisadas traçando um panorama comparativo com o oferecimento desses serviços no Brasil. A ideia inicial desse estudo decorreu do desdobramento das reflexões desencadeadas pelas discussões e debates proferidos após a defesa e a publicação da dissertação de Mestrado em Direito, intitulada “As Convenções Islâmicas sobre direitos humanos e a tutela dos direitos fundamentais das mulheres muçulmanas”, na qual foram analisados os direitos fundamentais do gênero feminino nas comunidades muçulmanas, considerando as convenções - os dois textos internacionais de direitos 14 humanos1 elaborados pela Liga dos Estados Árabes. Referidos instrumentos de acordos internacionais entre Estados membros da Liga Árabe2 não atingiram a universalidade de direitos a favor das mulheres, tendo em vista que as sociedades islâmicas, guardadas as diferentes secções do islamismo a que pertencem – desde as moderadas como as fundamentalistas quanto à interpretação dos preceitos religiosos - são em maioria regidas pelo poder patriarcal, inclusive quanto à liberdade e à educação das mulheres, são avalizadas pelos homens de suas sociedades e famílias. O clamor social internacional em favor dos direitos humanos no pós-guerra acabou por colocar no centro das discussões os direitos à vida, à integridade física e à liberdade do ser humano na maioria das nações componentes da sociedade internacional. Desse modo, a Organização das Nações Unidas e as instituições internas dos Estados elaboraram e implantaram mecanismos para coibir e punir abusos quanto aos direitos humanos ao mesmo tempo em que trabalham na difusão de políticas para conscientização desses direitos. A partir desse ponto, as discussões em congressos sobre o tema propiciaram o entendimento de que mesmo com a positivação de normas internacionais a respeito da tutela dos direitos fundamentais o panorama da desigualdade de gênero, gritante em algumas sociedades seguidoras do islamismo, subsiste no Brasil, contudo, em alguns aspectos, veladamente. Quando se trata de violência doméstica contra a mulher, o imaginário social3 ainda não concebe firmemente esse tipo de violência aquém dos danos físicos, desconsiderando por vezes os danos psíquicos e emocionais e as vítimas indiretas desses conflitos, demonstrando que o patriarcalismo possui raízes vivas nas sociedades contemporâneas, sobretudo, na brasileira, concebida por reiteradas miscigenações e imigrações. 1 Os direitos fundamentais conforme, o entendimento da Liga Árabe de Estados, foram discutidos a partir dos textos da Carta Árabe sobre Direitos Humanos de 1994 e da Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos de 1990, em comparação com o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. (OLIVEIRA, 2014, p. 53) 2 Estados da Liga Árabe: Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Catar, Comores, Djibouti, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Palestina, Síria (suspenso), Omã, Somália, Sudão e Tunísia. A Liga Árabe foi criada em 1945. (BRASIL, 2017, p. 1) 3 A psicanálise mostra que a imaginação não é uma faculdade psicológica isolada, mas uma atividade construída coletivamente, para organizar um mundo ajustado às suas necessidades e conflitos, como também toda cultura pode ser considerada como um sistema simbólico que visa expressar aspectos da realidade física e da realidade social. (BACZKO, 1999, p. 26) 15 Ao dirigir o olhar para as mulheres vítimas de violência de gênero e doméstica, observamos que esse fenômeno ocorre em todas as sociedades e classes sociais, não sendo fator exclusivo da desigualdade social, mas de um comportamento patriarcal sedimentado nas sociedades e das relações familiares, nas quais as mulheres não são as únicas vítimas, mas também seus filhos, filhas e ainda quaisquer parentes que necessitem estar amparados por elas. O pré-julgamento de que a informação qualificada e o encaminhamento correto dessas mulheres, como também o abrigamento das mesmas com sua eventual prole, são serviços vitais em primeira via para a tutela da vida, integridade física e liberdade, transformaram essas reflexões em projeto de pesquisa junto ao Programa de Pós- Graduação do Departamento de Educação da UNESP - Rio Claro sob as orientações da Prof.ª Drª Leila Maria Ferreira Salles, conforme as possibilidades de investigações realizadas pela linha de pesquisa: Educação - políticas, gestão e o sujeito contemporâneo. A pesquisa demandou estudos em área interdisciplinar e para tanto as análises nos campos de estudo do Direito Internacional e da História da Educação contaram com as orientações do professor coorientador da pesquisa, Dr. Jorge Luís Mialhe, professor do Departamento de Educação da UNESP de Rio Claro e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIMEP de Piracicaba. As demais contribuições à pesquisa seguiram-se no curso do estágio doutoral na Espanha, na cidade de Madrid junto às Faculdades de Direito e de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madrid, nos câmpus de Moncloa e Somossaguas, respectivamente. A pesquisa na Espanha ocorreu sob a orientação da Prof.ª Drª Maria Concepción Fernandez Villanueva, professora com estudos referentes ao sexismo nas sociedades e aos aspectos da violência de gênero contra as mulheres e concomitantemente com a contribuição do Prof. Dr. José Antônio Tomé Garcia, especialista jurídico no campo processual penal quanto à violência doméstica na Espanha, propiciando posteriormente à pesquisa, a comparação entre as legislações e as políticas públicas de ambos países. A Espanha foi eleita como país para comparar as legislações e serviços especializados no enfrentamento da violência contra a mulher porque os legisladores espanhóis desenvolveram a primeira legislação de enfrentamento à violência doméstica em 28 de dezembro de 2004, que eles melhor entendem como violência de gênero, fruto dos movimentos feministas, que ocorreram em meados do século XIX 16 e décadas de 1920 e 1930 do século XX, demonstrando que as políticas na área estão mais consolidadas, segundo a Lei orgânica4 1/2004. No Brasil as políticas públicas direcionadas ao enfrentamento da violência contra a mulher são recentes, tomando como marco o impulso dado pela positivação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei “Maria da Penha”, a qual completou onze anos em agosto de 2017, sem que todas as suas determinações estivessem implantadas, uma delas, a presença de um centro de referência da mulher na maioria dos municípios do Brasil. Daí adveio a importância de um estudo comparativo sobre as semelhanças e diferenças entre as legislações e as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero nos Estados brasileiro e espanhol, orientado na Espanha pela Prof.ª Drª Maria Concepción Fernández Villanueva, catedrática e diretora do Departamento de Psicologia Social da Universidade Complutense de Madrid, a qual investiga diversas dimensões da violência nas sociedades e esteve envolvida em pesquisas junto ao Departamento de Educação da UNESP – Rio Claro em coautoria com a professora orientadora desta pesquisa. Desse modo, a pesquisa foi desenvolvida a partir da perspectiva filosófica pautando-se pelo humanismo. De acordo com Britto (2012) um entendimento conceitual do humanismo consiste em um conjunto de princípios unificados pelo culto ou reverência ao sujeito universal “humanidade”. Nas palavras do autor: [...] o humanismo no sentido de crença na aventura humana. Isto no pressuposto de ser o homem a obra prima da Criação. [...] o homem como único ser capaz de pactuar com os seus semelhantes uma vida em estado de sociedade tendo por contraponto um virginal estado de natureza. (BRITTO, 2012, p. 19-20) O mesmo autor considera que a circunstância do humano confere uma dignidade primaz, reconhecida pelo Direito como fator legitimante dele próprio que fundamenta o Estado e a sociedade. No mesmo sentido em suas próprias palavras: [...] o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana decola do pressuposto de que todo ser humano é um microcosmo. Um universo em si mesmo. Um ser absolutamente único, na medida em que, se é parte de um todo, é também um todo à parte; isto é, se toda pessoa natural é parte de algo (o corpo social), é ao mesmo tempo um algo à parte. A exibir na lapela da própria alma o bóton de uma originalidade que ao Direito só compete reconhecer até para se impor como 4 Lei orgânica no ordenamento jurídico espanhol são um prolongamento do pacto constitucional. Para serem aprovadas exigem os votos da maioria absoluta do Congresso. (LOPES, 2011). 17 expressão de vida comum civilizada [...]. (BRITTO, 2012, p. 27) A opção pelo olhar humanista quanto ao pesquisado deu-se pelo fato da pesquisadora considerar a humanidade como sujeito universal e consequentemente os seres humanos, enquanto indivíduos, participantes da vida em sociedade, a coletividade, os quais pactuam entre si suas vontades, espaço social das mulheres e dos homens, os quais são detentores de direitos e obrigações e impulsionadores dos clamores de suas sociedades, onde cabem os movimentos feministas, que defendem a igualdade de direitos entre mulheres e homens. Segundo Pinto (2010), o movimento feminista tem uma característica particular para o entendimento de sua história e seus processos, tratando-se de um movimento que produz sua própria reflexão crítica e teoria, podendo conhecer o movimento feminista através da história do feminismo e da produção teórica feminista, o que provocou um interessante embate e reordenamento de diversas naturezas na história dos movimentos sociais e nas próprias teorias das ciências humanas em geral. (p. 15) Cabe ressaltar que os homens e os indivíduos transgêneros5 podem ser vítimas desse tipo de violência numa relação familiar, considerando que a família atualmente não é formada apenas por um casal heterossexual, mas também por casais homossexuais, casais transgêneros ou a combinação desses gêneros e os respectivos filhos, entretanto, esta pesquisa ateve-se ao estudo da violência doméstica em relação às mulheres, tendo como formação familiar o casal (homem e mulher) e consequentemente os filhos, visando entender as políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Para além desse estudo, podemos admitir que as famílias sofrendo transformações com o deslocamento do núcleo familiar quanto à formação e responsabilidades compartilhadas entre os membros, inclusive reconhecidas pelas leis, essas famílias são passíveis de envolverem-se em conflitos domésticos e por razões do gênero, os quais poderão ser potenciais beneficiários das políticas públicas implantadas e a serem elaboradas visando o enfrentamento da violência de gênero e doméstica. 5 Identidade de gênero significa com que gênero uma pessoa se identifica, podendo ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento, pois uma pessoa pode nascer com um sexo biológico (homem ou mulher) e se identificar com o gênero oposto (masculino ou feminino), que não se confunde com orientação sexual, que é a atração afetivo-sexual por alguém, relativa à sexualidade (heterossexual, homossexual ou bissexual). (SILVA; BEZERRA; QUEIROZ, 2015, p. 365-366) 18 Os objetivos norteadores da pesquisa foram estruturados em objetivo geral e objetivos específicos. O estudo tem por objetivo geral investigar as políticas de enfretamento à violência doméstica e seu impacto na vida das mulheres beneficiárias destas políticas e na vida de suas filhas e filhos. Constituem-se objetivos específicos deste estudo: - mapear e analisar as legislações e as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero e doméstica no Brasil e na Espanha; - identificar e analisar a concepção de violência que fundamenta essas políticas; - discutir a família e as casas abrigo como redes de atendimento e proteção às mulheres vítimas de violência de gênero e doméstica no Brasil e na Espanha; - investigar e caracterizar a partir dos depoimentos das mulheres como as redes de atendimento e proteção (família e casas abrigo) se inserem nas histórias de vida dessas mulheres abrigadas e suas filhas e filhos; 1.1 Percurso metodológico da pesquisa Esta pesquisa teve uma abordagem interdisciplinar na medida em que abrangeu contribuições do campo das ciências humanas e sociais, especialmente das áreas da Sociologia, História, Psicologia e Ciências jurídicas. A interdisciplinaridade é entendida por Bicudo (2008) como um modo de proceder, de pesquisar, pautada na lógica da disciplina, interconectando-as, preservando o rigor inerente aos procedimentos científicos. (p. 145) No mesmo sentido, Trindade (2008) considera que a contextualização sociocultural e histórica da ciência e da tecnologia está associada às ciências humanas e cria interfaces com outras áreas do conhecimento. A interdisciplinaridade apresenta-se como possibilidade de resgate do ser humano com a totalidade da vida, representando uma nova etapa no desenvolvimento da ciência. (p. 66-68) Os mecanismos de enfrentamento à violência de gênero e ou doméstica implantados pelo Estado brasileiro e espanhol comportam estudo interdisciplinar, pois o tema abarca questões de gênero, legislações, concepções de violência e políticas públicas. Conforme o entendimento de Gatti (2002) a pesquisa educacional compreende diversas questões de diferentes conotações que estão relacionadas de modo complexo ao desenvolvimento das pessoas e das sociedades e desse modo abrange 19 aspectos filosóficos, sociológicos, psicológicos, políticos, históricos, entre outros. (p. 13). A produção de conhecimento por meio desta pesquisa irá se definir através da metodologia qualitativa. Segundo os autores Ludke e André (1986), essa abordagem na área de educação caracteriza-se pelo contato direto do pesquisador com a realidade, o que oferece a possibilidade de documentar o que não era revelado, tendo em vista o caráter investigativo de percepção da realidade. A escolha pela pesquisa qualitativa permite a identificação dos significados culturais presentes nos diferentes grupos de participantes, no caso, na forma de pensar das entrevistadas, verificando as semelhanças e as diferenças nos discursos das participantes da pesquisa. O significado que as pessoas dão às coisas e as situações de sua vida, são focos importantes de atenção para o pesquisador. A preocupação com o processo é maior que com o produto. No caso de aplicação de entrevistas, inicia-se com perguntas em focos que vão afunilando-se no processo de coleta de dados. (Ibidem, p. 11-12) A metodologia de abordagem qualitativa por meio da aplicação da ferramenta da entrevista, por exemplo, é um processo e um produto, pois permite o estudo de inúmeras subjetividades dentro de um grupo, permitindo a flexibilidade e a interação do pesquisador com o participante da pesquisa por meio dos instrumentos utilizados, no caso deste estudo, a aplicação de questionário e entrevista. Em outra análise, a investigação qualitativa nas considerações de Valles Martínez (2007), trata de um fenômeno empírico, localizado socialmente, definido por sua própria história ao longo do tempo, sendo bastante utilizada atualmente nas pesquisas nas ciências sociais e humanas. (p. 21-23) Aguirre Batzán (1995) considera que os grupos humanos são diversos em suas adaptações espaço-temporal e os sistemas culturais resultantes são únicos e não repetidos e se admitíssemos semelhanças entre uns e outros não estaremos inferindo nenhum princípio de universalidade. As culturas são absolutas em si mesmas e relativas para as demais e todas elas são dignas porque foram capazes de construir seu mundo cultural. Generalizar e universalizar confere poder centralizador empobrecendo a riqueza plural da realidade, pois o particular é complexo, enquanto a abstração generalizadora é uma simplificação da realidade. (AGUIRRE BATZÁN, 1995, p. 5) Dessa maneira, o modo como cada participante da pesquisa enxerga a 20 realidade é passível de ser coletada através das ferramentas permitidas na metodologia de abordagem qualitativa, como por exemplo, a entrevista, sendo importante para a captação dos dados da verdade não revelada até então, pois o participante está imerso numa cultura, em sua forma de viver e expressar-se. 1.1.1 Procedimentos Para a concretização dos objetivos deste estudo os procedimentos realizados foram: revisão da bibliografia, análise documental e pesquisa de campo. 1.1.1.1 Revisão da bibliografia A revisão da bibliografia pertinente referiu-se às temáticas sobre violência de gênero, violência doméstica, políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, reflexos deste tipo de violência nas vidas das mulheres vitimadas e sua prole. 1.1.1.2 Análise documental Foram realizados mapeamentos e análises documentais sobre textos internacionais, legislações internacionais, brasileiras e espanholas relativos aos direitos fundamentais das mulheres conquistados a partir da segunda metade do século XX que sequenciaram as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero e as redes de atendimento e proteção às mulheres vítimas desse tipo de violência como também a sua prole. Para isso foi necessário um levantamento de dados junto aos sites oficiais das organizações internacionais (ONU e OEA), Corte Interamericana de Direitos Humanos, sites do governo brasileiro e do governo espanhol. As legislações analisadas neste estudo foram: a) Os textos e tratados internacionais referentes às conquistas femininas ao longo do tempo a partir de 1945 e os sequentes, relativos à igualdade de gênero e à erradicação da violência contra a mulher, a saber: - a Carta das Nações Unidas de 1945; - o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; - a Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948 ou Carta de Bogotá; - o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966; - o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; - o Pacto de São José da Costa Rica ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969; 21 - a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979; - a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ou Convenção de Belém do Pará de 1994; - o texto da Declaração e Plataforma de Ação da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995); - o Protocolo de Palermo (relativo ao tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças), promulgado no Brasil pelo Decreto nº 5.017, de 12/03/2004. b) A legislação brasileira no âmbito do direito constitucional e penal relativa à violência doméstica, para fins metodológicos, atualizada até dezembro de 2015: - a Constituição Federal de 1988; - o Código Penal - decreto-lei nº 2848/1940 (atualizado); - o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/1990 (atualizado); - a Lei Federal nº 11.340/2006 - Lei “Maria da Penha”; - o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - 2013/2015; c) A legislação internacional mais recente em relação à violência de gênero, da qual a Espanha é signatária e a legislação espanhola no mesmo sentido. - o tratado internacional, Convênio de Istambul de 11 de maio de 2011 sobre prevenção e luta contra a violência contra a mulher e a violência doméstica; - a Lei orgânica 1/2004 de 28 de dezembro sobre medidas de proteção integral contra a violência de gênero; - a Lei orgânica 3/2007 de 22 de março de 2007 sobre a igualdade efetiva de mulheres e homens. Para tanto, as investigações foram realizadas nas bibliotecas da Universidade Complutense de Madrid em âmbito interdisciplinar, no Instituto da Mulher e nos sites estatais da Comunidade Autônoma de Madrid sobre os serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Estes documentos foram então estudados por meio da análise documental que é definida conforme os ensinamentos de Ludke e André (1986) e Valles Martínez (2007), constituindo-se uma técnica importante na pesquisa qualitativa que possibilita complementar informações obtidas por outras técnicas desvelando aspectos novos do tema ou problema em estudo, portanto, nos documentos citados, foram levantados termos recorrentes que se repetiram várias vezes no corpo do texto. 22 1.1.1.3 Pesquisa de campo A pesquisa de campo foi efetuada com mulheres vítimas de violência doméstica que denunciaram o crime e estavam ou estiveram acolhidas em abrigos, visando colher na fala dessas mulheres a concepção de violência, a funcionalidade das redes de atendimento e proteção oferecidas às vítimas desse tipo de violência. Estes depoimentos foram coletados por meio de um questionário para caracterização do perfil das entrevistadas e entrevistas semiestruturadas. Para traçar o perfil das mulheres participantes deste estudo atendidas por essa rede de atendimento e proteção nas cidades escolhidas, as participantes foram convidadas a responder um questionário que teve por objetivo a caracterização social e econômica do grupo a ser investigado. As perguntas do questionário foram: idade; estado civil, escolaridade, profissão, moradia, número de filhos, idade dos filhos e religião. (Apêndice A) Após a aplicação do questionário para a qualificação das participantes da pesquisa, foram feitas as entrevistas do tipo semiestruturadas com as mulheres vítimas da violência doméstica abrigadas ou que estiveram abrigadas em estabelecimentos da rede de atendimento pública. Conforme as considerações de Manzini (2004) uma das características da entrevista semiestruturada é a utilização de um roteiro previamente elaborado, para o que se utiliza de categorias de análise baseadas em cuidados com linguagem, forma e sequência das perguntas nos roteiros, as quais devem ser bem elaboradas e claras. (Ibidem, p. 1; 3) A entrevista trata de um processo de interação social e os dados obtidos consequentemente são de natureza social. Por meio da entrevista é possível o estudo do relato dos fatos. Neste caso, o relato da violência de gênero e ou da violência doméstica. Existem ao menos três tipos de entrevistas conforme assinala Manzini (2004), a não estruturada, a semiestruturada e a estruturada. Nesta pesquisa utilizamos a entrevista semiestruturada, a qual tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. Os questionamentos geram novas hipóteses a partir das respostas dos entrevistados e o foco principal é colocado pelo investigador-entrevistador que pode formular outras perguntas. (p. 2) O planejamento das entrevistas levou em consideração a posição da 23 pesquisadora na coleta de dados, como por exemplo, a ciência da influência da pesquisadora na produção do discurso das entrevistadas, atentando para não destoar na vestimenta, não se colocando em posição de superioridade e propiciando um ambiente para a fluência do relato dos fatos. (Ibidem, p. 2-3) Tanto na entrevista como no questionário há necessidade de alguma estruturação, entretanto, na entrevista há o poder oral do diálogo numa relação imediata, enquanto no questionário a relação mediata está escrita e codificada, portanto, a entrevista é reflexiva e o questionário padronizado. (AGUIRRE CAUHÉ, 1986, p. 171) A mesma autora conceitua entrevista como uma técnica dentro da metodologia qualitativa utilizada para obter informação verbal dos sujeitos da pesquisa a partir de um questionário ou guia e possui algumas características importantes, tais como: baseada na comunicação oral; estruturada, metódica e planejada; influência bidirecional entre entrevistador e entrevistado, onde o bom desenvolvimento da entrevista depende em maior parte do entrevistador, criando um clima favorável, tranquilo que favoreça a colaboração do entrevistado. (Ibidem, p. 172) As mulheres convidadas a participarem deste estudo voluntariamente e gratuitamente, foram informadas dos objetivos da realização de tal trabalho e a importância de suas respostas para o andamento da pesquisa. A intenção foi deixar as entrevistadas à vontade para falarem sobre seus pontos de vista e recolher dados na linguagem das próprias entrevistadas, buscando com isso compreender como elas interpretam aspectos importantes no que se refere ao objeto de estudo deste projeto. O roteiro de entrevista utilizado foi: a concepção de violência e de violência doméstica; tipo de violência sofrida (física, psicológica, material, econômica); situações que desencadeava a violência no lar; números de vezes que sofreu violência; número de vezes abrigada; a relação com o parceiro; os motivos das agressões; os motivos e situações que levaram a participante à denúncia; o conhecimento sobre as políticas de proteção às vítimas de violência de gênero; as redes de assistência; as redes informais de assistência (família, vizinhos, amigos). (Apêndice B) Pela própria natureza da entrevista semiestruturada, no decorrer das entrevistas foram inseridas algumas questões de acordo com as respostas dadas pelas entrevistadas, como as a seguir: suas filhas e filhos apresentaram algum comportamento diferente com a vivência do ciclo de violência; vocês recebem 24 tratamento psicológico na casa abrigo; o que você achou do acolhimento; como é sua vida na casa abrigo; qual importância você atribui à casa de acolhida e algo mais que gostaria de relatar e não foi perguntado. As entrevistas foram realizadas individualmente e após o consentimento das entrevistadas, os questionamentos e respostas foram gravados e posteriormente transcritos. Se a entrevistada não autorizasse a gravação, as respostas seriam anotadas pela entrevistadora, contudo, todas as entrevistadas permitiram a gravação das entrevistas. Foi informado às participantes que a entrevista a qualquer momento seria interrompida caso a entrevistada desistisse de continuar a responder as questões. As autorizações para a realização das entrevistas foram pleiteadas resultando no termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) aprovado junto ao Conselho de Ética da UNESP – Rio Claro para a realização das entrevistas, sob o número – CAAE nº 46149615.3.0000.5465, como também vênia do Tribunal de Justiça de São Paulo para pleitear junto às autoridades necessárias os acessos aos acolhimentos para promoção das entrevistas. (Apêndice C e Anexo A) Tanto o questionário e o roteiro da entrevista semiestruturada foram submetidos ao pré-teste, indicado como ferramenta metodológica da entrevista, visando testar e referendar as questões. Como práxis metodológica, esses dados colhidos não fazem parte da análise de conteúdo deste estudo. Houve uma segunda fase da pesquisa de campo, em Madrid, na Espanha, onde visando entender o funcionamento dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência de gênero e doméstica, procedeu-se visita ao Consulado do Brasil e ao comando da Unidade de Família e Mulher da Polícia Nacional em Madrid. O advogado e a psicóloga que trabalham no Consulado do Brasil informaram sobre as providências tomadas em relação ao enfrentamento desse tipo de violência pelo consulado e pelas instituições espanholas e apresentaram a pesquisa à Coordenadoria das Unidades de Polícia e Mulher do Corpo da Polícia Nacional da Espanha. A coordenadora dessas unidades franqueou algumas informações sobre as investigações e os atendimentos aos casos de violência de gênero e doméstica. 25 1.1.2 Descrição do local da pesquisa de campo A pesquisa de campo foi inicialmente planejada para ser realizada em casas de assistência denominadas casas abrigo ou casas de acolhida, as quais seriam destinadas pelas redes de atendimento e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica nas cidades de São Paulo, Jundiaí, Campinas, Piracicaba e Rio Claro. Esta escolha justificou-se pelo fato de que essas cidades estão próximas da região de Rio Claro, onde está o câmpus da UNESP, são de grande e médio porte e pela legislação nacional vigente deveriam contar com abrigos para vitimadas. Ainda, a pesquisadora lecionou no município de Piracicaba o que lhe propiciou conhecer profissionais ligados à academia e ao Poder Judiciário das localidades citadas o que poderia facilitar o acesso às casas abrigo, embora esses acolhimentos guardem sigilo de seus endereços. Para tanto foi solicitado via e-mail ao Tribunal de Justiça de São Paulo, junto à Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (COMESP), uma autorização para a pesquisadora adentrar às casas de acolhimento, tendo em vista muitas mulheres estarem abrigadas por força de uma decisão judicial vinculada a um processo, o que foi concedido. Ainda, no mesmo sentido, o Conselho de Ética da UNESP aprovou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O planejamento inicial da colheita de dados por meio de entrevistas semiestruturadas dava conta de convidar cerca de 20 mulheres de casas de acolhimento dos municípios citados, ou seja, ao menos 5 mulheres de cada cidade, as quais estiveram ou estavam em acolhimento por serem vítimas de violência doméstica e que tinham filhos em idade escolar. O número de mulheres a serem convidadas para a entrevista baseou-se nas informações das coordenadoras das casas abrigo de que as vagas para acolhimento para as mulheres em situação de violência e suas filhas e filhos eram em torno de 10 leitos e o abrigo raramente contava com a presença de todas as abrigadas, pois algumas trabalhavam, outras estavam em busca de emprego e outras permaneciam por pouco tempo nas casas. As amostras das entrevistas são estabelecidas antes do início das pesquisas, geralmente justificando o número de entrevistas pelo conceito de saturação, pois em certo momento as respostas repetem-se e a amostra atingiu o ponto de saturação, entretanto, Minayo (2017) considera que não existe um ponto de saturação inicialmente definido e a quantidade de abordagens em campo não pode ser uma 26 representação burocrática e formal estabelecida em números, tendo em vista que o que deve prevalecer é a certeza do pesquisador de que, mesmo provisoriamente, encontrou a lógica interna do seu objeto de estudo. (p. 12) As convidadas selecionadas para participarem do estudo teriam que ser vítimas de violência doméstica, terem denunciado de alguma forma a violência aos meios policiais ou assistenciais e estarem abrigadas ou que estiveram em casas de acolhida. No decorrer da pesquisa, embora em posse da autorização do TJ, os serviços sociais das cidades de Campinas, Jundiaí e São Paulo não concedeu autorização para a coleta de dados nas casas abrigo. Visando obter mais entrevistas, contatamos o centro de referência da mulher de Limeira, por estar nas proximidades das cidades elencadas e obtivemos autorização para realizar as entrevistas na casa de acolhida. A respeito do município de Piracicaba, o mesmo conta com um CRAM e uma DDM, entretanto, não possui casa abrigo para as vítimas de violência doméstica. De acordo com a Câmara de Vereadores da cidade, movimentos sociais solicitaram referida casa de acolhida e essa demanda foi apresentada no plano plurianual (2018- 2021), o que foi pautada na audiência pública da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2018, entretanto, sem previsão de atendimento. (PIRACICABA, 2017, p. 1) Em contrapartida, conforme informações prestadas pela Comandante da Guarda Municipal, o município conta com um patrulhamento denominado “Patrulha Maria da Penha”, que funciona na cidade desde maio de 2017, especificamente em casos que se encaixam na lei de defesa da vida das mulheres. Essa patrulha visita as casas das mulheres que sofreram violência doméstica visando verificar a situação da mulher e sua prole, prestando orientação e caso necessário, encaminhamento. Em relação ao município de Jundiaí, a DDM funciona em horário comercial das 09:00 às 18:00 horas. Em contato via telefone com a unidade foi informado que um e- mail deveria ser encaminhado solicitando as informações sobre o relacionamento da DDM com o centro de referência e a casa abrigo. O e-mail foi enviado para o endereço jundiai.ddm@policiacivil.gov.br em 21 de setembro de 2017, sem resposta. Nas pesquisas via sites da internet não foram encontradas informações sobre um centro de referência da mulher em Jundiaí, entretanto, existe junto à prefeitura do município a Coordenadoria da Mulher. Em contato por telefone e via e-mail, a secretária da coordenadora informou que existe casa abrigo na cidade, mas que a responsabilidade do acesso à casa não é dela como funcionária e questionada se poderia fornecer outras informações a respeito da casa abrigo, a mesma absteve-se 27 de responder. O município de São Paulo conta com quatro CRAMs e quatro casas abrigo de acordo com os dados apurados na literatura da seção sobre os serviços especializados no enfrentamento à violência doméstica. Junto a esses centros, mediante ligações telefônicas, a resposta reincidente foi de que não é possível adentrar as casas abrigo para realizar pesquisas. A pesquisadora entrou em contato com seis policiais civis da cidade de São Paulo, de cargos diferentes, pessoas de seu conhecimento pessoal, tanto da ativa como aposentados. A consulta foi a respeito de uma possibilidade de acessar os abrigos para as mulheres vítimas de violência doméstica e os mesmos foram unânimes em afirmar que os endereços das referidas casas de acolhida permanecem no conhecimento das funcionárias dos centros de referência para as mulheres, tendo em vista resguardar a segurança dessas mulheres, pois algumas são ameaçadas de morte por seus ex-companheiros. Optamos por buscar ajuda junto a uma organização não-governamental para termos acesso aos abrigamentos e a responsável pela União das Mulheres em São Paulo nos respondeu via e-mail que as mulheres vítimas de violência estão abrigadas porque estavam em situação de vulnerabilidade e que qualquer intervenção a elas poderia causar mais traumas, mesmo havendo uma autorização judicial. Quando da visita da pesquisadora ao Lar Esperidião Prado em Rio Claro em setembro de 2017, a responsável pelo lar, as assistentes sociais e a psicóloga informaram que mesmo atuando na assistência social e no enfrentamento à violência doméstica no município de Rio Claro, por ocasião da própria função tentaram contato com as casas abrigo em São Paulo por diversas vezes e através dos CRAMs foram informadas que não seria possível que acessassem as casas abrigo por causa do sigilo, pela segurança das abrigadas e porque elas mudam constantemente de endereço, tendo em vista que funcionam em imóveis alugados pela prefeitura do município de São Paulo. Previa-se também a realização de entrevistas com mulheres abrigadas em casas de acolhida em Madrid e para tanto, a professora orientadora da pesquisa na Espanha e a pesquisadora encaminharam comunicação eletrônica à rede de casas de acolhida e ao governo nacional pedindo autorização para adentrar as casas abrigo, visando a coleta de entrevistas. As solicitações foram respondidas pelo Ministério da Saúde, Serviços Sociais e Igualdade, alegando que toda a informação necessária 28 para pesquisa poderia ser encontrada nos sites oficiais do governo. No intuito de proceder entrevistas de mulheres que foram acolhidas em casas abrigo na região de Madrid, por meio de um grupo das redes sociais chamado “Atividades brasileiras em Madrid”, foi possível localizar uma brasileira, vítima de violência de gênero que esteve abrigada em duas casas de acolhida na comunidade autônoma de Madrid, a qual cedeu seu depoimento sobre sua estada nos dois abrigos. Como se vê, pelo descrito anteriormente, os depoimentos das mulheres foram coletados nas casas abrigo das cidades de Limeira e Rio Claro, como também foi possível entrevistar uma ex-assistida da casa abrigo de Campinas e uma ex-abrigada da comunidade autônoma de Madrid. Segue o relato sobre o acesso às mulheres nesses municípios: a) O contato com mulheres participantes no município de Rio Claro A cidade de Rio Claro não possui casa abrigo do poder público, mas possui uma casa chamada Lar Esperidião Prado que eventualmente acolhe vítimas de violência doméstica e seus filhos, entretanto, não se trata de um abrigo específico para os casos de violência e funciona com doações diversas e atualmente com uma verba da prefeitura. Em julho de 2015 a pesquisadora fez a primeira visita ao Centro de Referência e Apoio à Mulher D. Ângela Gonzaga (CRAM) de Rio Claro, o qual funcionava junto com outros serviços assistenciais, portanto as mulheres não tinham um atendimento privado e a direção era a cargo de uma coordenadora que na ocasião exercia suas funções junto à Prefeitura de Rio Claro. A mesma explicou que havia poucos casos de violência doméstica levados até o centro de referência e na maioria das vezes quando as mulheres chegavam ao CRAM, acompanhadas dos filhos ou não, eram levados rapidamente para a casa de familiares em outras cidades com o transporte e ou passagens pagas pelo poder municipal, pois o lar acolhedor mencionado, não tem endereço sigiloso, sendo de conhecimento dos moradores da cidade, portanto, não poderia oferecer segurança às mulheres ameaçadas de morte por seus ex-cônjuges. Em setembro de 2017 a pesquisadora novamente fez contato com o centro e a informação quanto às vítimas de violência doméstica são as mesmas e que eventualmente são encaminhadas ao Lar Esperidião Prado, inclusive o CRAM no momento estava em mudança na coordenação, chegando a ficar desativado por alguns meses. 29 A pesquisadora continuou mantendo contato com a ex-coordenadora do CRAM e ela informou que o município de Rio Claro contava com DDM, a qual funcionava junto com outros setores da Polícia Civil, o que dificultava as denúncias das mulheres vítimas de violência, pois elas declararam no CRAM que não se sentiam bem em relatar seu conflito na presença de policiais homens. Em abril de 2017 foi inaugurado o prédio próprio da DDM6, após muitas reivindicações dos movimentos de mulheres aos governos municipal e estadual. A ex-coordenadora informou ainda que a DDM funciona de segunda a sexta-feira das 09:00 às 18:00 horas, o que não é o ideal porque o número de agressões às mulheres aumenta nos finais de semana e à noite e para atendimento policial essas mulheres tem que se dirigir ao plantão policial, que não necessariamente é presidido por uma Delegada de Polícia. Em visita ao Lar Esperidião em 20 de setembro de 2017, a coordenadora informou que é a responsável pelo lar até 2018. Inicialmente desenvolveu-se uma conversa entre a pesquisadora, a responsável pela casa, duas assistentes sociais e uma psicóloga para entenderem sobre o que a pesquisa acadêmica tratava, sendo oferecido pela pesquisadora cópia da aprovação do TCLE pelo Conselho de Ética da UNESP e cópia do próprio termo. A pesquisadora conheceu o abrigo e sua história, o qual possui dois projetos, um que atende sessenta crianças entre os períodos da manhã e tarde, inverso ao período de aula regular, onde as crianças contam com psicóloga, atividades curriculares pedagógicas, aulas de teatro, almoço para os dois turnos e lanche. O outro projeto é buscar junto à assistência social da cidade a destinação de casas populares para as mulheres abrigadas. No primeiro projeto são atendidas também as crianças acolhidas juntamente com suas mães. A coordenadora explicou que inicialmente o abrigo foi criado por alguns senhores da cidade em 1964, incluindo o Sr. Esperidião Prado, os quais sentiram a necessidade de acolherem as viúvas com seus filhos, tendo em vista que quando os maridos faleciam, na maioria das vezes a legislação não favorecia para que essas mulheres conseguissem receber a pensão necessária para sua manutenção e dos filhos e devido às regras sociais da época, não era comum que a mulher trabalhasse em qualquer emprego e mesmo que pudesse trabalhar, não era comum escolas 6 O Decreto nº 35.520, de 20 de agosto de 1992, dispôs sobre a instalação da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher na Delegacia Seccional de Polícia de Rio Claro, que passou a funcionar com outros setores da Polícia Civil. (SÃO PAULO, 1992) 30 infantis ou creches, então não teriam onde deixar os filhos. O abrigo é formado por dez casas individuais geminadas, as quais contam com sala, dois quartos, banheiro, cozinha, lavanderia e pequeno quintal, todas simples, mas funcionais, bem cuidadas. As mulheres vitimadas, juntamente com seus filhos recebem as casas mobiliadas e com roupas da casa e pessoais, sendo a lavanderia de uso coletivo. O abrigo conta com alimentação para todas as mulheres e seus filhos, como também dois transportes, uma perua Kombi e uma Van, ambos em bom estado de conservação. Ainda, realiza um bazar, tipo brechó, o qual recebe doações de roupas, as quais são lavadas, passadas e depois colocadas à venda em uma pequena loja que está aberta ao público em horário comercial. As mulheres podem permanecer acolhidas por até quatro anos, sendo condição o trabalho dentro ou fora do abrigo e o depósito em uma conta bancária em nome da abrigada do correspondente a 70% do salário que recebem, geralmente o valor aproximado de um salário mínimo. O dinheiro depositado é uma poupança para as mulheres e seus filhos para quando deixarem o abrigamento. Geralmente as mulheres abrigadas utilizam o dinheiro para darem entrada na casa própria através de programas populares do governo. O abrigo e toda a assistência são gratuitos, prestadas por voluntários e funcionários contratados pela prefeitura. As mulheres se não trabalham, são estimuladas a buscarem emprego, estudarem, criarem uma perspectiva de vida, recebendo orientação quanto à aquisição da casa própria e da dinâmica e rotina de uma casa através da casa individual onde são abrigadas. Na ocasião foram entrevistadas três mulheres que são mães e estão abrigadas juntamente com seus filhos. A triagem foi feita pelas psicólogas e assistentes sociais em relação as que tinham histórico de violência doméstica e aceitaram participar da pesquisa. A pesquisadora foi convidada pela coordenadora a almoçar no local. O almoço foi servido para todas as crianças do projeto do horário inverso ao da escola regular, tanto as que iriam para a escola, como para as que estariam chegando do turno escolar, para as abrigadas e seus filhos, funcionários e demais voluntários que estavam no local. O menu da refeição compôs-se de arroz, feijão, escondidinho de carne com batata e queijo, salada de alface, tomate e beterraba, farofa e suco de limão natural, a qual estava saborosa. O ambiente manteve-se harmonioso e as crianças conversavam entre si e ao serem interrompidas pela pesquisadora, respondiam com 31 naturalidade sobre seus afazeres cotidianos. b) O contato com as mulheres participantes no município de Campinas A respeito dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência de gênero, em Campinas estão instaladas duas Delegacias de Defesa da Mulher. Atualmente, a realidade laboral das DDMs é: a 1ª DDM acumula um saldo de aproximadamente 9000 inquéritos policiais e conta com 4 escrivães de polícia, 3 investigadores para as diligências externas e para o atendimento ao público e 3 Delegadas para determinarem as ações policiais. No mês de setembro de 2017 já haviam registrado 1100 boletins de ocorrência a respeito de violência doméstica. A 2ª DDM funciona com número reduzido de funcionários, iniciando seu acervo quando de sua criação no ano de 2016. Ambas delegacias atendem de segunda a sexta-feira das 09:00 às 18:00 horas e quando encerram suas atividades, os casos de violência doméstica são atendidos pelos plantões policiais. Os policiais civis, que não desejam ser identificados, consideram o número de funcionários insuficiente para o atendimento ao público, investigações e serviços de polícia judiciária no bojo dos inquéritos policiais, tais como cumprimento de prazos judiciais, tendo em vista que as investigadoras de polícia por vezes trabalham em desvio de função, ou seja, ao invés de procederem investigações dos crimes cometidos contra as vítimas de violência doméstica, são destinadas ao atendimento ao público cumulando funções, inclusive atendimento de telefone. Esses policiais relataram que um dos maiores problemas que enfrentam é a falta de recursos humanos, o que por vezes atrapalha no andamento dos procedimentos, entretanto, procuram atender todas as vítimas de violência doméstica e dar o devido encaminhamento, sendo que as medidas protetivas são concedidas com maior agilidade quando os crimes são de ameaça e há testemunhas, como também de lesão corporal e o laudo de exame de corpo de delito é positivo. Ainda informaram que quanto ao abrigamento de vítimas de violência doméstica têm conhecimento de que a maioria das mulheres atendidas não querem ir para a casa de acolhida porque necessitam seguir regras para a segurança das abrigadas. Desse modo, preferem contar com parentes e amigos para deixarem o lar envolvido em ciclo de violência. Em contato com o centro de referência e apoio à mulher em Campinas (CEAMO), por três vezes em semanas e horários diferentes a informação das 32 funcionárias foi de que a responsável pela casa abrigo iria entrar em contato com a pesquisadora, a qual forneceu dois números de telefones, entretanto, nas três ocasiões não houve retorno e mediante a cobrança da pesquisadora, foi informado que era para aguardar o telefonema da coordenadora da casa de acolhida, mesmo mediante as explicações de que se tratava de uma pesquisa acadêmica e dos objetivos do estudo. Através de uma casa de fraternidade em Campinas denominada Grupo Espiritualista Luz e Fraternidade (GELF), foi possível colher o depoimento de uma mulher vítima de violência doméstica que esteve acolhida na casa abrigo no município. Referida mulher junto com sua irmã, foram buscar consolo espiritual nessa casa de fraternidade. A coordenadora da casa, sabedora da pesquisa, entrou em contato com a pesquisadora e a entrevista foi agendada e realizada. A entrevistada informou que não tem o contato de outras mulheres que ficaram acolhidas no mesmo período em que esteve no acolhimento. c) O contato com as mulheres participantes no município de Limeira O município de Limeira possui centro de referência da mulher e casa abrigo, sendo possível a realização e a gravação de três entrevistas de mulheres abrigadas. As entrevistas foram colhidas através de uma participante do movimento de mulheres “Maria de Lutas” de Piracicaba, membro que participa das manifestações a favor da construção de uma casa abrigo na cidade de Piracicaba. O centro de referência do município de Limeira é o Centro de Promoção Social Municipal (CEPROSOM), sendo o órgão gestor da política municipal da assistência social de Limeira, como também uma autarquia com personalidade jurídica. Com relação aos serviços da proteção social básica, o CEPROSOM conta com o Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) que é a porta de entrada para qualquer demanda ou necessidade vivenciada por uma família e ou mulher, pois seu objetivo é prevenir o rompimento de vínculos, as violações de direitos e promover o acesso aos serviços sociais. Através do CRAS as mulheres vítimas de violência de gênero e ou doméstica são atendidas e encaminhadas aos programas sociais, às providências policiais e se necessário ao acolhimento. A entrevista foi realizada e gravada por uma ex-aluna da Universidade Metodista, advogada, membro do movimento de mulheres “Maria de Lutas” de Piracicaba, tendo em vista seu interesse em entender como uma casa abrigo 33 funciona porque é atuante na busca da implantação junto aos poderes municipais de Piracicaba para a instalação de uma casa de acolhida naquele município e pelo relevante motivo de que após iniciados os contatos pela pesquisadora, esta deslocou- se à cidade de Madrid para o cumprimento do estágio doutoral junto à Universidade Complutense. A casa abrigo é de curta estadia, para situações urgentes e funciona em uma casa alugada pela prefeitura, a qual por motivos de segurança guarda sigilo no endereço e esse serviço público é trasladado de tempos em tempos no mesmo intuito. Possui atualmente nove leitos em três quartos para atendimento das vítimas de violência doméstica e seus filhos. A coordenadora do abrigo é assistente social que trabalha há dois anos nesse abrigamento. As demais funcionárias são duas cuidadoras que são responsáveis pelos serviços gerais, uma faxineira emprestada de outros órgãos da prefeitura do município que faz a limpeza uma vez por semana, uma guarda-municipal e uma auxiliar administrativo. Não há atendimento psicológico no acolhimento no momento, apenas no CRAS e a Comarca não conta com juízas de direito em casos de violência de gênero e ou doméstica. As próprias abrigadas cozinham se necessário, entretanto, a prefeitura fornece cinco refeições por dia. O transporte das crianças para a escola é feito por um motorista da prefeitura e uma das mães acompanha o trajeto de levar e buscar as crianças na escola. O município de Limeira conta com o botão do pânico, dispositivo pequeno, similar a um alarme de carro, fornecido às mulheres vítimas de violência de gênero e ou doméstica e seu uso depende da determinação do juiz de direito para o qual esteja distribuída a ação em referência. O trâmite administrativo das mulheres abrigadas geralmente segue esta ordem: denúncia na DDM, que encaminha a mulher para o Poder Judiciário, que a encaminha ao CRAS que a encaminha para o CEPROSOM, que é o administrador do botão do pânico. Se essa mulher buscou primeiro o CRAS, é encaminhada à DDM e depois segue-se como exposto. Para o juiz de direito determinar que referida mulher necessita do botão do pânico, dispositivo que a mulher aciona caso o agressor esteja aproximando-se dela, é necessário um laudo do Instituto Médico Legal, órgão ligado à Secretaria da Segurança Pública. Essa decisão é criticada pelas próprias mulheres vítimas de violência doméstica e pelo serviço social, pois apenas as agressões físicas são passíveis de lesões visíveis. As agressões psicológicas e a violência simbólica não são identificadas em um exame de corpo de delito, que via de regra, busca apenas as 34 lesões aparentes. No dia 21 de outubro de 2017 as entrevistas foram realizadas com três mulheres que se voluntariaram a participar da pesquisa mediante a leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Na ocasião a casa abrigo acolhia quatro mulheres com seus filhos e uma delas não estava presente. d) O contato com as mulheres participantes em Madrid, Espanha A Comunidade Autônoma de Madrid possui casas de acolhida de diferentes tipos, sendo seis centros de acolhida emergenciais que oferecem acolhida às mulheres vítimas de violência de gênero e seus filhos por um tempo limitado, cinco centros de acolhida que oferecem um plano de atenção integral para normalização da vida das mulheres vitimadas e seus filhos, abrigando por um período até que a assistência social tenha sido integralizada e onze residências tuteladas, sendo duas para mulheres portadoras de necessidades especiais, as quais abrigam por longo período. (MADRID, 2012) Não foi possível colher entrevistas nas casas de acolhida em Madrid, tendo em vista a resposta negativa do Ministério da Saúde, Serviços Sociais e Igualdade do governo espanhol, mas foi possível entrevistar uma mulher, a qual foi vítima de violência de gênero e através do serviço social espanhol foi acolhida em duas casas abrigo na região de Madrid. Pelo relato exposto, como se vê, no total foram entrevistadas oito mulheres: três no município de Rio Claro, uma em Campinas, três em Limeira e uma em Madrid. 1.1.3 Análise e tratamento dos dados: documentos e entrevistas semiestruturadas Os dados colhidos nas entrevistas semiestruturadas e nos documentos - legislação internacional, brasileira e espanhola - foram analisados e tratados de acordo com as técnicas de análise de conteúdo ensinadas por Bardin (2016). Esses dados foram organizados visando identificar tendências e padrões relevantes. A técnica empregada para o estudo dos documentos e dos depoimentos das entrevistadas foi a análise de conteúdo. Segundo Bardin (2016) as diferentes fases da análise de conteúdo estão organizadas em torno da pré-análise, a exploração do material, o tratamento dos resultados, a inferência nos dados e a interpretação desses dados. A análise de conteúdo é importante para compreender e inferir novos conhecimentos a partir dos relatos dos diferentes sujeitos, compreendendo o conteúdo manifesto e ou latente, 35 como também significações explícitas e ou ocultas contidas nos dados obtidos. Este tipo de análise considera a mensagem escrita ou dita. (Ibidem, p. 125;127) A pré-análise compreendeu a escolha dos documentos submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final. Neste estudo, a mensagem do que está encoberto refere-se ao que está escrito no corpus documental (legislações internacional, nacional e espanhola) e o que está dito refere-se ao que está na mensagem da fala das mulheres vítimas de violência doméstica. (BARDIN, 2016, p. 125-126) A exploração do material levou em consideração as decisões tomadas na pré- análise. Os resultados foram tratados de maneira a serem significativos, permitindo a exposição em quadros, aos quais receberam inferências e posteriormente interpretações. (Ibidem, p. 130-131) As entrevistas foram responsáveis pelos dados colhidos em pesquisa de campo. Como decorrência desta metodologia houve uma passagem explícita e controlada da descrição à interpretação utilizando como referencial de análise o quadro teórico sobre o qual o estudo foi construído e aplicou-se o conhecimento de Bardin (2016) onde foram criadas unidades de registro, por exemplo, a respeito de um tema recorrente nas entrevistas, o que resultou em exploração do material e resultados. (Ibidem, p. 126-131) Para a análise dos documentos foi elaborado um quadro com relação ao que foi disposto nos textos e tratados internacionais, na legislação brasileira e na legislação espanhola, quanto às conquistas das mulheres em matéria de direitos e ao longo do tempo, consequentemente as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Os dados coletados nas entrevistas foram classificados e categorizados em diferentes blocos temáticos definidos a partir do discurso dos participantes, identificando-se “falas” frequentes, enfatizadas ou as diferenças encontradas entre estas. Por meio da análise dos diferentes dados obtidos buscou-se compreender o entendimento das entrevistadas sobre a concepção de violência de gênero e as políticas públicas de atendimento e proteção às mulheres vítimas de violência de gênero e doméstica. As entrevistas semiestruturadas foram transcritas conforme ensina Manzini (2003) e analisadas segundo as regras da análise de conteúdo ensinadas por Bardin (2016), identificando-se as diferentes fases da análise descrita anteriormente, 36 cumprindo as regras para com os elementos do corpus documental e da pesquisa de campo; de representatividade nos dados obtidos, relacionando-os numa amostragem; de homogeneidade quanto a referirem-se ao mesmo tema e de pertinência dos documentos e das entrevistas corresponderem ao objetivo da análise. Cumpridas estas fases, os dados foram evidenciados para tratamento. Os resultados foram tratados de maneira que se tornassem significativos e válidos em um quadro de resultados que colocou em relevo as informações oferecidas pela análise permitindo a interpretação dos dados obtidos de acordo com o referencial teórico adotado a cargo das considerações dos autores consultados, relacionados nas referências bibliográficas. 1.2 Estruturação da pesquisa teórica e de campo Considerando-se a introdução, seção 1, esta pesquisa foi estruturada em seis seções. A segunda seção está fundamentada na revisão da literatura e visa fornecer ao estudo os pilares fundamentais a respeito da ótica em que os dados resultantes da pesquisa de campo foram analisados e interpretados. Para tanto se discute as concepções de violência, violência de gênero, violência doméstica, violência familiar e violência contra a mulher quanto ao que se confundem e ou são diferenciadas. Ainda tratamos sobre a evolução do movimento feminista, da dominação masculina combinada com o poder simbólico em sociedades o que resultou no não reconhecimento de toda ordem do lugar social da mulher quanto ao que adveio do feminino, tais como: obras de arte, trabalhos, documentos, educação, sentimentos, entre outros. A terceira seção apresenta e discute as legislações internacionais e brasileiras a respeito do enfrentamento da violência doméstica de forma cronológica quanto às conquistas femininas em relação aos direitos fundamentais e alguns fatos emblemáticos que conectaram mulheres às legislações em questão. Assim, foram mapeadas e analisadas as políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica no Brasil que culminam na fundação das DDMs, dos CRAMs e das casas abrigo. Buscou-se ainda analisar o papel do Sistema Interamericano de proteção dos Direitos Humanos e do Estado brasileiro quanto aos direitos humanos e fundamentais, respectivamente, que irão redundar no tratamento das políticas públicas pela atuação dos três poderes. A quarta seção trata da legislação espanhola sobre as políticas públicas de 37 enfrentamento à violência de gênero e doméstica, do funcionamento e acolhimento nas casas abrigo e consequentemente para esta análise, do entendimento acerca dos valores sexistas e como transitam nas sociedades, tendo como referência a visão de um país inserido no contexto europeu. Ao final desta seção é feito um estudo comparativo entre as políticas públicas brasileiras e espanholas. A quinta seção refere-se às semelhanças e desigualdades entre as políticas públicas brasileiras e espanholas quanto às redes de atendimento às mulheres vítimas de violência. A sexta seção apresenta a análise e interpretação da fala das mulheres coletadas por meio de questionários e entrevistas semiestruturadas. Ao final foram tecidas considerações sobre a efetividade das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil e oferecidas propostas de inovações possíveis com base nos estudos realizados. Para esta defesa foram apresentadas a introdução, as seis seções e as considerações finais. 38 2 A CONCEPÇÃO DE VIOLÊNCIA, VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Nesta seção discutiremos a concepção de violência, de violência de gênero e de violência doméstica contra a mulher e sua prole de acordo com estudos realizados nas sociedades ocidentais e em especial a brasileira, tendo em vista que por diferenças culturais, nem todas as sociedades são unânimes no entendimento quanto à violência. Para o estudo dos conceitos desses termos é necessário explanar sobre o poder simbólico do Estado e das instituições em relação aos cidadãos e consequentemente dos seres humanos subjugados por outros, como ocorre no fenômeno da violência, o que transcende para os outros tipos violentos, o que se faz de acordo com as considerações dos estudos feministas e de Bourdieu (1930-2002). A violência tem caráter epidêmico, multifacetado e polissêmico, principalmente nos grandes centros urbanos, onde a população vive um clima de medo e insegurança tendendo a considerar como único meio de frear este fenômeno através do uso da força para conter os conflitos violentos. (AGUIAR, 2002, p. 50) Segundo a mesma autora, além das manifestações agressivas que incidem diretamente no campo policial e judiciário, as quais de pronto são identificadas como atos violentos, existem as menos gritantes, por vezes silenciosas, as quais nem sempre são expressas à polícia e ou judicializadas, entretanto, muitas vezes deságuam nos serviços de saúde e os motivos alegados para a camuflagem são o medo e a vergonha, como também que esses atos ocorrem envolvendo pessoas de convivência próxima e íntima no seio familiar. (Ibidem) Os atos de violência física, psicológica, emocional, sexual, por negligência, por atos destrutivos ocorridos na esfera intrafamiliar são enquadrados como violência doméstica, sendo vítimas desses atos a mulher, os filhos (crianças e adolescentes) e os idosos, podendo caracterizar a violência de gênero, aquela sofrida em razão da vítima pertencer ao sexo feminino. Esta pesquisa tem o foco na violência de gênero ocorrida também no contexto doméstico, sendo vítima a mulher. As mulheres inseridas nos movimentos sociais foram as responsáveis efetivas pela tomada de consciência da natureza das sociabilidades violentas, que permeiam a vida cotidiana e habitam o senso comum. Isto contribuiu para enfrentarem a complexidade das práticas violentas com vistas a dar visibilidade a elas e erradicá- las. 39 2.1 A sociedade, o poder simbólico e a dominação masculina A convivência em sociedade é necessária para a existência do ser humano. O Estado está como o organizador das regras de convivência social e o faz através de suas instituições. Além disso, as regras morais e a cultura ditam os modos de ser e viver em cada comunidade. Percebe-se que um poder transita desde as regras de convivência até numa cultura regional ou autóctone. Trata-se de um poder simbólico, por vezes ignorado. O poder simbólico é um poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem. Bourdieu (1989) discorre sobre situações em que esse poder é ignorado, entretanto, reconhecido pelos agentes envolvidos. Nas palavras do autor: no entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, um espécie de círculo cujo o centro está em toda a parte e em parte alguma – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (BOURDIEU, 1989, p. 7-8) O autor considera a arte, a religião e a língua, como estruturas estruturantes ou modo de executar uma atividade seguindo sempre os mesmos procedimentos e padrões e os sistemas simbólicos como estruturas estruturadas, tratando das produções simbólicas como instrumentos de dominação e dos sistemas ideológicos legítimos. Quanto à objetividade do sentido do mundo define pela concordância das subjetividades estruturantes, o que equivale a dizer que o senso é igual ao consenso. (BOURDIEU, 1989, p. 8-9) Conforme explica Bourdieu (1989): o poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa que torna possível entre as inteligências. (p. 9) A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante e a mesma cultura que une por intermédio da comunicação, separa por distinção. Bourdieu (1989) considera que as relações de comunicação são sempre relações de 40 poder que dependem do capital material ou capital simbólico acumulado pelos agentes. O sistema simbólico, enquanto instrumento estruturado e estruturante de comunicação e conhecimento cumpre sua função política de imposição e de legitimação da dominação de uma classe sobre a outra, agindo como forma de violência simbólica. O poder simbólico é quase mágico, sendo uma forma irreconhecível e legitimada que passa despercebida. (BOURDIEU, 1989, p. 10-11) O estudo do poder simbólico nas conceituações dos tipos de violência permite o entendimento de que o Estado, as instituições, a sociedade, os familiares, todos os envolvidos em um ciclo de violência, tacitamente, por vezes estão de acordo em ignorar esse poder, deixá-lo despercebido ou permitir que continue atuando silenciosamente. Pelos braços do Estado, em suas instituições, esse poder permite a violência simbólica entre a Administração Pública e os cidadãos. Nas sociedades, esse poder age entre os indivíduos e no seio familiar. Esse elemento invisível permite a sobreposição do forte ao fraco, do rico ao pobre, do branco ao negro, do masculino ao feminino, por considerar o fraco, o pobre, o negro e o feminino “menores” em relação ao forte, ao rico, o branco e ao masculino, provocando o referendo de comportamentos violentos, por vezes inquestionáveis. Para Bourdieu (2002), a dominação masculina trata-se de uma forma particular de violência simbólica, compreendendo o poder que demonstra significações, impondo-as como legítimas, de forma a dissimular as relações de força que sustentam a própria força. Nas palavras do autor: [...] a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças, salvo uns poucos acidentes históricos, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente, e que condições de existência das mais intoleráveis possam permanentemente ser vistas como aceitáveis ou até mesmo como naturais. Também sempre via na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. (p. 2-3). A percepção do masculino e do feminino é aprendida inconscientemente pela lógica social, pois o movimento dos corpos no espaço social recebeu significações ao longo do tempo. Esse movimento pode ser explicado quando observamos o 41 deslocamento do corpo para o alto, como por exemplo, a ereção, a qual de imediato está ligada ao masculino e automaticamente recebe oposições homólogas que subjetivam o masculino e o feminino, tais como: alto/baixo, em cima/embaixo e na frente/atrás. Esses esquemas de pensamento são reconhecidos universalmente e registrados nas sociedades como diferenças da própria natureza e logo adquirem legitimação. Desse modo, a força da ordem masculina evidencia-se socialmente no fato de que dispensa justificação, apenas existe como é. A ordem social funciona como uma máquina simbólica com tendência a ratificar a dominação masculina sobre a qual está alicerçada, deixando o espaço público aos homens e às casas às mulheres, pois o mundo social constrói a realidade sexuada, com divisões sexualizantes do espaço público, fazendo com que a diferença biológica entre as anatomias dos órgãos sexuais masculinos e femininos sejam justificativas naturais da diferença social construída entre os gêneros, principalmente em relação ao trabalho, que possibilita o sustento da vida física. (BOURDIEU, 2002, p. 4 e passim) As considerações das diferenças entre homens e mulheres como inerentes à natureza trata-se de uma construção social, onde escolhas orientadas acentuaram diferenças e sombrearam semelhanças, estruturando os pensamentos e percepções dos indivíduos em conformidade com as relações de dominação, transformando atos de conhecimento em atos de reconhecimento e submissão. O princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas e as mulheres acabam referendando os esquemas de dominação, tendo uma representação negativa de seu próprio sexo, achando-o bonito oculto, na representação de um falo invertido, para dentro. Em sentido contrário, socialmente os homens não têm nada a esconder, portanto, o falo é para fora e a virilidade está ligada tanto à potência do falo (enchimento) como ao tamanho. Essas relações interconectadas fazem com que as arbitrariedades na sociedade sejam transformadas em necessidades da natureza e atribuídas ao físico. (Ibidem, p. 16 e passim) O autor prossegue na desconstrução do paradigma de que o masculino e o feminino são diferentes por natureza, referindo-se à antropóloga Marie-Christine Pouchelle7, quem descobriu escritos de um cirurgião da Idade Média que 7 Antropóloga e diretora emérita de pesquisas no Centro Nacional de Pesquisas Avançadas – CNRS – França. (IIAC, 2010) 42 representavam o sexo da mulher (a vagina) como um falo invertido e até o Renascimento não havia uma terminologia na anatomia para descrevê-lo, conforme relata Bourdieu (2002): basta seguir a história da “descoberta” do clitóris, tal como relata Thomas Laqueur8, prolongando-a até a teoria freudiana da ligação da sexualidade feminina do clitóris à vagina, para acabar de demonstrar que, longe de desempenhar o papel fundante que lhes é atribuído, as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculino e feminino são uma construção social que encontra seu princípio nos princípios de divisão da razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem e à mulher. (p. 21) Laqueur (2001), citado por Bourdieu (2002) tece considera