UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” - UNESP LICENCIATURA EM ARTE TEATRO CAÊ PRANDINI AFETIVIDADES NO SLAM DO CORPO: encontros de identidade ouvinte não binária com identidade e cultura surdas no contexto das artes da cena SÃO PAULO - SP 2022 CAÊ PRANDINI AFETIVIDADES NO SLAM DO CORPO: encontros de identidade ouvinte não binária com identidade e cultura surdas no contexto das artes da cena Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da UNESP como parte dos requisitos para obtenção do título de Licenciado em Arte-Teatro. Orientadora: Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli Coorientadora: Profa. Me. Cibele Toledo Lucena SÃO PAULO - SP 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. P899a Prandini, Caê, 1996- Afetividades no slam do corpo : encontros de identidade ouvinte não binária com identidade e cultura surdas no contexto das artes da cena / Caê Prandini. - São Paulo, 2022. 63 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli Coorientadora: Prof.ª M.ª Cibele Toledo Lucena Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Arte-Teatro) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Batalhas de poesia. 2. Bilingüismo. 3. Surdos - Meios de comunicação. 4. Acessibilidade. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Lucena, Cibele Toledo. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 808.545 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 CAÊ PRANDINI AFETIVIDADES NO SLAM DO CORPO: encontros de identidade não binária com identidade e cultura surda no contexto das artes da cena Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da UNESP como parte dos requisitos para obtenção do título Licenciado em Arte-Teatro. Trabalho de conclusão de curso aprovado em 09/03/2022 Banca examinadora: _______________________________ Profa Dra Rita Luciana Berti Bredariolli Instituto de Artes - orientadora _______________________________ Profa Dra Cibele Toledo Lucena Coorientadora _______________________________ Profa Lara Gomes Silva AGRADECIMENTOS Ao Grupo Corposinalizante e todas as pessoas que fazem o Slam do Corpo acontecer em festa. Aes poetas que já fizeram duplas comigo, a suas poesias e nossos “Beijos de Línguas”. Aes mis parceires do Grupo "Mãos de Fada" e da peça espetáculo "O Rouxinol e a Rosa". Às professoras Lara Gomes e Luana Milani. À Cibele Lucena, agradeço su tode ser-pessoa, que em existência-referência possibilita meus caminhos. Agradeço as visões, as escutas, as aberturas e reciprocidades em meus processos de escrita. À Rita Bredariolli, agradeço a confiança, o incentivo a autonomia e o compartilhamento de referenciais que me possibilitaram escrita genuína. A mim, Caê, agradeço a coragem de tornar-me e a ousadia de investigar afetos para confeccionar conhecimento. As minhas amizades e parcerias da comunidade surda que sempre me ofereceram acessibilidade à cultura surda e, com autenticidade, se tornaram importantes referências na minha caminhada. RESUMO Neste trabalho são desenvolvidas reflexões a partir de vivências no contexto de criação de poesias-performances bilíngues, em duplas formadas por uma pessoa Surda e uma pessoa ouvinte, que utilizam a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e língua portuguesa, em processos criativos mediados pelo grupo Corposinalizante e apresentados nas batalhas de poesias Slam do Corpo. Em narrativa autobiográfica, de perspectiva Não Binária e utilizando a linguagem neutra da língua portuguesa, são relacionados materiais bibliográficos, audiovisuais, músicas e entrevista para reflexão sobre binarismos nos conceitos “acesso” e “inclusão”, assim como a compreensão dos temas “privilégio ouvinte”, “ouvintismo”, “lugar de fala”, “escuta” e “apropriação cultural”. Sendo o Slam do Corpo território fértil para troca de afetividades, é ressaltada a potencialidade da amorosidade no caminho para desconstrução de lugares de poder e hierarquias de identidades. Palavras chave: Cultura surda. Língua Brasileira de Sinais. Ouvintismo. Acessibilidade. Não binariedade. RESUMEN En este trabajo, se desarrollan reflexiones a partir de experiencias en el contexto de creación de poesias-performances bilingues por una persona sorda y una persona oyente, que utilizan la Lengua de Signos Brasileña (Libras) y la lengua portuguesa, en procesos creativos mediados por el grupo Corposinalizante y presentados en las batallas de poesias Slam do Corpo. En narración autobiográfica, desde uma perspectiva No Binaria y utilizando el lenguaje del genero neutro de la lengua portuguesa, se enumeran materiales bibliográficos, audiovisuales, musicales y de entrevistas para reflexionar sobre los binarismos en los coceptos “acceso” y “inclusión”, así como la comprensión de los temas “privilegio oyente”, “escucha”, “lugar de fala” y “apropriación cultural”. Siendo el Slam do Corpo un territorio fértil para el intercambio de afectos, se destaca el potencial del amor en la forma de deconstruir lugares de poder y jerarquias de identidades. Palabras clave: Cultura sorda. Lengua de Señas Brasileña. Privilegio oyente. Accesibilidade. No binario. SUMÁRIO 1 Introdução: Boas vindas! 9 2 Princípio do romance: o primeiro “Beijo de Línguas” 20 3 Binarismos nos conceitos “Acesso” e “Inclusão” 26 3 Audição não é escuta: a obsessão ouvinte por ondas sonoras 31 4 Lugar de fala, privilégio ouvinte e ouvintismo 36 5 Ensino da Libras por professories ouvintes 45 6 Libras, linguagem neutra e vivência não binária 53 7 Considerações finais 58 Referências 60 Apêndices 62 9 1 Introdução: Boas vindas! Este livro é muito pessoal; escrevi-o para entender quem sou. (KILOMBA, 2019, p.13) Bem vinde, bem vinda, bem vindo! Escrevo do lugar de pessoa ouvinte que cresceu distante de comunidade e cultura surdas, e que ao conhecer artistas, arte educadories, e Tradutores Intérpretes de Língua de Sinais (TILS) Surdes e ouvintes no contexto das batalhas de poesias em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e português pode acessar aprendizados. Estes aprendizados foram confeccionados a partir de experiências de criações e transcriações de poesias em duplas formadas por uma pessoa Surda e uma pessoa ouvinte, processos mediados pelo grupo Corposinalizante, e apresentados no Slam do Corpo. Em narrativa autobiográfica, desenvolvo trajetórias de encontros poéticos e reflito sobre ensinamentos que me proporcionaram autoconhecimento e autoafirmação identitária, juntamente a visualização de privilégios da audição (privilégio ouvinte), do ouvintismo estrutural e portanto dos lugares de poder que me habitam e que eu habito. Ressalto a importância da discussão sobre “Binarismos nos conceitos “acesso” e “inclusão””, que pressupõe passividade das pessoas "excluídas" (que recebem acesso) e atividade de pessoas autointituladas "incluídas" (que fornecem acesso). Reconheço a necessidade de deslocamento desses conceitos para relações de trocas, interações e cocriações, e multiplicidade de potências. Escrevo com as limitações da língua portuguesa em narrar o que liberta a língua presa na boca e convoca multidimensão, mãos, braços, cotovelos, pernas, sobrancelhas, pessoas inteiras à comunicação. Sendo a poesia a motivação desse encontro, busco estabelecer “espaço para livre expressão poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas (...)” (D’ALVA, 2014, p.109) como me ensinam os Slams. 10 Poetry Slam ou Slam: Poderíamos definir o poetry slam, ou simplesmente slam, de diversas maneiras: uma competição de poesia falada, um espaço para livre expressão poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas ou até mesmo mais uma forma de entretenimento. De fato, é difícil defini-lo de maneira tão simplificada, pois, em seus 25 anos de existência, ele se tornou, além de um acontecimento poético, um movimento social, cultural, artístico que se expande progressivamente e é celebrado em comunidades de todo mundo (D’ALVA, 2014, p.109) Os Slams, que inicialmente tem como mote a competição, tomam a proporção de uma celebração, que conta com um mestre de cerimônias, chamado slammaster, e onde a palavra é comungada entre todos, sem hierarquias (D’ALVA, 2014, p.112) (...) embora encontrem-se variações na forma em que os slams são realizados, na maior parte das comunidades existem três regras fundamentais que são mantidas: os poemas devem ser de autoria própria do poeta que vai apresentá-lo, devem ter no máximo três minutos e não devem ser utilizados figurinos, adereços, nem acompanhamento musical. (D’ALVA, 2014, p.113) Outros dois pontos fundamentais dentro de um slam de poesia e que dizem respeito à recepção são os jurados e o público. Num total de cinco (grande parte dos slams utiliza-se desse número de jurados, mas o número, assim como o restante das regras, pode variar dependendo da comunidade em que o slam é realizado), o júri é escolhido aleatoriamente dentre as pessoas do público presente, levando-se em consideração o máximo de diversidade possível. Os jurados têm a difícil missão de dar notas aos poemas apresentados, considerando o conteúdo e a forma. Recebem pequenas plaquetas ou papéis onde marcam notas de zero a dez. As placas são levantadas individualmente, logo em seguida ao final de cada poema, e dessa maneira não há tempo para análises demoradas; o impacto da performance e do texto é o que geralmente é “julgado”. A menor e a maior nota caem para que não haja favorecimentos ou desfavorecimentos propositais. É feita uma média e o poeta que consegue a maior pontuação nas rodadas é o campeão da noite. (D’ALVA, 2014, p. 115-116) Inspirade nos Slams, crio nestas páginas espaço de aprendizado e comunhão da palavra poética autoral sem hierarquias. Aqui, sou Slammer entrando em cena. Os poetas que entram nessa arena sabem do quanto é necessário emocionar o público, com humor, caos, doçura, perturbação, enfim, estão ao seu dispor um repertório de inúmeras sensações emocionais e corporais que são capazes de provocar, os mais diversos recursos são usados por eles para atingir esses fins. (D’ALVA, 2014, p. 114) Compartilho vivências em conexão com referências bibliográficas, audiovisuais e musicais que fazem sentido nesta trajetória, guiando uma leitura afetiva que acessa caos, doçura e perturbações ao remexer estruturas (internas e externas) de poder e violências. 11 A aproximação com o universo que desperta empatia a partir da união de versos diversos começa no Slam do Corpo, mas a história do Slam do Corpo começa bem antes do nosso encontro e conhecer suas raízes se faz necessário para entender o contexto. Aprender para ensinar: Durante seus oito anos de existência (2002 – 2010) o curso foi um laboratório para a criação de estratégias de mediação cultural, intervenções e mobilizações na escola, na comunidade surda, no museu, na cidade operando a partir do que denominamos potência surda. Após alguns anos, o Aprender para Ensinar conquistou a contratação de dois alunos do curso como educadores do MAM-SP, deixando de ser apenas uma experiência piloto circunscrita a um programa educativo para inventar uma profissão antes impensável para os surdos: o educador de museu. Com o tempo, outros alunos passaram a ser contratados em outros espaços e instituições culturais da cidade. Em 2008, alguns deles, que frequentemente se rematriculavam no curso, vendo ali um espaço contínuo de formação artística e política, sugeriram que criássemos um outro espaço de encontro. (LUCENA, 2017, p.32) Corposinalizante: Esse grupo nasceu em 2008 no MAM, em decorrência do curso Aprender para Ensinar. Jovens surdos que participaram do curso de formação formaram esse coletivo com o objetivo de produzir estudos e ações poéticas tendo a Libras e as demandas da comunidade surda como foco. (MOTA; SANTOS, 2020, p.89) É aberto a jovens surdos e ouvintes interessados em Libras. Junto ao grupo são desenvolvidos projetos culturais, documentários, performances e intervenções poéticas que contribuem para a visibilidade da identidade surda e da cultura. (LIOLI, MOREIRA, 2020, p.68) Slam do Corpo: Desde 2014, o grupo Corposinalizante promove slams de poesias, que compreendem batalhas com surdos e ouvintes. (LIOLI; MOREIRA, 2020, p.68) O Slam do Corpo é promovido pelo grupo Corposinalizante em parceria com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e o Sarau do Burro. Tem como objetivo a experimentação poética em/com a língua de sinais, abrindo espaço para o diálogo, duetos e parcerias entre surdos e ouvintes. Por essa razão, os slams são lugares de aprendizagem, empoderamento e troca de muito conhecimento e experiência humana. (LIOLI; MOREIRA, 2020, p.69) O Slam do Corpo, por meio de oficinas e laboratórios de criação poética, ao mesmo tempo que propõe o encontro entre surdos e ouvintes como já mencionado, promove o encontro de duas culturas e línguas, permitindo o encontro de modos diferentes de se descobrir e de se criar poeticamente, sem reproduzir nenhum tipo de subordinação ou dominação de uma língua sobre a outra. (MOTA; SANTOS, 2020, p. 96) 12 A proposta do Slam do Corpo de juntar poetas surdos e ouvintes como cocriadores, e não tradutores, é inovadora e quebra padrões e certezas. Percebemos que muitos ainda não parecem compreender que, nem sempre, a presença de um ouvinte ao lado de um surdo no palco significa que ele está ali desempenhando necessariamente o papel de TILS (tradutor intérprete de língua de sinais), mediando a comunicação simplesmente. Ele pode estar ali também se expressando como poeta, participando de uma performance bilíngue em dueto como parceiro do surdo, igualmente artista e criativo. (LIOLI; MOREIRA, 2020, p.79) Transcriação no Slam do Corpo: No Slam do Corpo, a tradução de poesia é estudada e praticada de modo criativo. A tradução é entendida como obra, o que nos distancia da ideia de uma tradução “servil”. Nesse processo, o conceito de transcriação desenvolvido por Haroldo de Campos tem sido fundamental. Campos (2013) afirma que o tradutor de poesia é um “coreógrafo da dança interna das línguas” que tem seu sentido, o conteúdo, apenas como bastidor semântico ou como um cenário “pluridesdobrável” dessa coreografia que é móvel. A ideia de traduzir poesias a partir do entendimento de transcriação, e do encontro entre culturas e mundos, aconteceu a partir do convite que eu, Erika, recebi para fazer parte da equipe do Slam do Corpo, coordenada pelas artistas Joana Zatz e Cibele Lucena, quando iniciamos nossas criações poéticas em Português e em Libras, separadamente, e nossas criações em parceria, em duplas com surdos e ouvintes. (MOTA, SANTOS, 2020, p.90) Quando o poeta surdo se encontra com o poeta ouvinte, e juntos transcriam uma poesia, o processo criativo se dá de forma distinta. O que acontece não é a passagem da mensagem de uma língua de partida para uma língua de chegada. A mensagem nesse caso acontece em ambas as línguas ao mesmo tempo. Percebe-se a poesia assim, para além da palavra escrita e para além da (corp)oralidade. (LIOLI, MOREIRA, p. 74,75) Acreditamos que parte das exigências demandadas aos artistas num processo de transcriação poética envolve um repertório de conhecimentos e referências. Entendemos que é preciso estudar poesia, pesquisar a arte e a história a partir de perspectivas críticas não hegemônicas, assim como é necessário analisar contextos políticos e socioeconômicos. Entendemos ainda ser fundamental que o intérprete-poeta ouvinte compreenda a cultura surda, dimensione sua grandeza e riqueza, o que não quer dizer que dela deva se apropriar. (MOTA, SANTOS, p.97-98) No contexto apresentado, de parceria e troca com poetas surdes e transcriações poéticas em Libras e Português, realizo pesquisa de arte e história a partir de perspectivas críticas, dimensionando a grandeza e riqueza da cultura surda, e refletindo sobre apropriação ouvinte de saberes produzidos pelo povo surdo. Apresento textos, quase que independentes, mas interligados entre si, sobre temas que se apresentam urgentes e me instigam a comunicação com o mundo. 13 Certamente em pouco tempo terei outras versões e entendimentos1, apresento, portanto, ponto de vista de uma pessoa de localização específica em um momento da vida. Data-se de novembro de 2015 a janeiro de 2022, seis anos de aproximações com o Slam do Corpo. Pessoa ouvinte, branca, com ensinos básico e médio concluídos inteiramente em escolas particulares, filha de professora universitária, AFAB2 e de identidade transgênere Não Binárie, Transmasculino, Homem Trans e Boyceta. Neste trabalho tenho foco nos Slams, porém, gostaria de apresentar dois grupos de arte, teatro e poesia que fiz e faço parte e que também acontecem no encontro das culturas surda e ouvinte, da Libras e do português. O Rouxinol e a Rosa3 (imagens 1, 2, 3 e 4) é um espetáculo teatral com dramaturgia intercultural, que prevê trocas entre línguas e culturas. O espetáculo é criação coletiva que foi realizado no Festival Cultura Inglesa de 2019, apresentado em escolas, Sescs, Itaú Cultural, entre outros espaços de arte e educação. Fotos do Espetáculo O Rouxinol e a Rosa, no Festival Cultura Inglesa, 2019. Descrição4: O figurino utilizado no espetáculo é composto por um sobretudo branco de mangas compridas, com golas altas e quatro botões amarelos. Eles têm comprimento maior atrás e menor na Edgar usa uma calça cinza, Eduardo uma calça azul, Mariana uma saia comprida xadrez e Caê uma calça branca com listas azuis. Todes utilizam maquiagem cobrindo inteiramente o rosto, 4 As descrições a seguir são informais e foram feitas por mim, pessoa não profissional da audiodescrição, elas são, portanto, incompletas e insatisfatórias. 3 Elenco: atories Mariana Ayelen (atriz Surda), Edgar Jacques (ator cego), Eduardo Bartolomeu (ator ouvinte e vidente) e Caê Prandini (músico em cena ouvinte e vidente), diretora Letícia Soares, dramaturga Cintia Alves, figurinista e cenógrafo Jeff Celophane e diretora musical Juliana Keiko, com a constante presença da Tradutora e Intérprete de Língua de Sinais (TILS) Sylvia Sato (todes ouvintes e videntes). Realização do grupo Grão. 2 AFAB e AMAB: Siglas que significam “designado feminino / masculino no nascimento” (também designado feminino / masculino no nascimento ou feminino / masculino designado no nascimento). Ninguém, cis ou trans, pode escolher o sexo que será atribuído ao nascimento. Este termo é preferido a "homem / mulher biológico", "corpo masculino / feminino", e “nascidos homem / mulher", que são difamatórios e imprecisos (tradução nossa). No original: AFAB and AMAB: Acronyms meaning “assigned female/male at birth” (also designated female/male at birth or female/male assigned at birth). No one, whether cis or trans, gets to choose what sex they’re assigned at birth. This term is preferred to “biological male/female”, “male/female bodied”, “natal male/female”, and “born male/female”, which are defamatory and inaccurate. Disponível em . Acesso em: 06 de jan 2022. 1 Entendo que “todas as versões são partes, e todas as verdades são metades” (LAURA MC, 2020), e que “ mudar de ideia é bem mais bonito que ficar na mesma” (PAMKA, 2021), por isso encaro minhas verdades em movimento. https://www.nyp.org/documents/pps/cultural-competency/Understanding%20Disparities%20-%20LGBTQ%20Terminology.pdf https://www.nyp.org/documents/pps/cultural-competency/Understanding%20Disparities%20-%20LGBTQ%20Terminology.pdf 14 sendo base branca, bochechas avermelhadas e batom preto. Como cenário e objeto cênico, ao centro do palco, uma escada de madeira que possui dois lados e é enfeitada com retalhos coloridos Imagem 1: Caê em cena. Descrição: Caê está sentado com um violão no colo, uma caixa e um bumbo de bateria vermelhos a sua frente. Pendurado na caixa, um pratinho e um carrilhão de chaves. Ele sorri levemente e olha para diagonal a esquerda. Imagem 2): Edgar Jacques, Mariana Ayelen e Eduardo Bartolomeu em cena. 15 Descrição: Ao fundo e à esquerda da foto Edgar está de pé no primeiro degrau da escada e veste uma máscara com bico de pássaro que representa a personagem rouxinol da nossa história. Ao seu lado em um plano a frente da foto está Mariana com os braços abertos, fazendo o sinal de árvore com uma mão e com a outra o sinal de raízes. Ao seu lado e à direita da foto, em primeiro plano, está Eduardo, vestindo um óculos preto que representa a personagem estudante da história. Ele mostra ao público um cartaz com imagens de flores roxas e amarela escrito “bromélia” Imagem 3: Edgar Jacques, Eduardo Bartolomeu e Mariana Ayelen em cena. Descrição: Edgar está à esquerda da foto sentado de pernas cruzadas no chão, ao seu lado, mais ao centro da foto está Eduardo em cima do segundo degrau da escada cênica com os braços levemente levantados e vestindo os óculos da personagem estudante. A direita da foto está Mariana fazendo sinal de árvore com uma mão e segurando uma grande rosa vermelha de crochê com a outra. Todes olham para a rosa. Fotos: Geraldo Lima. Fonte: acervo pessoal. O grupo Mãos de Fada realiza contações de histórias, como no Slam do Corpo, com ume artista surde e ume artista ouvinte em cena, cada ume conta a 16 história em sua primeira língua, utilizando a Libras, o português e construindo imagens corporais conjuntamente. Comecei a participar do grupo em 2019 e sigo, periodicamente, contando histórias em bibliotecas, escolas e centros culturais. Ao longo desses anos, o Grupo Mãos de Fada teve diferentes formações. Inicialmente, o grupo atuava com três TILS ouvintes e co-fundadoras do projeto, Elaine Sampaio, Thalita Passos e Vânia Santiago, mas no ano de 2015, dois surdos se juntaram à equipe (Diogo Silva e Vinícius Oliveira). Uma parceria esperada e desejada pelo grupo e que ainda não havia surgido oportunidade. Muitos artistas surdos e ouvintes passaram pelo grupo contribuindo para a expansão das pesquisas e experiências. Atualmente, três contadores surdos (Malu Dini, Mariana Ayelen e Vinícius Oliveira) e três contadores ouvintes (Caê Prandini, Thalita Passos e Vânia Santiago) compõe o grupo, todos fluentes em Libras, contando em duplas a depender da agenda de trabalho. (PASSOS, 2021, p.14) Fotos de diferentes contações de histórias do Grupo Mãos de Fada Descrição5 do figurino utilizado nas fotos a seguir: 1) Macacão de calça comprida estampado com retângulos nas cores vermelho, azul, amarelo, roxo, branco e verde, utilizado com camiseta preta de mangas curtas por baixo. 2) Calça saruel estampada com faixas horizontais nas cores azul, vermelho, roxo e amarelo utilizada também com camiseta preta de mangas curtas. Imagem 5: Malu Dini e Caê, Biblioteca CEU Caminhos do Mar, 2019. Descrição: Caê utiliza o macacão com camiseta preta e Malu utiliza a calça com camiseta preta. Juntes fazem o sinal de “Mãos de Fada”, Caê “segura a varinha” e Malu faz, com uma mão o sinal de Libras, com a outra mão, se abraçam. Ao fundo, estantes brancas, cheias de livros coloridos. Imagem 6: Mariana Ayelen e Caê, Biblioteca São Paulo, 2021. 5 idem nota 4. 17 Descrição: nesta foto Caê utiliza a calça saruel do figurino com camiseta preta e uma máscara preta que é transparente na boca, permitindo a visualização de seu sorriso. Com uma mão ele faz o sinal de Libras e a outra está relaxada junto ao corpo. Mariana veste o macacão com camiseta preta e uma máscara branca transparente na boca que permite que seu sorriso seja visualizado. Com uma mão ela faz o sinal de varinha de fada e aponta para a mão em sinalização de Caê. Juntes elus compõem o sinal do grupo Mãos de Fada. Ao fundo, uma parede de vidro espelhado, que reflete grama verde, árvores e alguns prédios. Imagem 9: Vinícius Barbudo e Caê, Biblioteca Parque Villa Lobos, 2022. Descrição: nesta foto Caê veste o macacão e Vinícius a calça saruel e um suspensório verde, ambos vestem camisetas pretas e máscaras pretas de material transparente na boca. Eles estão posicionados à direita da foto, de perfil, e de frente para uma plateia de crianças sentadas em pufes redondos individuais, elas ocupam a esquerda e o centro da imagem. Caê e vinícius fazem o sinal de melancia e algumas crianças os copiam, fazendo também o sinal. Fonte: acervo pessoal Participar desses grupos me proporcionou (e segue proporcionando) situações de muitos afetos, emoções e transbordamentos, com amizades e 18 parcerias surdas, por isso, escrevo buscando consciência e responsabilidade. Apresento aprendizados que a cultura surda, o jeito surdo de estar no mundo, pode me ensinar, como as diferenças entre “escuta” e "audição'', tema desenvolvido no texto “Audição não é escuta: a obsessão ouvinte por ondas sonoras”. As reflexões levantadas por essa escrita me levaram ao estudo sobre o privilégio da audição, e a produção do texto “Lugar de fala, privilégio ouvinte e ouvintismo” que elucida poderes da identidade ouvinte. Na sequência, aprofundando a discussão, escrevo sobre o “O ensino da Libras por professories ouvintes”, analisando a disciplina de Educação Especial e Libras oferecida pelas Universidades Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP) em 2021. No último texto “Libras, linguagem neutra e experiência não binária” compartilho experiências de identidade Não Binária, aspectos de minha transição de gênero, e o acolhimento da Libras e da cultura surda à vivência NB. Discuto como a Libras é livre da dominação do gênero masculino na linguagem e como na língua portuguesa precisamos criar toda uma linguagem neutra (que ainda é limitadora) para chegar a uma possível aproximação ao gênero neutro da Libras. Nesta escrita utilizo o sistema Elu da linguagem neutra (elu/delu, professore, alune, sujeite), consultando o Guia de Linguagem neutra de Ophelia Cassiano como referência, mas também me permitindo liberdade criativa, uma vez que essa linguagem vem sendo construída pela comunidade trans não binária e sendo eu integrante dela. Acredito que com o incômodo e a estranheza que seu uso provoca, é possível afetar imaginários e revelar a profundidade da problemática de gênero que a língua portuguesa possui. Neste sentido estou alinhado com as propostas de Grada Kilomba, uma das minhas principais referências, e como estudante, abraço o desafio por ela colocado: A língua portuguesa é extremamente problemática, é uma língua cheia, como todas as línguas coloniais, e todas as línguas européias é muito rica em patriarcados e racismos, é uma língua extremamente hierarquizada que constrói relações de poder e de violência e é importante começar a desmantelar isso. Nós não temos a linguagem ainda, temos que inventar novos termos também e escalar pras nossas crianças e estudantes que estão a ouvir e que começam a pensar em novas terminologias, não é? (KILOMBA, 2020, 1h22min36s) 19 Assim, tomo liberdade para criar terminologias de acordo com as necessidades deste trabalho. Utilizo “CORPEssoa” para questionar a ideia de corpo separado de mente, de mim, de pessoa e o pronome masculino que a língua portuguesa, de maneira colonial, impõe a diferentes histórias e vivências ao denominar “o corpo” ou “os corpos”, por isso, utilizo ês CORPEssoas. E “sençasentipensamentos”, que surgiu de uma necessidade genuína desta escrita em descrever sensações, sentimentos e pensamentos com integridade, como acontecimentos simultâneos, interligados, sem separação e também sem demarcação de gênero6. Como alternativa ao pensamento binarista, que estrutura relação de poder, sujeito e objeto, me coloco como sujeite-objete7, aqui, eu, minhas narrativas e ações são sujeites e objetes de estudos e de produção de conhecimento. Encontros interculturais com reconhecimento de potências e vontade de expansão e aprendizado, são simplesmente apaixonantes, espero que minhas experiências possam afetar e instigar a ação. 7 Sujeito: No original inglês, o termo subject não tem gênero. No entanto, a sua tradução corrente em português é reduzida ao gênero masculino - o sujeito -, sem permitir variações de gênero feminino - a sujeita - ou nos vários gêneros LGBTQIA+ - xs sujeitxs -, que seriam identificadas como erros ortográficos. É importante compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, escrita ou falada, ou ser identificada como um erro. Isto revela a problemática das relações de poder e violência na língua portuguesa, e a urgência de se encontrarem novas terminologias. (KILOMBA, 2019, p.15) Objeto: Object, assim como subject, é um termo que não tem gênero na língua inglesa. No entanto, a sua tradução corrente em português é também reduzida ao gênero masculino - o objeto -, sem permitir variações no gênero feminino - a objecta - ou nos vários gêneros LGBTQIA+ - xs objetxs -, expondo, mais uma vez a problemática de das relações de poder e violênciana língua portuguesa e a urgência de se encontrarem novas terminologias. Além disso, parece-me importante lembrar que o termo object vem do discurso pós-colonial, sendo também usado nos discursos feministas e queer para expor a objetificação dessas identidades numa relação de poder. Isto é, identidades que são retiradas da sua subjetividade e reduzidas a uma existência de objeto, que descrito e representado pelo dominante. Reduzir o termo à sua forma masculina revela uma dupla dimensão de poder e violência. (...) (KILOMBA, 2019, p.15) Tendo essas problemáticas em vista, opto por “sujeite-objete” 6 Sendo AS sensações, OS pensamentos e OS sentimentos, opto pelo pronome neutro: ÊS “sençasentipensamentos”. 20 2 Princípio do romance: o primeiro “Beijo de Línguas” “O sabor do primeiro beijo é viciante e impregna na alma. Depois que se beija é impossível voltar ao que se era antes.” (LIOLI, MOREIRA, 2020, p.80) Dia 15 de novembro de 2015 foi nosso primeiro encontro. Mal sabia eu que naquele dia seria minha primeira vez. Primeira vez em contato (em real estado de troca) com pessoas surdas, primeira vez sentindo o desconforto delicioso de estar em meio a conversas surdas quando não se sabe Libras, primeira vez em um “Beijo de Línguas”8 que me arrepiou inteiro, encheu a barriga de borboletas e fez planos para o futuro. Foi no Sesc Vila Mariana, em uma oficina de criação de poesias-performances em duplas, compostas por uma pessoa surda e uma pessoa ouvinte, que meu romance com o Slam do Corpo começou. Não sei a roupa que escolhi para o nosso “date” mas lembro que justamente no dia anterior eu havia raspado o cabelo na máquina zero e sentia uma energia de renovação de ciclo. Me lembro vivamente daquele dia. A oficina iniciou em roda, com o acender e apagar das luzes para chamar a atenção para as apresentações, que começaram com integrantes do Corposinalizante, seguidas de apresentações individuais. Cada pessoa se comunicou em sua primeira língua (Libras ou português) contando brevemente de si e compartilhando seu sinal9. Eu ainda não tinha um sinal, foi nessa oficina que surdes se juntaram para discutir minhas visualidades e me deram o seguinte sinal: em configuração de mão, toca na pinta acima da sobrancelha esquerda, desce na diagonal à minha direita, e toca na pinta na bochecha direita 9 O sinal pessoal em Libras é o nome visual com o qual cada pessoa é identificada dentro da comunidade surda. Ele deve ser criado por uma pessoa Surda a partir de percepções visuais sobre quem irá recebê-lo, podendo estar relacionado a um comportamento constante da pessoa, como seu jeito de arrumar o cabelo, ou ao uso comum de algum objeto, como colares e brincos, ou ainda à aparência física da pessoa, como as sobrancelhas grossas ou como no meu caso, a diagonal de pintas no rosto. 8 Beijo de Línguas é uma expressão cunhada pelo poeta Daniel Minchioni, organizador do Menor Slam do Mundo e do Sarau do Burro, colaborador e participante ativo do Slam do Corpo. Minchoni traduziu, nesta expressão, o encontro de línguas e afetos produzido pelo evento. A expressão foi abraçada pelo Corposinalizante e permanentemente incorporada à descrição do Slam do Corpo, sendo ainda aprofundada e desenvolvida por Cibele Lucena, uma das fundadoras do grupo, em sua tese de mestrado em psicologia clínica na PUC que leva o nome “O Beijo de línguas: quando o poeta surdo e o poeta ouvinte se encontram”. (LUCENA, 2021, informação pessoal) 21 Imagem 10: Configuração de mão10 Mão fechada com o indicador levemente levantado, encaixando-se com o dedão. fonte: https://www.libras.com.br/os-cinco-parametros-da-libras Imagem 11: Sinal Caê. Descrição: Caê é uma pessoa branca, está sem sobrancelhas e tem uma barbinha fina no bigode e no queixo, vemos uma pinta acima da sobrancelha esquerda e uma na bochecha direita, na altura da ponta do nariz. Ele usa um gorro de frio preto e uma blusa de frio preta por cima de uma camiseta branca, de ambas visualizamos apenas a gola. Ele olha diretamente para câmera e está relaxado. A imagem é uma composição de três fotos em sequência da esquerda para direita, com recorte de câmera foto “¾”. Na primeira foto, à esquerda, visualizamos seu rosto, na segunda, a mão direita toca a pinta acima da sobrancelha, e na última foto, toca a pinta na bochecha direita. As três fotos juntas mostram a realização do sinal “Caê”. Fonte: imagem pessoal 10 Configuração das mãos refere-se às formas que as mãos assumem na produção dos sinais, que podem ser da datilologia (alfabeto digital/manual) ou outras formas feitas pela mão dominante ou pelas duas mãos (PEREIRA, M.C.C; CHOI, D; VIEIRA, I. M; GASPAR, P; NAKASATO, R, 2011, p.61) 22 Depois das apresentações, tivemos um tempo para que cada pessoa criasse uma poesia em sua primeira língua, e em seguida, abrimos uma roda de compartilhamentos. A partir da proximidade de temas, foram formadas duplas compostas por uma pessoa ouvinte e uma pessoa Surda. Tive muita sorte ao encontrar meu parceiro, eu e Rusdy Delgado Rabeh nos conectamos de maneira naturalmente íntima, como se há muito tempo tivéssemos parceria. A poesia que Rusdy levou para nossa dupla tinha a imagem da casa/árvore de um ninho de passarinhos, que foi serrada, derrubada com um machado, colocada em um caminhão e levada para a fábrica. Na fábrica, sobre esteiras rolantes, a madeira passava por diversos processos até virar uma gaiola que, por fim, recebia o preço de 100 reais. A transcriação dessa poesia para o português foi simples, porque, criar uma narrativa em voz era desnecessário, uma vez que a visualidade podia nitidamente ser compreendida por pessoas ouvintes distantes da Libras. Pude ter essa certeza, pois esse era justamente o meu caso. Escolhi então utilizar em português apenas palavras necessárias para o entendimento do contexto: árvore, ninho, passarinho, gaiola, 100 reais. De resto, mantivemos a narrativa original e passamos a construir em dupla as imagens que haviam sido criadas anteriormente por apenas uma pessoa. Esse caso da não necessidade em traduzir completamente as poesias de uma língua para outra é comum nos processos de criação poética no Slam do Corpo. Catharine Moreira (poeta surda) e Amanda Lioli (poeta ouvinte), formam dupla nas batalhas de poesias e também descrevem essa situação em suas cocriações. Frente às (im)possibilidades de se traduzir determinadas falas poéticas de nossas poesias, fomos percebendo não ser tão necessária a tradução de muitas delas. Em outras palavras, fomos notando que não era preciso estarmos nos traduzindo o tempo todo (para Libras e para Português), desde que passássemos o mesmo conteúdo e a mesma emoção na performance juntas, podendo ser isso de forma simultânea ou não. (LIOLI, MOREIRA, 2020, p.72) A expressividade em cada uma das línguas é distinta, por isso falamos em transcriação e não tradução. A Libras, muitas vezes, constrói narrativa inteiramente visual, destacando ês CORPEssoas em cena e a potencialidade para além de sinais e/ou palavras, com sua força visual-espacial. 23 Cada dupla é única e os processos criativos acontecem no encontro des poetas e seus incômodos, inquietações e desejos de comunicação com o mundo a serem poeticamente formulados. Cocriar com Rusdy, foi fluido porque ele tem intimidade com a cultura ouvinte e grande domínio do português e se comunicou comigo na minha língua, oralizando e fazendo leitura labial. Naquele momento me dei conta da desigualdade estabelecida, em que ele dominava minha língua e eu mal conhecia a dele, visualizei minha zona de conforto e o incômodo se estabeleceu em mim. Me percebi cúmplice de todo um sistema que sobrecarregava a pessoa com quem trocava afetos, foi amor e consequentemente raiva com o mundo e as desigualdades que antes eu não acessava. Meu primeiro “Beijo de Línguas” foi despertar, tiro certo, paixão a primeira poesia. Dois poetas em um sarau – um surdo, outro ouvinte – apresentando um mesmo texto em dois corpos11, duas línguas, dois mundos, é um beijo. O beijo é esse acontecimento entre os corpos. No beijo não tem uma língua mais importante e outra menos, não tem uma língua dominante e outra dominada. (LUCENA, 2017, p.25) “Beijo de Línguas” é território fértil de possibilidades poéticas. Nele, duas línguas usualmente acostumadas a se relacionar em diferentes tempos e espaços, (quando estão na relação de comunicação-interpretação), são vivenciadas simultaneamente, se complementando e compondo sem hierarquias. Nosso desejo desde então é que a arte aconteça na parceria entre artistas surdos e artistas ouvintes e, consequentemente, pela não instrumentalização de nenhuma das duas línguas envolvidas (Libras e Português). Por instrumentalização entendemos a utilização puramente prática da língua, como uma ferramenta apenas informativa e de mediação, não poética. Defendemos que a Libras e o Português precisam ser trazidas juntas na arte, também em suas potencialidades criativas, artísticas, produtivas e expressivas. (LIOLI, MOREIRA, 2020, p.70) Vivenciando esse lugar artístico e criativo em diferentes duplas no Slam do Corpo, percebi que para estabelecer um estado de troca, também sem hierarquia para além da poesia, era necessária minha aproximação e compreensão da comunidade e cultura Surda, assim como o empenho no aprendizado da Libras. 11 Parte da fala proferida pelo Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (PUC-SP) no Simpósio “Slam do Corpo – novo jeito de falar, novo jeito de ouvir”, realizado no Centro de Pesquisa e Formação do SESC - São Paulo, 2015. (apud LUCENA, 2017, p.26) 24 Em 2016 comecei a fazer aulas particulares com a professora Surda, integrante do Corposinalizante, Lara Gomes. Nas aulas, Lara me apresentou cultura surda, me indicou livros, filmes e materiais audiovisuais, além de compartilhar comigo olhares, perspectivas e visão de mundo. Com ela tive aproximação e compreensão da cultura e comunidade surdas que apenas professories Surdes podem proporcionar. Juntamente aos nossos encontros semanais, segui frequentando oficinas de criação de poesias no Slam do Corpo, oficina de Visual Vernacular12 com Fábio de Sá, as batalhas do Slams do Corpo, programação do Setembro Azul13, palestra do palhaço Surddy14, show do rapper Signmark15, Bloco Vibra Mão16, festa Vibração17, aniversários, mesas de bares, e diversos outros eventos e espaços de encontros da comunidade surda. Cada vez mais fui tendo acesso ao mundo surdo e sendo contagiade por suas maneiras de estar, ver e sentir o mundo. Todos se movem a partir da poesia surda, todos saem do lugar. Cada palavra, surda ou ouvinte, cada “corpo-voz”, abre um mundo possível, e é no encontro (tenso e muitas vezes difícil) com esses mundos que podemos nos manter em movimento. (LUCENA, 2017, p.112) Esse lugar de troca, movimento, contágio recíproco, invenção de espaços confortáveis às múltiplas existências, questiona a ideia de “acesso” como “ato e resultado de ingressar”18. Espaços normativos são formulados a partir da exclusão de existências não normativas, atribuindo-as apenas ao campo da “acessibilidade”, a cota da “inclusão”, permitindo, depois que suas existências já foram excluídas do processo de formação do espaço, "ingresso". 18 ACESSO. in: Michaelis online. Disponível em Acesso 02 nov 2021 17 Festa da comunidade surda em São Paulo 16 Bloco de carnaval feito por e para Surdes e TILS em São Paulo. 15 Signmark: Marko Vilhelm Vuoriheimo, profissionalmente conhecido como Signmark, é um rapper surdo finlandês 14 Palhaço Surddy: Em sua performance no palco, Igor Andrade, que interpreta o palhaço Surddy, utiliza mímicas, linguagem corporal e a Língua Brasileira de Sinais (Libras) 13 O mês de setembro é o mês de visibilidade da comunidade surda brasileira, conhecido como o "Setembro Azul", em referência ao dia 26, data em que é comemorado o Dia Nacional do Surdo. 12 Visual Vernacular - uso da expressão corporal em conjunto com a língua de sinais (LIMA, 2018, p.16) https://michaelis.uol.com.br/palavra/vk3M/acesso/ 25 No Slam do Corpo compreende-se troca e reciprocidade, todes envolvides se afetam e se movimentam no sentido da construção de mundos possíveis e férteis para o encontro de identidades e culturas plurais. 26 3 Binarismos nos conceitos “Acesso” e “Inclusão” Antes de adentrar esse assunto, gostaria de deixar nítido meu respeito e reconhecimento aos movimentos por acessibilidade e inclusão e a todas as pessoas que os protagonizaram e/ou seguem protagonizando. A seguir, trago discussões contemporâneas, que hoje só são possíveis por conta dos avanços conquistados pelo extenso histórico de lutas travadas por pessoas que dedicaram suas vidas na construção de caminhos para sociedades mais justas. Importante ressaltar também que abordo o tema do lugar de fala situado no texto de boas vindas, e no contexto de fazeres artísticos, tendo em pauta experiências das artes da cena, da performance, atuação, contação de histórias e Beijos de Línguas do Slam do Corpo. Dito isso, seguimos: Mas ainda assim o beijo é mais que um encontro. Ele não é mistura, fusão e muito menos inclusão, é um tipo de insurgência poderosa que, quando acontece, provoca e desorganiza aquilo que está estabelecido como norma – talvez pelo fato de trazer o que a ideia de mestiçagem tem de potência e não de anulação de si ou extermínio do outro. (LUCENA, 2017, p.25) Entender do “Beijo de Línguas” localizado fora do campo da “inclusão” é fundamental, pois nele, não predomina a norma binária, que parte de incluídes e excluídes. A Libras não está para traduzir o português e tão pouco o português está para traduzir a Libras. Ê poeta Surde não está sendo incluíde na poesia del poeta ouvinte, nem ê ouvinte está sendo incluide na poesia del poeta Surde. As poesias nascem da criação conjunta, da interação, do encontro e multiplicação de potências surdas e ouvintes em jogo poético com as plasticidades de suas línguas. O “Beijo de Línguas” é “arte em acontecimento”, não é “arte inclusiva”. Entendemos ser problemático pensar em projetos e ações culturais que seguem conceitos distorcidos, superficiais e normalizadores a respeito dos surdos. Expressões como: “Incluir através de...” ou desenvolver alguma coisa “para” os surdos precisam ser repensadas. Isso porque podem velar preconceitos, já que partem da exclusão para a inclusão, ou seja, de quem já está fora e precisa ser trazido para dentro. Ou ainda, de quem deve ser normatizado a um nível que se considere adequado e aceitável para padrões da sociedade. Ao nosso ver, não se trata de “vencer a deficiência”, de “incluir” ou de “dar acesso” apenas. Se trata sim, antes de tudo, de defender o direito de os surdos existirem em sua experiência, criação e autonomia. (LIOLI; MOREIRA, 2020, p.65-66) 27 “Incluir” ou “dar acesso”, pressupõe uma normalidade ativa que “ajuda” uma anormalidade passiva a se adaptar à realidade que em base as exclui. Deslocando essa lógica binarista em que um lado é ativo e outro é passivo, penso sobre autonomia e habilidades de acesso que cada pessoa desenvolve. Por exemplo, quais conhecimentos e visões de mundo eu Acesso em: contato com universos del outre, quais sentimentos ê outre acessa em contato com minhas vivências e narrativas, como minhas palavras, sinais, e expressões acessam (afetam) outra pessoa. Em contato com comunidade e cultura surda alcancei afetos (acessos) de expansão, que trouxeram mudanças significativas na compreensão deste conceito. Por exemplo, ainda no começo dos estudos da Libras, fui convidado a ser a única pessoa ouvinte em uma mesa de um bar, meio a surdes sinalizando em alta velocidade. Me lembro do incômodo por não conseguir acompanhar as conversas, me lembro de sorrir e acenar com a cabeça sem entender a pergunta que me tinha sido feita, e da paciência que algumes precisaram ter comigo para explicar o que estava acontecendo. Nessa situação, a narrativa hegemônica estava invertida. Quem era incluíde na conversa? E quem era excluíde? A quem a conversa era acessível? Quem necessita de acessibilidade (tradução, explicação)? Frequentemente a ideia de “acesso” está associada ao “ato e resultado de ingressar, entrada, ingresso” de existências dissidentes nos territórios da identidade da norma. A acessibilidade, assim, muitas vezes busca incluir a dissidência, não como parte fundamental da sociabilidade, mas como cota de “inclusão”, cota da “diversidade”. Por isso relato a situação em que “acesso” assume significação invertida. Nela, a pessoa que precisou de acessibilidade (tradução, explicação) foi a identidade parâmetro social ouvinte. Essa e outras vivências me permitiram compreender a importância de compartilhar a responsabilidade sobre a comunicação, ou ainda deslocá-la da dissidência para a normativa (da pessoa Surda para a pessoa ouvinte). Afinal, o desconforto vivenciado por mim pontualmente é realidade cotidiana de pessoas Surdas e a Libras é uma língua visual-espacial acessível a Surdes e ouvintes, enquanto o português, por ser auditiva-oral, impõe barreiras ao aprendizado para pessoas Surdas. Sobre essa discussão no campo das artes, Estela Lapponi, jornalista, performer, videoartista e PCD (Pessoa Com Deficiência), que tem como investigação 28 artística o discurso do corpo com deficiência em linguagens cênicas e visuais, escreve manifestos. Manifesto Anti-Inclusão parte_1 A Inclusão propõe hierarquia de capacidades. A Inclusão é incapaz de ver e enxergar. A Inclusão é incapaz de ouvir e escutar. A Inclusão é simplesmente incapaz. A Inclusão pressupõe passividade. A Inclusão não interage. A inclusão causa pena A inclusão é unilateral A inclusão exclui A inclusão isola Projetos de inclusão, majoritariamente, são protagonizados por pessoas sem deficiência, ouvintes, que se entendem “normais” e de maneira unilateral, impõe seus fazeres, olhares e modos de vida a PCDs, Surdes, e pessoas com neurodiversidades, com a intenção de “incluir” a “diferença” em seus espaços e ideias, e pressupondo passividade da “diferença”, causa exclusão e isolamento. “Inclusão” instaura hierarquia de capacidades, causa pena, e cria território em que pessoas auto intituladas "incluídas" são incapazes de ver e enxergar, ouvir e escutar, interagir e cocriar. Manifesto anti-inclusão parte 2 Arte é conhecimento Arte é habilidade Arte é construção Arte é diálogo Arte é investigação Arte é Ação Arte é troca Arte é liberdade Arte é criação Arte é expressão Arte tem de toda pessoa A inclusão quer te normatizar A inclusão quer te excepcionalizar A inclusão quer te paralizar A inclusão quer te desconsiderar A inclusão quer te desincorporar A inclusão quer te ignorar A inclusão quer te especificar A inclusão quer te deixar só! Arte e Inclusão estão na contra mão! O significado das palavras vão além de sua semântica Trazem em seu traçado gráfico e sonoro pesos e levezas históricas e arraigadas às mais diversas sociopoliticoculturas O que quero propor aqui é que R-E-P-E-N-S-E-M-O-S 29 Sobre o significado e a significância que carregam as palavras Arte Inclusiva . (LAPPONI, 2012.) As reflexões que Lapponi traz são extremamente valiosas. R-E-P-E-N-S-E-M-O-S! “Arte inclusiva”. Se nós, arte educadories, entendemos arte como linguagem, pressupomos comunicação, ação, troca e expressão, sendo portanto, conceito distante do princípio binarista da “inclusão”. Os “Beijos de Línguas” do português com a Libras, por exemplo, não são “arte inclusiva” são arte em acontecimento, cocriação, poesia. Um beijo, então, nunca é monolíngue, pressupõe, no mínimo, dois corpos e dois mundos vivos, e tudo aquilo que os povoa, cada um em contato com suas potências. Ou seja, para acontecer um beijo de línguas, é necessária a presença de mais de uma forma de existência; e afirmar esta diversidade parece algo muito perigoso. Pois é perigoso escapar da lógica normativa, produzindo encontros imprevistos e sem nome, movidos pela urgência de olharmos para nós mesmos, não para um “outro” ou “algo” separado de nós, mas para nossos corpos, para o que sentimos, para como vivemos e nos relacionamos (LUCENA, 2017, p.25). O “Beijo de Línguas” cria com tudo que povoa ês CORPESsoas presentes, suas línguas e culturas, sendo território híbrido, bi/multilateral, que escapa da lógica normativa na qual a “arte inclusiva” se baseia. No Slam do Corpo não existe inclusão, existem interações, conversas e trocas que provocam deslocamentos de sençasentipensamentos, relações e vivências individuais e coletivas. Nele, a Libras acontece no contexto da cultura surda, com protagonismo Surde, sendo solo fértil para a escuta de histórias, pautas e demandas das comunidade e cultura surda. Roberta Estrela D’alva, fundadora do ZAP! Slam, primeiro Slam do Brasil, criado em 2010, escreve a Cibele Lucena sobre o tema da escuta no circuito de Slams: Olha no Slam, você vai lá falar poemas de 3 minutos e, às vezes, participa de só uma rodada! Num evento de 3, 4 horas, às vezes, você vai pra falar 3 minutos e escutar todo o resto do tempo! E escutar coisas que não necessariamente você concorda, mas que estão lá no jogo, e que não podem ser silenciadas, interrompidas ou diminuídas, como são no dia a dia! Isso é civilizatório! Isso é a prática da cidadania como nunca vista! (D’ALVA, apud LUCENA, 2017, p. 121) No Slam do Corpo, pessoas Surdas são protagonistas das poesias e colocam suas vivências em um mundo ouvinte que diariamente as silencia, interrompe, 30 diminui, não escuta. A proximidade com pessoas Surdas me permitiu acessar o quanto ouvintes temos dificuldades em escutar narrativas Surdas e pude perceber que muito disso se deve a imposição da audição sobre a escuta que ouvintes realizamos. 31 3 Audição não é escuta: a obsessão ouvinte por ondas sonoras São diversas as situações em que ouvintes realizamos a sobreposição da audição que recebe o português e o modo de vida ouvinte sobre a escuta visual da Libras e do modo de vida surdo. No convívio com a sociabilidade surda, a obsessão ouvinte por ondas sonoras é revelada. Por exemplo, uma vez, também em mesa de bar, estava em um grupo de maioria Surda ou TILS e a Libras predominava como primeira língua utilizada e o português como segunda. Uma amizade Surda e uma amizade ouvinte TILS, estavam contando experiências entre elas compartilhadas. Eu estava posicionado de pé, atrás da pessoa Surda, que estava sentada na mesa de frente para a pessoa ouvinte TILS, e lhes fiz uma pergunta. A pessoa ouvinte começou a explicar bimodalmente (em Libras e português ao mesmo tempo) e eu, colocando a escuta sonora, antes da escuta visual, logo após fazer a pergunta e durante a explicação, desviei o olhar e me movimentei para o outro lado da mesa para alcançar a cerveja. Prontamente, a pessoa Surda me tocou e também bimodalmente (com voz bastante enfática), disse: “Caê, você não perguntou? Agora escuta!”. Eu, assustado e reativo, gritei ao lado dela sem pensar “Eu estou ouvindo!!” apontando para meu ouvido. Nessa situação, a pessoa Surda levou na brincadeira, juntes demos risada, porém, logo percebi a imposição da escuta auditiva (das ondas sonoras) sobre a escuta visual e a reprodução de violência ouvintista que realizei ao optar pelas ondas sonoras e ignorar a explicação visual em Libras. Além de, depois de ter minha atenção chamada na minha primeira língua e segunda língua da pessoa Surda, eu ter a ousadia de fazer o terrível gesto de apontar para meu ouvido e dizer “estou ouvindo”. Nesse dia, voltei para casa pensando muito sobre o acontecimento, e sentindo muita vergonha da minha postura. Percebi que não apenas naquele momento, mas na noite toda o português e a audição haviam se sobreposto a Libras e a escuta visual na minha comunicação, reforçando a hierarquia social que favorece as línguas oralizadas e oprime, silencia, não escuta as línguas de sinais. Um tempo depois, nos encontramos novamente. Neste dia, fui determinado a silenciar meu português e abstrair a audição para dar foco e atenção a Libras e a escuta visual. Mais uma vez, a maioria das pessoas era Surda, porém, estavam presentes também pessoas ouvintes. Foram diversas as vezes em que eu estava 32 conversando em Libras e alguma onda sonora me chamou a atenção. Tive constantemente de me lembrar do compromisso com a escuta visual para prosseguir as conversas em Libras e ignorar os sons. Foram pessoas ouvintes me chamando em português “Ô Caê!!”, a fala em voz alta “quem quer pizza?”, o copo barulhento que caiu no chão, as músicas que eu gostava e me davam vontade de cantar, entre tantas outras situações que, se não fosse minha percepção e reflexão a partir do acontecimento no encontro anterior, teriam desviado minha atenção e interrompido minha escuta. É coisa de ouvinte Enobrecer as cordas vocais, o ouvido e a audição E se esquecer da escuta Escuta: sinal atenção Escuta: sinal observação Escuta não se faz com ouvido! Como nos ensina Cibele, Escuta é pela pele É empatia, compreensão, acolhimento… É fenômeno de recepção Que acontece em multidimensão e apenas uma, UMA delas é a audição A comunidade surda leva a sério a escuta Quando uma pessoa se comunica, todes observam com atenção, A visão escuta CORPEssoas e sues Sensasentipensamentos Que encontram liberdade de expressão Na Libras, Não se fala de tristeza sorrindo Não se fala de alegria e empolgação com indiferença As expressões fazem parte da concordância, da intenção e entonação da comunicação A Libras requer contato visual constante Não existe “tô te ouvindo”, enquanto faz outra coisa, anda pra lá e pra cá, ou fica mexendo no celular Não! Isso é coisa de quem ouve, Mas não escuta A audição é normativa limitada e obsessiva Por ondas sonoras E incapaz na escuta Da visão, vibração, emoção A língua portuguesa é presa na boca A Libras convoca CORPEssoa A audição só recebe pelo ouvido E se recusa A observação, atenção, As mais diversas possibilidades de comunicação 33 A audição ouve mas não Escuta, (Caê, 2021) Um comportamento que segue se repetindo e comprovando a incapacidade ouvinte de acessar escuta para além de ondas sonoras, se presentifica quando uma pessoa ouvinte se refere a uma pessoa Surda como surda-muda. Esse vocabulário é violento e ilógico! Surdes tem voz, elus tem cordas vocais. Pessoas Surdas não ouvem. E tem uma língua complexa e completa para se expressar. Leonardo Castilho (2018), artista Surdo, coloca “Ainda que vocalizem, os surdos têm outra voz: a voz do corpo”. Os “papos retos”, as ideias elaboradas, as brincadeiras que colocam o dedo na ferida do privilégio e desestabilizam a normatividade ouvinte são cotidianidades às expressões surdas. Quer ver? Experimenta ir a um Slam do Corpo e escutar! Com a cultura surda aprendi a sentir as vibrações da música, a pisar descalçe, a acender e apagar as luzes para chamar a atenção ao invés de sobrepor gritos, a descrever imagens corporal e visualmente, aprendi que a campainha de casa pode ser uma luz que pisca, o despertador um objeto que vibra, e que absolutamente tudo que ouvintes fazemos a partir de um referencial sonoro pode ser feito de outra forma, basta mudar o ponto de referência. E é justamente sobre outros pontos de referência que se constitui a cultura surda. Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de se torná-lo acessível e habitável ajustando-os com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das "almas" das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (STROBEL, 2008, p. 24) Como colocado pela autora, a cultura surda é o jeito surdo de entender o mundo e adaptá-lo às percepções visuais. Alguns exemplos disso são o recurso de acender e apagar a luz para indicar os três sinais antes de o teatro começar, a necessidade de lugares luminosos para a realização de conversas, o envio de vídeos ao invés de áudios nos grupos de Whatsapp, entre tantos outros costumes. É também aspecto fundamental da cultura surda a língua de sinais. A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois é uma das peculiaridades da cultura surda, é uma forma de comunicação que capta as experiências visuais dos sujeitos surdos, sendo 34 que é esta língua que vai levar o surdo a transmitir e proporcionar-lhe a aquisição de conhecimento universal. (STROBEL, 2008, p. 44) Aqui no Brasil, surdes utilizam a Língua Brasileira de Sinais (Libras), assim como cada país diferente possui a própria língua de sinais vinculada à história e cultura local. A Libras é uma língua de característica visual-espacial, diferentemente do português que é oral-auditiva, e possui gramática e estrutura próprias. A visualidade não se dá apenas nos sinais utilizados mas também nas expressões corporais e faciais. Por exemplo, para constituir tipos de frases na oralidade, percebe-se quando a frase está na forma afirmativa, exclamativa, interrogativa, negativa ou imperativa através da entonação da voz; no caso de língua de sinais precisamos estar atentos a expressões facial e corporal que são feitas simultaneamente com certos sinais ou com toda a frase. (STROBEL, 2008, p. 43)19 Por isso, pessoas Surdas têm expressividade mais desenvolvida do que pessoas ouvintes, trata-se de vivência, utilização em seu dia a dia. A incorporação das expressões faciais e corporais na Libras se coloca, para mim, como para muites ouvintes, como um dos principais desafios no aprendizado da língua. Minha professora Surda, com quem faço aula há aproximadamente um ano e meio, Luana Milani, sempre me aponta a necessidade de trazer mais e mais presentes as expressões em minha sinalização. A expressividade surda me instiga e provoca em um sentido muito positivo, pois revela que a comunicação pode acontecer em diferentes dimensões20 e como, nós ouvintes, ficamos presos às ondas sonoras, dispensando possibilidades comunicativas extremamente valiosas. Direcionar olhares de interesse, admiração, 20 Essa formulação da comunicação em diferentes dimensões me foi despertada pelo Exército Jovem da Comunicação Libertária, que em manifesto performático realizado em 2012 ao falar da Libras diz “Bem vindos a outra dimensão da comunicação”. O EJCL foi proposição performática criada por Felipe Lima dentro do Grupo Corposinalizante em 2011, na qual um grupo de jovens surdes entrava em alguns ônibus da cidade de São Paulo declamando em sinais um manifesto criado por Felipe e Leonardo Castilho, enquanto a atriz ouvinte Mariana Senne, parceira do grupo neste processo, declamava o mesmo texto em língua portuguesa. 19 Os trechos citados fazem parte da obra “As imagens dos outros sobre a cultura surda” da autora surda Karin Strobel na qual são formulados detalhadamente os artefatos culturais da cultura surda: a experiência visual, o linguístico, o familiar, a literatura surda, a vida social e esportiva, as artes visuais, a política e os materiais. Recomendo a leitura integral da obra para o aprofundamento na compreensão sobre cultura surda. Desenvolvi brevemente os dois primeiros artefatos citados, a experiência visual e o linguístico, para que ê leitore possa compreender, ainda que de maneira rasa, o universo que adentramos ao falar em cultura surda. 35 reconhecimento de potências e respeito às particularidades é aprendizado-vivência no Slam do Corpo. Muitas falas a respeito dos surdos ainda insistem em reforçar a negatividade em relação à questão da deficiência. No geral, as pessoas não têm informações suficientes sobre os surdos e é comum evidenciarem a deficiência em si, ou a falta de audição, salientando muito mais as possíveis limitações ou dificuldades desses sujeitos do que a riqueza de sua diferença, suas características culturais e particularidades visuais e linguísticas. Em consequência, são criados estereótipos da surdez que não condizem com a realidade e a dimensão da diferença em que os surdos e seus pares da comunidade surda se identificam (LIOLI; MOREIRA, 2020 p. 65) Nos “Beijos de Língua” no Slam do Corpo, as características culturais e linguísticas são exaltadas e as particularidades de cada ume são vistas como riqueza, estabelecendo encontros pautadas na diversidade, não na falta, não na “correção” de pessoas e suas expressividades, mas na adaptação de formas comunicativas em que o aprendizado é mútuo. Quando cada ume tem a oportunidade de se expressar livremente, são colocadas também para jogo as relações entre ês CORPEssoas em cena, provocando reflexões sobre lugares de fala e lugares de escuta. 36 4 Lugar de fala, privilégio ouvinte e ouvintismo Djamila Ribeiro, na obra “Lugar de Fala”, debruça-se especificamente sobre o contexto racial, de opressão e subalternização de pessoas, histórias e culturas negras, que a identidade homem branco cisgênero produz. Autointitulado identidade neutra, identidade não marcada, “o sujeito” homem branco cisgênero ocupa o topo da hierarquia social e logo, como nos explica a autora, também da hierarquia de saberes. (...) quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica, conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido estruturando-o como dominante e assim inviabilizando outras experiências do conhecimento” (RIBEIRO, 2019, p.24) Reservada a contextualidade, busco aproximação de seu raciocínio com nosso caso de análise específico, em que quem possui privilégio social e por consequência privilégio epistêmico, são pessoas e culturas ouvintes e sem deficiência. Historicamente as línguas oralizadas e as culturas ouvintes são instituídas como conhecimentos válidos e estruturados como dominante, enquanto as línguas sinalizadas e experiências de conhecimento surdo, PCDs e neurodiversos são inviabilizadas. “(...) para descolonizarmos o conhecimento, precisamos nos ater a identidade social, não somente para evidenciar como o projeto de colonização tem criado essas identidades, mas para mostrar como certas identidades tem sido historicamente silenciadas e desautorizadas no sentido epistêmico, ao passo que outras são fortalecidas. (RIBEIRO, 2019, p. 28) Identidades Surdas e suas línguas tem sido historicamente silenciadas e desautorizadas no sentido epistêmico, enquanto que identidades ouvintes e suas línguas oralizadas são fortalecidas. Seguindo esse pensamento, um projeto de descolonização epistemológica necessariamente precisaria pensar a importância da identidade, pois reflete o fato de que experiências em localizações são distintas e que a localização é importante para o conhecimento (RIBEIRO, 2019, p. 28) Construir um projeto de descolonização epistemológica, portanto, passa pela necessidade de compreender identidades, o que requer autoconhecimento e 37 deslocamento do conceito de identidades “normais” para os devidos lugares de poder ocupados por elas, seja ouvinte, sem deficiências, neurotípica, branca/caucasiana, bípede, vidente, cisgênera, magra, entre tantas outras posições de privilégio. Muitas vezes, pessoas privilegiadas não têm consciência do lugar de poder identitário que habitam até trocar com pessoas que sofrem processos de subalternização devido ao privilégio acumulado pela identidade auto intitulada “normal”. No Slam do Corpo, é possível acessar reflexões identitárias, uma vez que os diferentes lugares ocupados pêles CORPEssoas em cena, naturalmente aparecem para o público, além de cada ume, em poesia autoral, apresentar suas vivências, sençasentipensamentos, e necessidades de comunicação com o mundo. Tive a oportunidade de transcriar em português uma poesia de Fernando Emerson, poeta negro e Surdo, criada em Libras, que trazia situações de opressões em que ouvintes branques o violentavam. Neste caso, as relações estabelecida entre nossas identidades em cena é nítida, sendo eu pessoa branca e ouvinte, é preciso compreensão profunda e sensível dos lugares de poder que habito, para além da realização daquela poesia específica, nas hierarquias sociais e epistemológicas de superioridade branca e ouvinte que desautorizam e silenciam pessoas e culturas negras e surdas. Em relação a Fernando, ocupo uma dupla posição de poder, que naturalmente aparecerá em nossa apresentação. Por isso, é preciso que eu esteja consciente desta localização e tenha muito cuidado para que nossa relação em poesia e performance não reforce as opressões iniciais as quais a poesia responde. Imagem 12: Fernando Emerson e Caê. Final do Slam do Corpo, 2016 38 Descrição: Fernando está a esquerda da foto, ele é um homem negro, de cabelos curtos, está com expressão de indignação e aponta com o dedo indicador para frente. Ele veste uma camisa branca e tem as mangas arregaçadas até o cotovelo. A direita da foto, ao lado de Fernando, está Caê, que é uma pessoa branca, de cabelos curtos e está com a mão direita no peito, sua boca está levemente aberta como quem está oralizando a poesia. Ele veste uma camiseta branca de mangas curtas. O fundo é preto. Fonte: acervo pessoal Quando dues poetas se juntam para criar poesia, se revelam relações estruturais de poder estabelecidas entre as marcas des dues CORPESsoas em cena, respectivamente ao que cada ume representa naquele tempo-espaço. Neste contexto, ressalto também a experiência de transcriação da poesia “Sereia Surda” com a poeta Nayara Rodrigues da Silva. Imagem 13: Nay e Caê. Final do Slam do Corpo, 2018 Descrição: à esquerda da foto está Nayara, que é uma mulher negra de cabelos enrolados e compridos até a altura do ombro, ela veste um vestido cinza e estica as duas mãos para frente, uma colada na outra. A esquerda da foto está Caê, que é uma pessoa branca, de cabelos curtos levemente ondulados, veste uma camisa regata florida de fundo azul e estica as duas mãos para frente, encontrando as mãos de Nayara. Juntes, a quatro mãos, elus constroem a imagem de um barco. Fonte: acervo pessoal. No Slam do Corpo, reflexões sobre hierarquias e lugares de fala vem acompanhadas de amorosidade, empatia, e tentativa de aproximação do que cada ume busca comunicar. Como eu, poeta branque, ouvinte, posso proporcionar ao 39 público, com minha voz, uma experiência que toque sençasentipensamentos tanto quanto as poesias sinalizadas de Fernando e Nayara me tocam? O desafio colocado cria parcerias, amizades e deliciosos Beijos de Língua. Todas as pessoas possuem lugar de fala, pois estamos falando de localização social. E a partir disso é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que grupos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados”. (RIBEIRO, 2019) Passei a me compreender ouvinte no Slam do Corpo, e, junto desse entendimento, busco, cotidianamente, refletir sobre os poderes que este lugar me atribui. De que forma o privilégio ouvinte se manifesta em minha história e meu dia a dia? Como ele produz subalternização de Surdes? Para desenvolvimento dessa discussão, trago a conceituação de capacitismo. CAPACITISMO: Conjunto de teorias e crenças que estabelece uma hierarquia entre os corpos considerados normais e os “anormais”, embasada em uma teoria de corpo-normatividade que inferioriza os corpos de pessoas com deficiência, relegando-os à condição de incapazes. (SILVA, 2021, p.2) É certo que muitas pessoas Surdas refutam o conceito de pessoas com deficiência em seu auto reconhecimento identitário por conta da origem e significado da palavra deficiência, do latim “deficiens”, que significa 'falho, incompleto'. E se reconhecem como Surdes, pessoas completas, sem falhas, que têm língua e cultura próprias a integridade de sua existência. Nada lhes falta, não há nada a ser corrigido ou completado. Trago o conceito de capacitismo por entender a similaridade com o ouvintismo no processo de hierarquização de saberes e vivências, que divide CORPEssoas em “normais” e “anormais” e impõe violentas tentativas de normalização das existências. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. (…) A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade” (SILVA, 2000, p. 83 apud LUNARDI; MACHADO, 2007). 40 Na relação entre Surdes e ouvintes, a identidade parâmetro colocada no processo de normalização é a identidade ouvinte, que justamente nem sequer é vista como identidade. Pessoas ouvintes, que não tem contato com pessoas Surdas, não se reconhecem como tal, muitas nem mesmo conhecem a palavra ouvinte, e ainda menos reconhecem o lugar de poder que ocupam. O ouvintismo vem dar nome a hierarquização de saberes que a identidade da norma ouvinte produz. O ouvintismo deriva de uma proximidade particular que se dá entre ouvintes e surdos, na qual o ouvinte sempre está em posição de superioridade. Uma segunda ideia é a de que não se pode entender o ouvintismo sem que este seja entendido como uma configuração do poder ouvinte. Em sua forma oposicional ao surdo, o ouvinte estabelece uma relação de poder, de dominação em graus variados, onde predomina a hegemonia através do discurso e do saber. (PERLIN, 1998, p. 58) O ouvintismo, então, é uma configuração de poder que estabelece a identidade ouvinte como norma padrão enquanto marca Surdes como falhes ou incompletes, e lhes impõe parâmetros ouvintes. Essa ideologia invisibiliza a identidade ouvinte, não reconhecendo-a como uma identidade possível, mas como identidade única, e nega possibilidades de existências diferentes dela. Com essa base ideológica, são sustentados processos de normalização de maneira institucionalizada. Acredito que a norma padrão ouvinte seja uma verdade legitimada sobre os sujeitos surdos, constituindo-os como corpos a corrigir e modelando-os para a normalização. Os surdos ficam aos caprichos da norma, e entram em cena as estratégias do corpo a corrigir, a ser normalizado, fora dos padrões normalizadores. São “entornados” neste sujeito a ser corrigido: a família, a escola, as clínicas e as instituições hospitalares. (REZENDE, 2010, p. 87) A oralização (aprendizado da língua oralizada) forçada por meio de terapias fonoaudiólogas é uma das estratégias ouvintistas que impõe o aprendizado da língua oral e escrita como primeira língua ou ainda como língua única, obrigando a pessoa Surda a se comunicar por meio do português. Essa ideologia faz com que o esforço e responsabilidade sobre a comunicação fique apenas com a pessoa Surda, enquanto livra a pessoa ouvinte da responsabilidade em se compreender ouvinte, perceber seu lugar de poder e privilégio, e se responsabilizar pela dívida histórica para com Surdes, buscando reparação em suas ações, como aprender Libras. 41 Outra estratégia clínica ouvintista que obriga pessoas Surdas a se adequarem aos parâmetros ouvintes são os implantes cocleares. Trata-se de uma cirurgia de perfuração do crânio, atrás da orelha, para implantação de dois sistemas eletrônicos, um interno ligado à cóclea e fixado com parafusos na pele e um externo que magneticamente se conecta ao primeiro. Com esse aparelho, pessoas que possuem surdez severa/profunda conseguem, quando o implante está ligado e conectado, ouvir. É importante que a ciência e a tecnologia desenvolvam possibilidades que auxiliem existências diversas na sociabilidade normativa, é também direito da pessoa Surda ter acesso ao implante coclear caso esse seja um desejo seu, assim como o acesso a terapias fonoaudiólogas para o aprendizado da língua oralizada. O problema é que esses procedimentos refletem justamente a ideologia de normalização que estamos discutindo, porque, na maioria dos casos, não são apresentados como possibilidades, mas como obrigatoriedades intrínsecas às existências surdas. Implantes cocleares são vendidos às famílias ouvintes que criam crianças surdas (sendo que a maioria de surdes é cria de ouvintes distantes da cultura surda), como obrigatoriedade, e a família, sem referenciais surdos, acaba comprando a ideia e realizando o procedimento em crianças com pouquíssima idade, entendendo junto com a descoberta de sua surdez, que algo lhe falta, e que, logo após nascer, ela deve ser cirurgicamente corrigida. Esse raciocínio é extremamente violento. Além de aspectos terapêuticos e cirúrgicos de correção de CORPEssoas Surdes, o ouvintismo, coloca a existência ouvinte como superior e faz com que ouvintes se sintam no direito de (mais capazes para) narrar histórias surdas ou ainda tomar decisões sobre as vidas e educação de pessoas Surdas. Isso pode ser observado desde manifestações mais atuais e sutis até as mais antigas e brutas decisões ouvintes sobre vidas Surdas. Ressalto o histórico Congresso de Milão, o II Congresso Internacional de Educação do Surdo ocorrido entre 6 e 11 de setembro de 1880 na Itália. Nele, 164 educadores de surdes (apenas um Surdo, o restante todo ouvinte) de diversos países se reuniram para discutir educação e decidiram em favor do oralismo puro e contra as línguas de sinais. Assim, escolas de surdes ao redor do mundo começaram a utilizar abordagens exclusivamente oralistas e a banir tanto as línguas 42 de sinais quanto abordagens bimodais, em que a fala é utilizada simultaneamente aos sinais. Essa decisão deixou uma herança extremamente opressora às línguas sinalizadas, às culturas e comunidades surdas. Durante boa parte do século XX, o oralismo vigorou como abordagem predominante nas instituições de ensino para surdos de diferentes países do mundo. A proscrição dos sistemas gestuais em salas de aula e a proibição das línguas de sinais em ambientes escolares justificavam-se, sobretudo, pelo argumento de que a comunicação manual prejudicava e desestimulava o aprendizado da língua oral. O uso de linguagens viso-espaciais, como se cria, tornava os surdos “preguiçosos” para a fala. Em muitas instituições, alunos eram castigados quando flagrados a sinalizar; em outras, mãos chegavam a ser amarradas para se evitar a propagação do gesto (EIJI, sem data) Baseando-se no falso argumento de que as línguas sinalizadas desestimulavam o aprendizado da língua oral, constituiu-se uma era que perdurou por quase cem anos de opressão as línguas e culturas surdas e de retrocessos de suas pautas e demandas. Isso tudo porque ouvintes se sentiram no direito de tomar decisões sobre vidas surdas a partir do seu entendimento ouvintista, ou seja, se colocando em posição de superioridade. As expectativas de normalização do surdo, por meio do treinamento da audição e da fala, transformou o espaço escolar em terapêutico, descaracterizando a escola como espaço de ensino, troca e ampliação de conhecimento (PEREIRA, et al. 2011, p.11) Essa decisão levou à decadência dos processos de aprendizagem, afinal, todo o tempo escolar passou a ser utilizado para a forçada reprodução de fonemas, sem desenvolvimento de conteúdo, sem produção de conhecimento. Além disso, com a limitação da comunicação oralista, estudantes passaram a ter expressividade reduzida e dificuldades de integração entre si. A situação só começou a mudar quando, na década de 1960, estudos acadêmicos apontaram para um maior desenvolvimento de crianças Surdas criadas por famílias Surdas que utilizavam língua de sinais, do que aquelas criadas por famílias ouvintes e proibidas de utilizar a língua sinalizada. Essas pesquisas, feitas nos Estados Unidos com base na língua de sinais estado unidense, a ASL (American Sign Language), levaram à adoção de uma nova abordagem, a comunicação total. 43 A comunicação total defende que surdos tenham acesso a linguagem oral por meio da leituras orofacial, da amplificação dos sinais e do alfabeto manual e que se expressem por meio da fala, dos sinais e do alfabeto manual. (PEREIRA, et al. 2011, p.11) Essa foi uma mudança importante que contribuiu para a valorização das línguas de sinais e das culturas surdas, porém ainda não atribuiu-lhe protagonismo. Na década de 1980, finalmente o movimento organizado por associações, professories, pesquisadories e estudantes Surdes começou a se fortalecer e tomar às mãos o protagonismo nas decisões em relação a educação de Surdes, colocando em pauta a necessidade de ter as línguas de sinais como primeira língua e a língua oralizada como segunda, em uma abordagem bilíngue. O bilinguismo, como abordagem de educação para surdos propõe que alunos sejam expostos a duas línguas: a primeira, a língua de sinais e a segunda, a língua majoritária da comunidade ouvinte, de preferência na modalidade escrita (PEREIRA, et al. 2011, p. 13) A abordagem bilíngue é amplamente defendida atualmente pois tendo a língua de sinais, no caso do Brasil a Libras, como primeira língua, é possível desenvolvimento pedagógico, integração entre estudantes e também o aprendizado do português como segunda língua, de forma a auxiliar estudantes na interação com o mundo ouvinte mas não fazendo-ês viver em função dele. Nas escolas bilíngues a cultura surda é exaltada e compartilhada por professories e estudantes, além do estudo das histórias surdas e as discussões sobre as demandas atuais das comunidades serem colocadas em pauta. Com essa passagem pela história da educação institucionalizada do povo surdo, busco mostrar como o ouvintismo fez (e faz) com que o protagonismo sobre a história surda fosse (e, muitas vezes, siga sendo) de pessoas ouvintes e como consequência traz importantes retrocessos. Hoje a herança do Congresso de Milão ainda é muito viva em nossa sociedade, nas poesias criadas por poetas Surdes no Slam do Corpo por exemplo, frequentemente a imagem de mãos amarradas impedindo o uso da Libras aparecem, como também imagens de processos de oralização dolorosos e revoltantes. É certo que existe um grande avanço com a implantação das escolas bilíngues, as movimentações culturais, políticas e acadêmicas surdas, porém, pessoas ouvintes ainda se sentem no direito de (mais capazes para) narrar suas histórias e roubar-lhes o protagonismo. Isso é nítido de maneira ampla no mercado 44 de trabalho em que ouvintes preenchem vagas que deveriam ser ocupadas por pessoas Surdas, por exemplo, nos cursos de Libras com professories ouvintes. 45 5 Ensino da Libras por professories ouvintes A língua de sinais é a nossa sobrevivência, a língua de sinais é a nossa cultura, a língua de sinais é o nosso mundo, a nossa realidade. (...) Vocês ouvintes tem uma dívida com a gente. (....) Vocês sabem que a língua de sinais é nossa, desde que nos tornamos gente, a língua de sinais é nossa por direito, nós convivemos com ela diariamente. (...) E a gente enfrenta muitas barreiras enquanto muitos ouvintes vem conquistando espaços que deveriam ser nossos. Eu observo empresas contratando professores ouvintes para ensinar a língua de sinais, porque ensinar língua de sinais junto com a língua portuguesa é confortável para os funcionários então se torna muito mais fácil. Outra coisa que observo são os concursos, grande maioria dos concursos, são obrigados a ter um texto dissertativo onde as pessoas tem que escrever, e pra gente o português é a segunda língua, a gente tem uma dificuldade, e muitos ouvintes conseguem conquistar essa vaga que seria pra nós. E a gente, como fica? Eu queria que vocês usassem a consciência e parassem pra pensar no que estão fazendo (...) Não é simplesmente buscar uma equivalência do português na língua de sinais, não é assim que funciona. Tem que usar o corpo, a expressão facial. E quem melhor faz isso? A comunidade surda. (FERREIRA, 2020) Usando a consciência, é possível compreender a dívida histórica ouvinte com culturas e comunidades surdas, tendo que por quase 100 anos lhes foi roubado protagonismo de decisões sobre suas vidas, suas histórias, e forçada a imposição das línguas oralizadas. Atualmente, a lei n°10.436 de 24 de abril de 2002 está em vigor e garante alguns direitos. Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil. Art. 3o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor. Art. 4o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de 46 formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente. Parágrafo único. A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 24 de abril de 2002; 181o da Independência e 114o da República. (BRASIL, 2002) Com a obrigatoriedade do ensino de Libras nos cursos de licenciatura e o interesse de espaços culturais, empresas e marcas em tornar-se “acessíveis” abre-se um mercado de trabalho para professores de Libras e TILS que, majoritariamente, vem sendo preenchido por ouvintes. Nestes casos, ouvintes se beneficiam de saberes produzidos pela cultura surda, e tomam para si o protagonismo do ensino de uma língua não sua em uma prática de apropriação cultural. Discutimos anteriormente sobre cultura surda, agora trago mais uma definição de cultura presente no livro Apropriação Cultural de Rodney William para prosseguirmos a discussão. “Cultura é o modo de vida de um povo e se manifesta em suas formas de agir em tudo que produz”. Cultura, portanto, implica em “ pertencimento, logo não pode ser considerada domínio de todos” (WILLIAM, 2019). A língua é parte fundamental de uma cultura e a cultura surda é modo de vida do povo surdo, sua forma de agir, de ver o mundo, de dar significado às coisas. A Libras e a cultura surda, portanto, são de domínio de Surdes e não de domínio de todes. Por meio da cultura, desvenda-se o processo de identidade, pois aqueles que se reconhecem entre si demarcam de imediato suas diferenças com os outros. (WILLIAM, 2019) Por meio da cultura surda, suas características e particularidades, constroem-se as identidades Surdas, no direito de existir em sua singularidade, não deficiente ou pessoa com falta de audição, mas pessoa íntegra, de identidade Surda, que possui língua e culturas próprias. A Libras é um bem imaterial da cultura surda, por isso, possui significados específicos de transmissão de conhecimento ligados às histórias, valores e tradições 47 do povo surdo. A prática da apropriação cultural acontece quando ouvintes, a partir do seu lugar de poder, retiram a Libras de seu contexto. Apropriação cultural é uma ação praticada por grupos dominantes e seus indivíduos. Consiste em se apoderar de elementos de outra cultura minoritária ou inferiorizada e utilizá-los sem as devidas referências e sem permissão, eliminando ou modificando seus significados e desconsiderando a opressão sistemática muitas vezes imposta por esse mesmo grupo dominante. (WILLIAM, 2019) Quando professories ouvintes se sentem no direito de lecionar aulas de Libras, negando protagonismo de pessoas Surdas sobre o conhecimento produzido por elas, utilizam língua e cultura surda sem permissão, e explicando em português a língua de princípio visual-espacial, eliminam e modificam seus significados. Esse sentimento de direito sobre língua e cultura não suas, é exemplo do privilégio que desconsidera seu lugar de poder e toma oportunidades de trabalho, desrespeitando o direito surdo ao protagonismo de seus saberes, língua e cultura. Na disciplina de Educação Especial e Libras fornecida pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP), em parceria com a Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP) lecionada em 2021 não foi diferente. O protagonismo que deveria ser de professories Surdes é de professories ouvintes que ensinam história da educação de Surdes e da Libras a partir de perspectivas ouvinte e ouvintista, tendo o português como língua única, sem nem mesmo a tradução em Libras. Esta disciplina poderia ser momento precioso na formação de professories, uma vez que existe uma lacuna grande de informação e vivência de pessoas ouvintes, sem deficiência e neurotípicas (NT) com Surdes, Pessoas Com Deficiência e Neurodiverses (ND), porém, da maneira como está formulada, ela reforça estigmatização, depuração e subalternização de CORPEssoas Surdes, PCDs e NDs e afirma os poderes ouvintes, sem deficiências e neurotípicos que estruturam o curso e elaboram as aulas. Essa sentimento de permissão que a identidade padrão, blindada pelo privilégio, ocupa, desenvolve uma disciplina de “Educação Especial e Libras” abordando temas de “inclusão” e “acessibilidade”, em formato não acessível, que nem mesmo considera a possível presença de estudantes Surdes nos cursos de licenciatura da UNESP. Além de nenhum conteúdo da disciplina ter tradução em 48 Libras como a presença de quadro de intérprete (o básico da “acessibilidade”), semanalmente estudantes se deparam com áudios introdutórios ao tema de estudos: Semana 7: A escolarização do aluno com deficiência auditiva / surdez Olá, querido estudante, nesta semana, iremos aprender mais sobre o processo de escolarização do aluno surdo e entender melhor quais são os seus principais desafios frente à trajetória escolar. Escute o áudio a seguir, ele foi preparado especialmente para você: (informação pessoal)21 Como um conteúdo disponibilizado em áudio é acessível a estudantes Surdes? Não o é! Neste formato, de maneira capacitista,22 não se considera que estudantes Surdes também irão cursar a disciplina ao longo de uma graduação em licenciatura na UNESP, na USP ou na UNICAMP. E ao disponibilizar um áudio sobre os principais desafios frente a trajetória escolar de pessoas Surdas, impõe mais desafios, barreiras, e exclusão, justamente a essas trajetórias, dando continuidade aos processos iniciados na escola, agora na universidade. Semana 6: Introdução a LIBRAS Olá querido estudante, nesta semana iremos conhecer os princípios básicos da LIBRAS e aprender alguns sinais desta língua. Escute o áudio a seguir para saber mais: (Informação pessoal)23 Os princípios básicos da Libras são visuais, portanto, disponibilizar áudios sobre eles é também uma displicência com os próprios parâmetros da língua de característica visual-espacial e a com a cultura Surda, que é baseada na visualidade. O estudo de Libras aqui a retira de seu contexto e não proporciona aes estudantes um contato, mínimo que seja, com a cultura surda, aspecto fundamental para a sensibilização de olhares ouvintes. Contato aqui não significa simplesmente comentar o tema, mas ter vivências proporcionadas por protagonistas da cultura e conhecer suas potências. A disciplina é inteiramente organizada e lecionada por pessoas ouvintes, sem deficiência e neurotípicas. 23 Material disponível aos estudantes que cursam a disciplina de Educação Especial e Libras oferecida pela UNIVESP em 2021. 22 Porque não considera que pessoas surdas sejam capazes de cursarem a universidade e serem parte do público alvo ao qual a disciplina é direcionada. 21 Material disponível aos estudantes que cursam a disciplina de Educação Especial e Libras oferecida pela UNIVESP em 2021. 49 Admitir que a apropriação cultural é um fenômeno estrutural e sistêmico significa compreender que não pode ser entendida ou problematizada sob o ponto de vista particular, individual. (WILLIAM, 2019) Entendendo o fenômeno da apropriação cultural como estrutural e sistêmico, utilizo o exemplo da disciplina oferecida pelas universidades UNIVESP e UNESP, para abordar discussões que constantemente são silenciadas e ignoradas pelo poder vigente. Sendo as universidades instituições públicas, de responsabilidade do governo do estado de São Paulo, é possível compreender o amplo descaso social para com o ensino da Libras e a comunidade surda na cultura dominante. Claro que um indivíduo reproduz e usufrui das práticas de apropriação cultural exercidas por seu grupo. Aqui, não se trata apenas de uma questão de autocrítica ou conhecimento do tema, mas de perceber a influência dos aspectos culturais no imaginário e no inconsciente de uma sociedade. As consequências desse processo são sempre em nível coletivo, na estrutura, e reverberam no favorecimento do processo de marginalização de povos socialmente invisibilizados e oprimidos. (WILLIAM, 2019) Entender a responsabilidade estrutural, porém, não isenta discussões individualizadas, em que cada ume realize autocrítica e alcance conhecimentos sobre suas identidades, e com elas, os poderes que lhes são atribuídos. É coletivamente urgente a percepção ouvinte, sem deficiência e NT de que quando se ocupa lugares que deveriam ser de pessoas Surdas, PCDs e NDs, rouba-se protagonismo, histórias, tradições e culturas não suas. E, se colocando como “porta vozes” de existências dissidentes, influenciam de maneira capacitista o imaginário e inconsciente de sues alunes ouvintes, sem deficiência e NTs. A falta de referência e protagonismo Surde, PCD, e ND, em disciplinas que abordam suas vidas mediadas por profissionais da àrea da “inclusão” e “acessibilidade” ouvintes, sem deficiência e NTs, traz a tona a atualidade da palavra de ordem utilizada pelos movimentos por direitos das pessoas com deficiência na década de 1990 “Nothing about us with out us” (Nada sobre nós sem nós). Ainda hoje, trinta anos depois do auge da utilização desta palavra de ordem dos movimentos de pessoas com deficiências, que se espalhou ao redor do mundo sendo utilizada nos mais diferentes contextos, raciocínios ouvintistas e capacitistas atribuem vagas de professores da disciplina de Educação Especial e Libras para pessoas sem deficiência, ouvintes e Neurotípicas. Com diplomas acadêmicos (escritos em português) que lhes atestam títulos de especialistas nas vidas e trajetórias de outras pessoas, comunicam aes estudantes que as pessoas cujas 50 vidas são conteúdo da disciplina, não tem capacidade de falar por si e de lecionar aulas completas e complexas sobre seus próprios saberes, língua, culturas, e narrativas. Assim, com “intenção” de “incluir”, “dar acesso”, ou “celebrar a “diversidade””, aulas de Educação Especial, Libras, Inclusão e Acessibilidade, nestes contextos, seguem favorecendo processos de marginalização e invisibilização de Surdes, Pessoas Com Deficiência e Neurodiversidades. Buscando entender como aconteceram na UNESP/UNIVESP os processos de preenchimento de vagas des docente, a elaboração da forma e conteúdo do curso oferecido na disciplina de Educação Especial e Libras, convidei a professora Dra V. C., responsável da UNESP pelo curso, para uma entrevista. A professora, generosamente, aceitou o convite, então, por chamada de vídeo, pudemos conversar. Caê: Professora, tem muitos concursos para professories de Libras que tem provas dissertativas e essa é uma questão, porque é claro que pessoas ouvintes vão se sair melhor na prova dissertativa, então, eu queria entender como aconteceu a chegada da professora ouvinte de Libras? Prof Dra V.C: Quando eu fui convidada para ministrar a disciplina que agregou Educação Especial, que é minha praia, com a questão da Libras, na UNIVESP, porque a disciplina foi na UNIVESP, e já estava pronta, nós fizemos uma parceria emergencial para que licenciandos da UNESP se formassem porque tinham mais de dois mil alunos que precisavam se formar e no período da pandemia não tinha o professor. Eu tenho amizade com um professor que trabalha na USP e lá eles também não tem esse professor surdo ministrando e na UNICAMP também não. Caê: Então não teve concurso para a vaga de professor de Libras? Prof Dra V.C.: A universidade é omissa, falando como gestora, ainda nós somos omissas. Não teve concurso, eu sou concursada e aceitei. Ao aceitar, o conselho estadual da educação coloca que na falta de um professor Surdo, pode contar com alguém que domina a Libras. Eu entrei com Educação Especial e ela (professora de Libras ouvinte) com a língua de sinais. Qual foi meu critério? Alguém que aceitou colaborar e ela aceitou colaborar porque ela é do grupo de pesquisa24. Para convidar alguém para compor comigo precisava que a pessoa tivesse vínculo com a universidade. (informação verbal) 25 A entrevista deixou ainda mais nítida a responsabilidade estrutural, pública, da universidade, sobre sobre a disciplina oferecida, além da atual situação de 25 Professora Dra. Vera Lúcia Messias Fialho Capellini, entrevista oferecida em 27 de jan. de 2022. 24 Grupo de pesquisa “A inclusão da pessoa com deficiência TGD, altas habilidades e super dotação nos diferentes contextos” 51 precariedade em que não existe abertura de concurso para preenchimento da vaga de professore de Libras. Esta disciplina é, para muites, o primeiro contato com a Libras, com cultura surda, histórias e narrativas de Pessoas Com Deficiência e Neurodiversas e afeta diretamente o imaginário de estudantes ouvintes, sem deficiência e Neurotípiques sobre essas existências. Para estudantes Surdes, da maneira como a disciplina foi apresentada em 2021, ela se torna questão de permanência estudantil, uma vez que cria ainda mais desafios, barreiras e dificuldades em suas trajetórias universitárias. Quando questionada sobre a exclusão de estudantes Surdes que formato da disciplina oferecida em 2021 proporciona, a professora colocou: A notícia boa é que agora eu recebi o convite da Prograd para ofertar a disciplina em 2022. Eu aceitei e coloquei como condição que não é mais pela UNIVESP, é nossa. Aí eu vou poder chamar uma professora Surda para fazer a parte da Libras. Aí vamos fazer ao contrário a professora Surda vai dar a disciplina em Libras e vai ter um intérprete em português para os ouvintes. 26 A professora garantiu que em 2022 o material produzido terá presença integral de intérprete, sendo que a parte de Educação Especial será lecionada em português com tradução para Libras e a parte de Libras será sinalizada com tradução para a língua portuguesa27. E, se mostrando aberta sugestões à nova elaboração da disciplina, disse que procurará incorporar presenças de Pessoas Com Deficiências e Neurodiversidades para a elaboração da disciplina, compartilhamento de narrativas e lecionamento de aulas na parte de Educação Especial. Importante ressaltar que essas pessoas ao serem convidadas para participar da disciplina devem ser devidamente pagas, uma vez que estarão dividindo suas histórias, dores e tempo com um espaço e pessoas, que as excluem e isolam, roubam seu protagonismo e narrativas para depois as "convidarem" a participação de aulas sobre suas vidas como a cota da "inclusão". Além disso, sugeri a incorporação dos temas “privilégio ouvinte” e “ouvintismo” no conteúdo da parte de Libras. É urgente o deslocamento de raciocínios que buscam “ajudar” e “incluir” Surdes, PCDs e NDs a partir do princípio 27 Na banca de defesa deste trabalho, a professora surda Lara Gomes aponta que em processos de aprendizado da Libras mediados por professore surde, não é necessária a presença de intérprete, não é necessária voz, nem o português. Ê professore surde se comunica com estudantes ouvintes visualmente e é importante que a comunicação aconteça desta maneira, ressaltando a cultura surda. 26 idem 52 da exclusão, com professories sem deficiências, ouvintes e NTs se apropriando de língua e culturas não suas e passar a incorporar autorreflexão sobre lugares de poder que cada ume habita, discutindo privilégios. As modificações propostas para a elaboração da disciplina em 2022 colocadas pela professora, se implementadas, serão importantes avanços, porém, ainda estão no básico da "acessibilidade". Elas tornarão a disciplina sobre inclusão e acessibilidade inclusiva e acessível e não apresentarão sinais descontextualizados como na aula "sinais do cotidiano" oferecida em 2021 e, finalmente, chegarão no que deveria ser o ponto de partida, apresentando a Libras em contexto e cultura nas aulas de Libras. É necessário continuar caminhando para construção do reconhecimento das potencialidades Surdas, PCDs e NDS e do direito ao protagonismo do ensino de suas próprias língua, histórias, costumes, tradições, expressões e visões de mundo, de forma que apenas uma equipe de professories Surdes, Pessoas com Deficiência e Neurodiverses podem proporcionar. 53 6 Libras, linguagem neutra e vivência não binária Ao me aproximar do Slam do Corpo em 2015, passei a conhecer e frequentar o circuito de Slams de São Paulo, além do grande encontro anual de Slams da cidade, o Slam SP. Nesses territórios, são recorrentes as pautas de afirmação identitária sejam elas raciais, territoriais, de gênero, entre outras. Foi em um Slam que tive pela primeira vez contato presencial com pessoas Transvestigêneres28 e suas narrativas. Em junho de 2018 conheci o Slam Marginália29, que é realizado por e para pessoas Travestis, Não Bináries, Boycetas, Transmasculines, Homens Trans, Mulheres Trans, Gênero Fluide, e demais identidades transvestigêneres, sendo bem vindas participações de pes