UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP KELLI CRISTINE DE OLIVEIRA MAFORT REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO CAMPO E OS PROCESSOS DE TRABALHO NOS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO ARARAQUARA – SP. 2018 KELLI CRISTINE DE OLIVEIRA MAFORT REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO CAMPO E OS PROCESSOS DE TRABALHO NOS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras UNESP / Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais Orientadora: Maria Orlanda Pinassi Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ARARAQUARA – SP. 2018 Mafort, Kelli Cristine de REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO CAMPO E OS PROCESSOS DE TRABALHO NOS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO / Kelli Cristine de Mafort — 2018 235 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Maria Orlanda Pinassi 1. assentamentos . 2. reforma agrária. 3. reestruturação produtiva. 4. proletarização. I. Título. KELLI CRISTINE DE OLIVEIRA MAFORT REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO CAMPO E OS PROCESSOS DE TRABALHO NOS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras UNESP / Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais Orientadora: Maria Orlanda Pinassi Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Data da defesa: 06/04/2018 Membros componentes da banca examinadora: _______________________________________________________________ Presidente Profª Dra. Maria Ribeiro do Valle Universidade Estadual Paulista – UNESP / Araraquara _______________________________________________________________ Membro titular Profº Dr. Frederico Daia Firmiano Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG / Passos _______________________________________________________________ Membro titular Profª Dra Vera Navarro Universidade Estadual Paulista – USP / Ribeirão Preto _______________________________________________________________ Membro titular Prof° Dr. Adriano dos Santos Universidade Federal de Alfenas _______________________________________________________________ Membro titular Fatima Aparecida Cabral Universidade Estadual Paulista – UNESP / Marília Local: Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedico essa singela contribuição à Marielle Franco, semente guerreira que vive, e também à classe trabalhadora, única capaz de forjar um mundo verdadeiramente feliz. Ofício de quem canta (Pedro Nathan / Fabio Carvalho) Viemos por meio deste samba Ofício de quem canta Solicitar sua atenção Palmas pra quem também foi bamba Ao fazer da vida luta E da luta seu refrão Embora seus passos Não sumam de nossa memória Lembrança não fica nos livros de história Forjados com sangue popular Porém, seu legado, por certo Há de ter seu lugar, há! Quando um novo enredo se organizar No correr da obra Que os trabalhadores têm por terminar - Em seu nome será! Nasceu enfrentando um império Na pele dos índios, partido tomou Passou por quilombos, Mas foi na senzala que ela, porém, se formou Escrava já foi de um senhor Penava na mão do feitor Salário hoje arranca seu couro E mal paga essa dor Sem terra, tirada na bala Fundou a favela nos morros e valas Ergueu a cidade, faz mundos em breve Mas não pode nem fazer greve E a reação já vem dura Tal como na ditadura Pois sempre passam borracha Nos seus movimentos E pra arrematar, eu sustento O nome de tal elemento É linha que passa por nós: Classe Trabalhadora! Pedreiros, marceneiros, diaristas Balconistas, empregados Serventes por todos os lados Tudo construído ao seu redor É suor do operário É o ardor do lavrador Voz: Pedro Nathan Violão 7 cordas: Marco Bertaglia Pandeiro, caixa, reco-reco, conga, agogô, surdo e tamborim: Bré Coro: Kleber Santiago, Tiarajú Pablo, Cezinha Oliveira, Fábio Carvalho, Rosana Leite, Stella Oliveira (IDÉIAS, 2018) Agradecimentos A pesquisa, produção e sistematização do conhecimento só são possíveis pela colaboração de muitas mãos, olhares e intervenções. No meu caso, me senti abraçada durante todo o trabalho, o que atenuou as inquietações que são comuns quando nos deparamos com o espelho colocado a nosso frente no ato da escrita. Agradeço aos abraços de todas e todos que provam que estudar é um desafio, mas é também um privilégio e pode ser um ato prazeroso. Agradeço aos meus familiares, em especial à minha mãe Regina que sempre retira das minhas costas o fardo, justamente na hora que ele está mais pesado. Às minhas filhas, Giulia, Giovana, Bruna e Ana Carolina, excelentes educadoras responsáveis pelo que sou. À minha querida irmã Katia sempre parceira, ao pai Djalma e aos irmãos Leandro e Karina, distantes, mas próximos do coração e ao mano Kleber (em memória) que se foi cedo demais. Ao Matheus, amor e companheiro de tantas caminhadas. Ao Fred, amigo e irmão que demorei a descobrir em minha vida. Aos que caminham diretamente na mesma estrada que eu, superando tamanhos obstáculos. Aqui a lista é grande, então vai num sentido coletivo. Ao MST pela abertura, compreensão e luta aguerrida. À professora e orientadora Maria Orlanda, mulher firme e terna a quem devo total respeito e profunda admiração pela força provada nas letras e na vida. À todas e todos, ofereço um trecho da música Assentamento de Chico Buarque: Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão contente com minha terra cansado de tanta guerra crescido de coração Zanza daqui Zanza pra acolá Fim de feira, periferia afora A cidade não mora mais em mim Francisco, Serafim Vamos embora Agradecimento institucional À Secretaria de Pós-Graduação da FCLAR. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO A partir dos anos de 1970, no ponto mais alto de sua expansão, o capital passa a enfrentar crises cíclicas cada vez mais freqüentes que expressam a dimensão estrutural dos limites do capital. O mundo capitalista entrou em uma profunda recessão, que combinou baixas taxas de crescimento com altas taxas inflacionárias, abrindo terreno para operar uma reestruturação produtiva, aplicando o receituário neoliberal. No Brasil, a reestruturação política e produtiva se fez sentir já no final da década de 1980; no campo, os capitais da agricultura/agropecuária foram operados na adequação à reestruturação produtiva, provocando importantes modificações na viragem da década de 1980 para 1990. Foi, porém, a partir de 1999 que os agronegócios ganharam importância decisiva no conjunto da economia brasileira. Mas não foi somente aí que a reestruturação produtiva operou, deu-se também no âmbito da agricultura familiar que, progressivamente, foi plenamente integrada à lógica e dinâmica do agronegócio, afastando a reforma agrária e sua perspectiva de mudanças estruturais. Porém, o padrão de violência contra os trabalhadores rurais é revelador de como a questão agrária nunca esteve perto de uma solução pela via da conciliação de classes. Por outro lado, o enquadramento da reforma agrária representou um retrocesso para os assentamentos, do ponto de vista da consciência política de seus integrantes, bem como na garantia efetiva das conquistas sociais, que somente têm sido obtidas, a partir do enfrentamento de classes. O controle totalizante do capital inviabiliza qualquer expectativa de autonomia, mesmo entre aqueles que detêm parte dos meios de produção, como é o caso dos assentados, colocando-os numa condição generalizada de proletarização. Na presente pesquisa analisei a temática a partir de estudo teórico e pesquisa de campo, realizada com 100 pessoas de acampamentos, assentamentos e lideranças do MST no estado de São Paulo. Pude concluir que a luta pela reforma agrária é essencialmente a busca pela realização do trabalho e da reprodução social, inserida nas contradições produzidas na disputa antagônica entre as forças sociais do trabalho e as forças do capital. Neste sentido, a subjetividade dos trabalhadores do campo, especialmente dos sujeitos da luta por reforma agrária, está sob disputa, para que se percebam e se reconheçam como empreendedores rurais, agricultores familiares, sendo uma extensão integrada do agronegócio, ampliando sua sujeição/subsunção ao capital. Porém a atualidade histórica da reforma agrária se impõe, não apenas pela necessidade dos trabalhadores sem terra, mas também pelos imperativos destrutivos das forças do capital em relação ao trabalho e ao ambiente. Palavras chave: reestruturação produtiva - assentamentos - reforma agrária - proletarização ABSTRACT From the 1970s onwards, at the highest point of its expansion, capital starts to face increasingly frequent cyclical crises that express the structural dimension of the limits of capital. The capitalist world entered into a deep recession, which combined low rates of growth with high inflationary rates, opening the way to operate a productive restructuring, applying the neoliberal recipe. In Brazil, political and productive restructuring was felt in the late 1980s; in the countryside, agricultural / agricultural capitals were operated to adapt to productive restructuring, causing important changes at the turn of the 1980s to 1990. However, since 1999, agribusinesses have gained decisive importance in the Brazilian economy as a whole. But it was not only there that the productive restructuring operated, it was also within the scope of family agriculture that, progressively, was fully integrated with the logic and dynamics of agribusiness, moving away agrarian reform and its perspective of structural changes. However, the pattern of violence against rural workers is revealing of how the agrarian question has never been close to a solution through class reconciliation. On the other hand, the framing of the agrarian reform represented a setback for the settlements, from the point of view of the political consciousness of its members, as well as in the effective guarantee of the social achievements that have only been obtained, from the confrontation of classes. The totalizing control of capital impedes any expectation of autonomy, even among those who hold part of the means of production, as is the case of the settlers, placing them in a generalized condition of proletarianization. In the present research I analyzed the thematic from a theoretical study and field research, carried out with 100 people from MST camps, settlements and leaderships in the state of São Paulo. I could conclude that the struggle for agrarian reform is essentially the search for the realization of social work and reproduction, inserted in the contradictions produced in the antagonistic dispute between the social forces of labor and the forces of capital. In this sense, the subjectivity of the rural workers, especially the subjects of the struggle for agrarian reform, is under dispute, so that they are perceived and recognized as rural entrepreneurs, family farmers, being an integrated extension of agribusiness, expanding their subjection / subsumption to capital. But the historical relevance of agrarian reform is imposed not only by the need of landless workers but also by the destructive imperatives of the forces of capital in relation to labor and the environment. Keywords: productive restructuring - settlements - agrarian reform - proletarianization LISTA DE FIGURAS Foto 1 Marcha nacional por reforma agrária, emprego e justiça, 1997 142 Foto 2 Trabalho de base em Limeira, São Paulo 144 Foto 3 Mística 148 Foto 4 Sistema agroflorestal agroecológico 152 Foto 5 Mural da brigada Ana Primavesi 158 Foto 6 Ocupação Ministério da Fazenda, Brasília 2015 164 Fig. 7 Dados famílias assentadas 169 Foto 8 Feira agricultura familiar em Lençóis Paulista, São Paulo. 176 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABAG Associação Brasileira de Agronegócio ABDI Agencia Brasileira de Desenvolvimento Industrial AGU Advocacia Geral da União ATER Assistência Técnica e Extensão Rural BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CADEC’S Comissões de Acompanhamento e Desenvolvimento e Conciliação da Integração CERP Central Energética de Ribeirão Preto CGU Controladoria Geral da União CIP Conselho Interministerial de Preços CNA Confederação da Agricultura e Pecuária CNPEM Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais COHAB Companhia de Habitação COPERCANA Cooperativa dos Plantadores de Cana-de-Açúcar do Oeste de São Paulo CONCEX Conselho Nacional do Comércio Exterior CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPI Comissão Parlamentar de Inquérito MPMI Comissão Parlamentar Mista de Inquérito CPT Comissão Pastoral da Terra CTNFITO Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários CUT Central Única dos Trabalhadores DEM Democratas DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos EC Emenda Constitucional EIA Estudo Prévio de Impacto Ambiental EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EPI Equipamento de Proteção Individual FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FHC Fernando Henrique Cardoso FONIAGRO Fórum Nacional da Integração FPA Frente Parlamentar da Agricultura e Pecuária FUNAI Fundação Nacional do Índio FUNRURAL Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural IAA Instituto de Açúcar e Álcool IBC Instituto Brasileiro do Café IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMS Imposto sobre Comercialização de Mercadorias e Serviços INCA Instituto Nacional do Câncer INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INSS Instituto Nacional do Seguro Social IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais renováveis ITEPA Instituto de Terras do estado do Pará ITR Imposto Territorial Rural ITESP Instituto de Terras do Estado de São Paulo LNLS Laboratório Nacional de Luz Síncrotron MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra MCTIC Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário MDS Ministério do Desenvolvimento Social MLCTI Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação MP Medida Provisória MPF Ministério Público Federal MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MPT Ministério Público do Trabalho MTST Movimento dos Trabalhadores Sem Teto OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OGM’S Organismos Geneticamente Modificados OIT Organização Internacional do Trabalho PAA Programa de Aquisição de Alimentos PCdoB Partido Comunista do Brasil PGPM Política de Garantia de Preços Mínimos PGE Procuradoria Geral do Estado PIB Produto Interno Bruto PL Projeto de Lei PLANAF Plano Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNRA Programa Nacional de Reforma Agrária PP Partido Progressista PRB Partido Republicano Brasileiro PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONART Programa Nacional de Apoio aos Territórios Rurais PRONERA Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária PT Partido dos Trabalhadores SAF Secretaria da Agricultura Familiar SNCTI Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação SUS Sistema Único de Saúde STF Superior Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TCU Tribunal de Contas da União UFPA Universidade Federal do Pará ULTAB União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil Sumário INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 18 1. REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL ........................................... 25 1.1 Crise estrutural do capital e as saídas via reestruturação produtiva ....... 25 1.2 Reestruturação produtiva no campo – o agronegócio e o comando do capital transnacional ..................................................................................................... 33 1.2.1 Agronegócio e o “clima político” do golpe ....................................... 41 1.3 O controle totalizante do capital e o sentido da Reforma Agrária para os trabalhadores do campo e dos centros urbanos ............................................... 46 1.3.1 A atualidade histórica da reforma agrária ....................................... 55 2. CONTROLE TOTALIZANTE DO CAPITAL E A DEGRADAÇÃO DOS PROCESSOS DE TRABALHO ......................................................................................................... 64 2.1 Da aparência da autonomia na circulação à sujeição do assalariamento por peça na produção ...................................................................................................... 71 2.2 Contradições entre a produtividade e a valorização – a Indústria 4.0 / a manufatura avançada ....................................................................................... 79 2.3Proletarização e a combinação entre subsunção real e formal do trabalho . 85 3. PRECARIZAÇÃO, EXPROPRIAÇÃO E SUJEIÇÃO NO CAMPO ......................... 92 3.1 Precarização entre os historicamente precários ......................................... 93 3.2 Mecanismos atuais de sujeição – impactos da Reforma Trabalhista no campo ........................................................................................................................ 110 3.3 Generalização da condição de proletários do campo ............................... 116 3.4 Proletarização e expropriação ................................................................... 120 4. O LUGAR DOS ASSENTAMENTOS NA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA ... 127 4.1 Assentamentos, agricultura familiar e proletarização ................................ 136 4.1.1 Estranhamento e enfrentamento: de assentado a agricultor familiar 136 4.1.2 Constrangimento, assimilação e novos estranhamentos: de agricultor familiar à força de trabalho disponível ................................................................ 143 5. ASSENTAMENTOS ENTRE A AUTONOMIA E A PROLETARIZAÇÃO ............. 179 5.1 Os processos de trabalho nos assentamentos e a pressão tendencial à proletarização .................................................................................................. 188 5.2 Expectativa de trabalho na terra (a ser) conquistada: a perspectiva das acampadas e dos acampados ........................................................................ 194 5.3 Tipologia dos processos de trabalho nos assentamentos ......................... 200 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 209 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 212 ANEXOS ................................................................................................................. 230 Anexo 1 – Roteiro de questões – coordenadores/coordenadoras .................. 230 Anexo 2 – Roteiro de questões – acampados/acampadas ............................. 232 Anexo 3 – Roteiro de questões – assentados/assentadas ............................. 234 18 INTRODUÇÃO “Vem que tá na hora, não enrola, não demora Para não ficar de fora da fila do sacrifício O trem vai rumo ao precipício Estamos no vagão, somos a carga Amarga tristeza de boi Ruminando aquilo que era Pra ter sido e não foi Reféns da mesma trama O drama da humana manada A vida é isso camarada? Começa como dádiva Mas logo vira dívida Se sobrevive a dúvida Algo segue te dizendo que você valia mais Valia mais, valia mais, valia mais valia.” O Drama da Humana Manada El Efecto A partir dos anos de 1970, o capital passa a enfrentar crises cíclicas cada vez mais freqüentes, que expressam a dimensão estrutural dos limites do capital, justamente no período que encontrou seu ponto mais alto de expansão. As repetidas crises provocaram mudanças no regime de acumulação, esgotando a fase progressista de ascendência histórica do capital, ativando limites absolutos e eliminando qualquer resquício civilizatório (MÉSZÁROS, 2009). Neste sentido, a reestruturação produtiva do capital se apresenta como resultado direto de sua crise estrutural. No Brasil, a reestruturação produtiva foi sentida já no final da década de 1980, e no início da década de 1990 no governo de Collor de Melo, mas é sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, que as políticas neoliberais ganham maior densidade: privatizações, desmonte de direitos sociais, desregulamentação das relações de trabalho, deslocamento dos eixos dinâmicos da acumulação para as empresas transnacionais que já operavam por aqui etc. Desta forma, o Brasil passou, a viabilizar a valorização financeira (PAULANI, 2008). As empresas passaram a adotar novos padrões organizacionais e tecnológicos, seguindo os ditames do toyotismo, generalizando conceitos como “acumulação flexível”, e 19 novas formas de organização do trabalho: descentralização produtiva, transferência de plantas industriais, acentuação da superexploração do trabalho, mutações sócio-técnicas, diminuição dos postos de trabalho (causando um significativo aumento do desemprego) (ANTUNES, 2011). Tais medidas articuladas entre si foram colocando na defensiva parte substantiva do sindicalismo que passou a ter ações cada vez mais reativas diante da fragmentação da classe trabalhadora e da nova forma de ser do trabalho (id., ibid.). No campo brasileiro, a reestruturação produtiva foi sentida já no final da década de 1980, com as reformas no comércio exterior, que produziram como efeito a liberalização do mercado agrícola e a redução da tarifa média, nos primeiros anos de 1990, para determinados grupos de produtos agrícolas, insumos e equipamentos (FIRMIANO, 2016). Mas no final da década de 1990, os agronegócios ganharam importância decisiva no conjunto da economia brasileira, com forte investimento em infraestrutura territorial, pesquisa agropecuária, por meio da reorganização da EMBRAPA, mudanças na regulação do mercado de terras e na política cambial, eliminando a sobrevalorização, o que tornou o agronegócio competitivo no comércio internacional (DELGADO, 2010). Neste período o agronegócio passa a se reorganizar, criando a ABAG em 1993, aglutinando os participantes das diferentes cadeias produtivas do agronegócio, orientando as profundas mudanças que ocorreriam no campo em favor do capital. Mas a reestruturação produtiva também operou em processos de seletividade entre os trabalhadores do campo, promovendo a ascensão da agricultura familiar integrada à lógica do agronegócio, seguindo as orientações políticas do Banco Mundial (FIRMIANO, 2016). Os governos neodesenvolvimentistas de Lula da Silva e Dilma Rousseff criaram um ambiente político-institucional que possibilitou a consolidação e a expansão do agronegócio e da agricultura familiar, como sua completude subordinada, mas ao mesmo tempo, desenvolveram políticas públicas que foram ao encontro das necessidades dos trabalhadores do campo. No entanto, a contradição fundamental desse processo, é que a ascensão e consolidação da agricultura familiar ocorreram em detrimento da política estruturante da reforma agrária, disputando a consciência dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Com a crise de 2014, a agricultura familiar também foi impactada e vários programas sociais e políticas tiveram cortes drásticos ainda sob o governo de Dilma Rousseff. Em maio 20 de 2016 a presidenta foi afastada do cargo e, em agosto do mesmo ano, um golpe se consolida com a aprovação do impeachment pelo Congresso Nacional, assumindo a presidência o seu vice, Michel Temer. A partir daí as medidas da contra reforma agrária se intensificaram ainda mais, não somente inviabilizando novas conquistas, mas também promovendo graves retrocessos aos direitos conquistados pelos trabalhadores. A consolidação e expansão dos agronegócios colocam novas implicações sobre a questão agrária brasileira, pois a ação destrutiva do capital passa a afetar de forma ainda mais direta a reprodução do conjunto da sociedade e questões como escassez de água, explosão dos casos de intoxicações por consumo de alimentos envenenados etc., podem indicar o sentido e a atualidade da reforma agrária, isso, se ela for capaz de abarcar esses temas sobre o seu escopo. A luta por terra e por reforma agrária historicamente tem enfrentado um padrão de violência que se mantém até os dias atuais, assegurando o pacto entre capital/estado e latifúndio combinando várias formas de repressão contra os trabalhadores. Os indicadores de violência no campo apontam que o aumento nos casos de violência, estão intrinsecamente ligados ao modelo do moderno agronegócio, da mineração e do hidronegócio, que tem gerado um rastro de conflitos em todo país. Tais características evidenciam que a natureza dos conflitos que envolvem a luta pela reforma agrária é prova inequívoca do quanto ela está distante de uma solução resultante de um projeto de conciliação de classes como presente na simbiose entre o agronegócio e a agricultura familiar. Mas tais questões estão inseridas nas contradições que as forças do trabalho enfrentam sob o contexto da reestruturação produtiva, que tem provocado mudanças substantivas na forma de ser do trabalho, intensificando processos de expropriação, sujeição/subsunção e impondo o desemprego estrutural a um enorme contingente de trabalhadores (MÉSZÁROS, 2009). Na atual quadra histórica o trabalho por conta própria, o assalariamento por peça (MARX, 2017) e o empreendedorismo são “vendidos” aos trabalhadores como a forma ideal para enfrentar a crise; processos onde se intensifica o ritmo do trabalho e amplia-se a jornada de trabalho, levando os seres humanos a condições extenuantes, expostos à extração combinada de mais valor relativo e absoluto pelo capital (MÉSZÁROS, 2009). É neste cenário que se insere a tendência à generalização da proletarização que atinge desde 21 os trabalhadores que vendem sua força de trabalho, os desempregados estruturais e àqueles que detêm parte dos meios de produção; proletarização entendida aqui como perda de qualquer autonomia sobre os processos de trabalho e sobre sua própria vida, devido ao controle totalizante do capital. Note-se que a proletarização sempre ocorreu, mas ela não se dá da mesma forma; e sob os imperativos da crise estrutural do capital, há uma tendência de aprofundar processos de separação dos trabalhadores de sua capacidade de reprodução social. No campo isso significa intensificar processos de expropriação e ampliar as formas de precarização que se dão, entre os historicamente precários, com pouca ou nenhuma proteção de direitos trabalhistas, predominância de contratos precários etc., o que só piorou com a recente aprovação da reforma trabalhista que praticamente legaliza situações análogas à escravidão. Ao refletir sobre os impactos da reestruturação produtiva nos assentamentos, é possível notar o quanto os retrocessos impostos à luta por reforma agrária e as tentativas de enquadramento na agricultura familiar, foram diminuindo o poder de confronto das forças do trabalho nas lutas de classes, implicando em perdas substantivas para os trabalhadores. Tal processo gerou estranhamentos, enquadramentos e novos estranhamentos, que perpassam as organizações dos trabalhadores do campo, especialmente o MST. A subjetividade dos trabalhadores assentados passa a ser disputada com maior intensidade, e na materialidade dos processos de trabalho a que estão inseridos, passam pelas contradições de se defrontar ora como assentado, em geral precarizado, ora como agricultor familiar e ora como força de trabalho disponível ao capital. Todo o trabalho desenvolvido dentro dos assentamentos está sob intensa pressão do modelo hegemônico do capital e os assentados podem ser incorporados, sempre de forma subordinada, quando forem capazes de se integrar como uma extensão de tal modelo, seja como agricultor familiar, força de trabalho disponível, ou como potenciais consumidores “autônomos” dos diversos insumos agrícolas das grandes empresas do agronegócio: sementes, adubos químicos e agrotóxicos etc. Considerações sobre teoria e método 22 Ao longo do trabalho procurei adotar a teoria da crise estrutural do capital, de István Mészáros (2009), autor tão necessário para a compreensão sobre a ativação dos limites absolutos do sistema sociometabólico do capital, com a liberação de forças destrutivas sobre o trabalho e o ambiente. Ao analisar a realidade e suas contradições, o autor expressa a atualidade das lutas de classes, o sentido antagônico entre capital e trabalho e a necessidade de retomada da luta ofensiva. Também procurei utilizar a teoria social de Marx (2017), a partir de seu legado de análise sobre a sociedade burguesa, trazendo os elementos fundamentais para a necessária projeção da superação de sua existência; compreendendo aqui a teoria como um conjunto articulado de explicitações metodológicas acerca de um objeto determinado. Para compreensão da reestruturação produtiva, a ascensão dos agronegócios e da agricultura familiar, lancei mão da elaboração construída por Firmiano (2014) que soube articular os imperativos do capital, com a materialidade dos movimentos do capital no campo, envolvendo não só os grandes proprietários de terra, mas também os pequenos produtores rurais, e especialmente as forças do trabalho aglutinadas em torno da luta por reforma agrária. Aqui também outros autores foram fundamentais como Pinassi (2009). Com Antunes (2004, 2005), Alves (2004) pude perceber os impactos da reestruturação produtiva no mundo do trabalho, nos processos de intensificação da precarização e da proletarização, o que me proporcionou aprofundar os estudos sobre tais impactos nos processos de trabalho no campo com Tavares (2010) e Fontes (2017). Nos estudos sobre os assentamentos e a reforma agrária, identifiquei com Firmiano (2014), a disputa sobre a subjetividade dos assentados, tensionados pelas contradições entre o empreendedorismo da agricultura familiar, a materialidade da precarização e a condição heterônoma como força de trabalho disponível ao capital; elementos fundamentais para a compreensão sobre a atual tendência de generalização à proletarização como perda da autonomia, mesmo entre aqueles que detêm parte dos meios de produção, como no caso dos assentados de reforma agrária. Procedimentos metodológicos 23 O presente trabalho teve como foco de análise a pesquisa de campo realizada por mim no estado de São Paulo, escolhido por reunir as contradições mais agudas enquanto espaço de consolidação da reestruturação produtiva do capital no campo. Além disso, a escolha do estado de São Paulo deu-se pelas inquietações em compreender os processos de trabalho nos assentamentos, em sua grande maioria, marcados pela precarização. Durante a pesquisa de campo pude constatar que a aparência da precarização nos assentamentos, em realidade, oculta os processos de trabalho marcados pela proletarização, provocada pela pressão que exerce o capital/estado sobre as áreas conquistadas. Estamos diante de uma comprovação da tese que indica que nessa atual fase histórica de crise estrutural do capital, a pressão exercida por esse sistema totalizante, leva à generalização da proletarização, mesmo entre aqueles que julgam estar em condições mais autônomas, com maior controle sobre o trabalho e sobre suas próprias vidas. A pesquisa de campo está constituída por observações através de vivências, participação em reuniões, visitas, atividades e a aplicação de um roteiro de questões para os sujeitos envolvidos (anexo 1). Em relação ao roteiro de questões, ele é composto de questões fechadas (de identificação e caracterização) e questões abertas (com reflexões e opiniões). São três roteiros: acampadas/acampados; assentadas/assentados e coordenadoras/coordenadores (dirigentes). A Pesquisa foi realizada em acampamentos e assentamentos, abrangendo as dez regiões nas quais o MST está organizado – Pontal do Paranapanema, Andradina, Sudoeste, Promissão, Iaras, Ribeirão Preto, Campinas, Grande São Paulo, Vale do Paraíba e Sorocaba. A escolha da pesquisa de campo junto ao MST justifica-se pelo acúmulo que o movimento tem no debate acerca da reforma agrária vinculado à questão do trabalho, e também pela importância de sua referência como uma das principais organizações de trabalhadores da América Latina. Foram realizadas 40 entrevistas, sendo 10 com coordenadores, 10 com acampados e 20 com assentados. Tanto as entrevistas como as vivências estão sistematizadas no caderno de campo que utilizo como referência neste trabalho. Para exposição do material coletado, optei por citações especialmente no quinto capítulo, mas também pela elaboração de crônicas apresentadas no quarto capítulo. 24 As crônicas de campo constituem uma opção metodológica para expressar de forma literária, tanto as entrevistas, como também as vivências. Me apoio aqui na elaboração teórica de Adoue (2008) e Medina (2012). No caso de Medina (ibid.) a respeito dessa abordagem, elas foram explicitadas nos seus estudos acadêmicos tendo como referência a elaboração feita por Murilo de Carvalho, jornalista e escritor que retratou a vida dos trabalhadores rurais no Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Trata-se de uma transmissão simbólica na qual a obra literária formata as experiências humanas vistas ou ouvidas pelo escritor. Neste sentido, as narrativas de Murilo Carvalho partem de experiências reais, mas as extrapolam. Ao formatar as experiências do outro, a obra literária adiciona a elas o trabalho da imaginação, que é possibilitado pela posição de onde o escritor conta os fatos que quer transmitir (...) a formalização estética de fatos anteriormente presenciados e ouvidos pelo escritor revelou aspectos da subjetividade desses trabalhadores que foram espoliados social e economicamente. Murilo Carvalho, ao testemunhar as histórias dos trabalhadores e realizar as narrativas a partir delas, contribui para evitar uma das consequências mais brutais da espoliação enfrentada pelo trabalhador rural precarizado: a espoliação da memória. (MEDINA, 2012, não paginado). Tais abordagens estão vinculadas teoricamente à literatura do testemunho (id., ibid.,) que articula aspectos fundamentais da sociologia e da psicologia. A utilização desta abordagem por mim neste trabalho justifica-se pela necessidade de expressar algo mais totalizante do que o depoimento coletado nas entrevistas propriamente, por isso ela tem um viés ficcional. Mas ao mesmo tempo, trata de elementos sociológicos relevantes, interpretados por mim, mas que referem-se a um sentido coletivo das representações de um movimento social, extraídas de um forjar de sua luta cotidiana pela conquista da reforma agrária. 25 1. REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL 1.1 CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E AS SAÍDAS VIA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA Desenvolvida ainda na década de 1930, tendo como pano de fundo a forte intervenção estatal conduzida por Roosevelt na tentativa (temporariamente bem sucedida) de tirar os EUA da crise de 1929, a teoria de Keynes encontrou bases sólidas no pós-II Guerra, quando o padrão da expansão capitalista e a nova hegemonia – exercida pelos norte-americanos – criaram condições para um relativamente longo processo de indução do desenvolvimento capitalista no centro do sistema. No plano teórico, o keynesianismo se afirmou como uma espécie de oposição aos neoclássicos, com a ideia da necessidade de uma intervenção estatal. Assim, o “desenvolvimentismo realmente existente”, como chamou Firmiano (2016), foi viabilizado pelo pragmatismo norte-americano e pelo poder de arbitrar as regras monetárias e comerciais globais que, sob sua tutela, permitiu-lhes uma frouxidão que os favorecia no contexto da Guerra Fria e da corrida contra a URSS. Com isso, no pós-II Guerra, os EUA praticaram uma política exterior “benevolente”, por meio da qual foi possível a realização do Plano Marshall, a ajuda para a Ásia e a expansão capitalista de algumas nações. Este processo permitiu, ainda, a reconstrução da Itália, da Alemanha, do Japão, bem como a expansão capitalista, por meio da industrialização, de alguns países da periferia, à exemplo do Brasil. Conforme apontou Fiori (1998, p. 75): No espaço de autonomia das políticas nacionais, em que o Estado tinha margem de liberdade para tratar da renda interna, da distribuição, de incentivos à demanda e ao crescimento, mantendo as regras internacionais graças à soltura da política monetária norte-americana, os europeus fizeram o Welfare State. Nesse espaço, fizemos a nossa industrialização. A partir de 1970, as políticas anticíclicas perderam sua eficácia, levando o grande empreendimento keynesiano à progressiva derrocada, assim como a própria ideia de que era possível controlar a expansão capitalista. István Mészáros demonstrou, mais tarde, que aquele processo de ascensão da “era de ouro do capital” não podia se sustentar por mais tempo. O keynesianismo, e seu correlato 26 programa econômico, por definição, nunca operou fora do raio de ação institucional do capital, de modo que, sua capacidade de intervenção, tinha somente o alcance da conjuntura de algumas décadas, qual seja, da reconstrução do pós-II Guerra. “Originalmente, o keynesianismo foi uma tentativa de oferecer uma alternativa à lógica de parada e avanço [do capital], pela qual as duas fases seriam administradas de forma equilibrada” (MÉSZÁROS, 2009, p. 25). Assim, como estratégia de controle, seu programa permaneceu atado à fase de expansão e declínio do capital. Uma vez esbarrando em seus limites absolutos, não só a impossibilidade do controle ficou evidente, como as contradições do sistema do capital se tornaram mais explosivas. De acordo com Mészáros (ibid.) o modo de controle sociometabólico do capital se constitui historicamente quando a dominância do valor de uso característico dos sistemas de auto-suficiência no relacionamento entre a produção material e o controle dá lugar a conexões reprodutivas mais amplas. Uma vez livre das amarras da auto-suficiência, o capital se converteu na forma mais dinâmica de extração de trabalho excedente – forma esta que não conhece fronteiras e carece, invariavelmente, ultrapassar todos os obstáculos, definindo e redefinindo, sempre que as circunstâncias se modificam, os limites relativos para a realização do valor. Desse modo, o sistema do capital, até certo momento, foi capaz de definir seus limites relativos, mantendo sempre o mais alto grau possível de extração de trabalho excedente, graças a sua dinâmica expansionista, liberada das restrições impostas pela auto-suficiência. Contraditoriamente, esta mesma soltura das condições anteriormente estabelecidas para a expansão, promoveu a perda do controle sobre o conjunto do sistema de reprodução social. (id., ibid., p. 101-103). Esta contradição latente, no entanto, permaneceu acomodada durante um longo estágio do desenvolvimento histórico do capital, em razão de sua capacidade de deslocar suas contradições internas para fora de seu centro dinâmico. Mas na medida em que seu processo de livre expansão passou a ser bloqueado pela perda progressiva dos mecanismos de deslocamento de seus antagonismos internos, as contradições inerentes ao processo de expansão foram potencializadas, consumando o fim da fase de ascensão histórica do capital. (id., ibid., p. 104). Como sintetizou Firmiano (2016), este processo se dá em razão do que Mészáros chama de “defeitos estruturais do controle”, ou pela ausência (não compensável) de unidade 27 entre as estruturas reprodutivas do capital, que reside: no isolamento entre a produção e o controle da produção; na independência entre as esferas de produção e consumo (onde se pode verificar o excesso de consumo concentrado, por um lado, e na negação das necessidades mais fundamentais, por outro lado); (c) na contradição entre produção e circulação, na qual os microcosmos do sistema do capital acabam por se combinar em alguma forma de conjunto administrável, de modo que o capital social total possa penetrá-los no domínio da circulação total, buscando resolver o antagonismo entre produção e circulação. Segundo Mészáros (2009, p. 105): O caráter irremediável da carência de unidade deve-se ao fato de que a própria fragmentação interna das estruturas reprodutivas do capital assume a forma de antagonismos sociais. Em outras palavras, ela se manifesta em conflitos fundamentais de interesse entre as forças sociais hegemônicas alternativas [que] (...) são necessariamente reproduzidos sob todas as circunstâncias históricas que cobrem a era do capital, fossem quais fossem as relações de poder dominantes em qualquer ponto determinado do tempo. Foi assim que a partir dos anos de 1970, quando encontrou seu ponto mais alto de expansão, que o capital passa a enfrentar crises cíclicas cada vez mais frequentes, que expressam a dimensão estrutural dos limites do capital. Em 1971, os EUA rompem com o sistema de Bretton Woods, desvinculando o dólar do ouro; em 1973, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), experimentam forte crise, abalando fortemente os EUA no ano seguinte. Em 1976, o Fundo Monetário Internacional legaliza as taxas de câmbio flutuantes, abolindo o papel do ouro como reserva e transferindo para cada país a determinação da paridade de sua moeda com relação ao dólar. Naquele contexto, os capitais transnacionais, sobretudo norte-americanos, que operavam na Europa buscaram outras formas de valorização, a exemplo do Euromarket, produzindo um volume significativo de capitais que buscaram valorização exclusivamente financeira, que daria lugar ao que Chesnais (2003) chamou de crise do modo de regulação fordista-keynesianista, que levou à mundialização financeira. Esta mudança no regime de acumulação resultou do esgotamento do padrão de acumulação ocorrido entre 1945 e 1973, com isto, “... a fase progressista da ascendência histórica do capital chega ao encerramento precisamente porque o sistema global do capital 28 atinge os limites absolutos além dos quais a lei do valor pode ser acomodada aos seus limites estruturais” (MÉSZÁROS, 2009, p. 226). Conforme afirmou Firmiano (2016, p. 52), Não foi à toa que o aventureirismo financeiro ganhou proporções gigantescas a partir da década de 1970, concomitantemente à crise dos ramos da produção capitalista e das perturbações resultantes de sua letargia. Aliás, a dominância financeira que desde então vem regendo a economia mundial foi uma tentativa do capital de encontrar uma espécie de rota de saída para os obstáculos com os quais se deparava, mas que, por sua natureza, o levou ainda mais para dentro do mesmo lugar do qual pretendia fugir. Isto não significou, em absoluto, a interrupção do processo de desenvolvimento capitalista. Porém, a redução da margem produtiva do capital, que resultava da tendência ao seu (auto) bloqueio interno, passou a marcar o processo de acumulação, produzindo um padrão de reprodução qualitativamente distinto. O mundo capitalista entrou em uma profunda recessão, que combinou baixas taxas de crescimento com altas taxas inflacionárias, abrindo terreno para os intelectuais de Mont Pèlerin, sob a batuta de F. Von Hayek, que compreendiam que a origem da crise estava no excessivo poder conferido aos sindicatos, que corroíam os níveis de lucros necessários das empresas e o processo de acumulação capitalista, por meio da pressão pelos aumentos de salário e dos gastos públicos (sociais) do Estado. Logo, seu receituário apoiou-se na manutenção da força do Estado contra o poder sindical e no controle dos recursos financeiros, na redução drástica dos gastos sociais e na estabilidade monetária como meta de governo, do que decorria a necessidade de disciplina orçamentária e a restauração das taxas de desemprego (ou criação de exército de reserva), além de reforma fiscal. (ANDERSON, 1995). A hegemonia deste programa levou cerca de uma década (a de 1970) para se estabelecer, quando a OCDE – Organização Européia para o Comércio e Desenvolvimento ainda insistia no receituário keynesiano para as crises seqüenciais registradas naquele decênio. Em 1979, com a eleição de Thatcher na Inglaterra, e, em 1980, quando Reagan alcança o mais alto posto de comando da principal economia do planeta, abriu-se um período próspero para o neoliberalismo – que seria seguido por Kohl, em 1982, na Alemanha; por 29 Schluter, em 1983, na Dinamarca e, em pouco tempo, por quase todos os países do norte da Europa ocidental, a exceção de Suécia e Áustria. “Os anos 80 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da ideologia neoliberal nesta região do capitalismo avançado” (id., ibid., p. 11). Na prática, ainda com Perry Anderson, a Inglaterra foi o “modelo pioneiro e mais puro”, contraindo a emissão monetária, elevando taxas de juros, baixando impostos sobre altos rendimentos, abolindo controles sobre fluxos financeiros e produzindo altos níveis de desemprego, com direito a legislação anti-sindical, corte do gasto público e programa de privatizações (da habitação pública e indústrias de base). Já os EUA adotaram um caminho um tanto distinto da Inglaterra, não respeitando a disciplina orçamentária, embora reduzindo impostos sobre capital e elevando as taxas de juros: a competição militar com a URSS os fez intensificar a corrida armamentista, envolvendo gastos militares surpreendentes, que os levaram a um grande déficit público. Na Europa, sobretudo no norte, operou-se um neoliberalismo mais cauteloso e matizado, com ênfase na disciplina orçamentária e nas reformas fiscais. (id., ibid.). O que demonstravam estas experiências era a hegemonia alcançada pelo neoliberalismo como ideologia. No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se auto- proclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal (ANDERSON, 1995, p. 13). Diferente dos países do centro, a periferia do sistema do capital sentiu a crise dos 1970, primeiro como (falsa) virtude, depois como tragédia. Isto porque, a reconstrução do pós-II Guerra havia criado a ilusão de que o desenvolvimento poderia ser controlado e induzido e, segundo a qual, os países “atrasados” conseguiriam alcançar o mesmo patamar dos países centrais, bastando aplicar o receituário keynesiano-desenvolvimentista. Mas com o fim deste processo as contradições intransponíveis à realização plena do valor passaram a representar um grilhão para a expansão das forças produtivas do capital. De acordo com Firmiano (2016), foi neste intervalo, entre a “era de ouro” e a débâcle do capital, ou no (relativamente) longo processo de transição da fase ascendente para a fase de crise estrutural do capital, que uma parte da periferia completou sua industrialização, 30 reacomodando sua posição na nova divisão internacional do trabalho que surgia no seio da mundialização do capital. No Brasil, a industrialização brasileira, promovida sob a tutela militar, converteu-se no vetor de modificação do próprio padrão historicamente constituído da dependência econômico-financeira. Sem forças internas para completar o processo, a industrialização se baseou na internacionalização da produção da empresa multinacional que, diante das crises do petróleo e do dólar, na década de 1970, sofreu uma guinada histórica, resultando na preparação das condições para o que seria, pouco mais tarde, a dominância financeira (PAULANI, 2008, p. 86). O golpe militar de 1964 rapidamente respondeu aos primeiros impulsos do processo de financeirização do capital internacional, acelerando o que Firmiano (2016) chamou de “desenvolvimentismo realmente existente”, por meio da conclusão do processo de industrialização, com forte amparo do capital internacional que, ao mesmo tempo em que burlou o problema do desequilíbrio externo sofrido pelo país, elevou substancialmente o endividamento para fora. (FIRMIANO, 2016). Além disso, a ditadura, e o desenvolvimentismo de então, foi também o vetor da subjugação da sociedade e da economia nacionais ao novo imperialismo que, depois da II Guerra Mundial, comandado pelos Estados Unidos, passou a ser governado por imperativos econômicos administrados por um sistema de múltiplos Estados, criando um regime distinto do “velho imperialismo”, centrado na expansão territorial que marcou a história do capital até o fim da Primeira Guerra Mundial. Como tal, a ditadura do capital foi de fundamental importância para assegurar o imperialismo “... interessado em incentivar uma espécie de ‘desenvolvimento’ e ‘modernização’ no terceiro mundo como meio de expandir seus próprios mercados”. (WOOD, apud, FIRMIANO, 2016, p. 121). A ditadura civil-militar no Brasil completou o processo de industrialização e modernização conservadora da sociedade nacional, realizando a transição burguesa, de um padrão de acumulação dominantemente industrial para um padrão de reprodução capitalista comandado pelo capital financeiro (MÉSZÁROS, 2009). “O que se seguiu foi o período que chamamos de globalização, a internacionalização do capital, seus movimentos rápidos e livres e a mais predatória especulação financeira por todo o globo” (WOOD, 2014, p. 102). 31 No fim dos idos de 1980, “... o Brasil era o retrato de uma economia periférica já industrializada, vitimada pela marcha acelerada da financeirização do capitalismo em nível mundial” (PAULANI, 2008, p. 242). Para se ter ideia, entre 1970 e 1990, o país pagou US$ 140 bilhões de juros e mais US$ 180 bilhões em amortizações aos credores internacionais. A chamada “crise da dívida” e alta inflação foram empurradas para frente, pela submissão incondicional do país, que se tornou, em pouco tempo, uma fonte permanente de “... ganhos financeiros ao capital cigano que gira o mundo buscando as aplicações mais lucrativas” (id., ibid., p. 243). Sob os auspícios do Institute for International Economics, a partir da famosa reunião ocorrida em Washington, em 1989, orientada pela pergunta Latin America Adjustament How Much has Happened?, o país passou a atender ao que José Paulo Netto chamou de tríplice mote da flexibilização (da produção e das relações laborais), desregulamentação (das relações comerciais e dos circuitos financeiros) e privatização (do patrimônio estatal). (NETTO, 2014). Inúmeras empresas de capital transnacional ampliaram largamente suas operações no país, ora buscando fontes alternativas de recursos naturais, ora se “reposicionando” diante de seus mercados finais, em busca do aumento de sua eficiência econômica. Desta forma, a reestruturação política e produtiva se fez sentir já no final da década de 1980, no Brasil, embora, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, as políticas neoliberais tenham ganhado maior densidade, a partir da liberação generalizada das atividades econômicas e financeiras; do desmonte progressivo do raquítico “Estado de bem- estar social”; da desregulamentação das relações de trabalho; e do deslocamento dos eixos dinâmicos da acumulação para as empresas transnacionais que já operavam por aqui, entre outras. Quanto a este último, vale ressaltar que o “tripé do desenvolvimento associado” cedeu lugar para as megacorporações transnacionais, que exigiam uma intervenção estatal liberalizante para seu ingresso nos setores dinâmicos e estratégicos da economia nacional. Com a abertura comercial – iniciada por Fernando Collor de Mello - e a perda do controle da política cambial, a dívida interna pública foi elevada em 10 vezes, reiterando a dependência econômica com relação ao capital externo e criando as primeiras bases para que o capital financeiro deslanchasse no país. (OLIVEIRA, 1998). 32 O Brasil passou, então, a viabilizar a valorização financeira: “a liberalização financeira vem garantir o livre trânsito dos capitais internacionais, que podem assim maximizar o aproveitamento das políticas monetárias restritivas e de juros reais elevados” (PAULANI, 2008, p. 42). Mas isto não foi suficiente para assegurar as novas condições de acumulação do capital. As mudanças necessárias para a transformação do país em “plataforma de valorização financeira” - como chamou Leda Paulani (2008) - ainda teriam que ser completadas por outras medidas, que só ocorreram nos governos neodesenvolvimentistas, a partir dos anos 2000. A abertura comercial, ainda sob o governo de Collor de Mello, significou “... a destruição de cadeias produtivas na indústria brasileira, com empresas sendo fechadas por não conseguirem concorrer com produtos estrangeiros, e, portanto, o crescimento do desemprego em massa”. Além disso, “... as grandes empresas foram obrigadas a intensificar a reestruturação produtiva colocando o sindicalismo na defensiva diante do cenário hostil – governos anti-sindicalistas e recessão econômica com desemprego crescente” (ALVES, 2009, p. 193). No plano da estrutura produtiva, as empresas passaram a adotar novos padrões organizacionais e tecnológicos, inspirados pelo chamado toyotismo. Os anos de 1990, assim, generalizaram os expedientes da “acumulação flexível”, com a chegada do “ideário japonês” e das novas formas de organização do trabalho: descentralização produtiva, transferência de plantas industriais, acentuação da superexploração do trabalho, que combinam “... processos de enorme enxugamento da força de trabalho, acrescidos das mutações sociotécnicas no processo produtivo e no controle social do trabalho” (ANTUNES, 2011, p. 122). De acordo com Alves (2009, p. 193), foi o sucesso do Plano Real na estabilização da economia, ainda sob o governo de Itamar Franco, que possibilitou algumas alterações estratégicas nas empresas: “... altera-se o ambiente de trabalho (...) instaura-se nas grandes empresas no país, o que denominamos de ‘toytismo sistêmico’ (...) altera-se a morfologia das lutas sindicais das categorias de trabalhadores assalariados”. Além disso, a estabilização da moeda e a redução drástica da inflação apoiaram a extinção da política salarial. Outro aspecto da precarização estrutural do trabalho foi, ainda segundo o autor, o Programa Nacional de Desestatização (PND), criado em 1991, que transferiu significativa parcela do patrimônio social para o capital privado. “O processo de privatização (...) significou o 33 fortalecimento da acumulação de capital no país, embora tenha contribuído, ao mesmo tempo, para a acumulação por espoliação, que não implica necessariamente em investimento produtivo…” Dessa forma, como afirmou Firmiano (2016, p. 47): os idos de 1990 foram marcados (a) pela reacomodação das condições de reprodução do capital, em face de sua crise estrutural, e pela consolidação de um padrão de acumulação distinto, crescentemente predatório e destrutivo e (b) pela rearticulação das forças políticas internas, que se associaram ao capital transnacional, em função da nova processualidade representada pela globalização/mundialização/financeirização da economia. Longe de se esgotar, os processos de reestruturação produtiva do capital e as políticas neoliberais ganharam novo fôlego durante os anos de 2000, mesmo sob os governos neodesenvolvimentistas. 1.2 REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO CAMPO – O AGRONEGÓCIO E O COMANDO DO CAPITAL TRANSNACIONAL No campo brasileiro, a reestruturação produtiva já se fez sentir ainda no final da década de 1980, como mostra Firmiano (2016), com as reformas no comércio exterior, que produziram como efeito a liberalização do mercado agrícola e a redução da tarifa média, nos primeiros anos de 1990, para determinados grupos de produtos agrícolas, insumos e equipamentos. Além disso, a estabilização da moeda – o Plano Real – destruiu a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), que nos anos de 1980 havia sido o principal instrumento de intervenção estatal na agricultura; soma-se a este quadro, algumas políticas econômicas que agilizaram as operações de comércio exterior, como implantação do sistema de quotas e licença prévia para a exportação; subsídios diretos e indiretos e o fim do Imposto sobre Comercialização de Mercadorias e Serviços (ICMS) para as exportações. O funcionalmente chamado de “ambiente institucional” nacional, no qual operavam os capitais da agricultura/agropecuária sofreu, assim, importantes modificações na viragem da década de 1980 para 1990. No plano das cadeias de produção agrícolas, tais transformações estiveram associadas a: (a) desregulamentação dos mercados agrícolas, 34 com o fim do IAA (Instituto do Açúcar e Álcool) e do IBC (Instituto Brasileiro do Café), em 1990; (b) redução do crédito e diminuição de subsídios, com a extinção da Conta Movimento do Banco do Brasil, ainda em 1986; (c) liberalização do mercado externo, em 1988, com a Resolução 155 do Concex (Conselho Nacional do Comércio Exterior); (d) desregulamentação dos preços no varejo, com a extinção do CIP (Conselho Interministerial de Preços). (SAES e SILVEIRA, 2014, p. 300-301). Na viragem do século, o capital transnacional que operava nas agroindústrias detinha uma das maiores participações nas vendas totais entre as 1.000 maiores empresas do setor. Entre 1994 e 2003, a empresa KPMG registrou 312 operações de fusões e aquisições no setor de alimentos, bebidas e fumo, que estiveram à frente do ranking. Das aquisições e fusões registradas entre 1991 e 2004 no âmbito dos agronegócios, destacamos o caso da Parmalat, na cadeia de laticínios, que adquiriu 18 empresas brasileiras no período; a argentina Macri (Socma), que adquiriu 6 empresas e no setor de suprimentos agrícolas, Dow Agrosciences, Bunge e Born (que também aparece no setor de carnes de aves e suínos e com presença muito forte no complexo da soja) e Monsanto, respectivamente, foram as transnacionais que mais adquiriam empresas nacionais (FIRMIANO, 2016, p. 55). Foi, porém, a partir de 1999 que os agronegócios ganharam importância decisiva no conjunto da economia brasileira. De acordo com Delgado (2010), o segundo governo de FHC iniciou o que o autor chamou de “relançamento do agronegócio”, com iniciativas como: (a) forte investimento em infraestrutura territorial, formando ou ampliando meios de transporte e corredores comerciais ao agronegócio que favorecessem sua expansão para fora do país; (b) direcionamento do sistema público de pesquisa agropecuária, por meio da reorganização da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), que passou a operar em consonância com as empresas multinacionais do agronegócio; (c) frouxidão da regulação do mercado de terras; (d) e mudança na política cambial, eliminando a sobrevalorização que tornou o agronegócio competitivo no comércio internacional. (DELGADO, 2010, p. 94). Como registra Firmiano (2016), ao longo da década de 1990 houve um conjunto de aspectos que concorreram para a formação progressiva do complexo dos agronegócios. Deste, cumpre destacar a fundação da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), em 1993, em São Paulo, com o objetivo de congregar todos os participantes das cadeias produtivas do agronegócio, empresas de insumo, proprietários rurais, processadores 35 industriais de alimentos, distribuidores, agentes financeiros, do setor de comunicação e da universidade. Hoje, seu núcleo central é constituído por empresas de capital transnacional, como Cargill, Bunge, Monsanto (...) A abag atua como verdadeiro intelectual orgânico coletivo, buscando condições para a expansão dos interesses do conjunto do agronegócio, dedicando-se a elaboração teórica, ideológica para a unidade política dos interesses do capital transnacional com os demais participantes da cadeia produtiva (FIRMIANO, 2016, p. 58). No mesmo período, difundiu-se no Brasil o conceito de cadeias de agronegócios, que passou a ver a agricultura como um sistema complexo “... que inclui não apenas as atividades dentro da propriedade rural (...) como também, e principalmente, as atividades de distribuição de suprimentos agrícolas, armazenamento, processamento e distribuição dos produtos agrícolas”. De acordo com esta concepção técnico-operacional, é composta por três setores inter-relacionados e dependentes uns dos outros: (a) suprimentos agropecuários, (b) produção agropecuária e (c) processamento e manufatura, envolvendo serviços financeiros, de transporte, marketing, seguros, bolsas de mercadorias; envolve empresas de bens e serviços destinados à agricultura, proprietários rurais, empresas processadoras, transformadoras, distribuidoras e demais integrantes da cadeia produtiva, do “fluxo” dos produtos e serviços até o consumidor final, apoiado por fortes subsídios e políticas governamentais. (MENDES e PADILHA JR., 2007, p. 47-48). Como explica Gonçalves citado por Firmiano (2016, p. 62), As transformações produtivas promoveram significativa alteração nas relações do campo com outros segmentos da agricultura que se emanciparam formando novos segmentos produtivos setoriais. Com isso, a estrutura do antigo complexo rural que contemplava a agropecuária como única atividade produtiva da agricultura, sofre profundas mudanças com a criação dos novos segmentos que ampliam a abrangência da agricultura, reduzindo a participação da agropecuária nesse complexo produtivo. Em Face da reestruturação produtiva do capital no campo, o agronegócio consolidou “... segmentos e ramos de produção para atuarem de forma exclusiva com a agropecuária 36 tanto a montante como a jusante” (Gonçalves apud Firmiano, 2016, p. 49). Com estas atividades se desenvolvendo fora da propriedade rural, novos ramos e cadeias de produção fizeram com que a agropecuária perdesse espaço no complexo produtivo dos agronegócios. O complexo de agronegócio pode, assim, (...) ser visualizado enquanto uma estrutura de segmentos setoriais onde a produção biológica passa a ser veículo estratégico para a combinação de insumos e instrumentos gerados fora dos campos e a ser fornecedora de bens intermediários para estruturas de agregação de valor, envolvendo empreendimentos em cadeias que se iniciam nas fábricas de insumos e maquinaria e finalizam-se nas estruturas de varejo (GONÇALVES, 2005, p. 11). Além da estrutura técnico-produtiva, constituiu-se um amplo segmento de “agroserviços” voltado para todas as distintas cadeias produtivas do agronegócio, que vai desde aqueles vinculados a preparação e logística, até assistência técnica de alta especialização em pesquisa, desenvolvimento, mas também de intermediação, onde atuam grandes empresas exportadoras, ou de prestação de serviços financeiros, com a presença de trading companies, assessorias de comércio exterior, corretores de serviços financeiros, que fazem a ligação entre a estrutura produtiva e a negociação de papéis nas bolsas de valores e mercadorias. Além disso, M. S. Saes e R. Silveira destacam que a mais importante modificação no plano das cadeias agrícolas brasileiras ocorreu nos sistemas agroindustriais, depois de 1980, com reflexos na distribuição dos insumos e na coordenação entre a agricultura, a indústria de processamento e de varejo. Do lado da indústria de insumos, a concentração do mercado, a internacionalização das empresas e o desenvolvimento de pacotes tecnológicos integrados e associados com a biotecnologia induziram a construção de relações mais próximas entre fornecedores e seus usuários. Imbricado nesse processo, sobressai o novo papel das revendas de insumos e dos serviços adicionados aos produtos comercializados. Do lado do segmento processador, a crescente desnacionalização e a concentração da indústria de alimentos puseram fim, de forma explícita, à lógica arquitetada no início da industrialização brasileira, da divisão de papéis entre empresas nacionais e transnacionais (SAES e SILVEIRA, 2014, p. 298). 37 Mas não foi somente aí que a reestruturação produtiva operou. Deu-se também no âmbito da “agricultura familiar” que, progressivamente, foi plenamente integrada à lógica e dinâmica do agronegócio, como parte do mesmo processo de reorganização da economia política do agronegócio. A partir de 1994 – um ano após a fundação da Abag no Brasil - o Banco Mundial publicou o relatório Brazil: the management of agriculture, rural development and natural resouces, que afirmava que em lugar da reforma agrária, nos moldes historicamente constituídos no Brasil, uma melhor abordagem deveria ser a promoção de doações para auxílios na compra de terras, via mercado. Além disso, o desenvolvimento rural deveria integrar a agricultura familiar ao mercado. No mesmo ano, FAO e INCRA passaram a realizar uma ampla pesquisa – que seria publicada em 1996 – acerca do “Novo Retrato da Agricultura Familiar. O Brasil Redescoberto”. A partir disso, apareceram inúmeras pesquisas relacionadas ao tema, a exemplo de Ricardo Abramovay, “Paradigmas do capitalismo agrário em questão”; José Eli da Veiga, “O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica” e os dois volumes de Hugues Lamarche, “A agricultura familiar” (da qual participaram, entre outros, Maria Nazareth Wanderley), dado extrema relevância para a assim chamada “agricultura familiar”. Em 1995, FHC lança o Plano Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PLANAF), que no ano seguinte, passa a se chamar Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), integrando o universo dos assentados rurais de reforma agrária à genérica e funcional “agricultura familiar”, ramo dos agronegócios. Não à toa, a agricultura familiar se converteu em paradigma político. Sindicatos, federações e confederações de agricultores familiares integraram um conjunto de organizações de trabalhadores do campo, sob a direção, principalmente, da Contag e do núcleo agrário da CUT, que respaldaram o programa, contrastando a ideia de agricultura camponesa (...) (FIRMIANO, 2016, p. 65-66). Como salientou o autor, no mesmo ano de 1999, ao lado do que Guilherme Delgado chamou de “relançamento do agronegócio”, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), recém criado, consolidava, teoricamente, a categoria da agricultura familiar, com o documento Agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo 38 mundo rural. Política de desenvolvimento rural com base na expansão da agricultura familiar e sua inserção no mercado, que ficou conhecido como Novo Mundo Rural. Faltava, pois, operar-se as transformações necessárias para consolidação do que Firmiano (2016) chamou de “admirável novo mundo rural”, o que ficou a cargo dos governos do Partido dos Trabalhadores a partir de 2003. Se em 2001 FHC criou a Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), no interior do MDA, em 2006 Lula da Silva aprovou a Lei da Agricultura Familiar, “...que reconheceu a categoria social, definiu sua estrutura conceitual e passou a balizar as políticas públicas para este grupo social” (GRISA e SCHNEIDER, 2014, p. 127). Logo em 2003, como uma das ações estruturantes do Programa Fome Zero, Lula da Silva criou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), buscando articular a compra de alimentos da agricultura familiar e as ações de garantia de segurança alimentar para as camadas populacionais em situação de vulnerabilidade. O PAA desencadeou uma nova trajetória para os mercados institucionais para a agricultura familiar, fortalecida em 2009 com mudança no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a criação da Lei n. 11.947 que determinou que no mínimo 30% dos recursos federais para a alimentação escolar sejam destinados para a aquisição de alimentos da categoria social. Mais recentemente, em 2012, foi estabelecida mais uma modalidade ao PAA, que amplia as possibilidades de mercados. Trata-se da Compra Institucional, que permite aos estados, municípios e órgãos federais da administração direta e indireta adquirir alimentos da agricultura familiar por meio de chamadas públicas, com seus próprios recursos financeiros, com dispensa de licitação (GRISA e SCHNEIDER, 2014, p. 139). Os novos instrumentos de mobilização da agricultura familiar, como parte da consolidação dos agronegócios, não tiveram, assim, caráter de enfrentamento às formas de inserção do capital transnacional no campo. Tanto é assim que os pesados investimentos nos ramos produtivos do agronegócio saltaram na passagem do governo FCH para o governo Lula, simultaneamente ao abandono de qualquer perspectiva de reforma agrária no país – que à despeito do II Plano Nacional de Reforma Agrária encomendado por Lula à Plínio de Arruda Sampaio, nunca saiu do papel. Em termos de desembolso de recursos, para se ter idéia, se em 2002, FHC destinou cerca de R$ 4,5 bilhões, via BNDES, para a agropecuária, em 2004, com Lula da Silva, o 39 banco aportou R$ 6,8 bilhões, indicando a centralidade que os agronegócios passaram a ocupar sob os governos neodesenvolvimentistas. Além disso, o banco passou a atuar fortemente em companhias do setor: no caso do setor de papel e celulose, a participação do BNDES foi decisiva para que a Votorantim Celulose e Papel adquirisse a Aracruz, resultando na megacorporação Fíbria; já na agropecuária, a JBS é o caso mais emblemático, tendo recebido mais de R$ 1 bilhão de reais, apenas em 2009. Em 2011, das empresas que mais receberam recursos do banco, oito operavam na construção civil ou no setor do agronegócio, como Eldorado Papel, Ambev e Fíbria. (FIRMIANO, 2016, p. 91). Mas para, além disso, os governos Lula e Dilma, criaram um ambiente político- institucional que possibilitou a consolidação e expansão do agronegócio. Medidas, como veremos mais adiante, que foram a base para a aceleração da perda dos direitos e conquistas históricas da classe trabalhadora do campo, que se processam na atualidade. São elas: (a) a aprovação da Lei de Biossegurança, que liberalizou o ingresso dos transgênicos no Brasil; (b) as Medidas Provisórias 422, 432 e 458, que tornaram Lei em 2008 e 2009 e que regularizaram a grilagem de terras na Amazônia; e (c) o desmonte do Código Florestal, iniciado ainda em 2009, para citar apenas algumas. Com a crise que abateu severamente a economia brasileira, principalmente a partir de 2014, também a agricultura familiar passou a sofrer reveses, incluindo aí, a parca política de reforma agrária – como veremos mais adiante – praticada pelos governos de Lula e Dilma Rousseff. Na esteira de um conjunto de medidas de ajuste fiscal e orçamentário praticado pelo governo Dilma, no primeiro semestre de 2016, foram suspensos os programas públicos de atenção à agricultura familiar, tais como assistência técnica, programas de aquisição de alimentos e de construção de moradias nas áreas de assentamento, como ATER, PRONERA, Terra Forte, PAA, PNAE, Minha Casa Minha Vida Rural. Para se ter ideia, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – o mais importante instrumento de fomento à produção no âmbito da agricultura familiar dos assentamentos de reforma agrária – sofreu uma perda de mais de R$ 180 milhões, desabrigando cerca de 50 mil famílias, a partir de um Acórdão do TCU 775/2016, que bloqueou o cadastro de 578 mil famílias assentadas, sob a 40 alegação de supostas irregularidades entre assentados que não se enquadravam nos critérios do INCRA para receber o direito à terra1. Importante notar uma conjunção de elementos desfavoráveis aos trabalhadores assentados nesse período, pois, por um lado o governo Dilma já estava definhando quanto ao parcos recursos para reforma agrária, por sua política econômica voltada para o agronegócio, mas também pela crise econômica que se abateu com mais força a partir de 2014; somado a isso o acórdão 775/2016 do TCU ao bloquear praticamente a metade das famílias assentadas do país, também impediu que elas recebessem qualquer atendimento dos programas sociais ou tivessem acesso à políticas públicas, pois o seu direito de beneficiária, estava suspenso. Consequentemente os programas foram paralisando paulatinamente, exemplo disso é a ATER, a assistência técnica, cuja atuação das empresas contratadas por edital nos assentamentos, está expressamente vinculada ao atendimento de um determinado número de assentados beneficiários; com o bloqueio dos assentados, metade das famílias não pode ter sequer o direito ao atendimento e as empresas passaram a dispensar os trabalhadores técnicos. O acórdão 775/2016 piorou ainda mais a vida dos assentados, como veremos no capítulo 5, mas devido à intensa mobilização dos movimentos sociais e várias ações judiciais, tal acórdão foi suspenso e a maioria das famílias desbloqueadas por força de um novo acórdão do TCU 1976/2017, possibilitando ao INCRA a imediata retomada do processo de seleção de novas famílias ao PNRA, restabelecendo o acesso dos beneficiários às políticas públicas (mesmo aquelas que estejam sendo classificadas como irregulares), além disso as irregularidades devem ser tratadas caso a caso. Mas na prática, os programas sociais estão bloqueados por outro motivo: falta de orçamento. Mais adiante vou desenvolver isso melhor, mas importante destacar que tais ataques aos assentamentos colocam a pauta da luta diária destes trabalhadores em base muito distintas, pois o ponto principal deixa de ser a escola, o crédito ou a comercialização etc, passando a ser uma batalha política/jurídica pelo direito de existirem como assentados e não 1 O acórdão 775/2016 editado em abril de 2016 tem como base o relatório da CGU de junho de 2015, mas o assunto ganhou visibilidade pública através de matéria feita pela Globo, exibida em 03 de janeiro de 2016 no programa Fantástico, que ajudaria a criar um clima favorável na sociedade para o que viria meses depois que era o bloqueio das famílias assentadas. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=OBdDcnwA4SA. Acesso em: 10/01/2018. https://www.youtube.com/watch?v=OBdDcnwA4SA 41 serem criminalizados. Tal embate, nestes termos, leva a luta por reforma agrária para um campo institucional e burocratizante. Além de ficarem ainda mais expostos a processos de precarização, proletarização e várias formas de sujeição ao capital, como veremos neste trabalho. 1.2.1 Agronegócio e o “clima político” do golpe Em maio de 2016 a presidenta Dilma foi afastada do cargo e, em agosto do mesmo ano, um golpe se consolida com a aprovação do impeachment pelo Congresso Nacional, assumindo a presidência o seu vice, Michel Temer. A partir daí as medidas da contra reforma agrária se intensificaram ainda mais (o que tratarei mais adiante), bem como os projetos de apoio e sustentação ao agronegócio. A bancada ruralista, que representa 40% do congresso nacional, ganha ainda mais força para aprovação de seus projetos, ampliando a dominação do capital no campo. O governo de Michel Temer vai constituindo-se assim como um mix de continuidade das políticas adotadas pelos governos neodesenvolvimentistas em favor do agronegócio, mas, agregando um ritmo mais agressivo ao histórico processo de exploração do trabalho e dos recursos naturais à serviço do capital. Desta forma, o ritmo do choque e de rápida aprovação de suas medidas, estão ancorados no clima político de instabilidade que o golpe proporciona, impondo perdas significativas à classe trabalhadora num curto espaço de tempo, no qual a popularidade do governo junto à sociedade, não é fator preponderante.2 Faço a seguir uma síntese das principais medidas para o campo sob o contexto do golpe, ressalvando que aquelas mais relacionadas com os assentamentos tratarei no capítulo 5; outra ressalva é que uma boa parte delas tiveram início antes do golpe, mas cabe aqui destacar que o clima político criado, proporcionou um cenário ainda mais favorável para a sua execução. Um dos temas pautados pelos agentes do agronegócio, tem sido o da segurança jurídica sobre a exploração e o uso das terras, das águas salgadas e doces (incluindo os 2 O presidente Michel Temer debocha do fato de sua popularidade ter saltado 100% em níveis de satisfação, passando de 3%, em setembro, para 6%, ao final do ano de 2017. Ver: http://g1.globo.com/jornal- nacional/noticia/2017/12/temer-diz-que-pessoas-tem-vergonha-de-elogiar-o-governo.html. Acesso em: 02/01/2018. http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/12/temer-diz-que-pessoas-tem-vergonha-de-elogiar-o-governo.html http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/12/temer-diz-que-pessoas-tem-vergonha-de-elogiar-o-governo.html 42 aquíferos), dos ventos, do subsolo e da biodiversidade. Neste contexto é que deve ser entendida a Lei 13.465/2017, que trata da regularização fundiária urbana e rural, que entre tantos outros pontos, tem a função de legalizar a grilagem de terras em até 2.500 hectares em todos os estados que compõe a Amazônia legal, aprofundando as benesses ao agronegócio já contidas na lei nº 11.952/2009, aprovada a partir da MP458/2009 do governo de Lula da Silva. Outro aspecto da lei 13.465/2017 diz respeito à mercantilização da reforma agrária, conferindo títulos de domínio aos assentados e liberando a venda de lotes, como veremos no capítulo 5 sobre os assentamentos (CASA CIVIL, 2017a). Na mesma direção segue o PL 4059/2012, que visa desregulamentar a aquisição de terras para estrangeiros, o que em larga medida já ocorre de forma ilegal através das imobiliárias rurais transnacionais tal, como a Radar3 e outras, como veremos neste trabalho ao analisar o caso da expansão agrícola sobre a região do MATOPIBA. Existe ainda manifestação por parte da bancada ruralista em regulamentar o arrendamento de terras indígenas, o que aumentaria ainda mais a pressão do capital sobre estes territórios. (CANAL RURAL, 2018). Outro aspecto importante diz respeito às renegociações e perdão das dívidas do agronegócio. No dia 10 de janeiro foi sancionada a lei 13.606/2018, do Funrural, permitindo um abatimento de cerca de R$ 50 bilhões no fundo que custeia a previdência rural; além disso, várias empresas do setor tem dívidas bilionárias com o INSS, como é o caso da JBS, que sozinha deve R$ 2,4 bilhões. Em outubro de 2017, o presidente Michel Temer editou decreto que isenta os ruralistas em até 60% da dívida sobre multas ambientais, convertendo o valor correspondente em prestação de serviços. (BRASIL DE FATO, 2017). Em relação à questão ambiental, o PL 3729/2004 pretende flexibilizar o licenciamento ambiental, liberando os empreendimentos e obras da obrigatoriedade de realização e aprovação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), o que traria consequências ainda mais desastrosas para o meio ambiente e também para as comunidades que são diretamente afetadas por tais projetos. (id., ibid.). 3 Radar é uma empresa brasileira incorporadora de terras e imobiliária rural, ligada ao grupo Cosan, maior produtor de açúcar do Brasil. A Radar Foi criada em 2008 e apesar de ser uma empresa brasileira, seu maior acionista é o fundo de investimento TCGA (através da Mansilla Participações S/A). (ACTION AID, 2017). 43 Sobre os agrotóxicos, tramitam no congresso nacional, vários projetos que compõem o chamado “pacote do veneno”, entre eles o PL 6299/2002, de autoria de Blairo Maggi (atual Ministro do MAPA), que propõe a mudança das regras atuais sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem, a rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos. Na mesma linha, o PL 3200/2015, do deputado federal Luis Antonio Franciscatto Covatti (PP-RS), que veta o termo “agrotóxico” e o substitui por “fitossanitário”, além de criar a Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito) que será composta basicamente por integrantes do Ministério da Agricultura. Projetos que atendem diretamente os imperativos do capital, como Bayer, Monsanto, transnacionais produtoras de veneno que enfrentam restrições de comercialização na Europa, principalmente sobre o glifosato, justamente por conta dos graves riscos à saúde humana e ambiental. As empresas de agrotóxicos contam ainda com um incremento nos seus lucros devido à isenções e desonerações fiscais, como ocorrido no estado de São Paulo que, segundo a Defensoria Pública Estadual, deixou de arrecadar R$ 1,2 bilhão em 2015, por não taxar as operações envolvendo agrotóxicos. Segundo dados disponíveis na Receita Federal, em 2015 foram arrecadados R$ 826 bilhões no total de impostos, provenientes de todos os setores da economia brasileira, destes, o setor da agricultura e pecuária contribuiu com apenas R$ 1,92 bilhão, o que corresponde a 0,23% do total. Em 2015, segundo a CNA, o Brasil exportou o equivalente a US$ 59,7 bilhões. Com a cotação que chegou a R$ 4,00, o valor exportado, corresponde a R$ 238,8 bilhões. Mas recolheu, segundo a Receita Federal R$ 84.827,78. (...) Outra farra é o Imposto sobre a Propriedade Territorial (ITR), criado para auxiliar o financiamento de políticas públicas como a reforma agrária. O que o país arrecadou em 2015 não chegou a R$ 1,3 bilhão. Em números redondos, segundo a Receita Federal: R$ 1.232.506.706. De municípios onde Blairo Maggi tem fazendas, no Mato Grosso, vieram R$ 4,2 milhões de Campos Novos, e R$ 1,7 milhão de Rondonópolis.” (VIOMUNDO, 2017). 44 Em relação aos transgênicos, o PL 827/2015 altera a legislação atual e obriga os produtores rurais a pagar royalties aos pesquisadores enquanto utilizarem as sementes melhoradas geneticamente. O PL 34/2015 pretende retirar a obrigatoriedade de rótulo com identificação de produtos que contenham transgêncicos. Gerson Teixeira (2017), aponta limites nas empresas de OGMs (organismos geneticamente modificados), oficialmente em uso no Brasil desde 2003, em cumprir suas duas principais promessas – redução do uso de agrotóxicos e aumento da produtividade, prova disso é que, (...) [o] comércio internacional de agrotóxicos [saltou] de US$ 22 bilhões em 1996, para US$ 70 bilhões no ano de 2014. Um crescimento de 218% no comércio desses produtos, enquanto no mesmo período, de acordo com os dados da FAO, a produção mundial de cereais passou de 2 bilhões, para 2,6 bilhões de toneladas, o que equivaleu a um crescimento de 27%. (id, ibid.). No Brasil, As vendas de agrotóxicos no Brasil cresceram a uma taxa média anual de 11,6%, enquanto a produção brasileira de grãos teve crescimento de 4,6% ao ano. Portanto, a taxa de crescimento das vendas internas de agrotóxicos foi mais de duas vezes superior à taxa de crescimento da produção de grãos no período de 2003 a 2014. (id., ibid.). As medidas jurídicas também visam a ampliação da dimensão da criminalização dos movimentos sociais, como o PL 5065/2016, que pretende alterar o artigo 2º da Lei 13.260/2016, conhecida como a lei do terrorismo sancionada pela presidenta Dilma a pretexto dos jogos olímpicos no Rio de Janeiro em 2016; o artigo vigente busca excluir os movimentos sociais da tipificação de terrorista, cedendo à época à pressão dos setores de esquerda; o PL 5065/2016 pretende estender a tipificação de terrorismo à “… prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, ou por motivação ideológica, política, social e criminal (…) expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública, a incolumidade pública e a liberdade individual, ou para coagir autoridades, concessionários e permissionários do poder público, a fazer ou deixar de fazer algo”. Indo além, o deputado Jerônimo Goergen, do Partido 45 Progressista do Rio Grande do Sul, apresentou em fevereiro de 2018, PL que também altera, se aprovado, o artigo 2º da lei 13.260/2016, mas com uma redação ainda mais direta, afirmando que não se aplica à exclusão de terrorismo, os movimentos sociais do tipo MST e MTST como sustentado no seu discurso de apresentação do projeto na Câmara: “não se aplica à hipótese de abuso do direito de articulação de movimentos sociais, destinado a dissimular a natureza dos atos de terrorismo, como os que envolvem a ocupação de imóveis urbanos ou rurais, com a finalidade de provocar terror social ou generalizado”. (CONGRESSO EM FOCO, 2018). Há um arcabouço legal aplicado historicamente contra os movimentos sociais do campo, que resulta em constantes processos de prisão, perseguição e resistência à prisão. Mas chamo atenção para a utilização contra os movimentos sociais de uma legislação voltada ao combate à corrupção e ao crime organizado de tráfico de drogas e armas: a Lei da Organização Criminosa (Lei 12850/13) – proposta pela senadora Serys Slhessarenko - PRB/MT. (CASA CIVIL, 2018). Nela, as características de uma organização criminosa são: composição de no mínimo quatro pessoas; existência de hierarquia (estruturalmente ordenada); divisão de tarefas; ser formal ou informal, tendo como objetivo central obter vantagem. A Lei prevê pena de reclusão de três a oito anos (agravada para quem exercer comando, mesmo que não pratique diretamente os atos). Apesar da sexta turma do STJ, por unanimidade, ter seguido o voto do relator, ministro Sebastião Reis, que defendeu a legitimidade dos movimentos populares e desmontou a tese de que o MST é uma organização criminosa, face ao julgamento de militantes do movimento sem terra de Goiás, a lei 12850/13 continua sendo aplicada contra os movimentos sociais. É o caso do processo judicial movido em Duartina – SP, por João Baptista Lima Filho, o coronel Lima, amigo de Michel Temer (FOLHA/UOL, 2018c). A ação judicial foi motivada pela ocupação do MST na fazenda Esmeralda, município de Duartina, em maio de 2016. Com a ocupação, o MST denunciava que a fazenda pertencia a Michel Temer (não declarada) e que o coronel Lima era um “proprietário laranja”; além disso, denunciava o poder dos ruralistas por traz do golpe e as inúmeras violações praticadas na propriedade. (MST, 2018a). Outra aplicação jurídica contra os movimentos sociais tem sido a lei da autotutela: trata-se de uma interpretação do artigo 1210, do Código Civil, (JUS/BRASIL, 2018a) que reza sobre a possibilidade de uso de força própria para restituição ou manutenção da posse em 46 caso de bens particulares. A interpretação que foi aplicada primeiramente no estado de São Paulo, pelo então Secretário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes (atual ministro do STF), face às ocupações das escolas por estudantes secundaristas é de que o mesmo artigo 1210 pode ser utilizado para justificar o uso da polícia militar para a desocupação de prédios ou áreas públicas, na “defesa” de bens públicos. (G1, 2018). O despacho 193/2016 da PGE/SP – Procuradoria Geral do Estado corrobora com a mesma interpretação e dá providências para sua aplicação. (PGE, 2018). Com isso, o Estado entende que não é necessário mover um processo judicial de reintegração de posse e a própria polícia militar pode fazer o despejo sem mediações da justiça, ou mesmo de outros agentes – conselho tutelar, serviço de saúde e assistência social – necessários em situações que envolvem pessoas e uma questão social que motivou a ação de reivindicação. A tese da autotutela nacionalizou-se e tem sido uma das responsáveis por colocar as famílias sem terra, sem teto, estudantes e outros, frente a frente com a polícia, numa exposição à conflitos diretos, sem nenhum tipo de mediação institucional. (BRASIL DEFATO, 2018a). Ainda sobre a criminalização, a CPI do congresso que investiga o INCRA e a FUNAI (número 2), concluiu seu relatório no final de 2017, pedindo o indiciamento de 100 lideranças populares do campo e diversos apoiadores. E na linha da flexibilização do estatuto do desarmamento, o PL 6717/2016 trata da liberação de porte de arma para proprietários rurais. (MST, 2018b). Os projetos em tramitação no Congresso Nacional que intensificam a exploração do trabalho no campo, tais como o PL 6442/2016 que é mais uma tentativa de legalizar o trabalho escravo, os impactos da reforma trabalhista para o campo e o decreto do presidente Temer para a flexibilização do conceito de trabalho análogo à escravidão, serão abordados no capítulo 3 que trata do controle totalizante do capital e a degradação do trabalho no campo. 1.3 O CONTROLE TOTALIZANTE DO CAPITAL E O SENTIDO DA REFORMA AGRÁRIA PARA OS TRABALHADORES DO CAMPO E DOS CENTROS URBANOS O agronegócio, como expressão da reestruturação produtiva, ocupa lugar central na tarefa que o Brasil desempenha como plataforma de valorização do capital, o que só 47 fortalece a importância de relacionar a questão agrária à análise sobre a totalidade que envolve as lutas de classes na atualidade, compreendendo sua dinâmica e como se movimentam as forças antagônicas do capital e do trabalho. Mais ainda, pelo próprio processo histórico do Brasil, marcado pela invasão européia, saque de riquezas naturais, genocídio indígena, 300 anos de escravidão negra/africana, expropriação e desterritorialização social/cultural, migrações forçadas, precarização do trabalho, generalização da proletarização, trabalho escravo moderno (análogo à escravidão), violência no campo – perseguições, pistolagem, massacres e subsunção do trabalho ao capital transnacional (no período mais recente). Todos esses elementos, constitutivos da classe trabalhadora brasileira já seriam suficientes para não isolar a questão agrária dos dilemas que envolvem as trabalhadoras e os trabalhadores na atual quadra histórica. Mas, para além disso, a questão agrária como expressão da completude do capital atinge diretamente a reprodução do conjunto da sociedade como força destrutiva, imersa em sua crise estrutural. É possível citar alguns exemplos: 1) escassez de água em centros urbanos – segundo a FASE (2017), a chamada crise hídrica que de tempos em tempos afeta determinados estados, tem relação direta com o desmatamento do cerrado, pois tal bioma é considerado o berço das águas e está localizado sobre três grandes aquíferos, Guarani, Urucuia e Bambuí. O principal responsável pelo desmatamento do cerrado é o agronegócio que avança com os monocultivos de commodities (principalmente soja) sobre a região do MATOPIBA (formada por parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). 2) intoxicações por agrotóxicos: de acordo com a Defensoria Pública de São Paulo o estado é o maior consumidor de agrotóxicos do Brasil, e estudo feito a partir do cruzamento de dados do SUS com os das pulverizações aéreas e uso de agrotóxicos nas regiões de monocultivos agrícolas, apontam indícios de que o agronegócio esteja na causa e agravamento de vários distúrbios crônicos e agudos; na cidade de Franca, por exemplo, uma mulher gestante tem 50% a mais de possibilidades de ter um filho com malformação do que uma moradora de Cubatão, onde os índices de poluição são altíssimos; e na região de São José de Rio Preto, as taxas de mortes causadas por câncer de fígado chegam a 20 pessoas para cada 100 mil, enquanto que no estado de São Paulo, a média é de 6,94 (REDE BRASIL ATUAL, 2018a). 3) fome, falta de acesso à comida, padronização da alimentação, e obesidade: segundo relatório de 2017 da FAO sobre segurança alimentar e nutricional mundial, 815 milhões de 48 pessoas passam fome, 2 bilhões tem sobrepeso e 600 milhões estão obesas (FASE, 2018); o que demonstra algumas das mazelas do sistema do capital que, de um lado inviabiliza as possibilidades de reprodução social e de condições para produção ou aquisição de alimentos e, por outro, destrói hábitos alimentares e culturais, estimulando o consumo de produtos ultraprocessados, impedindo o acesso da população mais pobre a alimentos in natura e proliferando desertos nutricionais como é possível ver no documentário Fonte da Juventude (2017), que retrata tal situação numa grande área periférica da cidade de São Paulo. Problemas que só agravam a dramática condição dos trabalhadores urbanos expostos à segregação social. (...) desigualdades brutais, como a permanência de favelas em todo o país, o que sustenta a discriminação por local de habitação, incidindo tanto no acesso a empregos, quanto em condições de transporte e, finalmente, na manutenção da própria vida (tiroteios e invasões policiais são frequentes nessas regiões, com enorme número de assassinatos e mortos por bala perdidas, inclusive entre crianças). (FONTES, 2017, p. 160).4 Questões que derivam de uma intensa concentração de riquezas e consequente agravamento social, cujo terreno passa pelas disputas fundiárias urbanas, marcadas pela especulação imobiliária, tais como a gentrificação5, processo de expulsão dos pobres de áreas centrais, mantendo-os nas periferias nos morros ou nas favelas (LUND e SALLES, 1999), para valorização imobiliária e avanço dos enclaves fortificados, ou seja, condomínios e espaços de fruição pública dentro de locais privados, como os shoppings, que foram proliferados por todo país a partir da década de 1980, impulsionado pela cultura do medo. Outra face da disputa territorial urbana tem relação direta com o agronegócio, especialmente em regiões de expansão dos empreendimentos imobiliários. Nenhuma novidade na transformação de terra rural em urbana, mobilizando artifícios institucionais através de mudanças nas legislações dos municípios referentes ao uso e ocupação do solo; 4 A este respeito, foi decretada uma intervenção federal no estado do Rio de Janeiro – Decreto 9288/18 - em 16 de fev. de 2018. O decreto prevê que um general do exército assuma o comando da segurança pública no lugar do governador do estado. Tal medida, em nome do combate ao crime organizado deve intensificar à guerra aos pobres e negros, principalmente os que vivem em comunidades /favelas. Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/21/politica/1519238698_373309.html. Acesso em: 25/02/2018. 5 O termo foi cunhado por Neil Smith, professor de Geografia e Antropologia da Universidade da Cidade de Nova York. Ver: https://raquelrolnik.wordpress.com/tag/gentrificacao/. Acesso em: 18/02/2018. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/21/politica/1519238698_373309.html https://raquelrolnik.wordpress.com/tag/gentrificacao/ 49 mas, a formação de grandes “bancos de terras” na atualidade por empresas incorporadoras, cada vez mais monopolizadas, chama a atenção. Entre as grandes incorporadoras podemos destacar a Cyrela, que é a que possui o maior banco de terrenos no Brasil, equivalentes a um valor geral de vendas de 57,1 bilhões em 2012 (Cyrela, 2012). Alguns destes terrenos estão localizados nas imediações do sistema Anhanguera – Bandeirantes. (SUAREZ, 2014, p. 96). E o grupo seleto de incorporadoras imobiliárias, com capital aberto na bolsa de valores, estende as vantagens lucrativas sobre a especulação aos proprietários de terra, como explica Pedro Suarez (ibid.). A nova relação se dá da seguinte forma: ao abrirem seus capitais, as incorporadoras oferecem, através do banco de terras, uma garantia aos investidores que terão os retornos previstos. Esse é um novo e significativo motivo para a expansão urbana sobre áreas rurais. Além disso, este mecanismo ainda tem a vantagem de que estas terras são adquiridas por permuta: as incorporadoras estabelecem parcerias com os proprietários de terra, que compartilham parte das receitas dos empreendimentos, reduzindo assim, os investimentos à vista e aumentando as taxas de retorno. Em zonas de expansão urbana, a especulação neste patamar é um atrativo para proprietários rurais, que preferem mudar seus negócios de “hectare” para “metro quadrado”; com isso deixam de fazer arrendamentos rurais ou monocultivos diretos. Essa parece ser a tendência seguida por vários proprietários de terra na cidade de Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo que, após longo período de ostentação do título de “Califórnia brasileira”, na década de 1980/1990 e depois com a reestruturação produtiva, “capital nacional do agronegócio”, não possui atualmente nenhuma usina de etanol/aç