UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES MARIANO BARONE APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO EM ATELIÊ SÃO PAULO 2021 MARIANO BARONE APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO EM ATELIÊ Trabalho de Conclusão de Curso apresenta- do à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” como requisito parcial para ob- tenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol SÃO PAULO 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. B265a Barone, Mariano, 1985- Apontamentos sobre o processo de trabalho em ateliê / Mariano Barone. - São Paulo, 2021. 107 f. : il. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Coorientadora: Prof.ª Dra. Renata Funcia De Bonis Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte. 2. Instalações (Arte). 3. Ateliês de artistas. 4. Desenhos. 5. Pintura. I. Spaniol, José Paiani. II. Bonis, Renata Funcia De. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 700 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 MARIANO BARONE APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO EM ATELIÊ Trabalho de Conclusão de Curso apre- sentado à Universidade Estadual Pau- lista “Julio de Mesquita Filho” aprova- do como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Aprovada em 17 de novembro de 2021 BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Prof. Dr. JOSÉ PAIANI SPANIOL (Orientador) ________________________________________________________ RENATA DE BONIS Doutora em Artes (UNESP) AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador José Spaniol pela paciência e pelo apo- io durante o desenvolvimento do trabalho; à Renata por ter feito parte da ban- ca, pelas trocas e o olhar atento ao longo da graduação; à Vera por toda a aju- da e aprendizado nesses quatro anos e aos meus colegas pela parceria. RESUMO Esse TCC procura abordar um processo de busca e experimentação com desenho, pintu- ra, técnicas de reprodução e instalação que tomou lugar entre 2016 e 2019, como parte do Bacharelado em Artes Visuais do Instituto de Artes da Unesp. Embora haja uma carga considerável de aulas teóricas, e obviamente isso faz parte do pro- cesso como um todo, meu foco aqui é no trabalho em ateliê. A convivência com colegas no dia a dia, os grupos de estudo, os projetos conjuntos e as residências tornam-se um aspecto fundamental no enriquecimento da experiência e influenciam a prática de forma direta. Palavras-chave: Processo. Ateliê. Desenho. Pintura. Instalação. ABSTRACT This Final paper seeks to address a process of searching and experimenting with drawing, painting, reproduction and installation techniques that took place between 2016 and 2019, as part of the Bachelor’s Degree in Visual Arts from the Arts Institute of Unesp. Although there is a considerable load of lectures, and obviously this is part of the process as a whole, my focus here is on studio work. Living with colleagues on a daily basis, study groups, joint projects and residencies become a fundamental aspect in enriching the experience and directly influence the practice. Keywords: Process. Studio practice. Painting. Drawing. Installation. SUMÁRIO 1.Introdução...............................................................................................09 2. Borrão, matéria, acaso, intervalo, fragmento...........................................................10 3. Registros de paisagem............................................................................................20 4. Desenhos...................................................................................................................31 5. Técnicas de reprodução de imagens.....................................................................42 6. Experiências com pintura.......................................................................................54 7. Lonas......................................................................................................................67 8. Instalativos..............................................................................................................77 9. Conclusão.............................................................................................................109 Referências..........................................................................................................110 9 1. Introdução Para essa pesquisa analisei registros de trabalhos, processos e anotações feitas sobre a mi- nha prática no ateliê do Instituto de Artes ao longo do período da graduação, de 2016 a 2019, procurando entender quais são meus interesses ao trabalhar com arte nas diversas técnicas pelas quais tenho transitado. A partir disso pesquisei textos e trabalhos de artistas que me in- teressam, procurando contextualizar as minhas experimentações no ateliê e extrair conceitos que tangenciem a minha prática, e assim, assinalar apontamentos sobre esses quatro anos de trabalho e experimentação nos ateliês do Instituto. Começo abordando os conceitos de borrão, matéria, acaso, intervalo e fragmento enquanto eixos que percebo são constantes na minha prática e relaciono com a prática de outros ar- tistas, como Cy Twombly, Abraham Cruzvillegas e Bebaprafrente, partindo de textos de ou- tros autores, como o do Roland Barthes sobre Twombly, e também entrevistas dos próprios artistas. Além disso, pesquiso em textos adicionais, conceitos que me interessam aprofundar como o de Ma, na estética japonesa e o de fragmento, na arquitetura não planejada. Posteriormente analiso, a partir de registros pessoais, os trabalhos que desenvolvi nas ma- térias práticas do Bacharelado procurando relacioná-los com o trabalho dos artistas previa- mente pesquisados, e por fim busco entender aonde a minha prática está apontando e qual a potencialidade poética dela, procurando deixar em aberto as possibilidades e os caminhos que possam enriquecê-las. 10 2. Borrão, matéria, acaso, intervalo, fragmento “Borrar” em espanhol é apagar. A minha primeira experiência com um “borrão” provavelmente tenha sido ao tentar apagar com borracha alguma coisa desenhada com lápis ou caneta em um papel, quando criança. Mas o que me fez olhar de novo pra esse tipo de acontecimento uma vez adulto, foi o trabalho de Cy Twombly. O que mais me chamou a atenção no seu trabalho foi o traço tremido, frágil como se fosse um desenho feito sem vontade ou intenção de desenhar. Os borrões, as manchas e um monte de marcas, linhas e texturas fazendo contrapontos, se sobrepondo e ritmando um movimento no qual coisas novas aparecem a cada olhar. Ao mesmo tempo, os gestos e escolhas de Twombly estão articulados na composição de maneira que nada parece estar em excesso ou em falta, o que na época (que entrei em contato com o seu trabalho pela primeira vez) me fez pensar que na verdade era um procedimento muito técnico e cerebral, apesar da aparência expressiva. Fiquei muito instigado por esta ideia de aparente aleatoriedade. E como as falhas, os erros, os borrões, o apagamento e a sobreposição de camadas geram um clima de espontaneidade e urgência. No entanto, Twombly me parece obsessivo e rigoroso no ritmo repetitivo com o que as marcas são aplicadas. A partir desse interesse, em 2015 entrei em contato com um texto de Roland Barthes sobre Cy Twombly chamado “Sabedoria da Arte”, no qual o autor sugere que um trabalho de pintura seja encarado como “um tipo de teatro tradicional”. Ele explica que sempre há algo aconte- cendo no quadro, seja lá o que for, e após a experiência de depara-nos com ele, nos vemos transformados como espectadores. A partir disto, Barthes lança mão do vocabulário teórico do teatro grego e identifica no trabalho de Twombly cinco tipos de acontecimento: o fato (prag- ma), a coincidência (tyché), a saída (telos), a surpresa (apodeston) e a ação (drama). Destes, senti interesse pelos dois primeiros, uma vez que abordam as questões matéria e acaso. Barthes diz: Twombly nos impõe seus materiais não como algo que servirá a um pro- pósito, mas como uma matéria absoluta. (BARTHES, 1979. p. 54-77) O Fato (Pragma) O lápis, o óleo, e o papel no trabalho de Twombly não são apenas instrumentos ou materiais, eles são matéria. Barthes afirma que a matéria se manifesta como ela é, não pelo seu peso, mas pela sua leveza, ao se referir à maneira como Twombly usa o lápis, sem apertar ou pres- sionar a matéria contra a tela, mas “deixando-a pousar-se distraidamente (...)”. O artista, por- tanto, se faz de um repertório de gestos como o rabisco, a mancha e os borrões que, segundo Barthes, mostram a matéria como fato em si. Ela é o próprio acontecimento através do qual é colocada na superfície da tela ou do papel, a matéria, nesse caso, não tem a “obrigação” de representar um conteúdo ou símbolo a priori. Além disso, Barthes expressa também que por causa desses gestos resultarem em uma aparência “suja”, a verdade das coisas estaria não no seu estado virgem, novo ou limpo, mas no próprio dejeto, na matéria deformada, torcida, degradada. É como se o grafite ou o óleo encontrassem sua expressividade “original” no erro, no acidente e na falha. 11 Figura 1. Cy Twombly, Bay of Naples, óleo, giz de cera e lápis sobre tela, 1961 A coincidência (Tyche) Sobre o segundo acontecimento, a coincidência, Barthes identifica na obra de Twombly dois movimentos. O primeiro é a sensação de algo sendo jogado na tela, (que ele chama de “jeté”), onde o autor argumenta que no ato de atirar, se existe uma decisão consciente de fazer a ação, o resultado é indeterminado: “ao lançar, sei o que faço mas não sei o que produzo”, o resultado dessa ação é dado pelo acaso. O outro movimento é a “aparência de dispersão”, o espaçamento, o respiro entre elementos que há nas pinturas do artista, que remetem à ideia de vazio. Por fim ou autor liga estes dois aspectos ao conceito de “raro” enquanto estado que, segundo sua raiz em latim, ‘rarus’, significa “(...) que apresenta intervalos ou interstícios, espalhado, poroso, esparso (...)”, o que configura a noção de espaço na pintura do Twombly, um espaço feito de vazios, frequentemente associado a um ponto de vista aéreo, que Barthes relaciona à noção de intervalo, “fundamental na estética japonesa”. O acaso aqui é construído através da linguagem pictórica do artista, que articula signos e marcas na tela com a intenção de chegar nessa sensação. 12 Figura 2. Cy Twombly, Olympia, óleo, giz de cera e lápis sobre tela, 1957 13 Refletindo no acaso como um procedimento recorrente nas artes visuais, penso no traba- lho ‘Reorganizações Urbanas’, da dupla de artistas Bebaprafrente, conformada por Bruno Baptistelli e Gustavo Prafrente, que atuou em centros urbanos como São paulo e Curitiba. Considero que no seu trabalho, o acaso acontece de forma mais direta e menos mediada e não como algo ao que se quer fazer referência a partir de certos procedimentos, mas como algo dado que acaba por ser determinante enquanto escolha (ou não-escolha) de materiais e resultado formal das experiências. A pesquisa, que ocorreu entre 2008 e 2010 nas cidades de São Paulo e Curitiba, culmina numa publicação que conta com uma série de fotografias onde são registrados o antes e o depois de situações nas quais acúmulos de entulho, lixo e material de construção encontrados em caçambas ou na calçada, são rearranjados. Em uma das entrevistas que fazem parte da publicação, Gustavo Prafrente comenta sobre seu processo de trabalho: (...) penso que todo processo é algo que tem a função de nos revelar, de coloca-nos em contato com nós mesmos (...) antes que eu soubesse algo sobre o que estava fazendo, eu me pus a fazer aquilo para descobrir o porque faço as coisas no mun- do. Foi um processo de descoberta do meu querer e de exercício de uma liberdade perante à vida, perante a situações que eu encontrava na vida... estou falando que se colocar a fazer é muito mais um mecanismo para descobrir qual é a minha von- tade, do que executar uma ideia que tinha em mente. (BEBAPRAFRENTE, 2010) Percebo aqui o caráter lúdico da busca, e como o percurso pela cidade, aparentemente alea- tório, e os materiais achados de maneira espontânea, vão agregando camadas ao trabalho a partir de reorganização de alguns elementos que acabam por modificar as situações encon- tradas. Diferentemente da dupla, cujo trabalho in situ é efémero em sua materialidade, o artista mexi- cano Abraham Cruzvillegas desloca estes materiais-achados para dentro do ateliê e constrói, partindo do princípio da bricolagem, obras escultóricas e instalativas onde estruturas são erguidas com placas de madeira e sarrafos que, amarrados com corda ou arame e enfeita- dos por objetos de menor escala que parecem mini-gambiarras, aparentam estar prestes ao colapso. Figuras 3-4. Registros de Reorganizações Urbanas, São Paulo e Curitiba, 2008 - 2010 14 Figuras 5-10. Registros de Reorganizações Urbanas, São Paulo e Curitiba, 2008 - 2010 15 Figuras 11-15. Registros de Reorganizações Urbanas, São Paulo e Curitiba, 2008 - 2010 16 A expressão “atado con alambre” (semelhante a “feito a facão” no português), é utilizada informalmente na Argentina para se referir a algo feito de improviso, de maneira precária e estrutura instável, com o material ao que se tem disposição no momento. No livro “Estética da ginga”, a autora Paola Berenstein Jacques diz: O acaso é parte integrante da ideia de bricolagem; é o incidente, ou seja, o pequeno acontecimento imprevisto, o “micro-evento”, que está na origem do movimento. Bri- colar é, então, ricochetear, enviesar, zigue-zaguear, contornar. O bricoleur, ao contrá- rio do homem de artes (no caso, o arquiteto), jamais vai diretamente a um objetivo ou em direção à totalidade: ele age segundo uma prática fragmentária, dando vol- tas e contornos, numa atividade não planificada e empírica. A construção com pe- daços de todas as proveniências, a bricolagem, será, portanto, uma arquitetura do acaso, do lance de dados, uma arquitetura sem projeto. (JAQUES, 2003. p. 24-25) No México esse tipo de arquitetura se denomina “autoconstrucción”, e faz parte da experiên- cia de vida do Cruzvillegas, que cresceu em um assentamento periférico ao Distrito Federal chamado Ajusco, onde a ocupação da terra é feita de maneira irregular e sem planejamento, e o morador-não-arquiteto recolhe na cidade restos de materiais de construção para erguer um abrigo provisório que irá edificando ao longo do tempo à medida das suas necessidades e disponibilidade de recursos. O artista se apropria desse termo com a ideia, segundo ele, não de representar esse tipo de modalidade de construção, mas explorar sua potencialidade poética, ativando a dinâmica da “autoconstrucción” a modo de trazer atenção em questões políticas sobre a ocupação da ter- ra, os tecidos sociais e a força da autogestão de uma comunidade. Tanto na sua pesquisa como na dos Bebaprafrente, o que determina a disponibilidade de material para a feitura do trabalho é o acaso. Aqui, a matéria prima não é aquela matéria que, através dum gesto ou procedimento do artista, alcança seu estado verdadeiro, sua essência que jaz no dejeto dela mesma, como assinala Barthes sobre o trabalho de Twombly. O movi- mento é outro, o gesto do artista parece estar no olhar sobre a cidade e propor o rearranjo de uma situação dada, ou mesmo no resgate de dejetos produzidos pelo descarte nos grandes centros urbanos, e a vontade de ressignificá-los. Assim, podem ser levantadas questões so- bre a nossa relação com estes materiais, com o lixo e a descartabilidade de objetos de con- sumo produzidos em escala industrial. 17 Figura 16. Abraham Cruzvillegas, The Autoconstrucción Suites, Munique, 2014 Figura 17. Abraham Cruzvillegas, autodestrucción4: demolición The Call Up, 2014 18 Figura 18. Abraham Cruzvillegas, The Autoconstrucción Suites, Munique, 2014 Figura 19. Abraham Cruzvillegas, autodestrucción4: demolición Career Opportunities, 2014 19 Acredito que essa ressignificação acontece ao serem realocados fragmentos de estruturas e construções para um outro espaço e tempo, o do próprio fragmento. É como se ao tirar um pedaço de uma coisa, esse pedaço, isolado do seu contexto, deixa um buraco, uma descon- tinuidade de onde ela foi retirada, uma interrupção, e o pedaço em si, a essência da coisa, tem um tempo contínuo, infinito, suspenso. É um intervalo, a noção apontada por Barthes enquanto ponto de encontro entre a ideia de vazio e a de acaso no trabalho de Twombly, e denominada pela estética japonesa como “Ma”: Ma significa vazio, espaço, tempo ou pausa e sua origem está cor- relacionada às ideias de transitoriedade e incompletude, características da es- tética Zen-budista. Mais do que um conceito, ma é um modus operandi na vida cotidiana japonesa, que ilustra um intervalo de espaço-tempo dis- ponível para a materialização de eventos em potencial, em que infinitas combi- nações sígnicas podem acontecer. (MENEGHETTI; ARANTES, 2019, p. 1) Existe uma tensão entre o conceito de fragmento e o de fragmentário. O fragmento é algo fechado nele mesmo, um pedaço extraído de algo do qual não faz mais parte. Acontece então uma interrupção, um corte na continuidade de algo do qual é retirado um fragmento. Ao mesmo tempo, por ficar isolado do todo ao qual pertencia, o fragmento encerra nele mesmo um tempo próprio, como se fosse um looping infinito, uma vez que não existe mais uma continuidade, não só temporal como física, com o todo do qual ele foi retirado. Quando vemos algo do qual uma parte foi tirada, percebemos uma falta. Essa falta, esse buraco, esse espaço vazio, re- presenta uma interrupção na existência daquilo, que não está completo. Já a parte, o pedaço que foi tirado, não necessariamente faz mais referência àquilo do qual fazia parte, mas, isola- do e recontextualizado, se encerra em um tempo próprio que, por falta de continuidade, fica se repetindo infinitamente. Portanto, algo fragmentário é algo que admite sucessivos fragmentos e nunca está completo, ou pelo menos aparenta estar inacabado. Podemos pensar então, que tanto o trabalho Reorganizações Urbanas como a obra de Cruzvillegas, lidam com a questão do fragmentário, uma vez que aparentam estar ou estão de fato inconclusos, inacabados. No caso da pesquisa dos Bebaprafrente, sabemos que pelo fato de estarem no espaço pú- blico e serem feitos do próprio entulho achado na rua, os trabalhos serão alterados e por fim deixarão de existir. No caso de Cruzvillegas, 2015, as coisas inacabadas carregam para ele uma “esperança otimista de serem concluídas”. 20 3. Registros de paisagem Considero a ideia de “paisagem cotidiana” como a construção duma paisagem a partir da experiência corriqueira do dia a dia. Aqueles trajetos memorizados, quase automáticos, são povoados de formas que viram fantasmas, resíduos na retina cujo contorno é reforçado a cada vez que o mesmo caminho é repetido. São imagens que, ao persistirem, acabam virando motivo de representação - se é que posso falar do meu desenho enquanto representação de algo externo a ele mesmo. Até a minha vinda pra São Paulo em 2009, morei em Santa Fe, capital da província do mesmo nome, no interior da Argentina. O bairro Guadalupe, sede da Basílica da Virgem de Guadalu- pe, padroeira da cidade - é dividido em dois pelos trilhos do trem. Ao Leste das vias, o bairro se estende até a Laguna Setúbal, uma lagoa com calçadão e praia de água doce, numa área residencial. Do outro lado, Guadalupe Oeste vai até a Av. Aristóbulo del Valle, que traça o limite com a periferia da zona Norte da cidade. Eu morava a duas quadras dessa avenida e meus pais ainda moram lá. Em junho de 2016 numa viagem pra Santa Fe, fiz uma série de caminhadas pelo bairro na hora da “siesta” (entre 13h e 15h, o horário em que menos frio faz no dia) com o intuito de fotografar aquelas situações que sempre fizeram parte do meu cotidiano, mas nunca havia registrado. Maioritariamente fachadas de casas do bairro, algumas abandonadas, outras em constante transformação e muitas inacabadas. Nesses deslocamentos, o registro fotográfico funciona como uma sequência de anotações sobre detalhes que me chamam a atenção. O recorte pictórico que se dá através da câmera, chapa e fragmenta a vivência da paisagem, alinhavando possíveis narrativas-percursos que formam um imaginário que faz referência a algo distante, de um tempo passado. Em algum ponto, é um exercício de coleta de dados que podem vir a ser úteis em algum mo- mento. Caçar situações efêmeras e aleatórias, desdobramentos urbanos e arquitetônicos não planejados, seja uma obra abandonada onde o mato tomou conta do terreno ou caixotes de feira empilhados numa esquina. Na série de fotos feitas em Santa Fe, o recorte se limita a fachadas de casas do bairro, num raio de quinze quadras (todas de 100 m de lado, organizadas de maneira ortogonal) partindo da casa onde eu cresci. Olhando à distância - não só geográfica como temporal, identifico um interesse pela ideia de precariedade, pelo rudimentar, por superfícies planas com texturas, por paletas de cores e pelo ordenamento de planos numa composição, sendo estas últimas ques- tões próprias da pintura. Mas também, pelo fato de ter circulado por essa área a diariamente durante os primeiros 22 anos da minha vida e saber exatamente onde fica cada uma dessas casas, penso nelas como pontos num mapa mental e o percurso feito para fotografá-las como linhas entre um ponto e outro, questões que considero têm mais a ver com desenho. 21 Figura 20. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 22 Figuras 21-22. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 23 Figuras 23-24. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 24 Figuras 24-25. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 25 Figuras 26-27. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 26 Figuras 28-29. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 27 Figuras 30-31. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 28 Figuras 31-32. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 29 Figuras 33-34. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 30 Figuras 35-36. Bairro Guadalupe Oeste, Santa Fe, Argentina, 2016 31 4. Desenhos Em 2015 comecei desenhar com carvão em papel kraft. A escolha do suporte tem a ver com a possibilidade de poder exercitar o gesto na escala do corpo, à maneira de estender o papel numa mesa e me movimentar ao redor dela fazendo marcas aleatórias segurando a barra de carvão com a mão esquerda (sou destro) ou mesmo de forma “não convencional” para explorar a gestualidade. O carvão, pelo fato de mudar conforme vai sendo gasto, traz uma imprevisibilidade e uma gama de possibilidades que me interessou. Nuances, texturas, varia- ção de grossura do traço, manchas e borrões. Cabe destacar a grande diferença entre usar carvão feito para desenho e carvão feito para fazer fogo. Este último sendo muito mais duro e difícil de imprimir numa superfície. Já o carvão de desenho permite aplicar uma certa força para gerar manchas mais densas e escuras. Além disso, por serem materiais que custam muito menos que outros materiais de arte, é possível usar um volume que atenda ao gasto do exercício. Posteriormente, fui descobrindo outros suportes e materiais, como spray e caneta esfero- gráfica, e as linhas dos desenhos começaram a se fechar fazendo contornos semelhantes a figurações menos abstratas e mais icônicas. Fui chegando em desenhos que passei a repetir constantemente. “Incêndios” é uma série de oito desenhos feitos em 2016 em mais ou menos 30 minutos. Pensando aqui em qual verbo escolher para me referir a eles, me ocorre que eles “surgiram” depois de exercitar por alguns meses. Mas esse exercício também é uma busca, então posso falar que esses desenhos foram descobertos. Na verdade, o que foi descoberto em si foram as soluções, isto é, um modo de articular os traços que resulte em um desenho “pronto”. Mas aí existem os problemas de falar em “desenho pronto”, como se existisse também um dese- nho que-não-está-pronto ou um não-desenho. Mas um desenho com aparência de inacabado, está pronto? Enfim, na busca de um desenho que eu considerasse consistente, junto com a vontade de desenhar, aparece essa série. Eu costumo usar a Bic 1.6 mm, que tem um traço mais grosso, portanto o orifício por onde sai a tinta é maior que as canetas comuns e faz com que se precise de menos força para fazer uma marca. Embora o grafite e o carvão ofereçam uma gama maior de nuances em contra- ponto à homogeneidade da linha feita por uma caneta, esta última demanda muito menos matéria depositada no papel para fazer uma linha que seja perceptível a uma certa distância. Isto permite registrar traços feitos com gestos mais sutis, e ao mesmo tempo funciona com gestos feitos com mais força e velocidade. Desenhar em pequena escala trabalhando gestos da mão é basicamente um exercício físico em miniatura. É como um treino de algum esporte, uma dança ou algum instrumento. É como repetir o mesmo movimento monótono e ir aquecendo o corpo até chegar em algum lugar me- ditativo, onde as coisas vão fluindo sob sua própria lógica. É como se uma série de desenhos fosse um recorte, dentre todos os feitos durante uma sessão, que encapsula uma parcela de tempo onde o gesto aconteceu de uma maneira determinada. 32 Eu jamais vou conseguir fazer esses desenhos de novo. São estruturas frágeis, trêmulas, pegando fogo. O desenho é estrutura, ele estrutura o vazio a partir da linha. O traço, que pa- rece inconstante e irregular, é feito segurando a caneta o mais longe possível da ponta para garantir o mínimo de controle possível sobre o instrumento, e assim tentar fazer um traço o mais reto possível. É como sabotar o próprio traço ao mesmo tempo que se adquirem trejeitos para reproduzir certo tipo de gesto. O som duma chama queimando numa fogueira é produzido por milhares de micro explosões que duram fracções de segundo e fazem um barulho num volume tão baixo para o ouvido hu- mano que o acabamos percebendo mais como uma textura de fundo. São milhões de faíscas repetindo uma onomatopeia que não sei escrever. Me ocorre que alguns desses risquinhos poderiam ser trajetos de nascimento, vida e morte das faíscas. Mas não é tanto sobre estrutu- ras pegando fogo, ou sobre o fogo em si. É mais sobre desenhar fogo. A quebra das linhas em ziguezague tem um ritmo. Eu penso o ritmo como uma camada que ajuda a tecer um dese- nho. Não como algo procurado a piori ou que deva ser respeitado e considerado sempre que for desenhar, mas como algo que surge num fluxo de movimentos do gesto, e vai ordenando a imagem. É um apoio. O ritmo é a base de qualquer música, ou quase. Numa sessão de improvisação de jazz, por exemplo, o ritmo varia, flutua, aumenta e diminui, mas está sempre presente para segurar as camadas de instrumentos que vêm por cima. Considero o desenho uma ferramenta significativa no meu processo, não só pelas suas qua- lidades expressivas, mas também como exercício diário de anotação de ideias. Procuro não ficar muito tempo pensando no que vai ser desenhado, enquanto o lapso de não desenhar se arrasta, a atividade mental borbulha e acaba me paralisando. Tenho achado melhor sentar e desenhar de modo despretensioso, e dessa maneira as respostas ao papel em branco vão surgindo intrínsecas ao processo. 33 Figuras 36-37. Mariano Barone, da série Incêndios, caneta esferográfica em papel, 2016 34 Figuras 38-39. Mariano Barone, da série Incêndios, caneta esferográfica em papel, 2016 35 Figuras 39-40. Mariano Barone, da série Incêndios, caneta esferográfica em papel, 2016 36 Figuras 41-42. Mariano Barone, da série Incêndios, caneta esferográfica em papel, 2016 37 Figuras 43-44. Mariano Barone, desenhos, caneta esferográfica em papel, 2017 38 Figuras 45-46. Mariano Barone, desenhos, caneta esferográfica em papel, 2017 39 Figuras 47-48. Mariano Barone, desenhos, caneta esferográfica em papel, 2017 40 Figuras 47-48. Mariano Barone, desenhos produzidos na residência LOTE, caneta esferográfica em papel, Itu, 2016 41 Figuras 49-51. Mariano Barone, desenhos produzidos na residência LOTE, caneta esferográfica em papel, Bragança Paulista, 2017 42 5. Técnicas de reprodução de imagens Muitas vezes, os desenhos constituem um acervo em construção constante, uma intenção de construir uma iconografia pessoal que vai sendo conformada enquanto sobreponho ou justa- ponho figuras e símbolos. Uma forma de estudar estas possibilidades de articulação entre as formas são as técnicas de reprodução. Nesses anos de experimentações com serigrafia, descobri que o que mais me interessa não é necessariamente a possibilidade de reprodução em série de uma imagem, mas a capacidade de gerar uma imagem num movimento só. E que são as falhas de impressão e os acidentes os que trazem singularidade a um desenho que pode ser reproduzido infinita quantidade de vezes. É como se o erro de impressão fosse um gesto espontâneo e imprevisível que busca vazar pra superfície. Normalmente ao trabalhar com serigrafia, a arte final é previamente definida e a fase de es- tampa da imagem é meramente a execução duma ideia a priori. No entanto, costumo gravar várias matrizes e começo a estampar em papel sem muito planejamento ou uma ideia de como quero que seja o resultado final. Só quando a tinta seca e posso fazer a segunda pas- sada, que penso em cores ou desenhos pra sobrepor à primeira camada, e assim por diante. Geralmente são alguns testes para surgir um trabalho que considero pronto, é necessário para mim, produzir certo volume de estudos ou testes para entender em qual direção o traba- lho aponta (ou se aponta para alguma direção), o que está acontecendo e sobretudo o que é redundante, o que sobra, o que não sinto imprescindível. Mas é necessário esse “excedente” e esse gasto de tempo e energia, creio eu, para descobrir coisas novas. É como se, para o trabalho se resolver do modo mais simples possível, fosse necessário todo um desgaste de energia e uma procura pelo esgotamento das possibilidades. Também, o fato de estampar vários pedaços de papel de maneira rápida permite ter um ar- quivo de experimentações que podem ser usadas anos depois sobrepondo mais camadas. Há tiragens de 2016 que revisitei em 2021 com matrizes que gravei em 2018, por exemplo. É como se acontecesse uma condensação de distintos momentos na sobreposição de estam- pas numa mesma folha, o que se assemelha muito à pintura só que duma forma completa- mente diferente, porque nesse caso quase não existe o apagamento duma marca por uma que vem por cima, não só pela tinta ser mais translúcida e geralmente as cores claras não cobrirem as mais escuras, mas também porque na serigrafia trabalho mais imagens que são desenhos digitalizados, e não mancha ou campo de cor como na pintura. Outro aspecto que tenho trabalhado tanto na serigrafia como na xilogravura, é construir uma imagem em uma lógica modular, repetir um desenho como se fossem blocos empilhados e assim ir ocupando o espaço do suporte. Ir carimbando o vazio mas sem preenche-lo comple- tamente. 43 Figuras 52-53. Mariano Barone, estudos preliminares em papel A2 para a série Mapa Residual, serigrafia, 2016 44 Figuras 54-56. Registros de processo de trabalho da série Mapa Residual, 2016 45 Figura 57. Mariano Barone, Mapa Residual, serigrafia em tela, 2016 Figura 58. Mariano Barone, Mapa Residual, serigrafia em tela, 2016 46 Figura 59. Mariano Barone, Mapa Residual, serigrafia em tela, 2016 Figura 60. Mariano Barone, Mapa Residual (detalhe), serigrafia em tela, 2016 47 Figura 61. Mariano Barone, Mapa Residual, serigrafia em tela, 2016 48 Figura 59. Mariano Barone, Mapa Residual, serigrafia em tela, 2016 Figuras 61-62. Mariano Barone, serigrafia em papel, 2018 49 Figura 63. Mariano Barone, serigrafia em papel, 2018 50 Figura 64. Mariano Barone, xilogravura em tela, 2017 51 Figura 65. Mariano Barone, xilogravura em tela, 2017 52 Figura 66. Mariano Barone, xilogravura em tela, 2017 53 Figuras 67-68. Registros de processo de xilogravura, 2017 54 6. Experiências com pintura As minhas primeiras tentativas com pintura foram pautadas na ideia de “simplesmente” fazer uma passagem do desenho, feito maioritariamente com caneta esferográfica em papel sulfite A4, à tinta acrílica em pincel numa tela. Muitas das frustrações desse começo com pintura têm a ver com a gama de variáveis às quais um se defronta na primeira vez trabalhando com tinta numa tela. Diante disso fui descobrindo, em base de prova e erro, alguns caminhos e procedimentos para levar adiante a prática e entender – pelo menos parcialmente – o quê eu pretendia fazer com a pintura e o que a pintura estava me pedindo. Depois de dois semestres de muitas tentativas inconclusas, fiz em 2017 uma série composta por três pinturas em grande formato, onde me parece estar começando a apontar na direção do tipo de trabalho que pretendia fazer. Manter a impronta gestual do desenho é uma questão que me interessa abordar na pintura, e o formato grande me permitiu explorar a gestualidade do traço, não a partir do movimento de mão ou do pulso (como no desenho), mas do corpo. Com alguns desenhos como referência, esboço uma ideia na tela, procurando definir tamanho dos elementos (das formas desenhadas) e composição. Chamo de “esboço” porque é feito de maneira rápida, com urgência, mais para captar a energia do momento. Mas no fim ele aparece, mesmo que seja parcialmente, no trabalho concluído. A primeira das três pinturas foi esboçada com carvão, algumas formas foram apagadas e redesenhadas, vejo no traço uma insistência e também uma insegurança por acertar o desenho antes de colocar a tinta na tela. Nas outras duas utilizei bastão de óleo, fiz o desenho rapidamente e resolvi não mexer nele depois de pronto, para assim trabalhar com esse dado do jeito que ele aconteceu, e não forçar algo numa que ainda não está terminada. Então, ter algo rabiscado numa tela em branco é um lugar de onde começar, diante de todos os caminhos possíveis. A partir daqui as camadas vão se sobrepondo como campos de cor, de maneira que cada uma seja uma resposta ao movimento anterior, mesmo se precisar “apa- gar” o que foi feito, cobrindo de branco. Figura 69. Ateliê de pintura. Instituto de Artes da Unesp, 2017 55 Figura 71. Ateliê de pintura. Instituto de Artes da Unesp, 2017 Figura 70. Mariano Barone, Highlifers ‘88, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2017 56 Figura 72. Registro da individual GARRANCHÓN, Galeria Sancovsky, São Paulo, 2018 Figura 73. Mariano Barone, Cyprus La Colina, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2017 57 Na seguinte série de pinturas, é como se essa metodologia ficasse mais flexível. Há mais áre- as na superfície da tela na qual não foram cobertas as camadas anteriores, e não foi feito um desenho a priori pra “segurar” a composição. Estas três pinturas foram iniciadas em janeiro de 2018, e guardadas no mês seguinte até o fim do mesmo ano, quando retomei o trabalho. Cada tela condensa em si várias pinturas que, ou não senti resolvidas e continuei insistindo até virar uma coisa completamente diferente; ou não soube ler que era momento de parar e continuei trabalhando até o ponto de surgirem outros problemas a resolver, e o que havia na demão anterior ficou diluído. Figuras 74-75. Mariano Barone, Los Moncholos, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2019 58 1 3 5 2 4 6 7 8 Figuras 76-83. Registros de processo de pintura, 2019 59 9 11 10 12 13 14 Figuras 84-89. Registros de processo de pintura, 2019 60 Figura 90. Mariano Barone, Venenito, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2018 61 Figura 91. Mariano Barone, Beretín, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2018 62 Esses trabalhos foram feitos durante 2018, sobre telas com exercícios de pintura de 2016, inicialmente pensada para a minha individual Garranchón (Galeria Sancovsky, SP) do mesmo ano. No entanto, a imediatez dos tempos entre acabar o trabalho, pensar sobre ele e expô-lo, não deixou respiro para uma reflexão ou decantação, e curadora e eu concordamos em que não deviam entrar na mostra. Eu sempre me senti mais solto e à vontade trabalhando com tela sem esticar no chassi, ou mesmo pintando em lona plástica, mas talvez por influência do contexto externo e também por curiosidade de entender por quê não era o mesmo, continuei ensaiando pintar em chassi. Ao olhar ao todo, entendo a experiência como uma série de ensaios de ideias desdobradas de pinturas maiores. Como se o que buscava era examinar os signos, campos de cor e outros acontecimentos, numa escala menor que isolasse o elemento. Como se cada tela fosse um fragmento aumentado de uma tela maior. Figura 92. Mariano Barone, Ranchito, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2018 63 Figura 93. Mariano Barone, Walderramas, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2018 Figura 94. Mariano Barone, Cascabelera, carvão, bastão de óleo, spray, acrílica e latex em tela, 2018 64 Figura 95. Mariano Barone, Espigón, spray, acrílica e latex em tela, 2018 Figura 96. Mariano Barone, Groncho, spray, acrílica e latex em tela, 2018 65 Figura 97. Mariano Barone, Bong Barracuda, spray, acrílica e latex em tela, 2018 Figura 98. Mariano Barone, Calderón, spray, acrílica e latex em tela, 2018 66 Figura 99. Mariano Barone, Arroyito, spray, acrílica e latex em tela, 2018 Figura 100. Mariano Barone, Tierrita Alto Verde, spray, acrílica e latex em tela, 2018 Figura 101. Mariano Barone, Rolex Culebrita, spray, acrílica e latex em tela, 2018 67 7. Lonas Paralelamente às experiências com pintura em tela, em 2017 comecei a garimpar lonas plás- ticas comumente utilizadas em atividades como construção e transporte, com a intenção de usá-las em trabalhos. Embora esteja lidando com as mesmas questões (composição, campos de cor, escala) que a pintura lida, chamá-las de pinturas me parece forçado, assim como instalação, e falar em técnica mista me resulta amplo e vago. Então “Lonas” me pareceu um nome mais adequado para me referir ao grupo. Parte do material é achado em caçambas de entulho nas imediações do Instituto de Artes na Barra Funda, e outra parte é comprada em uma loja no Brás que vende retalhos de tecidos e lonas por peso, entretanto, estes retalhos estão dobrados em pacotes fechados, o que impos- sibilita saber exatamente tamanho, material, cor do que há dentro. Posteriormente, no ateliê, estendo os tecidos e lonas no chão e vou grampeando na parede com o fim de estudar as sobreposições de material, assim como a cor e os elementos da com- posição como um todo. É como se fosse mexendo nos pedaços até acertar o arranjo “certo”, que pareça que acabou de ser feito, que os pedaços apenas foram jogados um por cima do outro. É um exercício de composição de uma imagem, onde um conjunto de lonas podem ficar meses penduradas na parede do ateliê até eu achar uma outra lona que faça mais sentido ao trabalho. Também, o fato de ser possível voltar atrás e retirar camadas, assim como mudar a posição de um elemento, traz uma “reversibilidade” para o trabalho, que faz com que sinta que o processo mais leve e arejado do que na pintura. Além disso, o fato de sobrepor materiais diversos, traz, para mim questões sobre textura, ritmo e sonoridade, e vejo em alguns dos trabalhos um ruído cinza, metálico, algo enferrujado, como o barulho de máquina de constru- ção em algum canteiro de obra da cidade, ou uma porta de aço levantando em alguma loja no centro, cedo de manhã. Já os três trabalhos do ano seguinte, “Chaparrón”, “Mojarrita” e Jacuzzi Piñata, contam com menos elementos e com maior espaçamento na sua composição, as lonas estão retas, estendidas na horizontalidade. Penso que as lonas de 2017 têm um ta- manho que se assemelha mais ao dum portal, e as do ano seguinte parecem ser do tamanho do campo de visão duma pessoa que olha pra paisagem desde um carro em movimento. Eu não medi, mas me trazem essa ideia. Figura 102. Ateliê de pintura, Instituto de Artes, 2017 68 Figura 103. Mariano Barone, Money Mula, acrílico, spray, serigrafia em papel, tela, lona plástica e madeira, 2017 69 Figuras 104-105. Manual de montagem do trabalho Money Mula Figura 106. Vista do trabalho Money Mula no Salão de Ribeirão Preto, 2019 Figura 107. Vista do trabalho Money Mula na exposição individual GARRANCHÓN, São Paulo, 2018 70 Figura 108. Mariano Barone, Zombies are good for your health, acrílico, spray, serigrafia em papel,fita adesiva e lona plástica, 2017 71 Figura 109. Mariano Barone, Ape shall not kill Ape, acrílico, spray, carvão, pigmento industrial, madeira e lona plástica, 2017 72 Figuras 110-112. Ateliê de pintura, Instituto de Artes, 2017 73 Figuras 113-114. Mariano Barone, Nilo, acrílico, spray, serigrafia, tela e lona, 2017 74 Figuras 114-116. Mariano Barone, Jacuzzi Piñata, acrílico e latex em tela, spray, plástico e caneta e acrílico em papel, 2018 75 Figuras 117-119. Mariano Barone, Chaparrón, acrílico, spray, tela e lona plástica, 2018 76 Figuras 120-121. Mariano Barone, Mojarrita, acrílico, spray, papel, tela e lona plástica, 2018 77 8. Instalativos A minha primeira aproximação à produção instalativa foi na Residência L.O.T.E. na FAMA (Itu, 2016). O fato do espaço ser uma fábrica desativada acabou aumentando meu interesse pelo precário e pela ação da passagem do tempo em estruturas e construções abandonadas. Assim que cheguei, fiz um reconhecimento do espaço percorrendo todos os galpões e fui co- letando material que poderia usar para trabalhar, maioritariamente entulho, lonas e madeiras. Fiz com esses materiais achados-prontos, um exercício desdobrado em três partes, onde os elementos aparecem dispostos em três possibilidades de arranjo, tendo um dos casos um elemento a mais, os pallets. Quando volto aos registros da vivência, a primeira coisa que salta aos olhos é como o recor- te da foto não dá conta da experiência toda. Me pergunto também até que ponto o trabalho não é uma encenação, algo preparado pra ser fotografado, inclusive pelo fato do ambiente e o objeto aparentarem pertencer a uma mesma narrativa. É esperável ver entulho empilhado dentro dum galpão aparentemente abandonado, ou no caso muito deteriorado. A pintura das paredes descascada, o reboco caindo, a grama tomando conta. O arranjo n. 1 se asseme- lha a um varal, só que encostado na parede, o que o faz ainda mais precário que um varal “comum” que está suspenso nos seus extremos. As manchas de umidade da faixa pintada na parte inferior da parede se assemelham ao traço em spray na lona plástica vermelha e a janela arredondada encima acaba completando uma forma de triângulo com os extremos de baixo dos sarrafos que o sustentam. Algo parecido acontece com o arranjo n. 2 onde a forma triangular é ainda mais explícita e se assemelha mais a uma barraca, mas também pode ser uma fogueira. Ambos os casos reforçam a ideia de encenação, como se alguém tivesse pas- sado por aí e feito isso, ou como se isso fossem os resíduos de alguma atividade humana. Assim como na pesquisa dos Bebaprafrente, um fazer com achados, propor uma situação inédita com materiais que já faziam parte de uma situação inicial. Figura 122. Arranjo n. 1 78 Figuras 123-124. Arranjo n. 2 79 O arranjo n. 3 me remete a ideia de bandeira, um totem, um monumento. Mas também um espantalho. Embora aconteça desses mais escultóricos remeterem a objetos do mundo, a intenção não foi necessariamente a de representa-los, mas sim experimentar possibilidades de construção com materiais disponíveis no momento e sem ter que pregar ou amarrar nada, apenas apoiar uma na outra. Além disso, a sequência dos registros dos três exercícios refor- ça a ideia de encenação enquanto atos que se sucedem numa peça, ao mesmo tempo que me fazem pensar no intervalo de tempo entre cada uma, que é o tempo no qual os materiais passam a ser reorganizados para assim surgir o arranjo seguinte. Figura 125. Arranjo n. 3 80 No interior de um dos galpões, fiz três exercícios com lona plástica azul, que utilizava no ateliê como proteção da parede, mas também como suporte de experimentações de desenho com spray. Uma fita crepe verde fluorescente foi aplicada uma vez montada a lona no espaço, para afixar uns pedaços aos outros. Embora se tratem de objetos colocados num espaço deter- minado ocupando tridimensionalidade, reconheço um interesse pictórico na composição da imagem. O arranjo n. 4 se utiliza duma caixa de metal afixada na parede do galpão para segu- rar a lona que parece estar prestes a soltar e cair. Parece também uma tela caindo do chas- si, mas não completamente, o que faz que ela ainda cubra parte da caixa na parede à qual aparentemente está afixada. Existe uma contraposição de materiais e formas, o metal rígido, retangular, e a lona plástica, frágil, precariamente sujeita a ele. Ela está entregue à queda. Figura 126. Arranjo n. 4 81 O arranjo n. 5 ocupa uma espécie de cubículo do galpão e tende à antropomorfia, é mais fantasmagórica. Poderia ser uma vestimenta utilizada para algum tipo de trabalho no local, pendurada e sujeita num extremo por um sarrafo que, colocado de forma diagonal, parece querer atravessar o plástico ao mesmo tempo que o segura. Figura 127. Arranjo n. 5 82 No arranjo n. 6 é como se a ideia trabalhada nos outros arranjos tivesse ficado mais literal. Os retalhos são de uma pintura em tela, os sarrafos atravessam dois cubículos de maneira hori- zontal e acabam por segurar o tecido, que cobra uma forma de abrigo ou barraca. Penso que as camadas de informação apontam para distintos lugares e acaba dificultando a leitura sobre o resultado da experiência. É como se tivesse juntado e amontoado muitas ideias uma por cima da outra, mas no fim não emerge daí algo que eu sinta é um trabalho pronto. No entanto, todas me serviram como ponto de partida para pensar trabalhos instalativos. Figura 128. Arranjo n. 6 83 “BFF” (2017) foi uma exposição dupla com Andre Barion na Galeria Alcindo Moreira Filho do Instituto de Artes, surgida da vontade de trocar repertórios e estabelecer um diálogo a partir de pontos de encontro entre a (muitíssimo recente) produção de cada um, mas também pela possibilidade de contrastes. Houveram dois trabalhos pensados especificamente para a oca- sião, que foram produzidos de maneira conjunta: “Toldinho” e “Cônjuge”. “Toldinho” é uma instalação montada de uma maneira muito simples, segurada com prego e barbante. É um trabalho que admite mais de um percurso, não só do olhar mas também do corpo no espaço. Ele é formalmente aberto, o visitante da exposição pode vê-lo à distância, de cima, mas também de “dentro” dele e por baixo. Quando olho à distância, lembro de uma situação recorrente na minha infância de quando a bola fica no telhado do vizinho e acaba murchando depois de um tempo. Penso também nas “Silver Clouds” do Andy Warhol, nesse caso imóveis, douradas, arredondadas e murchas, pesadas, sem esperança de saírem flu- tuando pelo ar. Em ambos casos é uma expectativa frustrada. Esses pensamentos vieram posteriormente, na época reverberava na minha cabeça as imagens de toldos de comércio informal amarrados nas grades verde oliva do Instituto, e o Andre estava produzindo todo tipo de almofada dourada, de diversos tamanhos e formas, e achamos que seria divertido juntar as duas ideias em um trabalho só. “Cônjuge” ficava embaixo do mezanino, numa parte da galeria um tanto desafiadora enquanto iluminação, e consistia numa série de volumes amorfos em plástico e lona preta pendurados e enclausurados em um recinto feito por tecido preto nas paredes e fechado na parte de fora com tecido voil, que pela sua vez fazia com que para ver o que havia dentro, fosse necessá- rio se aproximar até o ponto do rosto encostar no tecido. Lembro de alguém ter falado que era a mesma postura corporal de olhar para dentro de um carro fechado, procurando objetos de valor para furtar. Outras pessoas perguntaram se havia uma mensagem de cunho social sobre o problema de moradia na cidade, por conta do material utilizado se assemelhar ao usado por moradores de rua para se abrigar. Inclusive, havia um trabalho em particular que era marcadamente antropomórfico, que para mim, faz uma referência a uma fotografia muito conhecida de uma performance do Joseph Beuys, “I like America and America likes me”, mas que também podia ser lido como uma pessoa usando uma lona da rua como abrigo. Estes questionamentos nos fizeram refletir sobre o cuidado necessário na hora de lidar com certo tipo de material e sobretudo com a ideia de precariedade, e me fizeram começar a pen- sar na diferença entre resgatar e enaltecer, por exemplo. Percebo que os trabalhos do Andre talvez tenham mais a ver com resgatar materiais banais e trabalhar com eles de maneira de modificar seu formato, costurar, dobrar e torcer. E eu de pegar uma lona como ela é, colocar na parede e sobrepor outros elementos ou pintá-la. 84 Figura 128. Mariano Barone e André Barion, Toldinho, 2017 85 Figuras 129-130. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 86 Figuras 131-132. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 87 Figuras 133-134. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 88 Figura 135. Vista da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 89 Figuras 136-137. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 90 Figuras 138-140. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 91 Figuras 141-142. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 92 Figura 143. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 93 Figuras 144-145. Vistas da exposição BFF, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2017 94 Em 2018, participei com Mari Ra Chacon, Luiza Zelada, Débora Solnik e Ronaldo André da coletiva PARTE, também na Galeria Alcindo Moreira Filho do IA. Pensamos em produzir um conjunto de peças que se apresentassem como um trabalho em si, partindo duma ideia, uma unidade ou um módulo, e fosse se desdobrando em diversas composições, como resultado de uma construção e reflexão coletiva. Um aspecto disparador da vontade de se reunir e trabalhar em conjunto, foi o fato de cada um de nós ter uma pesquisa própria em técnicas de reprodução. Portanto a escolha da técnica já estava implícita na proposta, que era fazer um trabalho coletivo em serigrafia. Em se tratando duma técnica de reprodução seriada duma matriz, resolvemos trabalhar com uma única imagem, dividida em quatro telas. Cada tela seria usada a modo de módulo, bloco, tijolo de construção da imagem estampada. A ideia de utilizar uma captura de tela do Google Maps foi para trabalhar com uma imagem que fornecesse uma escala de cinzas mais ou me- nos ampla para utilizar como textura em diferentes nuances, uma vez que para gravar uma imagem em uma tela de serigrafia, esta deve estar “traduzida” numa retícula de meio-tom. A parte do estampado foram basicamente exercícios de prova e erro, e as peças iam surgindo à medida que íamos descobrindo caminhos e possibilidades. Por exemplo, trabalhar em díp- ticos, justapondo duas peças que juntas evocassem alguma narrativa gráfica. A escolha do suporte, pedaços de tecido de algodão cru de tamanho grande, obedeceu à ideia de pensar a expografia fora das paredes, intervindo o espaço. Para isso resolvemos colocar varais de barbante e suspender os tecidos na parte superior, dando uma sensação de esta- rem flutuando além da possibilidade de ver o tecido nas suas duas faces. Figura 146. Vistas da exposição PARTE, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2018 95 Figuras 147-149. Vistas da exposição PARTE, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2018 96 Figuras 150-151. Vistas da exposição PARTE, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2018 97 Figuras 152-153. Vistas da exposição PARTE, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2018 98 Figuras 154-155. Vistas da exposição PARTE, Galeria Alcindo Moreira Filho, Instituto de Artes da Unesp, 2018 99 A solução de usar varais para trazer um trabalho bidimensional da parede para o espaço, me trouxe algumas questões sobre a sua própria materialidade, e até que ponto devia ou não ser parte do trabalho. Coloquei no ateliê 3 fios de aço de 3mm (os mais disponíveis no mercado variam entre 0,45 e 2 mm) com a intenção de integrar este elemento e assumi-lo como parte da estrutura, assim como também pelo interesse por material de construção no geral. Inclu- sive, achei dois corpos de prova de concreto e comprei alguns lança-mandíbula para estudar como estes elementos poderiam ser incluídos nas experimentações. “Vaporzão” é uma instalação feita pra coletiva BAMBA, que aconteceu no Espaço BREU (São Paulo) em 2019. Um aspecto que considero interessante desse tipo de trabalho, é a possibi- lidade de fazer um caminho inverso ao de sobreposição de demãos que acontece na pintura ou mesmo nas minhas serigrafias. Onde a sucessão de camadas vai cobrindo áreas da super- fície da tela, muitas das quais ficam realmente apagadas, às vezes sem sobrarem vestígios do que foi feito embaixo. A lógica de montagem dessa instalação se deu ao contrário, isto é, partiu do acúmulo de pedaços de tecido e lonas, procurando chegar em algum limite de sa- turação de matéria. Posteriormente fui retirando o que sentia que não era imprescindível de maneira intuitiva, mas também colocando o contexto expositivo como parâmetro. Assim fui rearranjando e realocando elementos e camadas até chegar em um ponto no qual, de alguma forma, o trabalho emerja como estando pronto, pelo menos para aquele momento. É uma obra que acontece na hora da montagem. O fato de trabalhar em formato de série me ajuda a colocar trabalhos anteriores ou simultâne- os em perspectiva, pensar nos problemas e trazer novas questões. Uma delas foi a escolha de ter colocado os fios de aço do varal a 90 graus das paredes, e até que ponto isso era uma leitura do espaço ou simplesmente algo dado a priori que não me questionei na hora da mon- tagem. Alguns meses depois participei da coletiva ZONZO (Galeria Prego, Porto Alegre), onde expus uma instalação na mesma linha de pesquisa. Nessa oportunidade, o varal ficou entre 30º e 45º respeito às paredes e há menos camadas de lonas - e menos trabalho de pintura nelas, sendo uma das lonas transparente. Me ocorrem que, se feita uma leitura em compara- ção ao outro trabalho, este é mais leve e translúcido. Tem menos ruído e dissonância, é mais uma névoa da manhã vista através duma cortina que se mexe enchida de ar. O borrão azul no plástico cor de rosa parece específico e pontual em contraponto com a aparente aleatorieda- de de riscos com spray e tinta nas lonas de “Vaporzão”. Em “Paradise Remisses” há duas correntes de aviamento pendendo entre as lonas, com enfeites de acrílico nas pontas, dependendo a distância e o ponto de vista, parecem linhas desenhadas no plástico cor de rosa. As correntes foram colocadas depois das lonas, coloquei entre 3 e 4 inicialmente e fui tirando e arranjando até chegar nesse resultado. 100 Figura 156. Mariano Barone, Vaporzão, 2019 101 Figuras 157-158. Mariano Barone, Vaporzão, 2019 102 Em 2017 fiz uma série de desenhos em caneta em papel A5 que posteriormente pintei com acrílica, um desses trabalhos aparece colado a uma lona transparente em “Vaporzão” como se fosse uma anotação ou um retrato, uma alusão a alguma coisa. Na frente há uma lona tam- bém transparente com um rabisco na área que corresponde a esse “retrato” na lona de trás, como querendo cobrir ou esconder o papel. A presença do desenho nesse trabalho se dá en- tão de maneira mais literal, isto é, há um desenho em papel colado numa lona da instalação. Creio que no caso do trabalho que veio depois, a presença do desenho aparece evocada nas linhas do fio de aço e nas correntes do arranjo, assim como a ideia de plano e transparência que as lonas plásticas parecem remeter. Figura 159. Processo de trabalho em ateliê, Instituto de Artes da Unesp, 2017 103 Figuras 160-161. Mariano Barone, Vaporzão, 2019 104 Em ambos os trabalhos há uma intenção de utilizar materiais comumente utilizados para outras atividades que não arte, dentro da obra. O que me interessou do lança-mandíbula uti- lizado em “Vaporzão” em um primeiro momento foi o desenho do objeto, o ângulo das linhas e o ritmo de repetição, em algum ponto esses dentes se assemelham aos meus desenhos. Mas também fato de usar no trabalho um elemento extraído da arquitetura, e a possibilidade de trabalhar aço como material foram dois aspectos que me atraíram. No fim me ocorre a dú- vida sobre se fica ou não excessivo na composição toda do trabalho, e se, no caso de querer trabalhar com esse elemento ele não deveria estar articulado de uma forma que lhe fizesse mais serviço. Olhando à distância, “Vaporzão” tem uma série de elementos, sobreposições, elementos que saem da verticalidade da parede e começam a se afastar no chão. Um certo ruído, um aci- dente. Mas me questiono se não fica tímido nessa empreitada. Se realmente precisava do lança-mandíbula no chão, dessas camadas todas, rugas, tinta, e ainda um retrato duma pintu- ra fixado numa lona. E se nesse caso, não era melhor então mais espaçamento, ou mais fios de aço com mais lona, mais objetos e maiores, e mais espalhados no chão. Sempre acontece na primeira vez que vou fazer um tipo de trabalho que não tinha feito, de ter muitas vonta- des, muitas ideias e muitas coisas, muita informação pra colocar de uma vez só. Por isso me parece que a obra seguinte, “Paradise Remisses”, é um outro momento da mesma ideia, no qual foi possível olhar para a obra com o distanciamento do tempo da experiência anterior, enquanto ela ainda estava em andamento. Figura 162. Mariano Barone, Paradise Remisses, Galeria Pregro, Porto Alegre, 2019 105 Figura 163. Mariano Barone, Paradise Remisses, Galeria Pregro, Porto Alegre, 2019 106 Figura 164. Mariano Barone, Paradise Remisses, Galeria Pregro, Porto Alegre, 2019 107 Figuras 165-166. Mariano Barone, Paradise Remisses, Galeria Pregro, Porto Alegre, 2019 108 Figuras 167-168. Mariano Barone, Paradise Remisses, Galeria Pregro, Porto Alegre, 2019 109 9. Conclusão Identifico ao longo desses quatro anos um interesse constante pelo processo de trabalho en- quanto lugar de experimentação, e uma vontade de contato com meu entorno, com a cidade e com a matéria. Penso no desenho como uma atividade lúdica de tradução do mundo através do gesto, como uma volta ao primário, ao primordial. No dicionário, uma das definições de Primórdio é “aquilo que se organiza primeiro”, é o índice da coisa antes da figuração da coisa. É a linguagem primária antes da linguagem que nos é ensinada, aquela que é pautada por normas e convenções. Numa tradução sempre se perdem coisas, mas parece me interessar mais aquela tradução do mundo que é intuitiva. É possível desenhar uma onomatopeia? Como se traduz um poema de uma língua pra outra sem perder o sentido? O portunhol é uma gambiarra da linguagem? Tive a sorte de conhecer algumas cidades no México, várias no Brasil, e outro tanto na Argentina, e em todas vi coisas que se repetem: caixotes de feira empilhados, cadeiras plásticas com logos de marcas de cerveja, e uso fluente do diminutivo. Mas os sotaques são infinitos, são camadas que se sobrepõem, se atropelam, se apagam e se condensam. Penso a sobreposição de camadas no meu trabalho como uma condensação de um proces- so. De algo que aconteceu a partir de uma vontade de fazer, de descarga de energia. Ali um indício de alguma coisa, um risco, uma provocação, vão desencadeando outros processos e acontecimentos como resposta. Quando o trabalho fica pronto, não significa que seja o fim do processo, é apenas um ponto no qual decidi parar e, depois de deixar decantar por um tempo e olhar de novo, sinto que mais nada precisa ser feito ali. 110 REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Sabedoria da Arte. In: WHITNEY MUSEUM OF AMERICAN ART. Cy Twombly: Paintings and drawigns, 54-77. New York: Whitney Museum of Ameri- can Art, c.1979. BEBAPRAFRENTE. Reorganizações urbanas. Curitiba: Fundação Cultural de Curi- tiba, 2010. Entrevista de Gustavo Prafrente, apresentada em folha avulsa pertencen- te à publicação. JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 24-25 MENEGHETTI, Maria Cristina Elias; ARANTES, Priscila. Suspender o tempo e o espaço: o corpo visto sob a lente do conceito japonês de Ma. PÓS: Revista do Pro- grama de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, Belo Horizonte, v. 9, n.18, nov. 2019, p. 312-341. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/arti- cle/view/16126. Acesso em: 22 dez. 2021. CRUZVILLEGAS, Abraham. Abraham Cruzvillegas: ‘Mexico City is about to col- lapse, yet it’s optimistic’. Youtube, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=IhZP5c9umh8. Acesso em: 22 dez. 2021.