Perspectivas, São Paulo 5: 147-149, 1982 Silvia M . S . C A R V A L H O * LEROl-GOURHAN, André — Les religions de la préhistoire-paléolithique. 3 ed. Paris, P.U.F. , 1970. 156p. Em Les Religions de la Préhistoire, Leroi-Gourhan procede a um exame mui­ to criterioso das hipóteses que se tem le­ vantado sobre os cultos religiosos do Pa- leolítico. O culto das ossadas, os chama­ dos "culto do urso das cavernas" e "culto do crân io" são analisados com rigor científico, mostrando o autor a fragilida­ de das "evidências" em que se baseia a suposição de sua existência. Os círculos de ossadas que têm sido apontados como tes­ temunhos de um culto poderiam ter sido, com mais probabilidade, meios de fixação de tendas, nos locais onde as pedras eram mais raras. O que tem sido apontado co­ mo "santuár io com crânios de ursos" po­ deria muito bem ter sido uma caverna de hibernação dos ursos, com uma deposição natural das carcaças dos animais que iam morrendo. Mesmo que posteriormente ocupadas por grupos humanos (cujos pas­ sos fossilizados marcam o chão), essas ca­ vernas realmente não provam que tenha havido um "culto ao urso", e Leroi- Gourhan aponta para a imprudência de se concluir, por estudos comparativos com os "primitivos" de hoje (no caso, os A i n u do Japão, entre os quais realmente existe um culto ao urso), que a mesma cosmogo­ nia tenha dominado povos tão distantes no espaço e no tempo, como os do Pa- leolítico europeu. Além disso, o autor nos mostra que só um ou outro dos muitos maxilares e crânios humanos fossilizados pode atestar uma conservação intencio­ nal. Causas físico-químicas, na maioria das vezes, podem muito bem ser responsá­ veis pela conservação tão-só do crânio, com deterioração do resto do esqueleto. Assim, as conclusões de Leroi- Gourhan quanto à determinação dos cul­ tos religiosos no Paleolítico são extrema­ mente céticas. Concepções religiosas são verossímeis, mas não há realmente possi­ bilidade de se as comprovar ou reconsti­ tuir. O canibalismo religioso é provável, mas totalmente indemonstrável . O ocre usado nos ritos funerários deve ter sido associado ao sangue e à vida, mas, além disso, pouco pode ser dito... A partir do Magdaleniano, contudo, diz- nos Leroi-Gourhan, existem condições para uma investigação científica do sim- bolismo do homem pré-histórico, apesar de só restarem, de todo o complexo sim­ bólico, as pinturas de cavernas, de que o autor faz um levantamento em termos es­ tatísticos, quanto à disposição das espé- * Departamento de Ciências Sociais e Filosofia - Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação - UNESP - 14.800 - Araraquara - SP. 147 LEROI-GOURHAN, A . — Les religions de la préhistoire-paléolithique. 3. ed. Paris, PUF, 1970. 156 p. RESENHAS. Perspectivas, São Paulo, 5: 147-149, 1982. cies animais retratadas nos vários antros das cavernas, sua maior ou menor inci­ dência, a oposição das espécies formando duplas, sua associação com signos mascu­ linos e femininos, etc. A sistemática assim evidenciada mostra uma assimilação de certos animais - particularmente os cava­ los, grupo " A " de Leroi-Gourhan - a sig­ nos masculinos, enquanto um outro gru­ po - de bovídeos, predominantemente bi­ sões (grupo " B " ) é associado a símbolos femininos. Evidencia-se ainda uma distri­ buição mais periférica do grupo " A " em relação ao " B " , tendo em vista o centro das cavernas. As principais oposições as­ sim formadas pelas representações são: homem-mulher; cavalo-bisão; flecha- ferida; órgão sexual masculino-orgão se­ xual feminino. No corpo dos bisões e de outros ani­ mais de caça são assinaladas freqüente­ mente feridas com traços que podem ser permutados pela representação do órgão sexual feminino. Representações de fle­ chas e falos, de homens são, também, em muitos desenhos, intercambiáveis. Segundo o autor, os objetos comu­ mente chamados "bas tões de comando" não teriam sido, efetivamente, propulso­ res primitivos. Baseado na semelhança que com eles tem um utensílio esquimó que serve para remexer o fogo, Leroi- Gourhan admite que os bastões paleolíti- cos possam ter tido um caráter utilitário, não para arremessar projéteis, mas para "redresser à chaud les tiges découpées dans le bois de rennes". Seja como for, 16 entre 50 dos bastões chamados "de co­ mando" têm o cabo faliforme, 30 o têm decorado com figurações do cavalo (gru­ po " A " ) e de outros animais que o autor reúne como constituindo os grupos " C " (cabrito montes, veado e cervo, mamute, rena) e " D " , (urso, rinoceronte, felino, peixe); enquanto que apenas sete repre­ sentações de bisões se localizam todas na extremidade oposta, perfurada, do bas­ tão. (Fig. 1) Verdadeiramente surpreendente é a convergência que ocorre em Pech-Merle, da figuração estilizada da mulher com a do bisão (p. 104). Neste caso, detalhe que Leroi-Gourhan não ressaltou, mulher e bisão se sobrepõem em sentido inverso, de modo que a corcunda do bisão correspon­ de às nádegas da figura humana, o rabo ao alongamento em que termina a extre­ midade superior da mulher (pescoço- cabeça). Vide Fig. 2. 148 LEROI-GOURHAN, A . — Les religions de la préhistoire-paléolithique. 3. ed. Paris, PUF, 1970. 156 p. RESENHAS. Perspectivas, São Paulo, 5: 147-149, 1982. Esta disposição invertida mulher- bisão é como que confirmada pela locali­ zação nos "bastões de comando" trata­ dos por Leroi-Gourhan, da representação da cabeça do bisão em torno do orifício, constituindo o " o l h o " da figura (na ex­ tremidade oposta à ponta faliforme ou com figuração do cavalo). Se o bisão é uma mulher às avessas (fator de cresci­ mento vegetativo da espécie como fonte de alimento, ao passo que a mulher é res­ ponsável pela reprodução genética), a fe­ rida produzida na caça é um órgão genital às avessas (este últ imo sangrando natural­ mente, enquanto na primeira a sangria é provocada pelo caçador, referindo-se por­ tanto ao domínio da técnica, da cultura). Outras sugestões que essa representação convergente e inver t ida desperta prendem-se a questões como: Qual a téc­ nica de caça ao bisão? Era ele caçado, à semelhança do que o toureiro faz com o touro, quando este pára , de cabeça baixa, furioso, pronto para investir? Assim sen­ do, há ainda uma coincidência aproxima­ da, nos dois desenhos, do ponto de san- gramento do bisão e da mulher... Pode-se lembrar ainda que existe uma hipótese de que, no Paleolítico, o ato sexual não teria sido face a face. Talvez se pudesse estabelecer as mes­ mas inversões no caso do cavalo. Seria o cavalo um homem às avessas? Quanto à associação flecha-falo, não há necessida­ de de maiores explicações. Mas, para compreender a convergência homem- cavalo, quais as características do animal que teriam sido selecionadas? Sua agilida­ de? O costume de empinar quando irrita­ do ou assustado, como o caçador que sal­ ta ao arremessar a lança (e ao contrário do bisão que abaixa a cabeça ao ata­ car...)? Ou o comportamento do cavalo selvagem em relação às fêmeas e filhotes? Segundo Rostand, quando os animais es­ tão em liberdade, o cavalo vigia as éguas e corta-lhes o passo quando percebe que elas se afastam demais. Mais importante ainda parece-nos uma observação de Saint-Hilaire que, em sua viagem ao Rio Grande do Sul, viu uma égua prenhe ser defendida por uma verdadeira cerca feita pelos corpos dos cavalos, quando amea­ çada por uma onça. De qualquer forma, as oposições têm uma lógica que, até certo ponto, podemos decifrar. Tendo em vista as considerações que nos suscita a leitura do livro de Leroi- Gourhan, podemos concluir, portanto, que, em suas linhas fundamentais, o sim- bolismo característico dos Desana (tão bem apresentado por Reichel-Dolmatoff) e de outros caçadores atuais, já caracteri­ zava realmente uma humanidade primiti­ va: "matar es cohabitar", dizia o infor­ mante índio de Reichel-Dolmatoff. Efet ivamente , segundo L e r o i - Gourhan (p. 139), em Mali ta , perto do la­ go Baical, na Sibéria, o pré-historiador russo Gerasinov exumou vários sítios de tendas, nas quais os utensílios masculinos e as figuras de aves, os utensílios femini­ nos e as estatuetas de mulheres se encon­ travam separados de cada lado do habi- tat. É ao menos verossímel - diz o autor - que no Paleotítico superior na Europa, uma divisão do aparato (feminino- masculino) existia igualmente. As oposi­ ções detectadas por Leroi-Gourhan nas cavernas magdalenianas devem ter funda­ mentado, portanto, toda uma concepção do Universo. Assim sendo, são as técnicas da caça, as funções e a divisão do trabalho entre os sexos (em oposição complementar) as ca­ racterísticas predatórias das relações dos homens com a natureza e a preocupação de restabelecer o equilíbrio dessas relações (para que o grupo e o próprio modo de produção pudessem se reproduzir) que, desde o Paleotítico, determinam a estru­ turação do universo simbólico e as respec­ tivas oposições entre mundo animal e mundo humano - natureza e técnica - fe­ minino e masculino. 149