JOSÉ AUGUSTO ALVES NETTO POTY LAZZAROTTO, UM ILUSTRADOR DA CULTURA BRASILEIRA: DA IMPRENSA PERIODISTA AOS ESPAÇOS PÚBLICOS (1945-1970). Assis 2021 JOSÉ AUGUSTO ALVES NETTO POTY LAZZAROTTO, UM ILUSTRADOR DA CULTURA BRASILEIRA: DA IMPRENSA PERIODISTA AOS ESPAÇOS PÚBLICOS (1945-1970). Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador(a): Profª. Drª. Zélia Lopes da Silva Assis 2021 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A474p Alves Netto, José Augusto. Poty Lazzarotto, um ilustrador da cultura brasileira: da imprensa periodista aos espaços públicos (1945-1970) / José Augusto Alves Netto, 2021. 258 f. XXX: il. Orientadora: Zélia Lopes da Silva. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade de Ciências e Letras, Assis. Inclui Bibliografia. 1. Arte e história. 2. Artes brasileiras - Séc. XX. 3. Jornais - Ilustrações. 4. Gravura - Séc, XX 5. Xilogravura – Séc. XX. I. Silva, Zélia Lopes da. II. Título. 93:7.03 DEDICATÓRIA Dedico esta tese a algumas pessoas, presentes e ausentes, que me acompanharam nesta trajetória. Em especial: À minha mãe, Maria Aparecida Alves, ao meu pai Darcílio Rosa Alves (in memorian). À minha esposa Eliane Oliveira, porto seguro na minha trajetória, que soube entender as minhas ausências nesse período. Aos professores do colegiado de História, da Unespar, do campus de Paranavaí, Marcos Roberto Pirateli, Ricardo Tadeu Caires Silva, Roberto Leme Batista, Vanderlei Amboni e Claudinei Chitolina. AGRADECIMENTOS À professora Zélia Lopes da Silva, que me acolheu sob sua orientação, e me conduziu com firmeza e sem perder a ternura, devo muito mais que os acertos deste trabalho. As palavras não seriam suficientes para expressar minha gratidão pelo apoio dado até aqui. Aos professores da banca de qualificação e defesa, Tania Regina de Luca, Ana Luiza Martins Camargo de Oliveira, Ricardo Tadeu Caires Silva e João Paulo Rodrigues, pela leitura atenta e sugestões indispensáveis. Agradeço a Marilene Maria Lopes Lucena, pela gentileza em me auxiliar nos momentos finais da escrita deste texto, com a ficha catalográfica. Muito do material a que tive acesso não seria possível sem a intervenção do pessoal responsável pelo atendimento aos pesquisadores da Fundação Bienal de São Paulo, em especial a Marcele Souto Yakabi, que prontamente atendeu as minhas solicitações. Ao sr. João Lazzarotto, que franqueou meu acesso ao acervo de Poty. À Maria Ester Teixeira Cruz, historiadora e responsável pela organização do acervo de Poty. ALVES NETTO, José Augusto. POTY LAZZAROTTO, UM ILUSTRADOR DA CULTURA BRASILEIRA: DA IMPRENSA PERIODISTA AOS ESPAÇOS PÚBLICOS (1945-1970). 2021. 258 f. __________ Tese (Doutorado em História). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020. RESUMO O objeto deste estudo reside na análise da trajetória formativa e profissional de Poty Lazzarotto (1924-1998) em O Jornal, entre os anos de 1945 – 1957, e em outros meios de reprodução. Em que pese Poty ter publicado nesse periódico, suas ilustrações aparecem em outros impressos a exemplo de: Diário da Tarde – PR (1938-1948), Diário Carioca – RJ (1944-1960), Gazeta de Notícias – RJ (1943-1950), Ilustração Brasileira – RJ (1953), Jornal do Brasil – RJ (1946-1960), Leitura – RJ (1948-1960). Além da imprensa, o artista também ilustrou livros e produziu murais em espaços públicos em Curitiba, os quais serão motes específicos de reflexões nessa tese. Ao nos propormos efetuar uma análise das ilustrações de Poty em vários meios de reprodução entendemos que as mesmas também serviram para modelar o seu traço sobre a cultura brasileira. Nesse sentido, Poty Lazzarotto igualmente encontra no conteúdo dos jornais que ilustrou a temática necessária para expressar a sua arte através do traço ilustrativo, bem como nos livros e murais. Ao buscarmos analisar historicamente esta produção artística de Poty, intentamos destacar a sua ação em um contexto histórico de renovação do Modernismo Brasileiro do século XX. Para compreender essa especificidade é que temos que investigar a sua história de vida profissional e o estabelecimento de algumas das inter-relações intelectuais no circuito das artes plásticas daquele momento que propiciaram a sua inserção no referido campo. Por fim, este estudo busca analisar a produção de sentidos históricos na obra artística de Poty. Palavras-chave: Poty Lazzarotto. O Jornal. Ilustração. Cultura Brasileira. Arte Paranaense. Modernismo ALVES NETTO, José Augusto. POTY LAZZAROTTO, AN ILLUSTRATOR OF BRAZILIAN CULTURE: FROM THE JOURNALIST PRESS TO PUBLIC SPACES (1945-1970). 2021. 258 f. __ Dissertation (Doctorate in History). - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Sciences and Letters College, Assis, 2020. ABSTRACT The object of our study lies in the historical analysis of the formative and professional trajectory of Poty Lazzarotto (1924-1998) in O Jornal, between the years 1945 – 1957, and in other means of reproduction. Even though Poty published in that periodical, his illustrations appear in other printed publications such as: Diário da Tarde – PR (1938- 1948), Diário Carioca – RJ (1944-1960), Gazeta de Notícias – RJ (1943-1950), Ilustração Brasileira – RJ (1953), Jornal do Brasil – RJ (1946-1960), Leitura – RJ (1948- 1960). Besides of the press, the artist also illustrated books and produced murals in public spaces in Curitiba, which will be specific motives for reflections in this dissertation. When proposing to carry out an analysis of Poty's illustrations, in various means of reproduction we understand that they also served to model his trait on Brazilian culture. Thus, for example, Poty Lazzarotto also finds in the content of the newspapers he illustrated, the necessary theme to express his art through the illustrative trait, as well as in the books and the murals. Seeking to analyze historically that artistic production of Poty, we intend to highlight his action in a historical context of renewal of Brazilian Modernism of the 20th century. In order to understand this specificity, we have to investigate his professional life history and the establishment of some of the intellectual interrelations in the plastic arts circuit of that moment that led to his insertion in that field. Finally, this study seeks to analyze the production of historical meanings in Poty's artistic work. Keywords: Poty Lazzarotto. The newspaper. Illustration. Brazilian culture. Art from Paraná. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Revista O tico-tico, 1931, p.1. ....................................................................... 39 Figura 2 - Revista O tico-tico, 1931, p.25. ..................................................................... 39 Figura 3 - O Dia, 04 de março de 1945, p. 08. Charge de Eloy (Alceu Chichorro). ...... 40 Figura 4 - Chester Gould em seu ateliê, 1953. ............................................................... 42 Figura 5 - “Suplemento Juvenil”, 1939. ......................................................................... 43 Figura 6 - Dick Moores em seu ateliê. ........................................................................... 44 Figura 7 - “A Gazetinha”, Rio de Janeiro, 1937. ............................................................ 45 Figura 8 - Alex Raymond, criador de Flash Gordon e Agente Secreto X-9. ................. 46 Figura 9 - Flash Gordon no Planeta Mongo. .................................................................. 47 Figura 10 - Agente Secreto X-9. ..................................................................................... 48 Figura 11 - Charles Chaplin e Jackie Coogan em The Kid (1921)................................. 49 Figura 12 - João Lazzarotto e o Vagão do Armistício Recuperado ............................... 53 Figura 13 - Vagão do Armistício - Visão frontal............................................................ 54 Figura 14 - Vagão do Armistício - visão interior. .......................................................... 54 Figura 15 - Vagão do Armistício - Ilustração interna. .................................................... 55 Figura 16 - Vagão do Armistício - Ilustração interna. .................................................... 55 Figura 17 - Haroldo - O Homem Relâmpago. ................................................................ 56 Figura 18 - Interventor Manoel Ribas no Vagão do Armistício. .................................... 57 Figura 19 - Poty em 1942. .............................................................................................. 58 Figura 20 - Livro de registro Escola Nacional de Belas Artes, turma de 1942. ............. 60 Figura 21 - Livro de Registro Escola Nacional de Belas Artes, turma de 1942, p. 123. 61 Figura 22 - Observações. Livro de Registro Escola Nacional de Belas Artes, turma de 1942 (Segunda parte). ..................................................................................................... 62 Figura 23 - Lenda da Herva Mate Sapecada................................................................... 65 Figura 24 - Carlos Drummond de Andrade – “Lavadeiras de Águas Férreas”. ............. 66 Figura 25 - Diário da Noite, 1946................................................................................... 67 Figura 26 - Carteira de estudante – frente. ..................................................................... 69 Figura 27 - Carteira de estudante – verso. ...................................................................... 69 Figura 28 - Agendas de viagem de Poty: 1947, 1948 e 1951. ........................................ 71 Figura 29 - Agenda Bijou de 1947. ................................................................................ 72 Figura 30 - Agenda Bijou, frontispício, 1947. ................................................................ 72 Figura 31 - Agenda Bijou, dados pessoais, 1947. .......................................................... 73 file:///D:/unidade%20c/Desktop/2021/Defesa%20da%20tese/Orientações%20correções%20defesa/Tese%20José%20Augusto%20Alves%20Netto2%20-%20completo-corrigido.docx%23_Toc67558714 Figura 32 - Mapa do entorno da residência de Poty, Paris. ............................................ 73 Figura 33 - Mapa das Praças, monumentos, igrejas e outros locais que Poty Lazzarotto visitou durante o ano de 1947 em Paris. ......................................................................... 74 Figura 34 - Relação dos locais visitados por Poty em Paris, 1947. ................................ 75 Figura 35 - Endereços Agenda Poty - 1947. ................................................................... 75 Figura 36 - Inaugurada a exposição de Poty. Rio de Janeiro, setembro de 1948. .......... 77 Figura 37 - Ficha técnica O Jornal. ................................................................................ 80 Figura 38 - Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas, em 1930. ....................................... 81 Figura 39 - 1ª página de O Jornal sob o comando de Assis Chateaubriand, 02 de outubro de 1924. .......................................................................................................................... 84 Figura 40 - 1ª página de O Jornal, 28 de agosto de 1925............................................... 86 Figura 41 - O Jornal, 18 de outubro de 1925, Suplemento Illustrado em Rotogravura, p. 1. ..................................................................................................................................... 88 Figura 42 - - O Jornal, 18 de outubro de 1925, Suplemento Illustrado em Rotogravura, p. 2. ..................................................................................................................................... 88 Figura 43 - - O Jornal, 18 de outubro de 1925, Suplemento Illustrado em Rotogravura, p. 3. ..................................................................................................................................... 88 Figura 44 - - O Jornal, 18 de outubro de 1925, Suplemento Illustrado em Rotogravura, p. 4. ..................................................................................................................................... 88 Figura 45 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração “Uma noite de Natal”, conto de Guy de Maupassant. .................................................................................................................... 97 Figura 46 - Poty Lazzarotto - O Jornal, ilustração "A mendiga de Locarno", conto de Heirich Von Kleist. ......................................................................................................... 99 Figura 47 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração "Uma velha página", conto de Franz Kafka. ........................................................................................................................... 101 Figura 48 - Poty Lazzarotto. O Jornal, gravura "Off-limits", ponta-seca. ................... 103 Figura 49 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração "A máscara do riso", conto de Leonidas Andreief. ....................................................................................................................... 105 Figura 50 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração "Caro pai", conto de Moysés Duek. ...................................................................................................................................... 107 Figura 51 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração "Caça ao polvo nas ilhas Gilbert", texto de James Fletcher.......................................................................................................... 108 Figura 52 - Laocoonte e seus filhos. ............................................................................. 109 Figura 53 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração "A guilhotina", conto de Stephan Zweig. ...................................................................................................................................... 110 Figura 54 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração avulsa. ............................................ 112 Figura 55 - Poty Lazzarotto. O Jornal, "Brinquedos de roda", ilustração avulsa. ....... 113 Figura 56 - Poty Lazzarotto. O Jornal, "Canudos", Euclides da Cunha. ..................... 115 Figura 57 - - Poty Lazzarotto. O Jornal, “Moby Dick”, de Hermann Melville. .......... 116 Figura 58 - Poty desenha matriz de xilogravura 1. ....................................................... 124 Figura 59 - Poty desenha matriz de xilogravura 2. ....................................................... 124 Figura 60 - Poty entalha matriz de xilogravura. ........................................................... 125 Figura 61 - Poty xilogravura finalizada 1973. .............................................................. 126 Figura 62 - Curso de Gravura 1951. ............................................................................. 129 Figura 63 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956. ...................................... 133 Figura 64 - Poty Lazzarotto. Capa e contracapa de Grande sertão: veredas, 7ª. edição. ...................................................................................................................................... 135 Figura 65 – Poty Lazzarotto. Ilustração de capa e contracapa de Corpo de baile, volume 1 de João Guimarães Rosa, 1956. ................................................................................. 137 Figura 66 - Poty Lazzarotto. Ilustração de contracapa e capa de Corpo de baile, volume 2 de João Guimarães Rosa, 1956. ................................................................................. 138 Figura 67 - Capa e contracapa de Poty para a 23ª edição de Sagarana, 1980. ............. 139 Figura 68 - Capitães da Areia, capa de Carybé. ........................................................... 142 Figura 69 - Capitães da Areia, desenho de Poty. ......................................................... 142 Figura 70 - Poty e Dalton Trevisan - Rio de Janeiro (s.d.). .......................................... 147 Figura 71 - Revista Joaquim, nº 1 - Capa de Poty. ....................................................... 148 Figura 72 - Revista Joaquim, nº 16 - Capa de Poty retratando o poeta André Gide. ... 149 Figura 73 - Revista Joaquim, nº 19 - Capa de Poty. ..................................................... 150 Figura 74 - Maquete da Praça 19 de Dezembro. .......................................................... 154 Figura 75 - Mulher Nua e Homem Nu, Praça 19 de Dezembro, Curitiba-Pr. .............. 155 Figura 76 - Vista frontal painel de Erbo Stenzel, Praça 19 de Dezembro, Curitiba- Pr. ...................................................................................................................................... 156 Figura 77 - Vista frontal do painel de Poty, Praça 19 de Dezembro, Curitiba-Pr. ....... 157 Figura 78 - Detalhes do painel de Poty. Praça 19 de dezembro, Curitiba-Pr. .............. 157 Figura 79 - Quirino Campofiorito. ............................................................................... 159 Figura 80 - Cartão natalino de Poty a Campofirito. Frente .......................................... 162 Figura 81 - Cartão natalino de Poty a Campofirito. Verso ........................................... 163 Figura 82 - Jorge Amado, Carybé, Mário Cravo Jr. e Poty. ......................................... 163 Figura 83 - Poty Lazzarotto. O Jornal, ilustração "Velhos telhados de Salvador", desenho de Poty. ......................................................................................................................... 167 Figura 84 - Carybé e seu filho, Ramiro Bernabó (Xampi), 1951. ................................ 168 Figura 85 - Orixás - Yansã - Carybé............................................................................. 169 Figura 86 – Poty, Salvador-Ba, 1951. .......................................................................... 170 Figura 87 - – Poty Lazzarotto - Oficial das Forças Armadas. ...................................... 175 Figura 88 – Poty Lazzarotto - Oficial de cócoras. ........................................................ 176 Figura 89 - Índio do Xingu segurando flauta, ilustração de Poty. ................................ 178 Figura 90 - Índios do Xingu lutando, ilustração de Poty. ............................................. 179 Figura 91 - Cesto indígena, desenho de Poty. .............................................................. 179 Figura 92 - O artista retratado pela fotógrafa Vilma Slomp. ........................................ 180 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Incidência das ilustrações de Poty em O Jornal 1945 a 1957. .................... 91 Gráfico 2 - Incidência por página das ilustrações de Poty em O Jornal 1945 a 1957. .. 92 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Quantidade de ilustrações vinculadas aos gêneros textuais. ........................ 91 Quadro 2 - Profissões dos subscritores do Manifesto................................................... 173 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 16 CAPÍTULO 1. Aspectos da vida pessoal e profissional de Poty Lazzarotto. ................ 36 1.1. Os primeiros traços do artista quando jovem: infância, influências, contatos. 36 1.1.1. Chester Gould. .................................................................................................. 42 1.1.2. Dick Moores. .................................................................................................... 44 1.1.3. Alex Raymond. ................................................................................................. 46 1.1.3.1. Flash Gordon. ................................................................................................... 47 1.1.3.2. Agente Secreto X-9. ......................................................................................... 48 1.1.4. O garoto Poty e os filmes do Cine Morgenau. ................................................. 49 1.1.5. O Vagão do Armistício..................................................................................... 51 1.2. A ampliação dos horizontes artísticos: a bolsa de estudos e o contato com a gravura. ...........................................................................................................................57 1.2.1. “Cada traço que você dê, deve ser pensado” (Oswaldo Goeldi). ..................... 65 1.2.2. O grand tour pela Europa. ................................................................................ 67 1.2.3. Os percursos de Poty em terras europeias. ........................................................... 71 1.2.4.O regresso do artista. ............................................................................................. 76 CAPÍTULO 2. As ilustrações de Poty no periódico O Jornal – RJ (1945-1957). ......... 79 2.1. A rede de comunicação de massa dos Diários Associados. .................................... 80 2.2. O ambiente artístico cultural do Rio de Janeiro e a ilustração de Poty. .................. 93 2.3. O Jornal, Rio de Janeiro, ilustrações publicadas entre os anos de 1945 a 1957. .... 94 CAPÍTULO 3. A arte da gravura de Poty. ................................................................... 118 3.1. Poty e os mundos da arte. ...................................................................................... 121 3.2. A gravura: a busca pela excelência técnica. .......................................................... 123 3.3. Participação na gravura paranaense e brasileira. ................................................... 128 3.4. A ilustração de livros. ............................................................................................ 130 3.4.1. Canudos. ............................................................................................................. 131 3.4.2. Grande sertão: veredas. ...................................................................................... 135 3.4.3. Corpo de baile. .................................................................................................... 137 3.4.4. Sagarana. ............................................................................................................ 139 3.4.5. Capitães da areia. ................................................................................................ 141 CAPÍTULO 4 – A rede de relações artísticas, tecida por Poty, em diferentes espaços. ...................................................................................................................................... 144 4.1. Sociabilidades artísticas e intelectuais nos/dos tempos diferentes em Curitiba. ... 144 4.1.1. Dalton e Poty, juntos, na Joaquim. ..................................................................... 145 4.1.2. Poty e Erbo Stenzel. Os conjuntos arquitetônicos e muralísticos no espaço público urbano de Curitiba. ....................................................................................................... 153 4.2. Relações de convívio no mundo das artes no Rio de Janeiro e Salvador. ............. 158 4.2.1. Quirino Campofiorito. ........................................................................................ 158 4.2.2. Poty e Carybé: uma amizade artística................................................................. 163 4.3. As estruturas elementares da sociabilidade. Para além do mundo artístico. ......... 171 4.3.1. "Intelectuais e artistas pela liberdade" de Ênio Silveira. .................................... 172 4.3.2. Orlando Villas Boas e Cláudio Villas Boas........................................................ 176 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 181 FONTES ....................................................................................................................... 183 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 195 APÊNDICES ................................................................................................................ 211 ANEXOS ...................................................................................................................... 221 16 INTRODUÇÃO O objeto de estudo desta tese consiste na análise histórico-cultural da trajetória formativa do artista plástico paranaense Poty Lazzarotto (1924-1998), efetuada entre os anos de 1945 a 1957 na cidade do Rio de Janeiro, ilustrando o periódico O Jornal, e também as suas ilustrações em outros lugares e meios de reprodução em tempos distintos. O artista em sua trajetória de vida, passou por diferentes expressões e fases: gravador, desenhista, ilustrador e muralista. Poty Lazzarotto nasceu em Curitiba, no ano de 1924. Primeiro filho de uma família humilde, seu pai, Issac Lazzarotto, era ferroviário aposentado e sua mãe, Julia Tortato Lazzarotto, dona de casa. A família era proprietária de um modesto restaurante, conhecido como “Vagão do Armistício”. O restaurante, localizado no quintal da casa da família, no bairro Cajuru, era frequentado por personalidades de Curitiba, bem como de outros lugares. Foi lá que Poty travou contato com intelectuais, artistas e políticos influentes do período, e, através do interventor1 Manoel Ribas2, foi enviado ao Rio de Janeiro, em 1942, para cursar artes plásticas na Escola Nacional de Belas Artes, ENBA. Desde cedo, Poty manifestou aptidão para o traço. Aos 14 anos já havia publicado seus primeiros desenhos no Diário da Tarde em Curitiba, no ano de 1938 (Poti o garoto prodígio, 1938)3. Esses desenhos consistiam em uma história em quadrinhos intitulada “Haroldo, o Homem-Relâmpago” 4, publicada em seis episódios no jornal de domingo. Esse tipo de inserção 1 Conforme Adriano Codato, o papel desempenhado pelo Interventor (governador) consistia em: exercer, por sua vez, “enquanto não se reunissem as Assembleias Legislativas”, na fórmula eufemística da Carta de 1937, “as funções destas nas matérias da competência dos estados” (Art. 181). Na prática, as medidas de natureza legislativa foram (...) concretizando e aprofundando o processo de centralização política e de desapropriação do poder das oligarquias iniciado em 1930. Em princípio, a resposta automática do Executivo federal às elites políticas estaduais depois do golpe de Estado consistiu em reeditar, tal e qual, o esquema das Interventorias conforme tentado e conseguido entre 1930 e 1934. In: (CODATO, 2013, p. 192). 2 Manuel Ribas (Ponta Grossa, 8 de março de 1873 — Curitiba, 28 de janeiro de 1946). Esteve durante treze anos à frente do governo paranaense, ora como interventor de 1932 a 1934, ora como governador de 1935 a 1937, e outra vez como interventor de 1937 a 1945. Manoel Ribas descendia das famílias históricas do Paraná, base social da classe dominante do Estado em sua formação. Pertencia, também ao “núcleo duro, o centro de gravidade da classe dominante do Paraná.”, um reduzido grupo que contava com três troncos genealógicos dentre as sete grandes formações genealógicas das quais emergiu o poder político do Estado em sua formação. Embora fizesse parte da elite campeira, Manoel Ribas era também representante dessa classe política dominante cujos herdeiros políticos de 1930 até o final do século XX ainda sairão de suas fileiras. In: OLIVEIRA, R. C. D. Estado, classe dominante e parentesco no Paraná. Curitiba: Nova Letra, 2015. 3 Jornal Diário da Tarde, de Curitiba, publicado em 24 de setembro de 1938. A manchete do jornal em seu título dava destaque à novidade. “Poti o garoto-prodígio”, e o subtítulo apresentava: “Sem nenhum estudo especial ele criou desenhos em séries de aventuras e arquitetou-lhes as legendas no gênero das narrativas de aventuras do Marinheiro Popey e Chico Viramundo – Diário da Tarde iniciará a publicação da narrativa da Ilha do Tesouro em vários capítulos movimentadíssimos”. 4 As historietas foram publicadas no Diário da Tarde ao longo do mês de novembro de 1938 e intituladas “Haroldo – O Homem Relâmpago. Suas aventuras em seis capítulos, por Poti". Diário da Tarde 03-11-1938 p 2 - Haroldo o 17 em um jornal de periodicidade diária era uma novidade para a provinciana Curitiba da época, sendo ainda mais interessante porque a proposta viera de um garoto, morador da periferia. Sua trajetória escolar, até esse momento, incluía apenas a formação no Ginásio Paranaense. Em 1945, obteve, por intercessão do interventor Manoel Ribas, uma bolsa de estudos na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro. Ali, obteve educação artística formal, podendo conviver e estudar com nomes expressivos da arte brasileira do período – o que oportunizou a colaboração com jornais e periódicos fluminenses, tais como Diário da Noite, Correio da Manhã e O Jornal. Em 1947, conseguiu, através de exame de seleção, outra bolsa de estudos agora na Academia Nacional de Belas Artes, em Paris (França). Lá, tomou contato com as obras dos acervos dos mais importantes museus europeus e artistas que viriam a despontar no cenário artístico mundial. Além disso, viajou pelo Brasil e desta experiência desenhou pessoas, os saberes de ofício e práticas costumeiras daqueles com quem teve contato. Poty, neste período de maturação artística, transitou e conviveu com personagens que galgaram as esferas do poder político no Paraná e no Brasil, mas também afinou seu olhar observando a gente simples em seus afazeres diários. Sua obra guarda em si qualidade estética na percepção de práticas culturais que nos permitem vislumbrar distintas representações da cultura brasileira. Poty também é reconhecido por meio das gravuras que ilustraram os livros das renomadas casas editoriais do período5, escritos por importantes intelectuais e literatos brasileiros, como por exemplo: Euclides da Cunha, com Canudos; João Guimarães Rosa, com o romance Grande Sertão: Veredas; Jorge Amado, com o romance Capitães de Areia; e, outras publicações, a exemplo dos sertanistas Cláudio e Orlando Villas Bôas com o relato Xingu: os índios, seus mitos, dentre outros. Assim, conjugar a análise dessa habilidade do artista e o seu trânsito entre diferentes esferas artísticas nos permitiu conhecer um pouco de sua capacidade de percepção visual, em constante aprimoramento ao longo de sua carreira. Ao nos dedicarmos a problematizar as ilustrações produzidas por Poty buscamos apresentar uma faceta pouco estudada da sua trajetória. Apesar de ter saído de Curitiba com um certo reconhecimento, o “garoto prodígio”, era praticamente desconhecido do mundo artístico homem relâmpago I; Diário da Tarde 07-11-1938 p 2 - Haroldo o homem relâmpago II; Diário da Tarde 14-11- 1938 p 3 - Haroldo o homem relâmpago III; Diário da Tarde 17-11-1938 p 2 - Haroldo o homem relâmpago IV; Diário da Tarde 21-11-1938 p 2 - Haroldo o homem relâmpago V; Diário da Tarde 25-11-1938 p 2 - Haroldo o homem relâmpago VI. 5 NUNES, F. V. Texto e imagem: a ilustração literária de Poty Lazzarotto. Universidade Federal do Paraná – UFPR - Programa de Pós-graduação em Letras, Área de Estudos Literários. Curitiba, p. 1009. 2015. O autor desenvolveu extenso trabalho de análise do texto literário das ficções em prosa juntamente com as respectivas ilustrações de Poty. 18 brasileiro. Nesse sentido, entendemos ser importante abordar o período inicial de construção de sua carreira; afinal de contas, já aos 21 anos de idade passa a colaborar com O Jornal6. O periódico serviu para Poty como relevante, senão a primeira oportunidade de trabalho satisfatória, em colaboração que vai se estender regularmente de 1945 a 1957. Apesar desta colaboração profissional, Poty não deixou de participar de outras iniciativas gráficas, como abordaremos ao longo deste trabalho. Poty faleceu no dia 08 de maio de 1998, aos 74 anos, em Curitiba. O artista plástico viveu dividido entre Curitiba e a capital federal do Rio de Janeiro, onde residiu por aproximadamente 20 anos. Tratava-se de um dos mais reconhecidos artistas plásticos brasileiros de meados do século XX, um homem que executou uma produção artística grandiosa (em volume, quantidade e qualidade de trabalhos) e um dos pioneiros, em meados do século XX, na disseminação dos conhecimentos e dos estudos empíricos de gravura no Brasil. Desfrutou em vida do sucesso e do reconhecimento artístico, e, mesmo em seus momentos derradeiros, não abdicou da premissa de produzir suas ilustrações, desenhos, xilogravuras, de idealizar seus murais, dentre tantas outras maneiras de expressar seu gênio criador. A morte de Poty desencadeou, em diferentes frentes, um movimento que trouxe à tona o conjunto de sua obra e as influências por ele exercidas no campo artístico brasileiro. Por exemplo, seus familiares e amigos implementaram um movimento de preservação e salvaguarda de sua obra artística, com vistas a manter presente a sua produção no espaço artístico paranaense. Seus herdeiros familiares, amigos e intelectuais, tomaram uma primeira medida importante para fazer com que todos conhecessem o válido lugar de Poty no campo da produção artística brasileira ao evitar seu esquecimento, preservando o espaço onde ele havia vivido parte de sua vida: seu apartamento na rua Atílio Bório, 286, no Cristo Rei, Curitiba. Após a sua morte, iniciou-se o processo para transformar seu legado artístico em uma fundação, idealizada pelo seu irmão João Lazzarotto, iniciativa essa mantida com os recursos da família, mas que ainda não atingiu o formato definitivo. A sua última moradia testemunhava a existência de Poty e lega às futuras gerações uma disposição objetiva de seu passado e a imagem que ele havia fabricado de si mesmo através da conservação de seus papéis e livros. Frequentemente, as representações dos indivíduos são forjadas a partir de construções póstumas. No caso de artistas como Poty, foram as homenagens póstumas expressas em artigos de jornal, que serviram para destacar a “despedida” do amigo e artista. São essas homenagens, segundo Regina Abreu que “recriam a pessoa no templo da 6 INSERIR DADOS BÁSICOS DE O JORNAL 19 memória”7. No caso de Poty, essa percepção da construção da memória, embora em destaque no momento de sua morte, teve início muitos anos antes, no instante em que seus familiares, pais, irmão e esposa, e também ele próprio, decidiram reunir e organizar os papéis de sua vida. Este material, coletado ao longo de várias décadas, dá condições de entender aspectos importantes de sua personalidade e também de sua trajetória artística. A organização de seu arquivo pessoal póstumo coube ao seu irmão João Lazzarotto e à historiadora e restauradora Maria Ester Teixeira. Do ajuntamento e posterior organização do acervo documental de Poty, destacam-se os acontecimentos que delimitaram sua vida em sua trajetória artístico-intelectual, bem como a importância que dava ao bem-estar da família. Em suma, através destes documentos foi possível deixar definido o seu lugar social, suas relações com os seus pares, amigos, contatos profissionais, em uma espécie de esboço de sua oportuna biografia. Na percepção da gestão e organização de um sem número de documentos que destacam a trajetória triunfal do artista, Poty deu condições de se elaborar uma versão de quem havia sido. Mesmo nesse conjunto documental, produzidos em tempos distintos sobre si, fica claro o seu caráter modelar de homem das artes e a grandeza de sua produção artística. Cotejamos algumas poucas missivas sobre sua vida pessoal, que apresentam sua relação com os amigos do momento, contatos profissionais, dentre outros documentos. São abundantes as referências à vida familiar. Estes documentos permitem apontar, entre registros e brechas, aquilo que foi e o que se tornou. Além desse material documental, dispomos de uma agenda da viagem de estudos que fez à França em outubro de 1946, lá permanecendo um ano e quatro meses. Reunimos várias matérias de jornal de críticos artísticos que abordam as diferentes fases pela qual passou e mapeiam as mudanças de técnicas e o seu aprimoramento artístico. Estes materiais apresentam o homem público, o artista e intelectual, e nesse movimento dissimula-se a dimensão privada de sua vida. Essas fontes listadas, servem para ampliar a dimensão cotidiana do artista. Analisar esse corpus exige a observação cautelosa de sua especificidade. Os arquivos privados pessoais podem, segundo Terry Cook, constituir-se como quaisquer outros, e consistir em “(...) evidências das transações da vida humana”8. No entanto, possuem características específicas que os tornam também bastante especiais como fonte para os estudos históricos. 7 ABREU, Regina. A fabricação do imortal. Memória, história e estratégia de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco/ Lapa, 1996, p. 67. 8 COOK, Terry. “Arquivos pessoais e arquivos institucionais: para um entendimento arquivístico comum da formação da memória em um mundo pós moderno”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 21, 1998, p. 131. 20 Qualquer arquivo é classificado, fundamentalmente, a partir da origem de seus documentos, ou seja, pelo processo de acumulação. Os estudiosos da arquivologia ressaltam a importância de se destacar o fato de que arquivos privados de homens públicos - como é o caso do conjunto documental organizado por e sobre Poty – apresentam, frequentemente, problemas para a classificação de seus documentos. Nem todos os documentos do acervo são de caráter privado, pois muitos deles estão relacionados aos desempenhos públicos empreendidos pelo protagonista ao longo de sua vida. Destaque-se que Poty Lazzarotto nunca foi um funcionário público de carreira, apesar de estar constantemente em contato com órgãos de governo, federal, estadual, e municipal, que frequentemente encomendavam obras e monumentos. Segundo Gisele Venâncio9, num arquivo pessoal, é o nome do titular que cria a identidade fundamental do acervo constituído. E é a partir dele que se organiza a série de documentos acumulados. Ocorre que é comum incorrer em erro de análise ao se acreditar como absolutamente verdadeiras as informações e documentos ali contidos. Do que foi escrito e produzido sobre a arte de Poty podemos indicar, em um primeiro momento, a crítica especializada publicada em artigos de jornal que abordam a produção efetuada ao longo dos anos de trabalho como ilustrador, gravador, desenhista e muralista. Este material enaltece Poty como um dos mestres das artes gráficas brasileiras que teve a maior parte de sua produção executada ao longo de aproximadamente 60 anos (1938 até 1998). Artigos de jornal elogiosos à sua qualidade de gravador (xilogravura, litografia, ponta-seca, água-forte) são inúmeros. Estes textos foram produzidos por amigos, artistas e jornalistas. Destacamos primeiramente o livro produzido por Orlando da Silva, e publicado em 198010, intitulado Poty, o artista gráfico. Este livro apresenta edição de grande dimensão, o que privilegiava a apreciação dos trabalhos de gravura de Poty. O autor também apresenta ao leitor uma breve biografia do artista, procurando destacar as suas influências no campo cultural, suas referências de menino, elaborando um percurso para se descobrir e apreciar a qualidade gráfica de Poty. Já em 1975, o jornalista e amigo Valêncio Xavier11 produziu conjuntamente com Poty o livro de memórias Curitiba, de nós12, que foi posteriormente reeditado. E uma biografia-homenagem ilustrada, intitulada Poty, trilhos, trilhas e traços13 foi publicada em 1986. 9 VENÂNCIO, G. M. Na trama do arquivo : a trajetória de Oliveira Vianna (1883-1951). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 340. 2003 10 DASILVA, Orlando. Poty, o artista gráfico. Curitiba: Fundação Cultural Curitiba, 1980. 11 Valêncio Xavier Niculitcheff (São Paulo, SP 1933 – Curitiba, PR 2008). Importante jornalista radicado na cidade de Curitiba-Pr., cineasta e escritor reconhecido pela crítica como um dos mais importantes de sua geração. 12 NICULITCHEFF, V. X. Curitiba de nós. Curitiba: Nutrimental, 1975. 13 NICULITCHEFF, V. X. Poty: trilhos, trilhas e traços. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba, 1994. 21 Já no campo acadêmico, iniciou-se no final do século XX e princípio do XXI, um processo de análise e estudo de sua obra. Estes trabalhos abordam uma variedade de temas, estilos e épocas. Pesquisadores como Adalice Araújo, Miguel Sanches Neto, Fabrício Vaz Nunes, Sônia Regina Lourenço, Sônia Gutierrez, Luciano Buchmann, e Luciana Ferreira, por exemplo, em diferentes momentos, problematizaram aspectos importantes contidos na obra de Poty. Ocorre que, por causa da sua longevidade como artista plástico, não é, e nem nunca foi possível dar conta de todos os aspectos inerentes à sua produção. Existem nos trabalhos dos pesquisadores elencados acima alguns pontos em comum como, por exemplo, a narrativa sobre a biografia do artista. Os pontos que os diferenciam dizem respeito aos enfoques analíticos por eles adotados, nas singularidades dos aspectos contidos em sua obra, e que são passíveis de análise. De qualquer maneira, nenhum pesquisador se propõe a esgotar em sua análise a complexidade e variedade da obra artística produzida por Poty. Araújo14 pode ser considerada a precursora dos estudos acadêmicos contemporâneos sobre o campo das artes plásticas paranaenses. Em trabalho produzido em 1974, esta autora estabelece uma série de parâmetros conceituais e analíticos que hodiernamente servem de baliza para os estudos vinculados às artes plásticas no Paraná. Neste estudo, estabelece alguns parâmetros de classificação da arte paranaense tais como: a comprovação da hipótese da existência de uma arte própria do Paraná como resultado de um fenômeno social; que as artes plásticas no Paraná seguiram o curso de uma infraestrutura básica que posteriormente possibilitou uma evolução deste campo; estabelece que a obra artística de Poty e Guido Viaro (1897-1971)15 estão vinculadas a um “modernismo de integração” iniciado com a geração de 1940, que se distingue das gerações anteriores justamente por sua liberdade no fazer artístico quando introduzem uma “linguagem subjetiva”; analisar os artistas modernos e contemporâneos e suas obras, situando a “arte contemporânea paranaense como o atingimento do clímax de um processo”; demonstrar a necessidade da aproximação entre a arte que se produz no interior do estado com a produzida na capital. Sanches Neto16analisa o fenômeno do surgimento das revistas jovens no Brasil, por ele classificadas como responsáveis pela mudança da “geografia literária no pós-guerra”, situando 14 ARAÚJO, A. Arte paranaense moderna e contemporânea: em questão 3.000 anos de arte paranense. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, p. 384. 1974. 15 Guido Viaro, italiano de nascimento, chegou a Curitiba em 1928 vindo da cidade de São Paulo. Segundo relato descrito por Osinski, o artista não tinha, à princípio, destino definido. Calhou de a capital paranaense estar em seu caminho e foi ali que estabeleceu moradia e constituiu família. Posteriormente, a duras penas, conquistou um espaço no campo artístico curitibano. Ver (OSINSKI, 2006, p. 27). 16 SANCHES NETO, M. A reinvenção da província: a revista Joaquim e o espaço de estréia de Dalton Trevisan. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas, p. 432. 1998. 22 a revista paranaense Joaquim, publicada entre 1946 e 1948, como representante do movimento cultural periférico que ganha visibilidade e alcança o patamar de centro de cultura. Neste estudo, denominado pelo autor como ensaio analítico, o protagonismo de Dalton Trevisan (principal articulador deste movimento de renovação, e a relação dele com outros jovens artistas plásticos, jornalistas, poetas e intelectuais brasileiros) ganha destaque pela relação estabelecida entre eles ao redor da Joaquim. Já a tese de Nunes17, tem como objeto as afinidades entre o texto literário e as ilustrações de Poty para obras de ficção em prosa. Seu embasamento teórico foi elaborado através da reassunção de aspectos reflexivos das semelhanças entre a literatura e as artes visuais. O autor recupera o percurso desde a tradição clássica da Antiguidade, passando pelo período do Renascimento, para enfim situar este debate à lume das teorias contemporâneas relativas ao conceito de imagem. Neste trajeto analítico, a metodologia empregada consistiu basicamente na comparação entre as imagens e o texto, identificando os elementos escolhidos como tema para as ilustrações e descrevendo como o ilustrador representou graficamente estes elementos, no intuito de alcançar uma interpretação da narrativa ficcional. A dissertação de Lourenço18, apresenta a trajetória social de Poty estabelecendo o gênero biográfico como locus privilegiado de análise. Segundo a autora, seu estudo pretendeu possibilitar uma “análise antropológica ancorada na perspectiva de um “presente etnográfico” ligado aos estudos de identidade individual e social”, no qual o objetivo básico foi efetuar uma narrativa de cunho historiográfico elegendo a memória individual como estatuto principal do estudo. A obra gráfica de Poty foi também estudada por Gutierrez19. A partir da análise da revista Joaquim, o autor destaca a possibilidade de diálogo intertextual estabelecido pelo autor- escritor Dalton Trevisan e a produção imagética do artista-ilustrador. Buchmann20 analisa uma série de projetos pedagógicos desenvolvidos por professoras das escolas municipais de Curitiba na esfera do Programa Escola Universidade, onde a obra de Poty foi tema principal. Ao aplicar a metodologia qualitativa interpretativa crítica, o autor afirma que a popularidade de Poty na cidade de Curitiba é uma constante justamente por causa 17 NUNES, F. V. Texto e imagem: a ilustração literária de Poty Lazzarotto. Universidade Federal do Paraná – UFPR - Programa de Pós-graduação em Letras, Área de Estudos Literários. Curitiba, p. 1009. 2015. 18 LOURENÇO, S. R. Poty: O artesão e as metrópoles: A trajetória de um viajante moderno. 2001. 242 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2001. 19 GUTIERREZ, S. Poty Lazzarotto e Dalton Trevisan: Entretextos. 2002. 196 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Linguagens) Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2002. 20 BUCHMANN, L. P. 2007. Reprodução da ideologia dominante em aulas de artes de Curitiba: a influência dos painéis de Poty Lazzarotto. 2007. 244 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) Mestrado em Artes Visuais. Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. Florianópolis, 2007. 23 da quantidade de obras públicas por ele produzidas e distribuídas pela cidade. Ao analisar a participação das professoras integrantes do Programa, Buchmann conseguiu detectar alguns pontos em comum, dentre eles o uso da releitura da produção plástica, a contextualização limitada e a reprodução da ideologia dominante, no caso a Paranista. Segundo Camargo, o Paranismo, como o entendemos neste estudo, é resultado do ambiente formado desde as últimas décadas do século XIX para a edificação de uma identidade no Paraná. Foi definido oficialmente em termos estético-ideológicos por Romário Martins em 1927 e tem uma curta mas ativa presença institucional até o encerramento da circulação da revista Ilustração Paranaense, em 1931. Seus efeitos, porém, foram a tal ponto naturalizados no imaginário paranaense que podem ser notados ainda hoje em muitas formulações oficiais ou individuais.21 Esta ideologia foi desenvolvida por um grupo de artistas e intelectuais no início do século XX. Ela estabelecia alguns signos identitários para a população paranaense, dentre eles as imagens da gralha-azul, do pinhão e do pinheiro, junto a imagens de caráter social, do trabalhador e do trabalho. Estas imagens foram encontradas em abundância na obra pública urbana de Poty e certamente moldam o olhar das crianças para a estética paranista. O trabalho de Ferreira22 apresenta um estudo dos murais produzidos por Poty e utilizados como um dos veículos de comunicação mais recorrentes da Administração Pública de Curitiba, principalmente entre as décadas de 1950 e 1990. Como arte pública, estes murais ofereceram ao espectador elementos identificadores da cidade estabelecendo um conjunto de símbolos que, ao longo do tempo, serviram para consolidar uma imagem de Curitiba como cidade ideal. As teses de Araújo e Sanches Neto aprofundam os estudos culturais paranaenses ao abordar este desenvolvimento em duas frentes: as artes plásticas e o da teoria literária. Os dois trabalhos situam a obra artística de Poty como uma importante contribuição no sentido de colaborar com uma reorganização da expressão cultural que consegue ultrapassar o campo cultural paranaense. Já a análise literária de Nunes extrapola os limites geográficos paranaenses ao abordar os diferentes livros ilustrados por Poty que tiveram distribuição nacional. 21 CAMARGO, G. L. V. D. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná. 1853 - 1953. Universidade Federal do Paraná - Pós-Graduação em História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba, p. 215. 2007. 22 FERREIRA, L. A importância da relação entre a arte pública e a cidade: Uma análise dos murais de Poty Lazzarotto. 2004. 80 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Linguagens) Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2004. 24 As dissertações e teses elencadas acima abordam múltiplos aspectos da obra artística de Poty, dentre os quais situam-se as influências provocadas tanto nos transeuntes que frequentam os espaços urbanos curitibanos, quanto nas educadoras que as apresentam durante suas aulas. A leitura desses trabalhos acadêmicos produzidos sobre Poty ajudou a definir nosso recorte temporal (1945-1970) que está em consonância com um recorte temático que privilegia as ilustrações publicadas em O Jornal, entre os anos de 1945 a 1957. E, igualmente, perscrutar outras obras do artista, presentes em outros suportes, a exemplo dos livros e murais, como já mencionado anteriormente. Certamente a sua contribuição é bem maior, mesmo na imprensa. Poty publicou, por exemplo, no período compreendido entre os anos de 1945 a 1960, nos seguintes periódicos: Diário da Tarde – PR (1938-1948), Diário Carioca – RJ (1944-1960), Gazeta de Notícias – RJ (1943-1950), Ilustração Brasileira – RJ (1953), Jornal do Brasil – RJ (1946-1960), Leitura – RJ (1948-1960). Ressaltamos que as datas indicam a primeira e a última referência ao artista, e em alguns casos ocorre uma única menção. Esse material, entretanto, não será investigado na presente tese. As ilustrações dos jornais foram lidas sob outros aspectos. Percebemos que elas também nos apresentam as propriedades da expressão artística por meio das gravuras e aprimoradas ao longo dos anos. Por meio delas, pudemos desvelar uma trajetória artística (e de vida) em ascensão, não só pela qualidade dos trabalhos produzidos quanto pela sua rede de contatos amplos no mundo intelectual e dos amigos que o cercavam. Tal recorte temporal foi escolhido por nós por ser um período da história brasileira definidor de uma série de características culturais e políticas, e a inserção do artista neste circuito de produção cultural possibilita-nos a interpretação do mundo político e social em que viviam. Apesar de afirmar que ilustrou de “maneira ligeira” notícias e contos nos jornais que colaborou, não nos foi possível localizar a totalidade deste material de ilustração, talvez porque os trabalhos a que se refere não tenham assinatura clara – o que inviabiliza a busca no acervo virtual da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Optamos por apresentar apenas algumas destas ilustrações em ordem alfabética por periódico, com foco maior em O Jornal, considerando ser impraticável analisar todas as ilustrações tendo em vista a quantidade considerável de material por ele produzido. Os periódicos por nós listados e todas as imagens, citações e referências que apresentamos sobre o trabalho de Poty nos meios de comunicação foram obtidas nos arquivos da Hemeroteca Digital Brasileira, Acervo da Fundação Biblioteca Nacional ─ Brasil. De outra forma não nos seria permitido efetuar este levantamento tendo em vista a grande quantidade de referências à sua trajetória artística. Neste levantamento, optamos por utilizar os nomes “Poty” 25 ou “Lazzarotto” como termos principais da busca. O sistema de busca do acervo digital da hemeroteca identifica todas as ocorrências com uma mancha verde o que possibilita uma rápida visualização do termo.23 O campo de estudos acadêmicos dedicados a problematizar as questões envolvidas na análise dos periódicos e do meio jornalístico como importante fonte para as pesquisas históricas é vasto e bastante qualificado em seus métodos e teorias. Neste sentido, as contribuições de Tania Regina de Luca e Ana Luiza Martins Camargo de Oliveira são fundamentais para a compreensão deste objeto de pesquisa. As historiadoras tem uma grande produção na abordagem destas fontes e seus estudos problematizam qualitativamente o debate envolto nestas questões. Luca afirma: O pesquisador dos jornais e revistas trabalha com o que se tornou notícia, o que por si só já abarca um espectro de questões, pois será preciso dar conta das motivações que levaram à decisão de dar publicidade a alguma coisa. Entretanto, ter sido publicado implica atentar para o destaque conferido ao acontecimento, assim como para o local em que se deu a publicação: é muito diverso o peso do que figura na capa de uma revista semanal ou na principal manchete de um grande matutino e o que fica relegado às páginas internas.24 Neste sentido, as ilustrações produzidas por Poty para O Jornal, também estão inseridas no “espectro de questões” a que a autora se refere, o que denota a complexidade de se analisar as imagens inseridas na mídia impressa e os necessários cuidados metodológicos daí advindos. Já Martins, também abordando em suas pesquisas a mídia impressa, e em particular a importância das revistas na formação de um ideário nacional no Brasil, em particular no estado de São Paulo, aponta para a complexidade do estudo dos periódicos enquanto fonte histórica. Conforme afirma, (...) Intermediando o jornal e o livro, as revistas prestaram-se a ampliar o público leitor, aproximando o consumidor do noticiário ligeiro e seriado, diversificando-lhe a informação. E mais – seu custo baixo, configuração leve, de poucas folhas, leitura entremeada de imagens, distinguia-o do livro, objeto sacralizado, de aquisição dispendiosa e ao alcance de poucos. (...) Enquanto o jornal, pelo propósito de informação imediata, caminhou para a veiculação diária, a revista, de elaboração mais cuidadosa, aprofundando temas, limitou-se à periodização semanal, quinzenal, mensal, trimestral ou semestral, por vezes anual. No curso da trajetória da revista, contudo, um marco revolucionário na imprensa da época: os recursos da ilustração. Certo que de há muito, desde os incunábulos, a ilustração se fizera presente nos textos, diversificando-se com o passar dos anos através de iluminuras, xilogravuras, litogravuras, águas-fortes. Contudo, o extraordinário avanço técnico registrado na Europa, a partir do último quartel do 23 INSERIR NOTA COM O ENDEREÇO DO SÍTIO DA HEMEROTECA 24 LUCA, T. R. D. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 140. 26 século XIX, foi amplamente utilizado pelos periódicos, enriquecendo ainda mais aquelas publicações, transformadas em objetos atraentes, acessíveis até mesmo ao público menos afeito à leitura, se não à população analfabeta, que recebia as mensagens através dos desenhos grafados de forma visualmente inteligível.25 Ao buscarmos analisar historicamente a produção artística de Poty neste período inicial de sua carreira artística, intentamos destacar a conquista de uma posição em um circuito de sociabilidade, intelectual e artística no Brasil que avança aos anos 1960 e subsequentes. Este circuito de sociabilidades constituiu-se juntamente com a produção das ilustrações jornalísticas e literárias. Geralmente não temos acesso à totalidade das relações estabelecidas entre estas pessoas. Porém, mesmo diante da incompletude desta documentação, várias inferências podem ser realizadas e a análise ganha mais densidade e qualidade. O historiador Jean-François Sirinelli, ao descrever o que denomina de “estruturas elementares da sociabilidade”, afirma: As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual por meio de forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as subentendem, as fidelidades que arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas. Ao mesmo tempo que um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas são aliás um lugar precioso para a análise do movimento das ideias26. Este ambiente de sociabilidade, onde o “movimento das ideias” é posto em ação, também pode ser estendido às redações de jornal e aos protagonistas envolvidos neste processo. Nisto redunda a constatação de que jornalistas, intelectuais, técnicos e artistas, juntamente com as adesões e cisões deste “movimento”, trabalham em conjunto para viabilizar uma publicação. Para alcançar o intento de nosso trabalho, partimos da premissa de que Poty também pode ser classificado como importante intelectual do mundo das artes plásticas, inserido em um circuito de produção cultural vigoroso no Brasil do século XX, onde tanto seus pares, quanto seus amigos se identificavam com o tipo de arte que produzia. Para situá-lo no campo intelectual brasileiro do período escolhido, faz-se necessário elencar algum dos intelectuais com quem convivia, e as ilustrações por ele produzidas dentre os diferentes tipos de colaboração estabelecida entre eles. Constatamos que ao longo do tempo Poty foi se relacionando com diferentes pessoas do mundo das artes, da intelectualidade e da política brasileira. A lista é significativa, tendo em vista a longevidade da produção do artista, e também, imprecisa em razão da impossibilidade 25 MARTINS, A. L. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890- 1922). São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008. p.40. 26 SIRINELLI, J.-F. Os intelectuais. In: RÉMOND, R. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. Cap. 8, p. 249. 27 de se arrolar todos aqueles que interagiram com o artista ao longo de sua vida. Mesmo assim, indicamos algumas pessoas que, em seu tempo, foram formadoras de opinião e sinalizadores dos percursos artísticos empreendidos por Poty. Da sua viagem de estudos à França, em 1947, Poty registrou algumas ideias, percepções, opiniões, enfim, anotou ao longo de um ano e quatro meses um pouco das impressões que colheu. Neste material, em particular a agenda de viagem, estão registrados alguns nomes de pessoas às quais ele teve contato na França, muitos com endereço e telefone de Paris e adjacências, alguns com endereço e telefone no Brasil. Dos contatos inscritos na agenda de 1947, destacamos, Cândido Portinari, Augusto Rodrigues, Antonio Bandeira, Carlos Oswald, Cícero Dias, Clóvis Graciano, Dalton Trevisan, Fernando Pamplona, Yllen Kerr, Renina Katz, Quirino Campofiorito. Os elementos basilares que possibilitaram a Poty alcançar um lugar de destaque no horizonte artístico nacional foram inicialmente firmados na cidade de Curitiba no primeiro terço do século XX. O Paraná também vivenciou um movimento emancipatório no campo das manifestações artísticas. Poty participou deste momento na expressão artística paranaense em que se ensejavam as discussões entre os opositores dos campos artísticos mais “modernos” em contraposição ao que se admitia como “regra” para a boa execução das obras artísticas. Esse é um ponto interessante, já que o artista transitou pelas duas fontes. Tomou contato bem cedo com a já combalida arte parnasiana, simbólica, acadêmica, professada pelos defensores do Paranismo; afinal era o que se valorizava, principalmente em Curitiba. E travou laços de amizade com alguns dos jovens que buscavam se destacar nesse meio conservador limitador das manifestações artísticas mais livres. O seu amigo Dalton Trevisan27 era uma das vozes dissonantes mais atuantes no movimento de jovens intelectuais curitibanos que intentavam pensar a cidade como capital cultural do Paraná. Para isso, optou por debater suas ideias com os detentores dos meios de formação de opinião existentes no período através da criação de uma revista. Dalton e Poty empreenderam uma amizade intelectual que culminou com o surgimento da revista de crítica cultural “Joaquim”. A revista existiu entre os anos de 1946 a 1948, tendo ao todo 21 edições. Seus colaboradores curitibanos da revista, posteriormente foram conhecidos como “Geração de 1945”. Joaquim foi publicada em um momento singular, tendo em vista o contexto mais amplo de término da Segunda Grande Guerra, e nacionalmente a eclosão das discussões sobre a 27 Nascido em 1925, em Curitiba, Dalton Trevisan é um escritor que não faz concessões: não dá entrevistas, não se deixa fotografar, não conversa com leitores, não recebe prêmios, nem participa de encontro de escritores. Participou ativamente da organização da revista modernista curitibana Joaquim, cujo primeiro número é de abril de 1946. In: WALDMAN, B. Tiro à queima-roupa. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 77 , Março 2007. 255-259. 28 bipolarização da democracia ante o socialismo. Já regionalmente, nas artes em geral, foi uma engenhosa renovação por parte de um grupo de jovens que não se identificava com os movimentos artísticos-culturais em voga na capital paranaense baseados nas questões estéticas provincianas de Curitiba, conforme o pensamento original de Dalton Trevisan. A ideia fundamental da revista era arquitetar a construção de um ambiente cultural diferente, apresentar novas correntes e ultrapassar os valores estéticos provincianos, ambiência essa que será abordada nos capítulos seguintes. Com relação à abordagem utilizada para circunscrever nosso objeto, bastante úteis foram as contribuições metodológicas, dentre outros, de Jorge Coli e Zélia Lopes da Silva. Segundo Silva, o debate em torno da problematização das fontes históricas perpassou a fonte pictórica objetivando retirar as simplificações ilustrativas sobre elas. A autora apresenta o percurso metodológico por ela trilhado quando da confecção de seu trabalho sobre a ação dos representantes dos trabalhadores e industriais na Assembleia Constituinte ocorrida entre os anos de 1933/1934, onde além das clássicas fontes oficiais (tais como atas de reuniões, documentos parlamentares, discursos, debates, enfim, no sentido de ampliar o alcance e sua análise), também se dedicou a estudar a iconografia produzida no período em que ocorreram essas ações políticas, em especial as obras de Tarsila do Amaral que tinham como tema os trabalhadores e a metrópole. O caminho por ela trilhado valorizou a análise iconográfica, buscando situar não só a obra, mas também procurando abordar a vivência do artista. A questão posta é a do debate em torno da natureza das fontes. Para a autora a análise da obra de arte passou pela inscrição dos debates no campo do imaginário como algo distinto do real, segundo ela, “colocando dessa maneira obstáculos ao uso dessa fonte pelo historiador uma vez que o seu ofício definia-se em torno do acontecido e não de elaborações que se inscreviam no campo das representações”28. A autora nos remete à discussão, por nós abordada, sobre a natureza das fontes históricas e qual a melhor maneira de tratá-la metodologicamente. Essa ação consiste num desafio para o historiador, pois o mesmo é levado a privilegiar a fonte escrita tendo em vista a falta de preparo teórico para uma discussão mais aprofundada no campo das imagens. O historiador aprende a trabalhar com as imagens, enfrentando o desafio durante o seu processo de pesquisa, e para isso vai ao longo de seu percurso investigativo construindo os necessários mecanismos de análise. Não acreditamos haver uma única e pronta metodologia de investigação, mesmo porque os enfoques e, principalmente, é o nosso caso, a produção artística de Poty é singular. 28 SILVA, Z. L. D. Os dilemas da pesquisa: as fontes oficiais e a imagética. In: CREDDO, M. D. C. S. D. Fontes históricas: abordagens e métodos. Assis: Edunesp, 1996. p. 43. 29 Já para Jorge Coli29, é preciso que os estudiosos das obras de arte desenvolvam um cabedal de conhecimentos prévios sobre história e história da arte que objetivamente os retirem da atual e precária situação em que se encontram. Para Coli, os estudiosos contemporâneos desconhecem o meio cultural no qual a obras foram produzidas, quais os artistas em que se inspiraram, ou até mesmo em que debate estético e/ou artístico estavam inseridos, com quem dialogavam. Chegou-se a essa situação por privilegiar-se as ilustrações históricas apenas como ilustração de uma situação imaginária, que não encontraria correspondente no real. Essa constatação, encurtou o olhar de quem toma como objeto de estudo o século XIX, principalmente no que diz respeito à sua iconografia. Assim, sugere “...colocar de lado as noções e interrogar as obras. (...) é preferível tomar esses quadros como projetos complexos, com exigências específicas e precisas, muitas vezes inesperadas”30. Ainda segundo o autor, ao estudioso cabe descer do pedestal acadêmico e interrogar com mais profundidade e propriedade as obras de arte que se quer analisar, deixando em segundo plano as regras que as situam em escolas ou movimentos estéticos e artísticos. Para ele os quadros são fruto de um esforço originado em um projeto de representação complexo, específico, e por isso mesmo difícil de delinear esquematicamente. Não cabe mais ao estudioso elaborar análises insuficientes carregadas de ideologismos, mas sim perscrutar a esfera de atividades dentre as várias possíveis, os movimentos artísticos, políticos e sociais, em que os artistas estavam inseridos. “Essa atitude não é “ingênua” ou culturalmente desarmada. Ao contrário, ela pressupõe uma revisão no saber. São – se se quiser – precauções metodológicas em um momento de mudanças de posições. Seja como for, diante de qualquer obra, o olhar que interroga sempre me pareceu mais fecundo do que o conceito que define”31. Para nós que estamos historicamente situados no alvorecer do século XXI fica difícil, ao apreciar uma obra de arte produzida em séculos anteriores, dar conta de todos os aspectos que incidiram desde o momento de sua concepção até o toque final. Coli nos dá algumas pistas para resolver este problema ao demonstrar a existência de um intenso debate no século XIX sobre a História da Arte. Assim, obras do gênero da pintura histórica de grandes proporções, para nós aparentemente incompreensíveis, em um primeiro momento, tem uma razão de ser e fazem parte de um intenso debate estabelecido entre os artistas que comumente dialogavam uns com 29 COLI, J. A pintura e o olhar sobre si: Victor Meirelles e a invenção de uma história visual no século XIX brasileiro. In: FREITAS, M. C. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2001. 30 COLI, idem, 2001, p. 375. 31 COLI, ibidem, 2001, p. 375. 30 os outros através das obras, fruto de seu trabalho. Mesmo os gêneros mais abstratos de ilustrações que surgiram já no final do século XIX guardam em sua produção, referências e citações diretas e indiretas que podem auxiliar na apreensão de toda a sua gama de significados. Outros teóricos refletiram sobre diferentes aspectos relativos a esse tipo de fonte e que serão suportes para nossas reflexões considerando as suas possibilidades que têm mobilizados não só dos historiadores32, mas também os estudiosos das ciências humanas. Face ao exposto, o nosso posicionamento frente a essa discussão parte do pressuposto de que as artes, em especial as artes plásticas, também são detentoras de uma dada historicidade, e que o historiador ao se dedicar ao estudo sobre as suas manifestações, estabelece um diálogo não só com o artista que a produziu, mas também com a sociedade da qual o mesmo é oriundo. Assim, estudar as obras de arte e o meio no qual foram produzidas delineando o recorte historiográfico, certamente contribui para o desvendamento de contextos históricos, suas dinâmicas e especificidades. Marcos Napolitano, por exemplo, delineia toda uma série de diferentes componentes que estão inseridos em uma obra de arte, e que à primeira vista não são perceptíveis. A apresentação dessa gama de aspectos interpretativos nos dá uma base teórica que nos auxilia a detectar as tramas por onde foram compostas a obra e as peculiaridades específicas contidas em cada produção. Para Roger Chartier as mais diversas percepções do social não são de forma alguma discursos neutros ou destituídos de sentido político, valores éticos ou referenciais culturais. Assim, também as imagens surgem repletas de mensagens e representações acerca da cultura e do seu tempo histórico. De acordo com o autor, as representações do mundo social são fruto dos conflitos e das batalhas ideológicas ocorridas entre os diferentes grupos que constituem as sociedades. Nesse sentido, a realidade social é uma construção vitoriosa em detrimento de outra visão, ou entendimento, de outras possibilidades de explicação do real. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (...) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para aos próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (...) Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social (...) muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais33. 32 Sobre a questão do debate em torno das fontes e métodos de análise histórica, cabe lembrar também que dentre os vários autores que se dedicaram a analisá-la, alguns contribuíram para a riqueza da discussão: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1997; GINZBURG, C. O queijo e os vermes. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1987; HOBSBAWN, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1984. 33 CHARTIER, R. A história cultural - entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. p. 17. 31 Perceber a realidade na qual se está inserido não é uma atitude ingênua ou descomprometida, tendo em vista a questão da produção de discursos que justifiquem determinada situação em detrimento de outras. Para o autor essa manifestação é passível de percepção através dos conteúdos dos discursos que os indivíduos proferem e que servem para justificar determinadas práticas. Chartier afirma que haveria uma falsa divisão na compreensão do que seria o campo da história envolvendo determinado grupo ou meio. Para ele a dicotomia “objetividade das estruturas” versus “subjetividade das representações” também é uma forma de se mascarar os discursos e distanciá-los do real. Para o pesquisador conseguir romper com essa barreira impeditiva da compreensão do real, faz-se necessário que entenda como os discursos são forjados no interior de cada grupo ou meio em que estão inseridos os agentes sociais. Esse procedimento é por ele denominado “esquemas geradores das classificações e das percepções”. Nesse sentido, a busca pela compreensão da realidade também passa pela “noção de representação coletiva” o que pressupõe articular diferentes componentes explicativos, de forma a elaborar um quadro referencial suficientemente claro para perceber as nuanças apresentadas nos discursos que justificam as diferentes formas de apropriar-se do termo “função simbólica” no sentido de confrontar os diferentes aspectos que permitem compreender o real. Assim, por exemplo, os elementos explicativos contidos nos símbolos linguísticos, nas alegorias mitológicas ou na religião, servem como mediadores na busca por esse entendimento. Segundo Chartier, as categorias e processos que auxiliam a compreender as representações são denominadas de “formas simbólicas”. Propomos que se tome o conceito de representação num sentido mais particular e historicamente determinado. A sua pertinência operatória para tratar os objetos aqui analisados resulta de duas ordens de razões. Em primeiro lugar, é claro que a noção não é estranha às sociedades de Antigo Regime, pelo contrário, ocupa aí um lugar central. (...) As definições antigas do termo (...) manifestam a tensão entre duas famílias de sentidos: por um lado, a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro, a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de alguém34. 34CHARTIER, 1990, idem, p. 20. 32 Para o autor, o conceito representação é historicamente determinado, não sendo uma mera criação surgida do nada. Segundo ele, A relação de representação – entendida, deste modo, como relacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme – modela toda a teoria do signo que comanda o pensamento clássico e encontra a sua elaboração mais complexa com os lógicos de Port-Royal. Por um lado, são as suas modalidades variáveis que permitem distinguir diferentes categorias de signos (...) e que nos permitem caracterizar o símbolo (...) na sua diferença relativamente a outros signos. Por outro lado, ao identificar as duas condições necessárias para que uma relação desse tipo seja inteligível (...) o conhecimento do signo enquanto signo (...) e a existência de convenções partilhadas que regulam a relação do signo com a coisa -, a Logique de Port-Royal coloca os termos de uma questão histórica fundamental: a da variabilidade e da pluralidade de compreensões (...) das representações do mundo social e natural propostas nas imagens e nos textos antigos.”35 Imagem presente, objeto ausente, reside aí a compreensão dos signos sociais, das convenções sociais que os regulam, bem como a diversidade de possibilidades de compreensão do mundo, seja esse mundo social ou natural. Um exemplo disso é a profusão de imagens e textos que buscam “representar” as sociedades antigas. (...) note-se que a distinção fundamental entre representação e representado, entre signo e significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social de Antigo Regime. Todas elas tem em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação (...) Ao tratar da imaginação, Pascal põe a nu esse funcionamento da que leva a crer que a aparência vale pelo real (...) Mas lidando apenas com ciências imaginárias, é-lhes necessário lançar mão desses vãos instrumentos que impressionam a imaginação daqueles com que tem de tratar; e é deste modo, que se dão ao respeito. A relação de representação é assim confundida pela ação da imaginação (...) Assim deturpada, a representação transforma-se em máquina de fabrico de respeito e de submissão, num instrumento que produz constrangimento interiorizado, que é necessário onde quer que falte o possível recurso a uma violência imediata”36. 35CHARTIER, 1990, ibid., p. 21. 36 CHARTIER, 1990, ibid., p. 21. 33 Na representação da sociedade do Antigo Regime é mais eficiente o aspecto exterior de determinado sujeito ou a situação do que a sua essência constitutiva. Ocorre uma teatralização da vida social, segundo ele, considerando que “a aparência vale pelo real”. O exemplo da compreensão da teatralização ocorrida no Antigo Regime é interessante, pois permite utilizar essa percepção em outros momentos, o que nos dá uma base satisfatória para explicar distintos tipos de sociedade, suas estratégias de dominação, as diferentes posições sociais e seus diversos atores, o que no fundo nos permite apreender um pouco mais a respeito das variadas identidades dos sujeitos envolvidos nesse processo. O retorno às antigas significações, segundo Le Goff, possibilita uma melhor forma de se pensar o atual conceito de representação. Para se compreender esse processo o autor indica três modalidades nesta relação com o mundo social: “o trabalho de classificação e delimitação”; as práticas para se reconhecer uma identidade social e “as formas institucionalizadas”. Nesse sentido, as diferentes variáveis são desnudadas, o que torna possível dimensionar a complexidade desse movimento de percepção do mundo social. Nessa direção, torna-se salutar retomarmos outro conceito igualmente importante para o desenvolvimento desse estudo – o de memória –, cujo componente é fundamental para a apreensão do mundo em que estamos inseridos. Le Goff37 já afirmara quão imperativa é a necessidade de se reordenar as informações, lembranças, sentimentos e vivências por nós experimentadas ao longo de nossa existência. Assim, é possível perceber no rol de fontes de, e a respeito, de Poty, uma trajetória que valoriza o indivíduo como um self made man¸ virtuoso e vitorioso em sua trajetória artística, no sentido de uma construção de sua história de vida que só faz sentido quando observada retrospectivamente. Justamente porque este reordenamento biográfico aparou possíveis arestas que prejudicariam a virtuose artística do indivíduo. Através da obra de Poty, intentamos apresentar algumas reflexões sobre o ofício do historiador, e a elaboração de uma metodologia de análise que ajude a dar conta de apresentar e discutir a produção pictórica de um artista plástico. Para esta análise, partimos das reproduções de seus desenhos e gravuras que estamparam vários periódicos nos quais trabalhou, em especial O Jornal, e também trazemos a lume a sua participação em exposições de arte, as escolinhas de gravura que fundou e/ou ajudou a viabilizar, bem como as ilustrações de livros e o início de sua incursão na produção de murais. Os fundamentos teóricos da gravura e outras operações técnicas desse campo, já integram significativo cabedal de conhecimento entre diferentes autores da área. As suas variações, sucintamente, aparecem classificadas em verbete, por Porta, nos seguintes termos: 37 LE GOFF, J. História e memória. 2ª. ed. Campinas, SP: Unicamp, 1992. p. 424. 34 Gravura. A arte de gravar. (...) Estampa ou qualquer outra ilustração obtida por não importa que processo de gravura (...) Podem os diversos processos de gravura distribuir- se pelos três grupos seguintes: a) Gravura em relevo, ou estereográfica, que compreende todos os procedimentos que dão uma matriz em relevo, própria para a impressão tipográfica, como a xilografia, linoleogravura e fotogravura; b) Gravura planográfica, ou seja, com matriz plana: litografia, fototipia; c) Gravura funda, calcográfica ou em oco, na qual a matriz, escavada, recebe a tinta nos entalhes que representam a imagem, passando-a para o papel mediante pressão do torculo ou de máquinas especiais, ditas calcográfica. Este grupo inclui a gravura ao buril, ponta-seca, água-forte, aquatinta, maneira negra, verniz-brando, pontilhado, heliogravura, rotogravura, etc38. Fato inconteste é que Poty galgou posições no campo artístico brasileiro trabalhando tenazmente o exercício da gravura. Neste percurso, buscou dominar as técnicas à disposição no contexto artístico brasileiro, e aprimorou muitos dos processos apreendidos na sua estadia em Paris, capital da França. Na busca pelo domínio da perícia técnica, também formou artistas39 interessados em aprender seus métodos, mas para além da transmissão do conhecimento, pessoalmente, colocou à prova a sua criatividade, tendo durante a década de 1950 participado de muitas mostras competitivas e exposições, tanto coletivas, quanto exibições solo de sua proposta artística. Poty foi um homem do seu tempo, ou seja, sofreu influências e dialogou com diferentes atores ao longo de sua trajetória artística. Essa movimentação ocorre dentro de um contexto de influências e mobilidade cultural bastante particulares. Para tanto, faz-se necessário apresentar o Paraná daquele período, buscando alargar o contexto sociocultural que propiciou o surgimento do artista Poty, bem como destacar os movimentos ideológicos, políticos e econômicos da Curitiba, e, por conseguinte, o Paraná de inícios do século XX. Para expor tal percurso, esta tese se estrutura em quatro capítulos. O capítulo inicial apresenta informações sobre a vida e a trajetória artística e profissional de Poty Lazzarotto. Neste capítulo apresentamos alguns dados biográficos que nos auxiliam a desvelar a trajetória do artista na trilha que o qualificou até alcançar uma posição de destaque no campo das artes plásticas brasileiras. No segundo capítulo abordamos analiticamente a participação de Poty na imprensa periodista carioca, com destaque para a sua participação como ilustrador no periódico O Jornal, no período compreendido entre os anos de 1945 a 1957. A essa parte da trajetória artística e profissional de Poty os estudos acadêmicos apenas se referem genericamente, mencionando que ele viveu no Rio de Janeiro e trabalhou em alguns jornais naquele período. 38 PORTA, F. Dicionário de Artes Gráficas. Porto Alegre: Editora Globo, 1958. p. 189. 39 Destacamos que existia um intenso trânsito entre os artistas brasileiros residentes no Rio de Janeiro do período, então capital federal, no qual era comum a troca de opiniões e experiências artísticas. Naquele momento, Poty chegou a constituir um atelier de gravura por onde passaram diversos artistas, dentre os quais Fayga Ostrower, Renina Katz, Lygia Pape e Darel Valença, que posteriormente também se tornaram representativos na arte da gravura. Conforme, ALVES NETTO, J. A. A participação feminina no suplemento dominical de O Jornal do Brasil/RJ: O "Debate sobre a Gravura" (1957-1958). In: SILVA, Z. L. D. Silêncios e transgressões: o protagonismo das mulheres brasileiras no século XX. Jundiaí: Paco, 2018. Cap. 6, p. 151-180. 35 No terceiro capítulo descrevemos como Poty consolidou-se como um importante gravador. Para analisarmos este percurso que resultou na ilustração de várias obras literárias e importantes jornais do período estudado, destacamos a expertise desenvolvida pelo artista ao dominar diferentes técnicas e processos na confecção de gravuras. Dentre estes conhecimentos técnicos destacamos o processo de produção das xilogravuras. Cabe assinalar que, entre os anos de 1950 a 1960, Poty consolidava-se como exímio gravurista, ilustrador de livros, jornais e periódicos, dentre outras especialidades artísticas. Nessa trajetória, as suas relações e amizades artísticas também nos auxiliam na análise de tal percurso, assunto tratado no último capítulo. Poty constituiu ao longo de sua caminhada artística inter-relações com personalidades diversas, situação que também nos auxilia na análise de sua produção. O traço incomum, portanto, permeado de significações nesta trajetória, é que Poty, mesmo frequentando os círculos dos artistas curitibanos da época, consegue se desvencilhar e ir transitar em outros lugares longe do conservadorismo paranaense. Neste movimento, Poty sai da “província” e ganha o Brasil e o mundo. 36 CAPÍTULO 1. Aspectos da vida pessoal e profissional de Poty Lazzarotto. Falecia no dia 08 de maio de 1998, em Curitiba, o artista plástico Napoleón Potyguara Lazzarotto. Viveu dividido entre Curitiba e a capital federal do Rio de Janeiro, onde residiu por aproximadamente 20 anos. Tratava-se de um dos mais reconhecidos artistas plásticos brasileiros de meados do século XX, um homem que executou uma produção artística grandiosa (em volume, quantidade e qualidade de trabalhos) e um dos pioneiros, em meados do século XX, na disseminação dos conhecimentos e dos estudos empíricos de gravura no Brasil. Poty desfrutou em vida do sucesso e do reconhecimento artístico, e, mesmo em seus momentos derradeiros, não abdicou da premissa de produzir seus desenhos, suas xilogravuras, de idealizar seus murais, dentre tantas outras maneiras de expressar seu gênio criador. Poty nasceu em Curitiba - PR, em 1924. Naquele momento, o acesso às produções culturais, bem como aos diferentes tipos de informação que chegavam ao público em geral eram difundidos por dois veículos de comunicação em particular: o rádio e o jornal escrito. Existiam poucas salas de cinema, e um bom número de salas de teatro. Por sua origem humilde, tomar contato com o teatro e o cinema, talvez esbarrasse nas dificuldades de cunho financeiro. Casado com Célia Lazzarotto, sem filhos, Poty morreu sem deixar herdeiros e legou ao seu único irmão, João Lazzarotto, tudo o que acumulou ao longo de sua vida: livros, periódicos, jornais, cartas, rascunhos e anotações, obras de arte. Seu arquivo privado pessoal e sua biblioteca compõem, juntamente com suas obras, o maior dos seus legados. A maior parte dos dados biográficos de que dispomos sobre Poty foi organizada em livro pelo jornalista Valêncio Xavier Niculitcheff. A obra intitulada “Trilhos, trilhas e traços” foi lançada em 1994, apenas três anos antes do falecimento do artista40. Este livro é claramente uma homenagem do jornalista ao amigo artista que saiu da periferia de Curitiba e ganhou o mundo. O caminho trilhado por Poty, até o atingimento da ascensão social e do reconhecimento artístico, é permeado de situações e contextos particulares, fazendo-se necessário situar o desenvolvimento do artista em seu contexto histórico. 1.1. Os primeiros traços do artista quando jovem: infância, influências, contatos. 40 NICULITCHEFF, Valêncio Xavier. Poty: trilhos, trilhas e traços. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba, 1994. 37 De uma origem humilde, o artista, juntamente com sua família, enfrentaram sérias dificuldades financeiras. Seus pais, Isaac e Júlia Lazzarotto, eram descendentes de imigrantes italianos, e desde sempre tiveram uma sobrevivência difícil na Curitiba de início do século XX. Curitiba, apesar de ser a capital do estado do Paraná, era uma cidade pequena, provinciana nos usos e costumes. Os dados estatísticos no tocante à população da capital indicam que em 1920 a cidade possuía o montante de 78.986 habitantes41. Seu processo de modernização econômica e social não fugiu à regra do processo de modernização ocorrido no restante do Brasil do período. O processo de concentração de riquezas e de poder desenvolveu-se, no Paraná pela criação de uma elite agrária, política e bacharelesca. Neste sentido, desde a sua gênese, o estado do Paraná apresentou esta característica elitista e excludente. O sociólogo Ricardo Costa Oliveira, estudioso da constituição de uma genealogia do poder político e econômico paranaense, aponta para a paulatina concentração de poder por parte de algumas poucas famílias, instaladas ainda na época das capitanias hereditárias e que com o passar do tempo foi reunindo em torno de si as condições para seu estabelecimento no topo da pirâmide social. Assim, em terras paranaenses, a exploração escravista impulsionou a concentração de riquezas advinda da mineração, da produção pecuária, e do extrativismo da erva mate. Este primeiro momento de concentração de riquezas possibilitou a entrada destas famílias no aparelho burocrático do estado, ocupando cargos na estrutura de governo das cidades e ao mesmo tempo do Estado. Ainda segundo Oliveira é possível, através dos estudos de genealogia das famílias detentoras do poder político e econômico paranaenses, traçar os laços parentais instalados na elite colonial, passando pela elite imperial, chegando até a instauração da república. Esta é uma das características que situam Curitiba como uma cidade conservadora, nos usos e nos costumes.42 No campo da cultura os estudos de Artur Freitas43 e Geraldo Leão Veiga de Camargo44, são importantes para entender este período de início do século XX, pois suas análises mapeiam o desenvolvimento das artes no Paraná, seus avanços, suas distensões e as rupturas oriundas do 41 OLIVEIRA, O. B. D. O Quadro Urbano e o Processo Edificatório em Curitiba: 1919-1953. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2016, p.56. 42 OLIVEIRA, R. C. O silêncio das genealogias: classe dominante e Estado no Paraná (1853-1930). Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2000. p. 5. 43 FREITAS, A. A consolidação do moderno na história da arte do Paraná: anos 50 e 60. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 8(2), n. 02, p. 87-124, Inverno 2003. 44 CAMARGO, G. L. V. D. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná. 1853 - 1953. Universidade Federal do Paraná - Pós-Graduação em História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba, p. 215. 2007. 38 processo de enfrentamento entre os novos agentes artísticos e os antigos detentores das instâncias que definiam o que se poderia produzir, consumir e apreciar enquanto arte. A infância de Poty foi cercada de dificuldades. O seu pai era funcionário aposentado precocemente, por invalidez em decorrência de um acidente de trabalho, da Estrada de Ferro, e não tinha condições de aumentar sua renda para prover o sustento da família. Contudo, não media sacrifícios para estimular o talento do filho. Um freguês de revistas ilustradas Fui, aos poucos, ao ver o interesse da criança pelo desenho, me tornando um comprador de revistas ilustradas. Comprava quantas podia. E como lutava com dificuldades para manter minha família, acredite que eu sacrificava tudo para atender ao desejo do guri. Privávamo-nos até do indispensável para aquele fim. O chão a sua primeira mesa de trabalho Como nossa casinha era a de um pobre homem invalidado, não dispúnhamos de moveis. E por isso, a mesa de trabalhos de Poti era o chão. Estendia-se de barriga sobre o assoalho. E armado de pedações de papel de embrulho, de jornal, e livros de missa e tudo onde houvesse um espaço para borrar, lá utilizava ele para suas garatujas. Possuímos montanhas desses riscos. Quase todos eram um esforço para uma criação. (...) E Poti não contava mais de 4 ou 5 anos.45 O bairro Cajuru, onde atualmente se localiza a Rodoferroviária interestadual era, em princípios do século XX, um reduto operário, basicamente ocupado pelos funcionários da rede ferroviária que habitavam casas modestas. À época, ficava longe do centro econômico e cultural de Curitiba. Não havia transporte coletivo regular, pavimentação e nem saneamento básico. O bairro era cortado pela ferrovia, e neste local Poty aprendeu a ler e desenhar em casa, estimulado pelo pai. Niculitcheff descreve os hábitos de leitura do menino Poty e de seu pai Issac: Era um homem cheio de curiosidade, se interessava muito por História. Lia Histoire de France em francês. Tinha leituras surpreendentes para a época. Comprava sempre o Eu sei tudo, a versão em língua portuguesa do Je Sais Tout, que eu ia buscar para ele na Livraria Ghignone, na Rua XV, e eu trazia também O Tico-Tico toda semana. Me lembro do Reco-Reco, Bolão e Azeitona do Luiz Sá 46 . 45 POTY. Como Poti, o garoto prodígio, criou sua arte. Diário da Tarde, Curitiba, 30 Setembro 1938. p. 01. 46 NICULITCHEFF, op cit, 1994, p. 26. 39 Figura 1 - Revista O tico-tico, 1931, p.1. Figura 2 - Revista O tico-tico, 1931, p.25. Fonte: Acervo Biblioteca Nacional Digital. Os primeiros passos de instrução letrada em casa, o fascínio pelos livros e revistas ilustradas, que o pai lia com regularidade, todos esses elementos foram moldando o olhar de Poty, que aos poucos foi esboçando alguns desenhos, e colocando a imaginação a trabalhar. Fumaça – o primeiro entusiasmo de Poty. Quisemos ouvir o pai de Poty, o sr. Isaac. Fomos a sua casa. E ele nos descreveu, dia por dia, comoventemente a sua biografia e os primeiros passos de seu filhinho. - Eu era empregado da estrada de ferro – disse-nos ele, - e tudo me sorria na vida, oferecendo-me esta perspectiva esplêndida, quando um incidente me estragou com meu destino. Eu que era dinâmico, vi-me forçado a imobilização. A princípio me revoltei. Cheguei quase a desesperar, porque junto dessa invalidez, me surgiu a falta de recursos. Mas hoje bem-digo até essa desgraça. Porque a minha reclusão em casa me levou a me concentrar neste meu filho, no Poti, as minhas preocupações. Notamos desde muito cedo, quando ele contava com apenas dois ou três anos, que ele já gostava do Fumaça, o engraçado tipo do Elói. E como pode observar nestes números antiquíssimos de “O Dia” há por baixo de cada um dos calungas dele traços feitos à lápis. Era o Poti. Duma altura em diante, quando demorávamos a mostrar-lhe o Fumaça, ou o Minervino, ele abria a boca47. O desenhista Eloy, a quem o pai de Poty se refere, é o pseudônimo de Alceu Chichorro, chargista e jornalista paranaense que teve seus trabalhos publicados na imprensa curitibana do começo do século XX. Chichorro também publicou suas charges satíricas em alguns dos mais importantes jornais paranaenses da primeira metade do século XX, como por exemplo O Dia, A Tribuna e Comércio do Paraná. Posteriormente colaborou com o Diário da Tarde e Gazeta 47 POTY. Como Poti, o garoto prodígio, criou sua arte. Diário da Tarde, Curitiba, 30 Setembro 1938. p. 01. 40 do Povo. Seus personagens mais famosos são Chico Fumaça (surgimento em 23 de maio de 1926), e também D. Marcolina (introduzida em 15 de junho de 1927)48. Figura 3 - O Dia, 04 de março de 1945, p. 08. Charge de Eloy (Alceu Chichorro). Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Na legenda da figura 3 lê-se: - Mas Marcolina, eu não disse ainda em quem irei votar! - É por isso mesmo! Você está esperando as eleições para depois dizer que votou no vencedor! Chico Fumaça é um personagem que apresenta uma série de características singulares. Suas historietas o retratam em diversas situações insólitas, e por isso mesmo, cômicas. É um eterno aspirante a um cargo público que não exigisse muito trabalho e dedicação no seu dia a dia de malandro e galanteador barato. As charges de Chichorro sempre apresentavam uma crítica mordaz aos “negócios” políticos, tanto na esfera local, como no âmbito nacional (FERREIRA, 2016). A pesquisadora Rosane Kaminsky, ao analisar as imagens veiculadas em revistas de variedades que circulavam em Curitiba no início do século XX, indica três possíveis dimensões interpretativas para a compreensão do momento de entrada da provinciana capital na adoção 48 MANNALA, T.; QUELUZ, M. L. P. Dona Marcolina, uma megera indomada: representações e estereótipos de feminilidade nos quadrinhos de Alceu Chichôrro. Revista Ártemis, João Pessoa, v. XXVI, n. 1, p. 175-192, jul- dez 2018. 41 dos signos da modernidade. Primeiro, a inserção "de fora para dentro" de hábitos estéticos vinculados às aspirações modernas expressas nas ilustrações. A segunda dimensão é caracterizada por novos esquemas de gosto estético e estilos oriundos dos projetos gráficos inovadores, e por fim, a terceira dimensão, qual seja, é a da constituição metalinguística da produção vinculada à arte moderna. Para a autora, a metalinguagem surgiu nas revistas curitibanas antes mesmo do que nas artes plásticas, peculiaridade que ia na contramão dos movimentos de arte moderna, onde tradicionalmente as transgressões ocorriam em mostras de arte, que publicizavam novos estilos, novas técnicas, etc., para posteriormente, serem assimiladas por outros meios de expressão e comunicaçã