UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP. FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS - CAMPUS DE ARAQUARARA MARIA JOSÉ BUENO CASSEB VIEIRA E OS EXCLUÍDOS DO REINO DE DEUS: PROTESTANTES, NEGROS E MULHERES ARARAQUARA 2006 2 MARIA JOSÉ BUENO CASSEB VIEIRA E OS EXCLUÍDOS DO REINO DE DEUS: PROTESTANTES, NEGROS E MULHERES Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista-Unesp, Campus de Araraquara, para obtenção do título de Doutora em Sociologia. Orientadora: Profª. Drª Sílvia Maria S. Carvalho ARARAQUARA 2006 3 MARIA JOSÉ BUENO CASSEB VIEIRA E OS EXCLUÍDOS DO REINO DE DEUS: PROTESTANTES, NEGROS E MULHERES Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista-Unesp, Campus de Araraquara, para obtenção do título de Doutora em Sociologia. Orientadora: Profª. Drª Sìlvia Maria S. Carvalho Banca Examinadora Profa. Doutora Silvia M. S. Carvalho Orientadora Prof. Doutor Paulo Eduardo Teixeira Profa. Doutora Marília Gomes Ghizzi Godoy Prof. Doutor Edmundo AntonioPeggion Prof. Doutor Fernando Carvalho ARARAQUARA 2006 4 Aos meus pais, João e Joana in memoriam Pelas lições inesquecíveis de vida À minha família: José Roberto, Ricardo e Roberta, síntese de todo o meu amor 5 AGRADECIMENTOS Profa. Doutora Sílvia Maria S. Carvalho, pela sua infinita generosidade e grandeza de vida, minha eterna gratidão. Prof. Doutor Walter Cardoso e Profa. Doutora Vera Mariza de Miranda Costa, por todas as sugestões e observações tão preciosas, por ocasião do exame geral de qualificação À Secção de Pós-Graduação, em cujos funcionários encontrei prontidão, amabilidade, presteza, competência, gentileza, entre outras raras qualificações. Marisa, bibliotecária-chefe das Faculdades Integradas Fafibe e equipe, pela cordialidade e prontidão que sempre me atenderam. Aos meus colegas de trabalho: Célia, José Pedro e Paulo, pela oportunidade de dividir tantos sonhos. Meus alunos, pelo prazer mútuo do aprendizado e pela comunhão de interesses em busca de uma sociedade mais solidária. 6 CASSEB, Maria José Bueno. Vieira e os excluídos do Reino de Deus: protestantes, negros e mulheres. Tese (Doutorado). Universidade Estadual Paulista. Araraquara, 2006. Resumo Este trabalho objetiva uma compreensão da visão de Antônio Vieira em relação a possíveis grupos de excluídos: protestantes, negros e mulheres, pelo viés sócio-histórico, privilegiando a disciplinaridade, devido os vários olhares que o tema Vieira pode proporcionar, seja por sua extensa produção ao longo de quase todo o século XVII; pela quantidade de temas tratados em seus discursos e por entender que, ao estudá-lo não se pode desligar a obra do homem, do missionário , do político e do tempo em que viveu. Essa intenção foi possível devido percurso feito pela estudiosa para entender o caminho percorrido por Inácio de Loyola, de forma a captar o contexto da formação da Companhia de Jesus, sua consolidação e aspectos da trajetória do orador desde a sua chegada à Bahia, sua formação jesuíta, sua atuação na Restauração do Reino e na época da dominação holandesa no nordeste, nas missões da Amazônia e, consequentemente no final de sua vida, na Bahia. A consciência de Vieira em relação ao momento crítico pelo qual passava Portugal; certos insucessos que envolviam a colonização, ligados à ineficiente administração e à degeneração dos costumes e abuso de poder, levou-o a dirigir aos seus ouvintes, discursos morais em diversas ocasiões e lugares, com intuito de excluir ou adestrar determinados grupos, sem descartar a defesa dos interesses do Estado português através do sistema colonial, via evangelização, sem causar tantos danos aos interesses dos colonos e manter o vasto patrimônio e privilégios da Ordem, praticou em diversos momentos uma política independente em relação à Companhia de Jesus e até em relação ao Estado. Em relação aos seus excluídos (protestantes, negros e mulheres, fossem religiosas ou não), procurou condená-los ou adestrá-los, segundo os interesses do sistema ou para manter o controle de tais grupos no momento crítico de uma sociedade em transição. Palavras chave: Vieira - discurso - excluídos - protestantes- negros - mulheres. 7 CASSEB, Maria José Bueno. Vieira and the excluded of the God Kingdom: protestants, blacks and women. Tese (Doutorado). Universidade Estadual Paulista - Araraquara, 2006. ABSTRACT The work’s objective is the comprehension of the vision from Antonio Vieira in relation of possible excluded groups: protestants, blacks and women, from bias of social- historical, privileging disciplinarily, had various looks that Vieira theme can provides, either for its extensive production throughout almost all century XVII; for the quantity of themes treated in your speech and, by understanding that, studying can’t turn off the workmanship from the man, the missionary, the politician and the time of your life. This intention was possible because of the passage done by the student to understand the way covered by Inácio de Loyola, of form to catch the context of the formation of the Company of Jesus, its consolidation and aspects of the trajectory of the orator since its arrival in Bahia, his Jesuit formation, his performance in the Restoration of the Kingdom and at the time of the dutch domination in the northeast, the missions of Amazônia and, consequently in the end of his life, in Bahia. The conscience of Vieira in relation to the critical moment for which passed Portugal; the certain failures that involved the settling, on to the inefficient administration and the degeneration of the customs and abuse of power, took him to direct to his listeners, moral speeches in diverse occasions and places, with the intuit of to exclude or to train some groups, without discarding the defense of the interests of Portuguese State through the colonial system, by evangelization, without causing many damages to the interests of the colonists and keeping the vast patrimony and privileges of the Order, practicing in several moments an independent politic in relation of Company of Jesus and even in relation of State. In relation of his excluded (protestants, blacks and women, religious or not), looked for condemn or train them, by the interests of the system or to keep the control of those groups in the critical moment of a society in transition. Key words: Vieira – speech – excluded - protestants - blacks - women. 8 SUMÁRIO . Introdução.........................................................................................................................9 CAPÍTULO I - A TRAJETORIA DE VIEIRA NA CONSOLIDAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS ..............................................................................................27 1.1 Entre o cavaleiro, o mendigo e o convertido..............................................................27 1.2 Os pilares da Companhia de Jesus: o voto de Montmartre e os Exercícios Espirituais........................................................................................................................31 1.2.1 O voto de Montmartre.............................................................................................31 1.2.2Os Exercícios Espirituais: ascetismo corporal e disciplina da vontade...................34 1.3 A Companhia de Jesus em Portugal...........................................................................41 1.4 A expansão da Fé no Oriente, África e América.......................................................50 1.4.1 Os jesuítas na África e América.............................................................................50 1.4.2 A posição de Vieira na Companhia de Jesus..........................................................67 CAPÍTULO II - A MORAL DE VIEIRA E OS VÍCIOS DA SOCIEDADE COLONIAL.....................................................................................................................73 CAPÍTULO III - OS EXCLUÍDOS DO REINO DE DEUS NOS DISCURSOS DE VIEIRA..........................................................................................................................109 3.1 Protestantes..............................................................................................................109 3.2 Negros......................................................................................................................121 3.2 Mulheres...................................................................................................................133 3.3.1 As Evas da história nos sermões de Vieira...........................................................139 Considerações finais.......................................................................................................155 Fontes.............................................................................................................................159 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................160 9 INTRODUÇÃO A produção sobre Vieira, excluindo a produzida pelos próprios membros da Companhia de Jesus, tem ocupado um espaço considerável, principalmente na língua e literatura e, em menor quantidade, em outros campos do conhecimento, como na área da história e da filosofia, não só no Brasil, como no exterior. Esses trabalhos em forma de artigos, monografias, dissertações e teses, apresentam as mais diversas abordagens, são primados pela qualidade, resultado de sólidas pesquisas, têm contribuído um tanto positivamente para se compreender a obra de Antônio Vieira, se bem que não esgotaram todos os olhares que sua vasta obra pode proporcionar: mais de duzentos sermões, setecentas cartas, pareceres, censuras, epigramas, petições, procurações, protestos, representações, memoriais, informações, entre outras e as obras Esperanças de Portugal, História do futuro e a Chave dos Profetas, inédita até poucos anos atrás, produzidas ao longo de seus bem vividos oitenta e nove anos. A escolha do objeto do estudo em questão encontra-se ligada à primeira experiência durante o mestrado, ao preparar um seminário sobre Vieira, o qual proporcionou o contato com uma de suas biografias e vários de seus sermões e, conseqüentemente, a opção de estudá-lo mais profundamente como tema da dissertação - Os sermões de Vieira: catálogo temático e ensaio crítico-analítico. Tal classificação girou em torno do catálogo cronológico produzido pela estudiosa portuguesa Margarida Vieira Mendes, frente às fases de sua vida, enfocadas por João Lúcio de Azevedo, resultou numa ferramenta que pode ser usada pelos interessados em localizar os sermões do orador no tempo e no espaço; suas características, intenções e suas permanências e seus avanços. As leituras minuciosas de seus sermões e às demais obras do orador e sobre sua época, contribuíram para entender sua unicidade-multipilicidade, pela gama de temas tratados por ele com tal eloqüência e perfeição que o tornou conhecido como o maior orador sacro luso-brasileiro de todos os tempos. 10 Tal experiência, por sua vez, deixou em aberto várias inquietações em relação à atuação do polêmico jesuíta que atuou por quase todo o século XVII . E, uma dessas inquirições faz parte da compreensão da visão direcionada a grupos de possíveis excluídos: protestantes, negros e mulheres, favorece a produção de um trabalho disciplinar, sob o viés sócio-histórico. Para compreender essas posições, foi necessário inicialmente repassar sua obra e várias produções sobre Vieira, mais cuidadosamente, incluindo produções mais contemporâneas, a qual representa apenas uma parcela daquelas estudadas, para a elaboração deste trabalho e que proporcionou condições para comparar várias biografias; e revisitar a História da Companhia de Jesus no Brasil. Essa revisão objetiva tecer algumas considerações sobre obras de alguns biógrafos do orador luso-brasileiro para, em seguida, tratar de outros autores que produziram sobre o pensamento de Vieira, em áreas diversas, por ter contribuído de forma relevante na escolha do tema e da opção do viés deste trabalho, embora a intenção não se objetiva dialogar com todas elas no decorrer do trabalho. Nessa seleção temos: Serafim Leite e Ernest Carel, ambos jesuítas e João Lúcio de Azevedo, enquanto que sobre os que produziram sobre Vieira, apresentamos a portuguesa Margarida Vieira Mendes e Antônio José Saraiva, M. Correia Fernandes e José Eduardo Franco e Bruno Cardoso dos Reis; enquanto que do Brasil, Alcir Pécora, José Carlos Sebe Bom Mehy, Ivan Lins, Luís Vieira Palacim e Antonio Soares Amora. Em seguida referir-se- á ao holandês lusitanista José van den Besselaar. A opção pelos autores referidos acima não foi casual, mas por se tratar de estudiosos reconhecidos no meio acadêmico (embora uma série de outros tenham contribuído com produções não menos relevantes sobre Vieira), e por produzirem trabalhos disciplinares dos mais diversos, o que favorece uma extensa gama de idéias sobre os recortes a serem produzidos sobre Vieira e sua obra. Quanto aos biógrafos, iniciou-se por Serafim Leite, o qual no tomo IX da História da Companhia de Jesus no Brasil, apresenta seus traços biográficos rapidamente (apenas uma página), onde destaca sua formação; sua resistência contra os holandeses no nordeste, sua atuação na Corte de D. João IV e em embaixadas em vários países europeus durante a Restauração; a defesa aos cristãos-novos; o trabalho nas missões e em defesa dos índios; a perda da proteção do rei; seu envolvimento com a Inquisição; sua estada em Roma e seu retorno definitivo à Bahia. 11 Observou-se que esse jesuíta se esmerou em inventariar a obra de Vieira, numa época em que seus manuscritos ainda inéditos ou impressos, tanto em língua portuguesa como em outras línguas , perambulavam por arquivos, traziam títulos confusos, além de comentar as edições até aquele momento (1949) e elaborar comentários sobre uma série de seus sermões e Cartas, de forma a relacioná-los com a época em que viveu. ( T IX, p.192-363). Ernest Carrel, em Vida do Padre António Vieira, (embora sem data, presume-se ser anterior à de João Lúcio de Azevedo, uma vez que a última edição deste data de 1992), retrata-o grande orador sacro do século XVII, mas não trás uma bibliografia, assim como não indica leitura complementar no decorrer do texto e nem indica onde pesquisou, ou sumário ou índice. Inicialmente trata de aspectos biográficos de Vieira, tomando por base a obra de André de Barros, conforme indicação de uma nota de rodapé na página sete. Em seguida, destaca os Sermões Patrióticos, proferidos até 1640, onde se evidencia o amor à religião e à pátria; passa pela sua pregação em Portugal e sua atuação junto ao Conselho do rei até se destacar como orador oficial e suas atividades como embaixador da Corte. Volta-se então para a questão da escravatura, a defesa da causa dos índios na Missões e dedica um capítulo inteiro à Cartas e Orações Fúnebres. Ao tratar da questão entre Vieira e o Santo Ofício, alega as divergências de idéias entre a Inquisição, Vieira e a Companhia de Jesus, assim como o fato dessa Instituição trabalhar a serviço da política, se esmerando na narrativa da trajetória desse envolvimento. Na atividades do pregador em Roma, trabalha todos os sermões dessa época e suas entrevistas com o Papa e os Cardeais, assim como a conversão da rainha Cristina, da Suécia. No último capítulo referenda sobre a última fase de sua vida, quando do retorno à Bahia e seus últimos trabalhos ali realizados. Carel se esmerou em relatar passagens milagrosas experimentadas por Vieira, além de fatos um tanto pitorescos, os quais passam a imagem de estar construindo um grande mito. No caso da biografia traçada por João Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, fornece uma biografia mais detalhada, atualizada, completa e convincente sob vários aspectos, além de não ser jesuíta e pesquisar obras do século XVI e XVII. Sua biografia continua sendo clássica e é indispensável para estudá-lo. Em explicação prévia, o autor cita vários biógrafos de Vieira, como por exemplo o padre André de Barros, cuja obra á carregada de achaque da parcialidade, por pertencer à mesma ordem religiosa; a do Bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, ressente-se da 12 forma condenada de memória histórica que lhe deu o seu autor (p.7) e a de João Francisco Lisboa julga ser parcial em sentido contrário à de André de Barros" e incompleta. As três têm contra si a idade" (id). Esse autor dividiu a vida de Vieira em seis fases um tanto distintas, relacionado-as com o momento histórico luso-brasileiro e apoiou-se também nas Cartas e em outras obras do orador, menos na Chave dos profetas, por permanecer inédita até à ocasião em que redigiu sua biografia, mas não observou que esse orador carregou influências de uma fase para outra. Sua leitura um tanto agradável, descreve o contexto e a natureza do Brasil nos dois séculos: o que antecede a presença de Vieira e aquele em que viveu e, também pelos episódios fantásticos ou sobrenaturais, como a narração de uma viagem que fizera " A aldeia sem guia e perdeu-se no caminho e, muito entrada a noite, achava-se pela frente um rio, o Joanes, ...não vendo meio de transpor o obstáculo, pensou em retroceder, mas atemorizava a treva (...). Como só recurso encomendou-se ao Anjo da Guarda, e com poucas passadas, eis lhe salta da escuridão um menino envolto em luz"(p.18), o qual acudiu-o e levou-o à aldeia, para desaparecer em seguida. O Religioso e o Patriótico (1608-1640), fornece informações relevantes sobre a Companhia de Jesus e o treinamento pelo qual deveriam passa todos aqueles que ingressassem na Instituição; as origens de Vieira, inclusive seu lado negro do lado da avó materna; sua vinda ao Brasil com a família e o ingresso na Ordem Jesuíta; a obtenção dos primeiros sucessos como orador, além de presenciar a invasão e o domínio holandês no nordeste. O Político-Missões Diplomáticas (1641-1650), retrata sua ida a Portugal, a forte empatia com D. João IV; sua influência e da própria Companhia de Jesus junto aos monarcas nas questões de Estado, assim como na educação do príncipe D. Teodósio; suas viagens como embaixador do Reino a vários países europeus no momento difícil da Restauração, sua política casamenteira, entre outros. Na terceira fase O Missionário (1651-1661), ao destacar os fracassos diplomáticos e seus desabafos em púlpito e as pressões da Ordem, questões que influenciaram na sua estada na Missões, deixou claro os vários anos de sua conflituosa vida, sem deixar jamais de imiscuir-se em contendas políticas, dentro e fora da Ordem. O Vidente (1662-1668), época introspectiva, onde foram elaboradas as concepções de Antônio Vieira sobre as finalidades da história. Inspirado em Anchieta, delineia as bases da Clavis Prophetarum, o plano definitivo da História do futuro, além de escrever esperanças 13 de Portugal, quando as polêmicas trovas do bandarra são ressuscitadas, despertando o apoio de outros visionários, o que lhe custou o desterro e o cárcere por alguns anos, tempo esse rico em correspondência, embora muitas delas tenham sido violadas, saúde abalada e perda de memória. De 1669 a 1680, período intitulado O Revoltado, sofre com a ingratidão de D. Pedro ao ignorar os serviços prestados ao Reino, afastando-o da Corte e quando acirram-se os desentendimentos no interior da própria Ordem, A Roma da época em que Vieira lá esteve é descrita como o centro do cosmopolitismo, seja do ponto de vista espiritual ou material, portanto centro de jogos de interesses e as intrigas políticas quanto as negociações se convergiam à residência governada por João Paulo Oliva, ao Vaticano e ao palácio de Cristina, da Suécia. Produziu uma vasta correspondência e pôde ter acesso à correspondência da Companhia, o que lhe valera saber o que se passava em todas as partes do mundo, onde houvesse atuação da mesma Azevedo passa a impressão que o temperamento de Vieira combinava deveras com a efervescência de Roma da segunda metade dos seiscentos, uma vez que supria sua falta de valimento junto ao Estado português, embora possuísse uma liberdade cerceada e não fosse mais o emissário oficial que carregava populdas somas para afastar os inimigos do seu caminho. Cumpria o papel de exilado, um membro da Companhia de Jesus que fora bem recebido graças ao seu talento. Faz parte ainda dessa fase o seu retorno a Lisboa, sua tentativa sem êxito de intervir junto à gente da Nação; a Inquisição força os bispos a convencerem D. Pedro a não ceder em favor dos cristãos-novos e as vantagens de ficar do lado dos inquisidores, levando o soberano a repreender o levante popular, sem falar do conluio entre os Três Estados e o Santo Ofício. Mesmo afastado das atividades políticas, não deixara de enveredar pelo caminho da profetização quanto aos destinos da humanidade e do mundo e seus receios de exclusão de sua pátria eram um tanto preocupantes. O sexto e último capítulo - O vencido (1681-1697), trata do seu regresso definitivo à Bahia, passando antes por Lisboa, após quarenta anos de ausência e sem o vigor e a esperança de outrora, mas cansado, sofrido, doente, mas carregando uma experiência como poucos durante uma vida de sucessos e insucessos e foi viver na Quinta do Tanque e, isolado, procurava concluir suas obras. 14 Teve que tolerar ainda uma série de revezes entre os parentes Ravascos e o governador local; a epidemia da bicha, além do silêncio de D. Pedro, sua segundas núpcias com Maria Sofia da Áustria, vista por ele como trama de Castela. A produção em questão trás ainda um apêndice dividido em oito partes, das quais constam documentos relativos ao processo; Escritos Satíricos sobre Vieira; missões; Morte do Alcaide-mor da Baía; Quadro genealógico de Vieira e documentos sobre a família Vieira Ravasco; um breve resumo da Clavis Prophetarum; notícias bibliográficas e Anedotas sobre Antônio Vieira. Quando na Bahia, é noticiado da queima de sua efígie em Coimbra, quando do restabelecimento da Inquisição, sem a mudança de estilo, presente nas cartas endereçadas ao Marquês de Gouveia; um tanto magoado com D. Luís de Menezes na correspondência com o Conde de Ericeira. Nelas Vieira derramou todo o fel que armazenava durante tanto tempo; temas relativos ao indígena; seu voto contra os paulistas quanto ao repartimento dos índios nas minas, o que ia contra os direitos naturais, presentes no Voto sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo.... que, para sua decepção, foi acatada a proposta dos paulistas. Essa situação teria contribuído para entrar em conflito com João Antonio Andreoni. o jesuíta toscano que veio com ele para o Brasil, a seu convite e, com o tempo, abriria espaço para a mudança das regras do Sistema Colonial. A obra de João Lúcio de Azevedo continua clássica, por ser indispensável aos que pretendem estudar Vieira, pelo autor não ser jesuíta e ser a mais contemporânea. No que diz respeito aos autores portugueses, as escolhas recaíram sobre os estudiosos a seguir: Margarida Vieira Mendes, reconhecida estudiosa portuguesa que teve a iniciativa do projeto de tradução da Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas) e responsável pelo estudo histórico-crítico da obra. Autora de A Oratória Barroca de Vieira, cujos capítulos são compostos de unidades independentes, reconstrói historicamente o orador barroco por excelência; o conteúdo da representação do orador sacro, identificado no decorrer de seus discursos, ao mostrar que pretendia fazer concordar com a acabada e sagrada representação que possuía do mundo e da história humana; emitiu juízo de valor sobre o pensamento do autor relacionado à arte do orador sacro, à sua competência e ao seu comportamento, além de equacionar seu pensamento com o da época em que viveu; mostra como o autor lida com os textos (fá-los concordar, trasladá-los e acomodá-los nas mais diversas situações); transforma-o em intérprete e oráculo ao mesmo tempo; trata dos sermões escritos para serem publicados pelo autor ainda em vida e como eles marcaram de 15 forma intencional e indissolúvel a imagem do pregador; a questão lingüística e a qualidade literária, criadora da emoção estética, não se encontra com tal intensidade nas demais produções da época. Nessa obra, a autora ainda contribui com uma ficha catalográfica (p.547-561) dos sermões de Vieira de grande utilidade para localizar a época e elucidar quanto à datação de vários sermões, embora não sejam todos datáveis. A relevância da produção ainda se deve ao fato da autora ter trabalhado com as obras de Vieira(edições portuguesas, edições estrangeiras e edições críticas); textos manuscritos. obras impressas. Admite que não se pode dissociar a obra da biografia do grande orador e que apenas Raymond Cantel e Antônio José Saraiva parecem ter fugido um pouco a esse tropismo biográfico, isto é, essa aproximação entre obra e o homem. A obra de Vieira na literatura anti-jesuítica (séculos XVIII e XIX), de José Eduardo Franco e Bruno Cardoso Reis foi selecionada por tratar-se de um dossiê sobre o imaginário cultural português, onde destaca o significado dos jesuítas e da sua atuação, por contribuírem de forma significativa na interpretação da história portuguesa, visto que tiveram influências na sua vida política e cultural, de um ldo e, por outro, a expressão anti-jesuítismo de identifica com anticlericalismo, que não entende a sociedade cristã identificada na Companhia de Jesus e nos jesuítas, embora a religião, enquanto vivência total, acaba marcando um sociedade, visto que é uma vertente do próprio controlo político-social e mental. (p.15). Os autores analisam um conjunto de obras da historiografia portuguesa relativas ao Padre Antônio Vieira, representativos da Lenda Negra anti-jesuíta em Portugal, no período compreendido entre 1759-1926, no âmbito da história das mentalidades. Para isso, analisam a evolução da Lenda Negra, sobretudo a reação contra Vieira, pensando as diferenças. Esses autores apresentam a análise de um complô que faz parte da crítica contra Vieira, os ortodoxos que o consideram como um grande agente de intrigas (p.26); citam o mito do anti-jesuitismo, mas não do anti-vieirista, isto é, não dão a devida importância ao orador ou mais, até o ignoram, como por exemplo Alexandre Herculano. E, por fim, citam os anti-vieiristas (anti-jesuítas ou não), atacando-o com sua crítica estética e, portanto anti-barroca. Enquadrar-se- ia aqui os discípulos de Verney, Garret e António Sérgio. Em seguida argumentam sobre o contexto da criação da Companhia de Jesus, ou seja, a época em que a cristandade estava em crise e sobre os conflitos entre essa Instituição e a 16 universidade de Paris. Vêem-na como uma instituição vanguardista em vários aspectos, dentro da Igreja e da sociedade, ao assumir a educação em Portugal e no Ultramar, entre outras atividades não menos relevantes a partir do século XVI até meados do século XVIII. Vieira foi um dos membros que mais se destacou e, como a própria ordem angariou certas polêmicas, como é o caso de seu envolvimento com a Inquisição, justamente por ocasião de sua aliança com o poder dominante, criou-se assim o anti-jesuitismo. A figura de Vieira é destacada no contexto da Restauração pelo seu patriotismo e por suas lutas contra as posições do Tribunal da Inquisição, contra os sebastianistas, sobretudo por excluir Vieira. Em Pe. António Vieira. Antologia e Aforismos. Ordenados e anotados por M. Correia Fernandes, o autor selecionou vários trechos dos Sermões e da História do Futuro de Antônio Vieira, julgados como os mais ricos e expressivos pela precisão do seu ajustamento ao sentido, às idéias e às emoções (p.5). Embora admita que sua oratória seja um tanto carregada de excessos, tinha como objetivo atingir as mentes e as vontades. E isso era próprio da mentalidade de Loyola, não resta a menor sombra de dúvida. A obra tem o objetivo de atingir todos os profissionais que se interessam por expressar a língua de forma mais rica, cuja originalidade vem da riqueza de idéias, da argúcia dos sentidos, do equilíbrio da disposição, da adequação semântica, da pertinência das perspectivas apresentadas, da irrepreensível estruturação sintática das frases, da novidade e vigor das imagens, e da imaginidade das situações, do imediatismo e da compreensividade das razões... Acrescenta ainda que havia uma identidade de Vieira com a mentalidade do povo e a sua capacidade em unir o saber do século XVII à sua experiência de vida. Para o autor, os escritos de Vieira têm um quê de atualidade inquietante justificada pela preocupação do homem moderno e pelo domínio de temas e raciocínios dos mais profundos, seja da exegese da Bíblia como dos clássicos; tanto da História como da tradição; tanto da Filosofia, como da Natureza, usando até recurso das artes para alertar as mentes mais limitadas. Fernandes referenda ainda alguns problemas sociais, políticos e econômicos de Portugal e do Brasil, embutidos nos sermões da Sexagésima; no de Santo Antônio aos Peixes, no das Lágrimas de São Pedro, no da Ressurreição de Cristo e no da Primeira Dominga do Advento. 17 Quanto aos aforismos (sentença moral breve e conceituosa; máxima), estes são extraídos da História do Futuro. António José Saraiva nos mostra no seu Discurso Engenhoso (1980), que na origem da identidade dos discursos vieirenses, nota-se uma certa compulsão biográfica e que na literatura barroca, o efeito desse mesmo discurso se liga a um processo de sublimação verbal e que a oratória sacra foi fomentada e tornou possível tal sublimação, além das figuras de linguagem, tão comuns em seus textos, aliás imagens engenhosas, mas que fogem ao conceito clássico de imagem, por ser variável e ambígua e que funciona como um elo indispensável para que tal corrente não se rompa. Afirma inclusive que na Península Ibérica, as disciplinas das palavras eram instrumentos privilegiados para o conhecimento, pois tudo se escondia no texto) (p.76) No que diz respeito aos autores brasileiros, temos: A arte de Morrer. Os sermões de Quarta-Feira de Cinzas de Antônio Vieira (1994), Alcir Pécora relaciona os três sermões de cinzas com os maus momentos pelos quais passava Vieira. O autor alega que o terceiro sermão, balizado entre 1676-1680 e publicado na fase final de sua vida, já definitivamente na Bahia, o que sugere ter sido refeito. Os primeiros foram pregados em Roma, em 1672 e 1673, na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, época em que a cidade se laicizara em pleno apogeu do Barroco e se destacava pelos ricos e elegantes salões freqüentados por letrados, como por exemplo o palácio da rainha da Suécia, Cristina Alexandra, recém-cooptada ao catolicismo, pelos jesuítas e, para a qual Vieira pregara várias vezes e onde teria sido aplaudido pela nata da intelectualidade profana e eclesiástica pelos jesuítas. Nos três sermões, Vieira apresenta as vantagens de se preparara para a morte ainda em vida, pastoral típica da época: aprender a morrer para se salvar, embora a morte cristã nos faça livrar das tribulações da vida. O mesmo autor contribuiu também com Escritos Históricos e Políticos (1995), sobre Vieira. Neste acrescenta que a sua atuação na política teve e tem peso nem sempre positivo na interpretação de sua obra, diante da época em que viveu e dos papéis que representou; que tudo o que escreveu é político, desde um documento a ser encaminhado a uma chancelaria até um sermão piedoso sobre uma celebração de uma festa móvel referente ao calendário cristão. Para tanto, Pécora selecionou vários sermões de épocas distintas de sua vida; cartas; documentos vários; pareceres; propostas, votos, ente outros. 18 Assim, propiciou a formulação de um quadro sintético dos tópicos políticos mais relevantes da vida do orador, de forma a distinguir o período inicial de sua produção, localizado entre sua formação e sua ida primeira a Portugal, enquanto que no segundo tópico, localiza a produção do autor em questão, referente ao contexto das guerras holandesas, no nordeste, incluindo o conteúdo da Carta Ânua Na década em que Vieira esteve ao lado de D. João IV e tornou-se embaixador do reino, localizam-se os temas políticos relacionados com a Restauração, em que Vieira teria explorado as místicas em torno de D. Sebastião, o Encoberto, com o objetivo de promover o entendimento entre os três estados, em torno do Rei. A questão relacionada com os impostos é outro tema de suas falas; a questão de transferir poderes, nomear funcionários capazes e não levar em conta privilégios de nobreza; o excesso burocrático em relação aos despachos ministeriais, o que impediria a ação relacionada à propagação da fé, tão prejudicial ao Estado Português. Tais temas se encontram, no dizer de Pécora, nas coleções iconográficas de ditames políticos para educação dos príncipes produzidas entre os autores de Castela, especialmente com formação em Salamanca, caso das Empresas políticas - idea de un príncipe político - cristiano, de Diego de Saavadra fajardo (1584-1648), e da emblemata regio política, de Juan de Sólorzano y Pereira (1575-1653) p. XII). Na década de 1640, insiste na necessidade da criação das Companhias de Comércio, segundo o modelo holandês, para explorar comercialmente as colônias, assim como reformas estruturais julgadas relevantes para que tais companhias tenham êxito, momento em que defende os cristãos-novos, cujos capitais seriam úteis para financiar as empresas, em vez de expulsá-los do Reino, dados os prejuízos que tal decisão traria à Nação, postura que ia contra a das decisões do Santo Ofício, em relação à gente da nação e que para Vieira era uma questão de justiça. No que diz respeito às colônias, sua preocupação gira em torno do domínio de Pernambuco pelos holandeses e que deveria ser negociada, o que foi feito através do Papel Forte - faria-se a negociação dessa parte do Brasil, uma forma de não dividir seus limitados recursos, tão úteis para serem empregados nas lutas contra Castela, o que garantiria a independência do Reino., além de fazer com que a Holanda ressarcisse os danos. Propõe ainda o ataque à áreas pertencentes a Castela, na América, como o Canal do Panamá e o Rio da Prata, além de avançar até o Chile, o que impediria o escoamento da prata. 19 Outro eixo político presente refere-se ao contexto do retorno de Vieira do Maranhão e indica a preocupação relacionada à regulamentação do governo das missões e suas relações com os colonos; a insubordinação dos responsáveis pelas entradas comandadas por jesuítas, responsáveis legalmente para contatar indígenas e trazê-los às missões, em vez de capturá- los indiscriminadamente e escravisá-los, incluindo as várias dificuldades enfrentadas, seja por água ou por terra, de forma a ligar a providencialidade do português de dilatar o império, versus conversão universal, argumentos presentes em sermões e pareceres. A questão relacionada aos seus tempos de desgraça política, giram em torno da morte de D. João IV e a subida de D. Afonso VI ao trono português, escudado por Castelo Melhor, o qual carregava certas reservas quanto aos que haviam estado próximos da antiga regente; a falta de valimento junto a príncipe e sua experiência com a Inquisição, por pregar a ressurreição de do antigo rei, presente em carta a D. André Fernandes, confessor de D. Luísa, com o objetivo de consolá-la e a ligara expansão do império fundamentada na preparação de um nova cristandade num tempo milenar de paz e harmonia universais, em que o Quinto Império seria inaugurado e onde encontram-se presentes seu messianismo. Já no final de 1660, Vieira recebe comutação da pena, impele-o a acreditar no valimento de D. Pedro, em vão. A situação em que se encontra leva-o a Roma, procurar amparo para enfraquecer a Inquisição. Aí encontram-se presentes falta de gratidão da pátria e o exílio dos grandes, no caso ele próprio; a preocupação com a morte. O retorno a Portugal e ao Brasil , resume-se em queixas em relação à saúde precária; o Memorial a D. Pedro, entrecortado de ira e ressentimento, lembra o soberano dos muitos serviços prestados por ele e das mercês que ele e sua família deveriam receber, visto por Pécora soa como um adeus ao rei e à Corte. Nos Escritos Instrumentais sobre os índios (19 ), de José Carlos Sebe Bom Miehy, destaca a projeção de Vieira no campo da produção literária e que, apesar do amor e do ódio freqüente e exaltador, independentemente de suas vitórias e insucessos, foi aclamado por todos como grande, diria mesmo de imensidão vasta quanto o império (p.XVI). E que mais de dois séculos depois, sua obra ainda desperta leitores atentos à compreensão de um dos mais completos pensadores do século XVII e, quiçá de outros tempos (id). A sua atuação nas mais diversas atividades, acabou por registrar uma gama de situações que para serem entendidas exigem racionalização, amplitude e enquadramento da historicidade de sua produção textual (p. XVII). Para Meihy, embora Vieira tenha nascido em Portugal e vivido muito tempo no Brasil, foi um militante do Império e tratar-se de um personagem que não pode ser visto 20 apenas como homem das letras, político, economista ou apenas religioso, mas ao se referir a ele, deveria fazê-lo com a pretensão da globalidade, apesar da sua vasta produção. Por isso aconselha trabalhar com recortes da grande produção, mas não desenquadrá-la do eixo geral que a anima: a militância por um Império justo, segundo os desígnios de Deus (p.XXV). Torna-se necessário ter uma visão de conjunto de sua obra e uma posição definida, para depois, trabalhar o fragmento. Contribuiu com uma seleção de textos documentais das leis que regiam os índios; a relação da missão da Serra de Ibiapaba e os pareceres de Vieira sobre elas e sobre o modo de tratar os índios. Ivan Lins, filósofo e sociólogo de linha positivista, considerado por seu prefaciador, o escritor que mais conhece a obra de Vieira no Brasil, afirmação um tanto pretenciosa. Nos Sermões e Cartas do Padre Antônio Vieira (s/d), o vê como um homem de visões políticas um tanto atualizadas, anti-racistas e contrário ao autoritarismo do clero, missionário, catequista - filósofo e moralista. É o herói que se preocupa em salvar almas antes de salvar a si próprio. Em outras ocasiões , torna-se maquiavélico ao maquinar a aliança holandesa contra Castela; ao sugerir a vinda de D. João IV ao Brasil, após indicar seu filho menor, D. Teodósio para a sucessão, além de propor o casamento do príncipe com a sobrinha do rei da França , um forma de atrair esse país contra a mesma Castela. Lins alega que não pretende preencher lacunas no que diz respeito à interpretação da obra de Vieira, quanto aos aspectos que pretende estudar, mas contribuir para entendê-la sob outros olhares. Vieira e a visão trágica do Barroco. Quatro estudos sobre a consciência possível, de Luís Vieira Palacim é um obra composta por quatro artigos, os quais se encontram unidos por uma identidade temática e metodológica. Esse estudo teórico contribuiu de forma original à história das mentalidades do século XVII, tanto na metrópole, como na Colônia. Para Palacim, a própria situação histórica impõe à visão de mundo de uma época - o barroco português e de uma classe social - a nobreza proprietária de terras da região nordeste durante o período colonial, daí Ter optado por duas obras: a do Padre Vieira e o Valeroso Lucideno, de Frei Manuel Calado, onde fica evidente o choque de mentalidades. Admite que existe um vasto intercâmbio e mesmo correspondência entre o nível político, sócio-econômico, cultural e mental. 21 E para explicar esse fenômeno, parte do princípio de que todo pensamento é socialmente condicionado e que a consciência possível indica o limite que as circunstâncias reais da vida social impõem a um pensador (p.22)e, mesmo à uma corrente de pensamento ou a um época histórica, tanto na maneira de perceber, como na de analisar a própria realidade da vida. Usa conceitos de Goldman para esclarecer que os pensamentos históricos, que constituem a consciência possível de uma época a nível histórico significativo, vem marcados pela consciência de classe (p.43). O conceito de liberdade e opressão em O Valeroso Lucideno se enquadra nessa análise, ou seja, a de compreender como a classe dos senhores de engenho, grandes comerciantes e agricultores que promoveram a guerra contra os holandeses, no século XVII, condiciona à compreensão de noções como liberdade, opressão, honra e fidelidade. Quanto ao pensamento de Vieira, os condicionamentos sociais parecem ter origem num estado de espírito nacional e nas atitudes vitais de um época. Para ele, a obra de Vieira é um dos testemunhos mais ricos para a interpretação do Portugal da Restauração, assim como esta é relevante para entender Vieira. E nesse contexto, contradições tão evidentes encontram-se na obra de Vieira, como por exemplo os altos ideais declarados e as mesquinhas contingências da vida social, encaixam- se no Barroco, contradições essas experimentadas no Brasil: a incompatibilidade entre o Sistema Colonial e um governo luso, e entre a exigência da liberdade inerente à pessoa humana e a permanência da escravidão, imposta pelas determinações econômicas da política colonial. Antônio Soares Amora, na obra Sermões. Problemas sociais e políticos do Brasil (s/d), após traçar uma rápida biografia sobre Vieira, passa a analisar alguns de seus sermões, iniciando pelo Sermão da Sexagésima, definido pelo próprio Vieira define o estilo parenético, isto é, a eloq6uência sagrada (discurso moral), daí o valor histórico e literário do mesmo e, julgado por Vieira, como um suporte para os demais. Em seguida, destaca o Sermão Vigésimo Sétimo do Rosário com o Santíssimo Sacramento exposto, onde mostra o sacerdote em campanha contra a escravidão do negro africano. Amora observa que seria esperar muito de um homem do século XVII, mas admite que se tivesse investido mais contra as idéias anti-escravagistas, seria o primeiro liberal- abolicionsita dos tempos modernos (p.34). Mas, ao faltar-lhe o apoio da Igreja e do Estado, 22 acabou por ficar lutando apenas em favor dos sus índios e dedicar-se à campanha humanitária em prol dos negros. No Sermão da Visitação de Nossa Senhora, Vieira passa a ver o negro integrado no contexto da invasão holandesa, devido ao perigo que esta apresentou para o Brasil, diante da consistente oposição à causa dos escravos negros. Entrou no movimento de resistência contra os holandeses, quando a cidade de Salvador conseguiu derrotar o inimigo, após estar sitiada por vários dias, apenas com as armas da sua erudição. Esse autor ainda destaca ainda vários sermões proferidos nessa época de resistência, sobretudo o Sermão pelo Bonsucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda, em 1640 e define esse tempo caracterizado por uma oratória demagógica e política, o que não tira o seu mérito no que tange a sua sensibilidade para os problemas políticos, sociais e religiosos de maior relevância; da capacidade para analisar tais fatos, nas suas causas e e efeitos e de cultivar um espírito filosófico capaz de encontrar, para os fatos históricos, m sentido transcendente, no caso, um sentido religioso (p.94). Já no Sermão do Espírito Santo, 1657, proferido no Maranhão, ao mesmo tempo da ordem régia, segundo a qual deviam ser postos em liberdade todos os índios até então cativos (p.120). O autor trabalha ainda outros sermões, em que aparece o paciente e piedoso missionário das almas, mas iludido com os homens, os quais em vez de contribuir para essa tarefa edificante, encontravam-se presos à paixões materiais. O estudioso holandês, José van den Besselaar é considerado um dos melhores representantes da erudição holandesa e lusitanista, além de se destacar em vários campos do conhecimento, seduziu-se pelos estudos sobre Vieira e sobre quem produziu um série de obras. Em Profecia e Polêmica (2001), o profetismo português pesquisado e interpretado por Besslaar, esclarece que não pode estar contido em datas precisas de nascimento, tampouco findo em dado momento, por ter suas origens no profetismo medieval e chegar a influenciar a literatura de cordel brasileira. (nota temas de novelas de época exploraram esse profetismo). A obra em pauta mostra o jesuíta e o profetismo português em meados do século XVIII, coincidentemente quando Vieira sente sua carreira deslanchar em Lisboa, no contexto da Restauração. 23 As fontes usadas pelo autor são coleções de textos de autores conhecidos e anônimos, além de várias obras de Vieira, a exemplo Esperanças de Portugal, endereçada André Fernandes, confessor da rainha regente D. Luísa de Gusmão e escrita de Camutá, não Amazonas, a caminho de uma missão indígena. Nela se atreveu a predizer a ressurreição de D. João IV, fundamentando-se nas trovas do Bandarra O autor admite que por se tratar de um papel que foi copiado (com ou sem permissão de Vieira), seja pelo irmão leigo Paulo Martins Garro, incumbido de postá-la ao seu destinatário ou por outra pessoa, pode ser ainda que Vieira tenha autorizado sua divulgação, o fato é que o conteúdo dessa carta ou papel, corria de mão em mão logo no ano seguinte e teria chamado a atenção do Santo Ofício, por este ter procurado por termo à sua propagação. Mas, tal decisão não impediu que seu conteúdo se espalhasse e chegasse em mãos de outros simpatizantes que a divulgassem ou que contradissessem a tese de Vieira, a partir de 1660. Na primeira parte da obra, o autor junta quatro textos , na maioria inéditos e que polemizam a batalha acirrada entre joanistas e sebastianista, como a Carta de Vieira, Esperanças de Portugal; o escrito de Nicolau Bourey, seu adepto e dois papéis anônimos, na sua opinião redigidos por sebastianistas ortodoxos, acompanhada de uma nota explicativa a preceder cada texto, em que apresenta a característica e estrutura do opúsculo, assim como a tradição manuscrita. E, na segunda parte a obra trás dezenas de notas , umas com a intenção de esclarecer aspectos pouco conhecidos do sebastianismo e outras investigam a história do profetismo medieval, sem o qual o sebastianismo português, em sua configuração concreta, seria muito diferente(p.26). Besselaar chegou à conclusão que ao estudar as raízes históricas desse fenômeno, percebeu que não se trata de um fenômeno isolado, mas que faz parte de um movimento internacional. Chegou-se então à definição do trabalho, o qual foi dividido em três momentos: Na primeira parte - A trajetória de Vieira na Companhia de Jesus, duas obras chamaram mais a atenção: Os jesuítas. Seu segredo e seu poder, de Fülop Miller, datada de 1932 e a de John O'Malley, de 1998, cujas traduções para o português são de 1946 e 2004, respectivamente. Miller trás informações biográficas de Loyola; aspectos da formação do grupo inicial; sobre o espírito do jesuitismo; a polêmica que moveu jesuítas e jansenistas em torno do livre arbítrio; sobre a moral e os caminhos trilhados por 24 seus membros para consolidar a Ordem, além de analisar a contribuição desta na educação, no teatro, na ópera, nas artes plásticas, entre outros. A obra de O'Malley, mais contemporânea, é fruto de uma pesquisa diferenciada que envolveu o estudo dos Exercícios Espirituais de Loyola, a Fórmula da Instituição, as Constituições, a autobiografia de seu fundador e a Crônica da sociedade de Jesus, de autoria de Polanco, jesuíta integrante do grupo inicial, procurando compreender os primeiros jesuítas conforme a compreensão que tinham de si mesmos. Esse exercício levou a estudiosa à pré-história da Ordem e, conseqüentemente, à biografia de Inácio de Loyola, ao contexto de sua conversão e formação da Instituição e seu desempenho ao longo de sua existência, incluindo sua extinção e retorno e, como não poderia deixar de ser, ao contexto de Vieira. Deparou-se com um Vieira um tanto complexo: marcado pelos ideais loyolanos; admirador profundo da obra de São Francisco Xavier; formado nos parâmetros da Nova Escolástica e influenciado pelos valores de seu tempo; atento à hierarquia da Ordem que, muitas vezes, se contrapõe àquele que toma certas posições independentes, ao ponto de comprometer a Instituição e a si mesmo e ser alvo de conflitos internos e ser contemplado com sua expulsão, não fosse a intermediação de D. João IV. A segunda parte investiga as tendências do discurso de Vieira perante a sociedade colonial em três momentos distintos de sua vida passados no Brasil e em Lisboa, através da análise do conteúdo de sermões proferidos em diversas ocasiões e dirigidos a públicos diferenciados, o que possibilitou captar o que se ocultava nas entrelinhas de seus discursos morais, a permanência de posições, contradições e inovações, diante da sociedade colonial em transição: o primeiro momento é o do contexto da ocupação holandesa na Bahia; o segundo, no Maranhão, quando da propalada atuação como missionário responsável pelas missões, entrou em conflito com os colonos-moradores e, finalmente, na Bahia, na fase final de sua vida. Ao trilhar por esse caminho, chegou-se à terceira parte do trabalho - Os excluídos do reino de Deus, em que analisou o direcionamento de seus discursos morais a determinados grupos sociais, como protestantes, negros e mulheres, de forma a discriminá-los ou adestrá-los. Tanto no segundo, como no terceiro capítulo, além dos sermões, consultou- se as Cartas, nos momentos em foi necessário e chegou-se à conclusão que Antônio 25 Vieira, embora não apresentasse muitas inovações, tinha consciência absoluta de que era um intermediário entre o homem e Deus e do papel que orador poderia desempenhar através do púlpito, desde jovem e, como membro da Companhia de Jesus, executar tudo o que fosse necessário, para a maior glória de Deus, inspirado no pai Loyola. Todavia, ao galgar posições mais relevantes junto à Corte de D. João IV, como orador e diplomático, ocasião em que teve a oportunidade de conhecer outros países e entrar em contato com sua cultura e, cujos valores passavam por um transição, dado o avanço do movimento reformista versus expansão mercantilista, teorizou o sistema colonial português que, nem sempre encontrou correspondência na sua organização burocrática e pela sua eficiência, uma vez que a corrupção dos costumes e o abuso praticado pelos próprios portugueses no Brasil, eram responsáveis pelas dificuldades a ação evangelizadora direcionada ao nativo, cuja responsabilidade era da Companhia de Jesus. Vieira, conhecedor potencial dos negócios coloniais e dos interesses da Ordem, entendia que a moralização dos costumes e os problemas que enfrentava no Maranhão, no que diz respeito à questão indígena eram indissociáveis, levando-o a apresentar soluções para o mesmo. Em relação aos seus excluídos, Vieira se revela um tanto preocupado com a heresia da religião reformada, o que resulta na condenação dos protestantes; quanto aos negros, talhados para servir, procura amenizar os maus tratos e, em direção às mulheres, sua intenção é adestrá-la de acordo com o grupo social a qual pertence, seja na metrópole ou na colônia. Acredita-se que o trabalho possa contribuir com mais um estudo sobre Vieira, uma vez que muito pouco se produziu sobre seus excluídos, constituíssem eles maioria ou minoria e, dos que se tem notícia até o momento, são duas comunicações proferidas durante o Terceiro Congresso de sua morte, promovido pela Universidade Católica de Portuguesa, em 1997 e um artigo de Raymond Cantel, não localizado a tempo. A primeira comunicação é da estudiosa Anna Maria de Mello e Souza, Sermão do Demônio Mudo, se refere à análise de Viera e a mentalidade religiosa do século XVII, em relação à vaidade. Complementa com o estudo com a arte pictórica da mesma época, sobre a vaidade. (Terceiro Centenário da Morte do padre Antônio Vieira, Congresso Internacional, Actas, p.1087-193). 26 A segunda foi apresentada por Hilda Agnes Hubner Flores, Sermões de Padre Vieira: O imaginário feminino, a autora selecionou vários sermões do orador, selecionou e analisou temas como a questão da virgindade, da sensualidade, sobre o adultério, sobre a confissão; sobre o poder do rosário e sobre o espaço feminino nesses sermões. (id, p. 1157-1171). No presente trabalho, os sermões estudados foram selecionados por tomos, página, local e data em que foram proferidos, uma vez que os mesmos não foram publicados na ordem em que foram escritos, muitos deles foram refeitos na última fase de sua vida, na Bahia, outros não são datáveis, além do orador carregar influências de uma fase para outra. 27 CAPÍTULO I A TRAJETÓRIA DE VIEIRA NA CONSOLIDAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS Para a elaboração do presente capítulo, reportou-se ao contexto da própria formação de Inácio de Loyola, de modo a pincelar seus traços biográficos, para que ficassem evidenciados aspectos significativos da sua conversão religiosa, para se chegar à organização da Companhia de Jesus e suas peculiaridades. Em seguida, se discorrerá sobre a abertura que teve a Ordem, ao ser agraciada em Portugal, ainda no século XVI, mais especificamente no Oriente e Brasil, sua atuação no Reino, Oriente e Brasil, abordando suas dificuldades iniciais e a própria trajetória de Vieira, numa fase em que a Instituição se encontrava consolidada. A literatura produzida a respeito da história da Ordem é muito esclarecedora quanto à rapidez com que os jesuítas, rapidamente conquistaram o interesse do Papa da época; alcançaram cargos de confessores nas mais diversas cortes européias; trabalharam como pregadores nos lugares mais remotos (Oriente, África e América); conquistaram a credibilidade de pessoas influentes; entraram em atrito com outras ordens e foram até perseguidos politicamente, o que levou-os ao uso de disfarces, a provar talentos, habilidades, conhecimento de mundo e até de astúcia para vencerem tais obstáculos e, tudo para a maior glória de Deus, expressão aliás um tanto repetida por vários membros da Ordem, em diversas ocasiões. E é certo que esses valores teriam sido passados aos filhos de Santo Inácio, já na primeira geração. 1.1 Entre o cavaleiro, o mendigo e o convertido Para trabalhar essa trilogia, recorreu-se à obra de O'Malley (2004) e Miller (1946). A primeira trás informações quanto à autobiografia ditada por ele em três períodos diferentes ao português Luís Gonçalves Câmara e afirma que até ser transformada em página escrita, fora filtrada por várias mentes e idiomas. Sua vida teria muito a ver com a de outros 28 líderes religiosos e as obras de Jacopo de Voragine e as de Ludolfo da Saxõnia teriam influenciado na sua conversão1,onde Inácio narrou sucintamente a história de sua vida até 1538, véspera da decisão tomada pelos primeiros companheiros de se ligarem em uma associação permanente. Polanco e Nadal interpretaram a narração feita por ele como uma espécie de testamento, que mostrava a seus seguidores como e para que Deus o tinha chamado2, portanto mais confiável para o autor. Embora a segunda não cite as fontes pesquisadas e às vezes enalteça a figura de Loyola e da Ordem à qual pertenceu, apresenta informações singulares e relevantes a respeito de sua vida, mesmo sugerindo interpretações um tanto pessoais, foi a única encontrada que narra sua vida até 1538. O autor garante inclusive que a Vita Christi, de Ludolfo da Saxônia, e a Imitação de Cristo de Tomaz Kempis, teriam influenciado Inácio, além dos livros de exercícios de Garcia de Cisneros, abade espanhol e a Lenda Dourada de Voragine e, posteriormente, em Paris, teve oportunidade de mergulhar nas grandes obras da escolástica e entrar em contato com os místicos Irmãos da Vida Comum, já na época em que redigia seus Exercícios Espirituais. Consta ainda que Inácio anotava todas as suas experiências num diário3. Os autores referenciados acima afirmam que Iñigo Lopez de Loyla (1491?-1556), era um dos filhos de uma numerosa família de fidalgos empobrecidos de origem basca, o que trouxe aos pais muitas preocupações quanto à educação dos seus doze filhos, amenizadas pela oportunidade de Inácio ter sido levado por um parente que governava uma das residências dos reis católicos espanhóis Fernando e Isabel, como pagem, ainda na primeira infância, o que pode ser interpretado que, desde muito cedo o favor do monarca era visto como o único objetivo digno de ser aspirado na terra. Com a morte de Isabel, as normas um tanto rigoristas foram alteradas diante das segundas núpcias com a princesa Germana, da França, de hábitos um tanto requintados, justamente numa época em que a Espanha se transformara numa potência universal e os frutos das conquistas acabaram por alterar a simplicidade da Corte, incluindo nos hábitos alimentares e etiquetas à mesa. Uma forte amizade passou a ligar Germana à Dona Maria, esposa do governador e dama de honra da rainha, o que teria favorecido sua freqüência à residência dos Cuellar, onde era servida por Inácio (ambos ainda adolescentes), o qual teria experimentado as 1 O'MALLEY: p.56 2 Id, :p.25 3 (MILLER: p.71) 29 primeiras emoções amorosas, cujo alvo era Germana o que levou-a a sonhar em distinguir-se nos freqüentes torneios, na ânsia de conquistar-lhe o favor. Ao ser armado cavaleiro elegeu-a a dama dos seus pensamentos, o que lhe rendeu um lenço de rendas, lançado à arena, por Germana. Todavia, Inácio sempre se envolvia em aventuras romanescas suspeitas, inclusive orgias desregradas que lhe trouxeram envolvimentos com autoridades judiciais (o que lhe traria arrependimentos confessos mais tarde), inclusive porque naquele tempo, o cavaleiro já havia perdido muito da sua mácula de bravura e altivez, além de receber uma educação unilateral um tanto deficiente até aquele momento: aprendera a ler e tais leituras giravam em torno de romances da cavalaria e histórias de magia, marcadas principalmente pela obra de Amadis de Gaula, o Cavaleiro da Verde Espada, com cujas aventuras se identificara. Um incidente teria levado seus parentes a perder os favores do casal reinante, a família Cuellar precisou abandonou a Corte e Iñigo ao acompanhá-los, viu-se na contingência de ingressar na guarda de outro parente (possivelmente movido por ambição), com a ressalva que o serviço militar era um tanto rígido e sem os aplausos dos tempos vividos na Corte de Castela. Essa nova situação teria contribuído para que sua ambição crescesse e, aborrecidamente, aguardava uma oportunidade para se sobressair num serviço relevante e a primeira oportunidade ocorreu na Revolta Popular em Najera, ocasião em que comandou um grupo contra os revoltosos e, posteriormente, contra as tropas francesas que transpuseram as fronteiras espanholas e tomaram Pamplona . Seu entusiasmo contagiou os demais oficiais no combate aos franceses, mais numerosos e muito melhores armados, o que resultou num rápido combate e no desastre que esmagou sua perna, para sua desgraça, diga-se de passagem, o alvo dos espectadores durante os torneios. O risco de ficar aleijado, atingira sua vaidade a tal ponto que teria suportado as piores torturas das cirurgias e tratamentos posteriores, durante o longo e monótono período de convalescência , preenchido pelas doces recordações da jovem Germana. E, na ausência de obras da cavalaria na limitada biblioteca da casa paterna, encontrou obras de místicos, o que faz sentido se atentarmos para o fato de viver numa sociedade tipicamente aristocrática e numa família onde não ocupava o lugar de primogênito, portanto passível de receber uma herança substanciosa, que favorecesse um matrimônio um tanto nobre, o que leva a concluir que sua situação física favoreceu a procura de um caminho que o ajustasse socialmente, mas com certa nobreza. Repugnantes inicialmente, aos poucos os feitos dos santos foram identificados com os feitos da cavalaria, como por exemplo a história de São Domingos., de São Francisco de 30 Assis e de Santo Onofre, cada uma com suas peculiaridades. Sua ambição achara então um objetivo novo: queria ingressar na turba dos grandes santos e, unido a eles, escudado com o burel e o cilício, combater pelo reino de Cristo4, reino esse muito maior que o império de Carlos V, daí jurar como fiel soldado sob o estandarte real de Cristo a renúncia aos esplendores deste mundo. Foi nesse contexto que abandonou a casa paterna e saiu a percorrer mundo, agora na qualidade de campeador de Deus, como se fosse uma aventura da cavalaria. Montado numa mula que teria lhe indicado o caminho a seguir e essa direção foi Monteserrat, o lugar legendário do Castelo de Graal, local onde prestaria as homenagens tradicionais; alcançou em seguida Manresa, onde passou a viver como mendigo e praticar violência corporal até desfalecer, experiência que lhe valeu a proteção de uma respeitada dama local, a qual muito contribuiu de maneira vital para sua convalescência. E foi lá em Manresa que tivera as estranhas iluminações e visões que envolviam Deus, a Virgem e Cristo, mescladas de insegurança e remorsos pela vida passada, dadas as torturas de consciência que por pouco não o levaram ao suicídio, e durante as quais teria percebido importantes sinais e indicações de Deus que culminaram na atração de visitar a cidade santa de Jerusalém, numa época em que já não apresentava mais atrativo político algum, uma vez que as cruzadas ficaram um tanto para trás. No entretanto, Inácio pretendia libertar os lugares santos da dominação do falso profeta, com as simples armas da humildade, meios tão românticos, quanto estranhos. Desde a sua estada em Barcelona até alcançar Roma, juntara ao redor de si um círculo de discípulas despertadas pelo aspecto um tanto estranhos dos trajes do peregrino e mendigo um tanto miserável, mas atraídas pelos seus modos aristocráticos e com as quais Inácio travava longas e edificantes conversas e recebia seu parco sustento, quando não esmolava pelas ruas e dividia o fruto de suas esmolas com outros mendigos. Da Itália a Veneza e daí para Jerusalém, não foi diferente. Até obter um passaporte do Papa para a Terra Santa, foi obrigado a vencer uma série de dificuldades e, tanto impressionou que recebeu todo tipo de auxílio até chegar ao seu destino e com ele a decepção, uma vez que havia taxação de transportes para todos os lugares a serem visitados, como guias e regras de visitação5. Cumpre observar que as visitas a Jerusalém tinham apenas o caráter de alcançar graças e indulgências. 4 MILLER: p. 63 31 1.2 Os pilares da Companhia de Jesus: o voto de Montmartre e os Exercícios Espirituais 1.2.1 O voto de Montmartre Sem esperanças de poder permanecer Cidade Santa, seguiu para Alcalá (Espanha), com intenções de freqüentar a Universidade, mas em vez de levar a sério seus estudos, empregava a maior parte de seu tempo em angariar discípulos, para os quais passaria sua experiência, o que acabou por despertar uma certa veneração em mulheres da elite e do povo, as quais tentou catequizar, através da indução e cujos resultados não se pode afirmar se foram tão benéficos a elas6. Dessa época encontram-se os primeiros homens que praticaram os Exercícios Espirituais, além da suspeita das autoridades por se assemelharem aos alumbrados7. Mas esses companheiros não o seguiram a Salamanca e nem a Paris, onde se tornou rapidamente uma figura conhecida, tanto no Colégio Montaigu, como no de Santa Bárbara. Dividia quartos com os futuros companheiros, entre eles, Faber e Xavier, logo cooptados por Loyola e, posteriormente Lainez, Salmerón, Rodrigues e Bobadilla, quase todos de origem fidalga, um tanto fanáticos inicialmente quanto à prática dos Exercícios Espirituais e ainda apegados à idéia de viajar para a Terra Santa. E, vale a pena registrar a forma peculiar como Inácio conquistou seus companheiros iniciais: Pedro Faber, de origem camponesa, foi atraído pelo dinheiro, dada dificuldade para se manter em Paris; Francisco Xavier, embora possuísse recursos, estes eram sempre insuficientes, dada a vida desregrada. Amante de noitadas e disputas de esgrima e salto, sonhava com uma rica consorte em Navarra de cuja insegurança foi aproveitada por Inácio, muito embora tenha sido mais trabalhosa sua conversão; Rodrigues possuía uma natureza propensa ao misticismo religioso; Bobadilha era um fidalgo arruinado e ansiava por socorro moral; Lainez e Salmerón já tinham ouvido a respeito de Inácio, desde Alcalá, acabaram se entendendo muito bem. 5 id.: p.79-81) 6 ibid. p. 85 7 Seita de místicos espanhóis vulneráveis à Inquisição. 32 A pequena hoste que se agrupara em torno de Iñigo, pode tê-lo feito compreender as dificuldades que enfrentariam dali em diante, ao mesmo tempo que era o momento de distribuir as tarefas aos seus primeiros discípulos, o que teria ocorrido no dia da Ascensão de 1534 e comungar o sonho da conquista de Jerusalém. Mesmo sabedores da situação da Terra Santa, se prostraram de joelhos na capela da Virgem Maria, em Montmartre, fizeram os votos de castidade e pobreza e juraram partir oportunamente. E, caso não fosse possível a viagem, Inácio já arquitetara um segundo plano, cuja atitude reflete o cego entusiasmo e a uma certa previsão pessimista de dificuldades futuras. Embora o papa Paulo III tivesse abençoado o grupo, este haveria de aguardar o final dos preparativos, ocasião em que explodiu a guerra contra os turcos, interrompendo assim e para sempre o sonho de Loyola e de seus companheiros. E, para não haver perda de tempo, procuraram oferecer seus serviços ao Papa, em 1537, justamente no momento em que o pontífice estava mais interessado em questões ligadas à política mundial mas, necessitava de mestres para a Universidade de Roma, o que levou-o a contratar Lainez e Faber, após breve debate. Na Itália, poder-se-ia observar que o grupo loyolano, desde o início procurou se rivalizar com os teatinos8, os discípulos de Inácio passaram a prestar ajuda aos doentes e assistir pobres, morimbundos, prisioneiros, enfim dar provas concretas de sua abnegação e ao praticar atos de heroísmo patético em relação aos doentes contagiosos nos hospitais, sem falar das terríveis mortificações, jejuns e mendicância a que se submetiam, o que insinua que a invenção de certos meios práticos para combater as desgraças de seu tempo, representava uma transformação decisiva na sua maneira de pensar. É dessa época o florescimento das artes, das formas de vida um tanto refinadas e profanas que se contrapunham ao desamparo das vítimas da pobreza extrema de grupos atingidos pela peste negra e pela lepra, perecerem aos milhares, sem que ninguém desse falta sequer de algum deles, vítimas do esquecimento das autoridades. Foi nesse contexto de 1538 que os futuros discípulos de Jesus iniciaram sua obra social, ao acudir tais vítimas. Através de coletas um tanto organizadas, alimentaram, vestiram e acomodaram essa gente. Mas, com o tempo, Inácio percebeu que essas ações eram insuficientes e que só uma organização formal traria chances de findar ou minimizar tais problemas sociais, incluindo a prostituição que arrastava muitas vítimas às doenças venéreas, entre as camadas sociais mais humildes, tornando-as vítimas de exclusão social 33 (considerar que nos meios elitistas tal situação era um tanto camuflada), mas que trouxe uma certa preocupação às autoridades oficiais e civis. O fato de raramente agirem contra a política oficial, possuíam uma tendência em fazê-lo em consonância com a política e expectativas de outros reformadores ou autoridades civis e, diante dessa forma de atuar, viram na prostituição era um dos males que mais preocupava as autoridades oficial e civil, levando-os a se empenharem na salvação dessas mulheres vítimas de alcoviteiras, principalmente as casadas. Inácio fundara a Casa de Marta em 1543, para a recuperação de mulheres recaídas às quais era direcionada a pregação e essa atenção havia sido comum em vários lugares da Europa desde há algum tempo, fazendo surgir várias entidades para abrigar tais vítimas, curiosamente sob a proteção de Maria Madalena e ás quais era imposta uma vida de penitência e clausura um tanto severa. Onde a prostituição era severamente vigiada, executavam todo tipo de trabalho e só recebiam permissão para deixar a casa com o firme propósito de seguir uma vida correta. Esses procedimentos atraíram a atenção, apoio e respeito de pessoas de todos os círculos sociais. Esse tempo foi caracterizado por uma série de prédicas, atividade que marcou um tanto a Ordem futuramente, haja visto que atingiu a população, chamou a atenção de Loyola (justamente numa época de descrédito do clero e dos mosteiros (com exceção dos frades mendicantes, dos franciscanos, dos dominicanos e dos agostinianos ),por sua conduta imoral e perniciosa, a qual contribuía para aumentar a ignorância das coisas de religião e de Deus portanto, a perda da influência sobre o povo e uma ameaça ao um retorno do paganismo. Vira ainda na confissão (meio considerado mais eficaz para a purificação), seguida de um exame de consciência, a forma de controlar os violadores das leis da Igreja e para os quais confessor seria o juiz, investido de poder de ligar e desligar; de proporcionar ao penitente conselhos dos mais diversos ou admoestações, dependendo dos seus pecados, atividade que teria proporcionado a Inácio a consciência de que, além do poderio sobre as almas, era necessário exercer o domínio sobre a consciência da elite dominante, como por exemplo os governantes, ocasião em que teria início o papel político dos membros da Ordem. Os inacianos captaram rapidamente a relevância da prédica expressiva, da encenação de curas milagrosas ( primeiro nas ruas e nas igrejas mais famosas) e depois se dedicaram a pregar a confissão, sempre considerada um dos meios mais eficazes de 8 Ordem religiosa recém-fundada, em evidência e com ideal reformista, seguidores de princípios austeros e 34 purificação, pois quanto maior o número de confessados, maior o controle das almas. Teria iniciado essa atividade inicialmente atingindo membros de classes mais desprivilegiadas e depois membros da elite reinante, à qual cabia tomar decisões, instante em que teria início o papel político desempenhado pelos jesuítas. E daí foi uma passo fundamental para que Inácio se auto-convencesse da missão histórica da sociedade por ele fundada. Nesse momento a Igreja não estava preparada para as tarefas tão urgentes que o tempo requeria, o que nos leva a crer que as propostas dos inacianos eram um tanto modernas, para não dizer revolucionárias: um extenso corpo de voluntários dispostos a ir onde a luta os levasse, de forma rápida e eficiente para os interesses vitais da própria Igreja, ameaçada, seja pela ineficiência da Santa Sé, pela licenciosidade do clero ou pela ameaça dos ideais da Reforma, levarão o papa Paulo III a tomar medidas no sentido de preservar territórios católicos das influências reformistas ou impedir que os territórios recém descobertos por católicos se abrissem para o protestantismo. E em relação a heresias, a situação era diferente, a perseguição era implacável, tanto é que as mesmas eram punidas com excesso de rigor e Paulo III dera início a uma nova inquisição a fim de eliminar a heresia de Roma, ao indicar John Peter Carafa e a vários cardeais que investigassem os que haviam se desviado do bom caminho. Esse grupo de homens carregados de religiosidade, treinados e dedicados, prontos para atacar de frente quaisquer problemas que o Papa tivesse que confrontar, em qualquer lugar e a qualquer hora, era o diferencial do destemido e diminuto pelotão de Cristo. Resta saber se a Igreja não teria usado a nascente Ordem visando interesses próprios. 1.2.2 - Os Exercícios Espirituais: Ascetismo corporal e disciplina da vontade A marcha cumprida por Inácio e o suplício que ele mesmo se impusera até o momento em que a Ordem fora aprovada pelo Papa, em 1640, são aspectos que não se pode desprezar, quando se trata de buscar entendimento, para a questão em pauta, além da disposição em abandonar a vida cortesã e construir uma outra que acreditava ser ainda mais útil e, em certos aspectos até superior ou mesmo gloriosa, em relação à anterior. A isso, dedicada à assistência nos hospitais. 35 acresce todo o trabalho perseverante e dedicado na organização e administração da Instituição. A forma com que vários autores se referem a Loyola e sobre seus escritos, revelam sua versatilidade, disposição, paciência peculiar diante das adversidades, espírito um tanto forte e determinado e um ser convencido do papel que acreditava desempenhar para a maior glória de Deus (próprio de místicos e de líderes religiosos, como Cristo, Maomé, Francisco de Assis e outros) e, mesmo que não se tratasse de um gênio, projetou uma organização deveras essencial para os destinos da Igreja e do mundo da época e, cuja repercussão, positiva ou negativa, ainda permanecem sensíveis na atualidade. E desde cedo, perceberam que a regra principal era não medir esforços para alcançar os objetivos propostos e, para isso, ele e sua equipe tiveram que se adaptar às situações e tempos dos mais diversos. Percebe-se que atribuíam algo de divino a Inácio e em tudo que se relacionava a ele e a frase todas as vezes que eu quiser poderei encontrar Deus... como se treina o corpo, pode-se preparar a vontade por meio de exercícios, a fim de que ela encontre a vontade divina9, pode-se dizer que era uma das essências do conteúdo das regras inacianas, explicadas pelo jesuíta Francisco Suárez: a santidade consiste na transferência da nossa vontade na vontade de Deus10, foram um tanto providenciais e construídas através do tempo. E, para Loyola, não resta dúvida que a perfeição seria atingida através da prática dos Exercícios Espirituais e que a necessidade de autodomínio deveria ser imprescindível, além de ser primordial recorrer à imaginação; aguçar ao extremo a capacidade de diferenciação entre atos morais e imorais, detalhe deveras relevante quando se trata de buscar a perfeição, principalmente numa época em que o homem encontrava-se entre o bem e o mal, o imoral e o moral, entre Cristo e Satã e com remotas possibilidades de escolher o caminho correto e que o Inferno era o personagem principal da pintura, dos objetos de adorno, das pregações, dos tratados, das cartilhas, dos breviários e até das obras científicas e que acabou por contribuir para a formulação e proliferação dos mesmos. Inicialmente o indivíduo deve experimentar com todos os sentidos as dores escaldantes do inferno e as delícias inefáveis do céu, para poder avaliar a diferença entre o bem e o mal, imagens através das quais Inácio pretendia ajudar o homem a encontrar o caminho da perfeição; depois ouvir com o ouvido da imaginação o pranto, os gemidos, os gritos, as blasfêmias contra Nosso Senhor Jesus Cristo e contra todos os seus santos. Num 9 MILER, op. cit, p. 22. 10 Id. p. 23. 36 terceiro momento, o exercitante tem que sentir com o olfato da imaginação a fumaça, o enxofre, o odor do inferno, para degustar com o paladar da imaginação as coisas amargas, as lágrimas, a tristeza; nenhum sentimento diferente, por mais nobre que seja, deve atrapalhar a marcha prescrita, os exercícios ainda ensinam como criar o estado de alma adequado e, por último em apalpar, com o tato da imaginação, a intensidade com que esse ardor envolve as almas e as queima11. Esse seria o inferno em todos os sentidos e após experimentá-lo, sentirá um medo pavoroso diante do julgamento. Aliás esse temor já se encontrava presente nos discursos dos teólogos medievais, mas que ainda permanecia no século XVI, ocasião em que o memento mori penetrava na consciência dos homens, seja através da arte, objetos de adorno, nos púlpitos, nos tratados de ars bene moriendi, os livros das horas, cartilhas e breviários, entre outras, todos aproveitadas por Inácio de maneira sistemática e, intencionalmente ou não, provocava um certo efeito psicológico e, com certeza incorporaram na transformação espiritual do homem e os primeiros editores dos exercícios Espirituais declarar em: Essa obra não é destinada àqueles que apenas querem ler, mas aos que querem agir, segundo Miller 12. Assim que os jesuítas começaram sua ação, seus adversários protestantes teriam visto nos Exercícios uma obra diabólica, uma vez ...que obtinham em ocasiões e aposentos espectadores igualmente especiais, fruto de feitiçaria; que incitam pessoas a práticas um tanto estranhas, segundo testemunhas dignas de fé, as vítimas são embriagadas por vapores e outros meios, afim de que elas julguem ver o demônio em carne e osso, mugem igualzinho ao boi, têm que abjurar a Cristo e servir o Diabo (ibid.,p.34) Identificado como um livro fatídico da humanidade, os Exercícios, ainda pode ser comparados ao simples livrinho aparentemente insignificante de Inácio de Loyola, por atingir o seio da Igreja Católica, um número considerável de padres seculares, príncipes da Igreja, sábios e leigos de diversas classes sociais, nos mais variados países europeus e, principalmente os próprios jesuítas. Joana D'Austria, por exemplo, filha de Carlos V, teria pressionado tanto que Inácio teria permitido que a mesma entrasse para a Companhia e praticasse os fatídicos exercícios (fato que foi do conhecimento apenas de um grupo restrito), com a esperança que ela provesse a Ordem, o que não deixou de causar sobressaltos em Inácio, segundo 11 Ibid, p. 24 12 MILLER, op. cit, p.28 37 O'MALLEY13; teria também atingido os protestantes, com a ressalva de que estes geralmente seguiam na íntegra até a primeira semana, por abominarem a confissão (id. p.66); atingiram a rainha Catarina de Portugal, em 1554 e Mem de Sá aderiu a eles por uma semana, por orientação de Manuel da Nóbrega14 e, segundo afirmações de Miller, até Benjamin Franklin teria praticado essas regras espirituais15. Curiosamente, o livro teria criado a instituição do retiro e teria influenciado muito os primeiros jesuítas; por recomendavam práticas individuais, com a peculiaridade de que era necessário um orientador, o que sugere muita originalidade nas atitudes da recém-criada Instituição . A tudo isso, acrescenta-se o fato de se dedicar à leitura da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo, prática medieval, com o diferencial de que Cristo vem, conversa com o exercitante e cobra dele um auxílio militar na guerra contra o anjo mau, enquanto que o Rei do bem (Cristo) fala aos fiéis que suas intenções devem ser direcionadas à conquista da verdadeira fé em todo o país dos pagãos, com o auxílio dos súditos, identificados como inacianos. Tratava-se de um recurso interior para motivar o indivíduo a realizar a missão que lhe cabia e sua prática duraria quatro semanas e, cujo discurso é desprovido de certa graça literária, de difícil compreensão, acudia aquele que procurava ajuda, não só para defender a hoste cristã, mas para se fazer uma escolha decisiva acerca do futuro, por exemplo casar, escolher uma profissão ou viver num estio marcadamente diferente, afirma O'Malley. A resposta se traduzia num juramento de fidelidade, uma vez que os demônios eram tão numerosos quanto perigosos. Tratava-se de uma mobilidade que foi própria dos inacianos e que não bastava apenas praticar os Exercícios, era necessário seguir regras e regras para se criar ou alcançar o estado de alma adequado para cada ocasião, sempre primado pela obediência absoluta e sem que houvesse dúvida alguma interior e convencidos de que o estandarte de Cristo estaria estacionado em Jerusalém e o de Satanás, na Babilônia, prontos para encetar a batalha final, com a diferença que Cristo escolhe seus soldados e os envia às mais diversas partes, a fim de que propaguem a sua sagrada doutrina entre todos os homens, uma vez que a glória de Deus pode ser aumentada pela cooperação dos homens. Apenas para ilustrar, os Exercícios loyolanos em pouco tempo, atingiram vários membros das camadas 13 O'MALLEY, op. cit, p.122 14 id. p.205 15 op.cit.p.33 38 dominantes, inclusive no seio da própria Igreja e mesmo após a supressão da Companhia de Jesus, sua prática teria continuado, embora tenham sofridas alterações no decorrer do tempo. Além do exposto, o que também teria contribuído para despertar a curiosidade, tolerância e a credibilidade do grupo inicial foi a sua origem nobre; o porte de diplomas parisienses; o fato de ignorarem ou até desprezarem o conforto e os progressos pessoais, meios um tanto eficazes para conquistar a elite dominante da época, ansiosa por ordem e estabilidade, nos mais diversos países, uma vez que acreditava nos mesmos valores. E, ao exercerem influência na classe dominante, além de obter seu apoio, caminharam de encontro com o conteúdo das Constituições, cujo maior bem era alcançado ao influenciar aqueles em posição de exercer influência sobre outros. De acordo com O'Malley16, os inacianos determinaram que para qualquer pessoa que perguntasse quem eram eles seria respondido que eram da Companhia de Jesus, visto que não tinham outro superior senão Jesus. E, na Itália da época o termo ou expressão companhia era identificado com uma associação, estava em moda e designava uma série de irmandades religiosas. Tudo leva a crer que ainda não estavam prontos para se identificar como membros de alguma ordem. Outras táticas também foram empregadas para alcançar o sucesso, efetivamente, era o fato de que o ministério jesuíta ser direcionado a pobres excluídos, pagãos, muçulmanos, hereges ou católicos desgarrados; o descarte ao trabalho nas paróquias era justificado por contrariar os votos de pobreza e inibir a mobilidade; não ir ao encontro de pessoas boas e felizes, por julgarem que não se podia fazer nada por elas; ao ouvir confissões femininas era comum solicitarem seus serviços para tarefas mais ou menos relevantes, como o encaminhamento de outras ovelhas desagarradas, enquanto que os homens eram conduzidos à prática dos Exercícios Espirituais e à meditação. Assim, passo a passo foram construídos os pilares da ordem, cujos valores e influência foram sentidos por séculos no mundo ocidental (embora a Companhia de Jesus tenha durado dois séculos) e de forma diferenciada das demais ordens da época, no que diz respeito à cultura e o funcionamento da sociedade. É certo que Loyola transferiu para a Ordem a subordinação militar, não que tivesse adotado apenas a disciplina soldadesca, mas existiam traços dessa instituição que eram perceptíveis na sua organização; uma hierarquia análoga entre exército e Igreja , onde a identificação com o chefe, ocorre através de uma união de sentimentos e de objetivos, o que 16 id, p.59-60 39 pode ser observado no relacionamento entre Inácio e os primeiros jesuítas, observado por Miller17. Os primeiros jesuítas acreditavam que a Companhia era de inspiração divina e, tal como Cristo, ao indivíduo cabia imbuir-se da pobreza material, para alcançar a perfeição; seguir rigorosamente os passos de Inácio, como os apóstolos seguiam Jesus - os apóstolos de Cristo identificados com os apóstolos de Loyola18, tanto que em Portugal eram identificados por apóstolos; na Espanha, por Inacianos, de um lado e termos um tanto zombeteiros, de outro. Havia uma tendência a empregá-los de acordo com o seu talento, sobretudo na primeira e segunda geração (com a ressalva que Inácio era o espelho do jesuíta ortodoxo), o que deixa algumas dúvidas, se levarmos em conta a opinião de O'Malley: nem todas as comunidades jesuítas funcionavam bem: muitos eram ineptos, outros de saúde frágil ou debilitados psicologicamente. Essa hierarquia vinha da aceitação da lógica aristotélica aceita pela escolástica medieval e sua fusão, pode-se dizer, com o mundo ideológico que o Cristianismo adotou atrelado a um sistema cósmico um tanto original, mas hierarquicamente graduado e que no jesuitismo acabou por se manter além da Idade Média. Mas não se tratava apenas disso: era imperativo ainda que a organização administrativa fosse bem elaborada; que seus membros recebessem uma formação adequada, para não dizer primorosa, ao menos para a época; uma independência que os levasse a tomar rápidas decisões, uma vez que os jesuítas eram forçados a agir por iniciativa própria em várias ocasiões, dadas as dificuldades de se comunicar diretamente com a direção da Ordem e que desempenhassem serviços de acordo com suas aptidões. O jesuíta se caracterizou por pregar entre o livre arbítrio, força aliás um tanto santificadora e a obediência incondicional, através dos quatro singulares votos (de pobreza, castidade e obediência e de obediência particular ao Sumo Pontífice, e que no sermão de Santo Inácio, pregado no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, 1669, Vieira afirma que seria eqüivalente às quatro partes do mundo, por onde iria viver ou morrer qualquer membro da Ordem, desde que o fizesse a serviço de Deus e salvação das almas),além do dever de resistir às exterioridades, isto é, não permitir que o que venha de fora o domine, enfim, uma obediência cega, absoluta, identificada pela perfeição e sabedoria19. 17Ibid, op .cit, p. 98 18 O'MALLEY, op. cit, 107-110 19 MILLER, op. cit, p.35 40 Todavia, no referido sermão, Vieira vai muito mais longe nesse panegírico ao fundador da Ordem, possivelmente com intuito de despertar vocações: Tinha rosto de homem, de águia, de leão, de boi, de homem, pelo trato familiar com os próximos; de águia, pela ciência com que ensinam e escrevem leão, pela fortaleza com que ensinam aos inimigos da Fé, de sacrifício (...), um homem abrasado em fogo (p.426). Descreve um Inácio semelhante todos os santos, visto que de cada um tomou uma qualidade para seguir ou espelhou-se em uma qualidade de cada um, mas entre todos os santos semelhante, cujo nome era para espantar o Demônio que nem os Anjos resistira, e cuja espada é semelhante à de David. Ainda entre as singularidades de Santo Inácio é a de ser o braço direito da Igreja, com que os pontífices defendem, segundo a confirmação de Clemente VIII; destaca a qualidade do ensino ministrado nos colégios da Companhia e que o de Santo Antão formara os mais doutos portugueses, embora não seja o mais procurado pelos seus descendentes. No entanto, os jesuítas foram os únicos que procuraram fundir os resultados das investigações científicas com o pensamento católico escolástico, modelar desde o início toda a vida da humanidade e introduzir um equilíbrio entre a herança da Idade Média e o espírito da época moderna, para que o indivíduo não entrasse em contradição com as exigências da Igreja. No outro extremo, encontravam-se os protestantes a utilizarem mais da cultura clássica, com intenções de atacarem o catolicismo, criticarem a Bíblia e a história da Igreja, fundaram uma série de escolas onde se educaria a juventude no espírito humanista e evangélico. A literatura produzida a respeito da história da Ordem é um tanto esclarecedora quanto à rapidez com que seus membros alcançaram rapidamente cargos de confessores nas mais diversas cortes européias; trabalharam como pregadores nos lugares mais remotos; foram perseguidos politicamente, daí se tornar necessário o uso de disfarces, o que levou-os a provar talentos, habilidades, conhecimento de mundo e até de astúcia e, tudo para a maior glória de Deus. E é certo que esses valores teriam sido passados aos jesuítas já na primeira geração, o que não significa dizer que todos, indistintamente se imbuíram desse espírito, embora houvesse casos refratários. O fato de Inácio pertencer a um estamento nobre, receber uma formação aprimorada para a época, adotar atitudes comedidas e optar por uma vida simples e com toques místicos, acabou por atrair elementos de estamentos privilegiados economicamente e influentes politicamente, fossem do sexo feminino ou masculino. 41 O'Malley20 coloca essa questão em dúvida, ao avaliar que, ao mesmo tempo que exerciam tão forte atração e apoio da elite dominante, o que ia de encontro com o conteúdo das Constituições, não previram o compromisso de tais alianças e ao ligar-se a alguém poderoso, os tornava suspeitos para outros. Inclusive entre os próprios irmãos da Ordem havia suspeitos, como por exemplo em relação aos favores recebidos, a adaptação relativamente fácil à vida cortesã, a exemplo de Antônio Vieira. 1.3 A Companhia de Jesus em Portugal É sabido que sua influência em Portugal vem da época da reforma do ensino ocasião em que os jesuítas receberam a direção do Colégio das Artes, no reinado de D. João III, coincidentemente com a aceitação das normas tridentinas no país. Todavia, Gouveia afirma que essas normas foram difundidas de forma deveras lenta em Portugal, uma vez que sua aplicação dependia do interesse do bispo local e o clero regular não possuía formação adequada para discernir sobre a necessidade de observá-las com mais ou menos rigor, embora coubesse aos bispos preservar a ortodoxia e, com ela, o respeito pelas autoridades, que definem e lutam para manter a verdade21. É certo que Portugal não comungou com as mesmas realidade de outros países europeus, no que diz respeito à educação, particularmente em relação ao ensino universitário, o que colaborou para que a cultura fosse vista como arcaica e medieval, comparada ao restante da Europa ocidental. Os reis portugueses até meados do século XIII dedicaram-se mais à conquista/reconquista territorial e Afonso Henriques acabou se comprometendo com a Ordem de Cister à qual entregou boa parte de territórios fronteiriços e à Ordem dos Templários que se encarregara da defesa e povoamento de outra região e ao chegar à independência se escorou na Santa Sé, para fugir à suserania do Reino de Leão, o que teria influenciado ou até convencido os papas a julgarem de direito e de fato suseranos dos reis id, id, p. 117 21 MATTOSO, Vol. V, 1994, p.291 42 portugueses, implicando no recebimento de tenças22, as quais deveriam ser pagas pontualmente23. Com isso, o clero se encontrava numa posição privilegiada, inclusive acima das leis que governavam o pequeno país, o que levou vários soberanos que reinaram após D. Afonso Henriques se envolverem em várias disputas, inclusive através de rebeliões aramadas, contra bispos e arcebispos, advindas de litígios pelo direito de entrada do comércio pelo rio Douro, enquanto que a nobreza tem sua base econômica nos soldos que o rei lhe gaga em troca do serviço militar e, aliada ao clero, impedia as tentativas do rei ara limitar a extensão dos domínios senhoriais. Embora as escolas episcopais sejam datadas do século XIII, convêm ressaltar que o analfabetismo grassava té entre a maior parte do clero, o que teria levado o reino a se movimentar para criar escola para leigos, época em que várias universidade européias já haviam feito história. Consta portanto que até final do século XV, a base do ensino era a gramática, embora as escolas tivessem adotado o programa das sete arte liberais. O movimento universitário, igualmente tardio, foi do reinado de D. Dinis, e quando fica muito claro o fato da universidade ficar sob dependência do rei, o qual lhe dava regimentos, pagava a universidade, ao menos parcialmente, através das rendas de igrejas do padroado, muitas vezes escolhia os mestres e dele dependia o conservador, dependência que se acentuou à medida que fortaleceu a centralização política, como por exemplo no reinado de D. João III e, nela não se ensinava teologia, com receio de proliferação de heresias. Foi, portanto, uma iniciativa do Estado ( o que não ocorreu nos demais países europeus, além da península Ibérica). E, desde o século XIV, no reinado de D. Fernando e Afonso, o Sábio, vários intelectuais portugueses recebiam instrução em universidades estrangeiras, situação que permaneceu até o século XVI. O Portugal conhecido como moderno possuía características singulares. Como por exemplo, um passado católico a serviço de Deus; uma monarquia absoluta; uma burguesia em ascensão; recebeu o humanismo desde o século anterior, mas se prendeu ao aspecto épico cruzadista e um ultramar mais cobiçado da época e, ao adentrar o século XVI, seu império colonial deu mostras de sua expansão e controle das rotas comerciais e monopólio de produtos asiáticos dos mais diversos, tornando o Tejo um dos rios mais movimentados do 22 Pensão periódica, ordinariamente em dinheiro, que alguém recebe do Estado, ou de particular, para seu sustento. 23 SARAIVA, p. 33-34 43 mundo, o que refletiu no brilho da Corte e, por sua vez, pôde incrementar a vida artística, científica, intelectual e marítima. A abertura humanística que prometia mudar os rumos da educação, a reforma da universidade, a defesa dos territórios ultramarinos e a forma como procurou levar a Fé nessas regiões ocorrera, ao mesmo tempo, assim como o investimento naval, a publicação de obras consideradas relevantes e o envio de bolseiros para várias universidades do exterior, o que teria facilitado o contato com as idéias erasmianas, um tanto prestigiado na época e o seu caráter humanista-histórico-filosófico que se contrapunha aos esquemas e processos da Escolástica com as aspirações de um cristianismo espiritual, ético e evangélico24. Mas, é certo que o sábio de Roterdã angariou vários adeptos, ao quais se deixaram influenciar parcialmente por seu pensamento, como por exemplo João de Barros, Damião de Góis e André de Resende, embora ainda lhes trouxessem envolvimentos com o Índex e que a geração dos anos de 15, 20 e 40 do século XVI, que preconizava a transição em relação à mentalidade portuguesa, não ultrapassou a metade desse século. Aqueles que defendiam posições mais avançadas, admitiam que a produção intelectual diminuíra em qualidade e em quantidade, enquanto que os contrários às mudanças, afirmavam que justamente nessa época que tal produção aumentara, baseando-se no número de obras editadas, sem levar em consideração que muitos produções eram editadas na França e Países Baixos. E, apenas para ilustrar o que foi dito acima, a lista de livros proibidos de autoria do padre Baltazar Á