UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CÂMPUS DE ASSIS LEISE CECÍLIA DE OMENA A INCLUSÃO DE ALUNOS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA) NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL I: POSSIBILIDADES E PRÁTICAS PARA APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM ORAL E ESCRITA ASSIS 2021 LEISE CECÍLIA DE OMENA A INCLUSÃO DE ALUNOS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA) NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL I: POSSIBILIDADES E PRÁTICAS PARA APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM ORAL E ESCRITA Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Linguagens e Letramentos- PROFLETRAS) Orientadora: Dra. Cláudia V. P. Binato ASSIS 2021 Omena, Leise Cecília de O55i A inclusão de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos anos iniciais do Ensino Fundamental I: possibilidades e práticas para aprendizagem da linguagem oral e escrita / Leise Cecília de Omena. Assis, 2021. 159 f. : il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Valéria Penavel Binato 1. Autismo. 2. Linguagem oral. 3. Linguagem escrita. 4. Interação social. 5. Funcionalismo linguístico. I. Título. CDD 401.9 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: A INCLUSÃO DE ALUNOS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA) NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL I: POSSIBILIDADES E PRÁTICAS PARA APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM ORAL E ESCRITA AUTORA: LEISE CECÍLIA DE OMENA ORIENTADORA: CLÁUDIA VALÉRIA PENAVEL BINATO Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Mestra em LETRAS, área: Linguagens e Letramentos pela Comissão Examinadora: Profa. Dra. CLÁUDIA VALÉRIA PENAVEL BINATO (Participaçao Virtual) Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e da Educação / UNESP/Assis Prof. Dr. MARCO ANTONIO DOMINGUES SANT'ANNA (Participaçao Virtual) Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e da Educação / UNESP/Assis Profa. Dra. FLAVIA CRISTINA OLIVEIRA MURBACH DE BARROS (Participaçao Virtual) UNIFIO/Ourinhos Assis, 24 de maio de 2021 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - AVENIDA DOM ANTONIO, 2100, 19806900, Assis - São Paulo http://www.assis.unesp.br/#!/posgraduacaoCNPJ: 48.031.918/0006-39. http://www.assis.unesp.br/%23!/posgraduacaoCNPJ AGRADECIMENTOS Agradeço primeiro a Deus, que tanto me ajudou até chegar até aqui, principalmente em um ano de tantas angústias e incertezas. À Professora Drª. Cláudia Valéria Penavel Binato, que me orientou e confiou no meu trabalho. Agradeço por compartilhar comigo sua paciência, otimismo e sabedoria. Ao PROFLETRAS, que tornou possível o sonho do mestrado. Mesmo com tantas dificuldades e lutas contrárias à educação, este programa incentiva profissionais a buscarem novos horizontes e perspectivas para melhorar o ensino público. Aos Professores Dr. Odilon Fleury Curado e Drª. Flávia Cristina Oliveira Murbach de Barros, que tanto contribuíram em minha qualificação, seus apontamentos e sugestões científicas foram valiosos e essenciais para que meu trabalho fosse concluído. Aos meus familiares, que tanto me apoiaram, incentivaram e respeitaram momentos em que não estive presente. À toda a comunidade escolar, alunos, pais, coordenadores, direção, professores e todos os que trabalham direta e indiretamente no dia a dia escolar, sei que todos torceram por este trabalho e contribuíram de alguma forma. Aos amigos Alessandra, Luciene, Thiago Corado e Sandra, que participaram com empréstimos de livros, auxílio nas apresentações de trabalho, na confecção de materiais e tantas outras coisas que não consigo lembrar no momento, mas foram muitas. À minha cunhada Miriam Fernandes, especialista em educação especial, e que tanto me ajudou com dicas e materiais de pesquisa. Enfim, agradeço aos que estiveram ao meu lado durante esta jornada que transformou minha prática enquanto professora. Jamais entrarei em uma sala de aula sem que tais reflexões estejam presentes em minhas ações. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito a vida inteira”. Rubem Alves OMENA, Leise Cecília de. A Inclusão de alunos com transtorno do espectro autista (TEA) nos anos iniciais do Ensino Fundamental I: possibilidades e práticas para aprendizagem da linguagem oral e escrita. 2021. 159 fls. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO A literatura científica aponta a linguagem funcional como essencial para o desenvolvimento de habilidades pertencentes ao currículo formal, em razão de ser ela, como pretendemos demonstrar, um dos fatores que facilita a participação ativa dos sujeitos em sociedade. Durante este trabalho, constatamos que alunos, dentro do diagnóstico do espectro autista, têm muita dificuldade em relação à linguagem funcional, uma vez que eles apresentam atraso na fala ou resistência/relutância em falar ou, até mesmo, linguagem oral não-desenvolvida em momentos de interação. Dessa forma, na presente pesquisa, buscamos não somente observar o comportamento comunicativo de um aluno com características autísticas, mas também, identificadas suas habilidades pré-adquiridas, mediar situações de aprendizagem que o estimulassem em um grupo com vinte e quatro alunos, em uma sala de ensino regular. Antes de tudo, verificamos as condições arquitetônicas da escola, pois a acessibilidade era muito importante para que, tanto esse aluno como sua família, se sentissem apoiados e seguros; além disso, foi importante conhecer a opinião dos pais dos demais alunos sobre inclusão para depois, então, construir um plano de ação cujo propósito era estimular o desenvolvimento e a progressão de habilidades do grupo, uma vez que todos estavam em processo de alfabetização. A pesquisa teve início em 2019 com alunos na idade entre seis e sete anos, regularmente matriculados no primeiro ano do ensino fundamental I, e teve continuidade no início de 2020, quando esses mesmos alunos já haviam avançado para o segundo ano do ensino fundamental I. Porém, em março do mesmo ano, as aulas foram interrompidas em sua forma presencial devido à pandemia da COVID-19. Infelizmente, a interação entre os alunos foi muito prejudicada. No entanto, podemos afirmar que, mesmo diante dos muitos obstáculos, desenvolvemos as atividades programadas, pois contamos com a valiosa ajuda dos pais que nos apoiaram em todas as etapas da pesquisa. No ano de 2019, observamos atenta e constantemente a sala, construímos um plano de ensino individual para o aluno com TEA, confeccionamos para ele materiais adaptados com imagens e favorecemos momentos de interação com o grupo. Pretendemos ainda demonstrar a importância da inclusão, considerada não apenas para que a lei seja cumprida no ambiente escolar, mas também para que os sujeitos respeitem as diferenças, contribuindo para que haja evolução no processo de aprendizagem de todos os envolvidos. O professor deve mediar tais interações e fazer as adaptações necessárias nas intervenções pedagógicas. Ressaltamos que, no currículo escolar, existem diversos campos a serem trabalhados. Contudo, como este trabalho está vinculado ao Mestrado PROFLETRAS, cujos objetivos se referem à investigação no campo das linguagens, restringimo-nos a apresentar ações que contribuíram para o desenvolvimento das linguagens oral e escrita. PALAVRAS-CHAVE: Autismo; Linguagem oral e escrita, Interação social; Uso funcional da linguagem. OMENA, Leise Cecília de. Inclusion of students diagnosed within the autism spectrum of disorders (ASD) in the first years of elementary school: possibilities and practices for oral and written language learning. 2021. 159 pages. Dissertation (Professional Master Degree in Portuguese Language) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. ABSTRACT Scientific literature indicates that functional language skills are essential for individuals to develop abilities found in an academic curriculum. This research aims to show how functional language also helps the individual to actively participate in society. We observed that students who had a diagnosis within the autism spectrum of disorders (ASD) exhibit underdevelopment, or no development at all, of language skills. These students showed equal resistance to interact with others. Accordingly, we tried to observe not just the communicative behavior of students diagnosed within the autism spectrum, but also to identify the skills they already had, and to mediate learning situations that would encourage these students in a regular school classroom of twenty-four children. We began by examining the architectural aspects of the school, because accessibility is important to the ASD students and their families. Accessibility makes both students and families feel like they have support and are safe. Likewise, it was important to know the parents' opinion on inclusion. From there we were able to elaborate an action plan to stimulate skill development and progress, individually as well as for the whole group. It is important to note that all these students were in the process of learning how to read and write. This research began in 2019, with students who were between six and seven years old, and who were enrolled in the first grade of elementary school. It continued in 2020, when they had progressed to second grade. However this research was interrupted in March 2020 because of the COVID-19 pandemic, when in school classes were suspended. Unfortunately, interaction between the students was harmed. Nevertheless, and despite the obstacles in the way, we can say we were able to develop the planned activities thanks to the support of the student’s parents in all phases of the research. In 2019 we observed and evaluated the classroom closely. From there we built an individual teaching plan for ASD students with adapted materials containing images. Finally, we provided interaction between ASD students with the rest of the group. We tried to demonstrate the importance of inclusion as something that contributes to the evolution of the learning process for all individuals. Inclusion also helps the students to learn to respect those who are different, and it should not be done just to comply with the law. Teachers should mediate interactions amongst the students and make the necessary adaptations to optimize inclusion. We emphasize that in a regular school curriculum there are many fields to be worked upon, but this research, being a part of PROFLETRAS Master’s degree, was limited to showing the actions that contribute to oral and written language development. KEY WORDS: Autism; Oral and Written Languages; Social Interaction; Functional Use of Language SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................... 12 1. PREÂMBULO.......................................................................................................... 12 2. APRESENTAÇÃO DA PESQUISA......................................................................... 13 3. PROPOSTA E OBJETIVOS..................................................................................... 15 PARTE I – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS................................................................ 19 1. LINGUAGEM E ALFABETIZAÇÃO........................................................................ 19 1.1. LINGUAGEM ORAL E SEU DESENVOLVIMENTO........................................... 19 1.2. LINGUAGEM ESCRITA E SEUS PROCESSOS.................................................... 21 1.3. RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM ORAL E LINGUAGEM ESCRITA............. 25 1.4. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO – SUAS RELAÇÕES COM A APRENDIZAGEM .......................................................................................................... 29 2. TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA.......................................................... 33 2.1. MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM)............................................................................................................................... 33 2.2. O QUE É AUTISMO? .............................................................................................. 35 2.3. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO AUTISMO ............................................. 38 3. DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E AUTISMO........................................ 41 3.1. COMUNICAÇÃO DE CRIANÇAS PORTADORAS DE TEA............................... 41 3.2. DIAGNÓSTICO DO TRANSTORNO AUTISTA................................................... 44 3.3. LUTA PELA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS AUTISTAS...................................... 45 4. ESCOLA E AUTISMO............................................................................................... 49 4.1. IMPORTÂNCIA DA ADEQUAÇÃO CURRICULAR............................................ 49 4.2. O QUE É PROGRAMA TEACCH? ........................................................................ 52 4.3. COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA........................................................................ 53 PARTE II – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS........................................... 56 1. PLANO DE TRABALHO............................................................................................ 56 1.1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.............................................................. 56 1.2. PARTICIPANTES DA PESQUISA.......................................................................... 58 2. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO............................................................... 59 2.1. DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA................................................................. 59 2.2. ESPAÇO DA PESQUISA......................................................................................... 60 2.3. ESTUDO DE CASO ETNOGRÁFICO.................................................................... 61 PARTE III....................................................................................................................... 65 1. INCLUSÃO COMO PRÁTICA NA SALA DE AULA.............................................. 65 1.1. AVALIAÇÃO COMO ALIADA.............................................................................. 65 1.2. PLANO DE ENSINO INDIVIDUAL (PEI) ............................................................ 67 1.3. PRODUÇÃO DE MATERIAIS ............................................................................... 72 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 87 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 91 ANEXOS.......................................................................................................................... 95 Anexo I ............................................................................................................................ 95 Anexo II ........................................................................................................................... 97 Anexo III .......................................................................................................................... 99 Anexo IV ......................................................................................................................... 101 Anexo V ........................................................................................................................... 105 Anexo VI ......................................................................................................................... 107 Anexo VII......................................................................................................................... 111 ÍNDICE DE IMAGENS FIGURA 1 – Consciência Fonológica – Imagem inspirada nas explicações de Magda Soares ............................................................................................................... 23 FIGURA 2 - Exemplos de realismo nominal............................................................... 23 FIGURA 3 - Exemplos de realismo nominal............................................................... 23 FIGURA 4 - Lista de sugestão para a sondagem das hipóteses de escrita no decorrer do ano, pelo material “Ler e Escrever” - Exemplo de escrita sem valor sonoro........... 24 FIGURA 5 - Lista de sugestão para a sondagem das hipóteses de escrita no decorrer do ano, pelo material “Ler e Escrever” - Exemplo de escrita com valor sonoro........... 24 FIGURA 6 - Consciência fonêmica e relação fonema/grafema................................... 25 FIGURA 7 - Diferenças entre fala e escrita apontada por autores que assumem a perspectiva da dicotomia............................................................................................... 27 FIGURA 8 - Distribuição dos gêneros textuais no contínuo........................................ 28 FIGURA 9 - Modelos de placas de comunicação........................................................ 72 FIGURA 10 - Modelos de placas de comunicação...................................................... 72 FIGURA 11 - Modelo de rotina escolar....................................................................... 73 FIGURA 12 - Modelo de calendário com dia, mês e ano............................................ 73 FIGURA 13 - Quebra-cabeça com figuras e palavras.................................................. 74 FIGURA 14 - Flash cards............................................................................................. 74 FIGURA 15 - Cartelas com imagens e palavras para a escrita com alfabeto móvel.... 75 FIGURA 16 - Foto dos jogos de formas geométricas e cores...................................... 75 FIGURA 17 - Foto do quebra-cabeça Objetos e seus nomes....................................... 76 FIGURA 18 - Foto do quebra cabeça Objetos e seus nomes....................................... 76 FIGURA 19 - Escrita do nome com suporte................................................................ 76 FIGURA 20 - Atividades com cores............................................................................ 77 FIGURA 21 - Atividades com flash cards................................................................... 78 FIGURA 22 - Foto de atividade com pintura............................................................... 78 FIGURA 23 - Atividades de grafomotricidade............................................................ 79 FIGURA 24 - Roda de conversa.................................................................................. 80 FIGURA 25 - Interação no parque............................................................................... 81 FIGURA 26 - Atividade na quadra.............................................................................. 82 FIGURA 27 - Interação com crianças de outras salas................................................. 82 FIGURA 28 - Atividades de interação e melhora na mobilidade................................. 83 FIGURA 29 - Interação no pula- pula.......................................................................... 83 FIGURA 30 - Momento de interação e aceitação........................................................ 84 FIGURA 31 - Ida ao teatro........................................................................................... 84 FIGURA 32 - Ida ao teatro........................................................................................... 84 QUADRO 1 - Níveis de planejamento do PEI............................................................. 68 QUADRO 2 - Inventário de habilidades escolares....................................................... 69 QUADRO 3 - Rotina.................................................................................................... 71 12 INTRODUÇÃO 1. PREÂMBULO No ano de 2005, por meio de um concurso público, ingressei1 em meu trabalho na área da educação no cargo de Monitora de Creche da Prefeitura Municipal de Assis (SP). Nesse período, havia concluído apenas o ensino médio e meu interesse limitava-se a ter um emprego com estabilidade. No entanto, com meu envolvimento no ambiente escolar, após o início de minha atuação, senti necessidade de aprofundar meus conhecimentos sobre os processos de aprendizagem, sobre o desenvolvimento das crianças e sobre o papel mediador do professor naquele espaço tão importante para a comunidade. Em 2006, iniciei o curso de Pedagogia na Universidade Paulista (UNIP) e, em 2008, me formei. Logo em seguida, assumi o cargo de Professor de Desenvolvimento Infantil. No ano de 2009, ingressei no Curso de Letras da Faculdade de Ciências e Letras (UNESP), no Câmpus de Assis. Assim que me formei, em 2012, comecei a ministrar aulas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa, no período noturno, como professora eventual, na Rede Estadual de São Paulo, na E. E. Prof. “José Augusto Ribeiro”, em Assis. No período diurno, continuei com o meu trabalho na Educação Infantil - modalidade Creche até o ano de 2014. No ano de 2015, efetivei-me, mediante concurso público, como professora da Educação Básica I (PEB I - 25 horas), na Educação Infantil, mas na modalidade Pré-Escola. No ano de 2019, iniciei a ampliação de jornada em uma sala de 1º ano do Ensino Fundamental I. Nesse mesmo ano, fui aprovada na 6ª Turma de mestrado do PROFLETRAS. Em 2020, fui efetivada no cargo de PEB I-30 horas, do Ensino Fundamental I, e continuei lecionando, agora no 2° ano, para os mesmos alunos do ano de 2019. Assim que iniciei o mestrado, o tema da pesquisa deveria ter como foco a análise de materiais para alfabetização, pois foi minha primeira experiência com uma turma na idade compatível a essa fase e, nos encontros da Hora de Estudo, ouvia muitas críticas aos materiais didáticos, principalmente sobre a falta de atualização do conteúdo do Ler e 1 No preambulo optei por escrever em primeira pessoa do singular, por tratar-se de um relato da minha experiência profissional. 13 Escrever e do EMAI2 que, segundo os meus colegas de trabalho, a última atualização teria ocorrido no ano de 2011. O que mais me inquietava, porém, era o fato de, mesmo sem nenhuma experiência de inclusão, ter dois alunos autistas na sala. Em razão da grande responsabilidade de auxiliá-los em relação ao desenvolvimento da linguagem oral e da aquisição da escrita, resolvi me dedicar ao tema da inclusão, com ênfase no trabalho de ampliação de vocabulário ou mesmo de estímulos para uma comunicação funcional em alunos não verbais. e, por consequência, optei por um trabalho voltado para a investigação de como pode ocorrer a alfabetização de crianças dentro do espectro autista com tais características. Portanto, as dificuldades com as quais me deparei incentivaram-me a pesquisar não somente sobre o desenvolvimento da linguagem em crianças com autismo, mas também sobre possíveis intervenções que um professor pode fazer ao atendê-las durante as aulas. Além disso, busquei informações sobre avaliações apropriadas para identificar as reais habilidades desses alunos portadores de transtorno do espectro autista (TEA). Essas avaliações indicaram os procedimentos a seguir para adequar as atividades que pudessem amenizar os entraves de suas deficiências. Havia ainda, de minha parte, uma grande preocupação quanto ao relacionamento entre esses alunos e os demais estudantes, principalmente no que diz respeito ao trato com aqueles que precisam de atendimento especial. 2. APRESENTAÇÃO DA PESQUISA Pretendemos apresentar um Estudo de Caso de um aluno autista, estudante do no 1ª ano do Ensino Fundamental I, em uma escola que pertence a Rede Municipal de Ensino de Assis, quando do início desta pesquisa, em 2019. De caráter longitudinal, essa pesquisa teve continuidade em 2020, ano em que todos os alunos já estavam matriculados no 2º ano. Destacamos que a retomada das aulas ocorreu de modo presencial até meados do mês de março; nos meses seguintes, por medidas de segurança devido à Pandemia da COVID-19, tivemos que nos adaptar ao ensino à distância. O tema da pesquisa foi escolhido em virtude da grande quantidade de alunos com 2 Projeto EMAI – Educação Matemática nos Anos Iniciais Curso 1 – 2ª Edição – 2018 14 algum tipo de necessidade especial, atendidos em salas regulares das Redes de Ensino e em vários segmentos da Educação, em obediência às leis de inclusão. A inclusão de pessoas com deficiência (PcD) representa um grande avanço no ensino básico e fundamental; na verdade, podemos dizer que se trata de uma conquista, haja vista que essas pessoas foram excluídas, por décadas, da sociedade, vivendo à margem e sem usufruir seus direitos em plenitude. Em 6 de julho de 2015, a então presidente Dilma Rousseff aprovou o Estatuto da Pessoa com Deficiência, mediante a Lei Nacional 13.146, que garante ao deficiente 10 direitos fundamentais, a saber: direito à vida; direito à habilitação e reabilitação; direito à saúde; direito à educação; direito à moradia; direito ao trabalho; direito à assistência social; direito à Previdência Social; direito à cultura, ao desporto, ao turismo e ao lazer; e direito ao transporte e à mobilidade. Todos esses direitos de cidadania estão previstos em outras leis, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e fazem parte, inclusive, da Constituição Federal de 1988. O Estatuto aprovado pela presidente, contudo, trata mais detalhadamente de todas as garantias de que são merecedoras as pessoas com deficiência (PcD) e que devem ser oferecidas tanto pela sociedade civil quanto pelo poder público. Anteriormente, foi aprovado, em 02 de fevereiro de 2014, o Decreto de número 5296/04, que regula as normas de acessibilidade a serem cumpridas por diversos segmentos da sociedade. Interessa-nos, particularmente, o Capítulo II, Art. 5°, sobre os tipos de deficiência: deficiência física; deficiência mental (atualmente tratada como deficiência intelectual); deficiência auditiva; deficiência visual e a deficiência múltipla. dentre elas, destacamos o texto do item D, que menciona: d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho; e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências; e [...] (BRASIL, 2014, Capítulo II, art 5º) Amparados nas leis mencionadas e em virtude das muitas lutas dos familiares e lideranças, os deficientes podem cobrar seus direitos. Resguardados, então, por lei 15 específica e, consequentemente, com mais chances de serem atendidos pelas autoridades, eles podem usufruir, de fato, dos benefícios da inclusão, questão relacionada não somente à escola, mas também aos direitos de cidadania. Apesar de as leis mencionadas não serem cumpridas como deveriam, existem, atualmente, meios legais de exigir que o cidadão, na condição de PcD, seja visto e tratado com respeito e igualdade. Suas deficiências e seus direitos devem ser respeitados e para que isso se dê, devemos combater os estereótipos pré-concebidos. Quanto mais cedo as crianças aprenderem a conviver bem com todos os tipos de diferenças, melhor será nossa sociedade, pois, na maioria das vezes, aquilo que não vivenciamos ou não percebemos nos torna insensíveis e, até mesmo, ignorantes em relação aos nossos divergentes. No entanto, ao nos relacionarmos com outras crianças em diferentes condições, cedemos lugar ao respeito e à tolerância, diminuindo assim o espaço ocupado pelo preconceito e pela discriminação, contexto que contribuirá para uma sociedade mais justa e menos desigual. Nosso intento foi observar esses alunos especiais e mediar as situações de aprendizagem no desenvolvimento da linguagem oral e também o progresso na aquisição da escrita. Todos os procedimentos adotados e as adaptações necessárias foram abordados detalhadamente no corpus da pesquisa. 3. PROPOSTA E OBJETIVOS Este trabalho teve por objetivo tratar da inclusão de pessoas com deficiência intelectual, em especial as portadoras do Transtorno do Espectro Autista (TEA), classificado em três graus: leve, moderado e severo. De acordo com o nível de TEA apresentado por cada pessoa, é determinado o grau de sua dependência e o atendimento disponível para seu auxílio e desenvolvimento de suas habilidades. A escola em que lecionamos fica localizada no Jardim III Américas, no município de Assis. Possui uma sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE), cuja função é identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade para auxiliar alunos, de acordo com suas necessidades específicas. As crianças são atendidas fora do horário de frequência das aulas, em sala regular de ensino (contraturno). Objetivando preservar a identidade do aluno autista em nosso trabalho, iremos nos referir a ele de maneira impessoal, isto é, com a inicial E. É importante mencionarmos que, no 16 início da pesquisa, havia na classe outro aluno com deficiência, identificado aqui como o A, transferido posteriormente para o 1º ano B na mesma escola. Embora em sala diferente, continuamos a observar seu desenvolvimento tanto nas questões sociais como em seu progresso na alfabetização, uma vez que já tínhamos a autorização de seus familiares para que ele participasse da pesquisa. O aluno A, nessa época com seis anos, foi diagnosticado com autismo leve ainda quando bebê e, por isso, teve suporte médico e terapêutico desde cedo. O fato de A ter sido diagnosticado precocemente e logo ter recebido tratamento compatível, talvez explique seu bom desempenho nas atividades do currículo formal e o desenvolvimento da linguagem funcional, sem que houvesse a necessidade de adaptações. Em sala de aula, observamos que ele apresentava algumas dificuldades na coordenação motora e na fala; socialmente, tinha dificuldades para se relacionar. No entanto, conseguia entender o conteúdo e acompanhava com a mesma habilidade dos outros alunos. O diagnóstico do E, também com seis anos, foi tardio; ocorreu poucos meses antes do início de nossa pesquisa e, portanto, necessitamos adaptar o currículo para que ele pudesse acompanhar o desenvolvimento das atividades. A dificuldade de confirmar seu diagnóstico atrasou-lhe o acesso às terapias e aos atendimentos. De acordo com a família, por apresentar um sério comprometimento na fala, o aluno recebia atendimento especializado com fonoaudióloga, mas que, por problemas particulares, foi interrompido. Além disso, o aluno também apresentava muitas dificuldades na interação social e na coordenação motora fina3. Logo em seguida, E foi diagnosticado com autismo leve, associado à deficiência intelectual. O intuito de passarmos, neste momento, informações e fazermos comparações sobre o desenvolvimento dos alunos A e E mesmo após a transferência do A, é para confirmar a importância do diagnóstico precoce e do atendimento apropriado, visto que os dois alunos apresentavam o mesmo nível de autismo. Porém, o acesso ao tratamento e a terapias, associado à interação no ambiente escolar, influenciou diretamente o bom desenvolvimento cognitivo e social de A. Também destacamos que, para iniciar o mais rápido possível o tratamento, é necessário que os pais recebam as devidas informações, a que certas famílias, por sua condição social, não têm acesso. Enquanto o aluno A deu início ao tratamento com mais ou menos três anos de idade, E 3Coordenação motora fina refere-se ao uso de músculos pequenos, como os das mãos e dos pés. Observamos melhor o uso de tais habilidades quando desenhamos, pintamos, manuseamos pequenos objetos ou realizamos movimentos mais precisos e delicados. 17 só foi diagnosticado e iniciou algumas das terapias indicadas com o tratamento adequado (remédios) aos seis, ou seja, no mesmo ano em que começou seus estudos no Ensino Fundamental I. Outro ponto importante para nosso estudo foi observarmos que, embora os dois alunos apresentassem o mesmo nível de autismo, o leve, E possui uma outra deficiência que aumenta suas limitações. Isso comprova a afirmação de muitos especialistas de que cada autista possui particularidades e necessidades específicas. Tivemos, então, que buscar, em vídeos nos canais da Plataforma Youtube, bem como acompanhar grupos de formação pelos aplicativos Whatsapp e Telegram, informações sobre o TEA com especialistas, que ensinam a criar e a manipular materiais direcionados aos autistas. Esses materiais, aos quais posteriormente recorremos, foram montados com o auxílio de uma estudante de Psicologia, que acompanhava o aluno “E” durante as aulas. Como foi dito, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) determina que a criança com qualquer tipo de deficiência tenha sua inclusão em salas regulares e frequente salas de atendimento específico em contraturno. A inclusão não admite salas especiais, separadas, para essas crianças. O convívio entre elas e com a comunidade escolar deve ser cada vez mais estimulado; seus familiares também necessitam de apoio, pois, além de serem vistos como parte integrante do processo de aprendizagem, eles devem ter acesso a todas as informações referentes ao desenvolvimento de seus filhos. Afastando-nos da utopia de que, após as leis, tudo mudou rapidamente e as propostas de inclusão estão sendo cumpridas a contento, e, cientes das muitas dificuldades que os deficientes enfrentam diariamente, propusemo-nos acompanhar o processo de aprendizagem do aluno E, durante as aulas em sala regular, atentando para as informações do projeto frequentado por ele no contraturno, mui generosamente fornecidas pela família do aluno; propusemo-nos também observar, até o momento em que houve a migração das aulas para a modalidade on-line, o seu desenvolvimento e registrar a ocorrência de resultados positivos de sua interação com os demais alunos da sala; propusemo-nos ainda acompanhar o progresso no desenvolvimento da linguagem oral e na aquisição de escrita e registrar, igualmente, que as atividades indicadas por nós potencializaram os estímulos pedagógicos recebidos e os avanços conquistados nos anos de 2019 e 2020, a respeito da formação cidadã dessa criança com deficiência. Portanto, os objetivos gerais são: • Desenvolver materiais que possam auxiliar o aprendizado de alunos com 18 TEA, principalmente os relacionados à aquisição das linguagens oral e escrita; • Verificar como é a sua interação social e a sua participação em rodas de conversa, em atividades musicais e na contação de histórias; • Mostrar o quão importante é para o professor conhecer todo o processo de aprendizagem do contraturno, a fim de poder criar momentos e atividades que potencializem os estímulos já recebidos pela criança. Os objetivos específicos são: • Aperfeiçoar situações de convivência e aprendizado do E, portador de TEA em uma sala regular; • Refletir com os alunos sobre a importância do respeito que devem ter entre si e da contribuição de todos para o processo formativo; • Criar um Plano de Ensino Individual (PEI) para E com o apoio de questionários específicos e a avaliação de conhecimentos prévios; • Desenvolver materiais para o auxílio do aprendizado do E, principalmente os relacionados à aquisição das linguagens oral e escrita; Diante do exposto, enfatizamos a necessidade de uma pesquisa cujo objetivo foi tentar responder aos seguintes questionamentos: a) O que é TEA e qual a relevância do atendimento diferenciado para crianças com esse transtorno? b) Como a escola recebe esse aluno e quais as políticas de apoio e suporte que oferece a familiares, alunos e professores para estimular a inclusão? c) O que um professor pode fazer para potencializar o desenvolvimento e a inclusão de alunos com TEA, principalmente no desenvolvimento da oralidade e na aquisição da escrita? Ao longo desta pesquisa, tentamos responder a tais questionamentos após observarmos como a inclusão pode ser benéfica não só ao PcD, mas também às demais pessoas envolvidas nesse processo de aprendizagem. 19 PARTE I – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 1. LINGUAGEM E ALFABETIZAÇÃO 1.1 LINGUAGEM ORAL E SEU DESENVOLVIMENTO A linguagem oral é descrita por Marcuschi (1997) como um dos modos em que a linguagem se realiza. Quando pensamos em oralidade, logo a associamos à fala que, por sua vez, para ocorrer envolve vários outros fatores. Vigotski (2018), em seus estudos sobre o desenvolvimento da criança, ressalta que tanto os fatores hereditários quanto o meio em que a criança vive irão atuar diretamente não só na fala, mas também em seu desenvolvimento como um todo. Apesar de ter havido, por um longo período, discussões sobre ser a linguagem inata4 ou empírica5, atualmente, chegou-se à conclusão de que os dois fatores podem influenciar no seu desenvolvimento. Vigotski destaca que a idade cronológica nem sempre corresponde à idade biológica, pois, em determinados estágios da vida, a criança poderá se desenvolver mais na estrutura corporal do que na psíquica. Poderá desenvolver primeiro os membros inferiores, para depois desenvolver os membros superiores e, não sendo esta ordem rígida, o processo pode, portanto, se alternar. Seguindo essa linha, o autor compara crianças, nascidas no mesmo dia, e ressalta que, ao longo de seu desenvolvimento, cada uma delas poderá estar em diferentes estágios de desenvolvimento biológico, mesmo que tenham a mesma idade cronológica. Para exemplificar, imaginemos o desenvolvimento da fala, por exemplo, se três crianças nascerem no mesmo dia, podemos afirmar que elas terão a mesma idade em seus documentos, mas ao observarmos o desenvolvimento específico da fala de cada uma delas, observaremos que a primeira pode falar com objetividade aos dois anos, a segunda pode ter este mesmo nível de desenvolvimento com um ano e oito meses e a terceira poderá chegar a este desenvolvimento apenas com dois anos e quatro meses. Essa variação existe porque, para que o desenvolvimento da fala ocorra de forma plena, a criança precisará de estímulos do meio em que vive, associados a fatores biológicos e, só então, ela fará associações com o conhecimento que já internalizou para progredir em suas habilidades; ela transforma o conhecimento prévio ao entrar em contato com novos conhecimentos e, através dos processos 4 Inata: neste quesito supõe-se que o homem já nasce com a capacidade de fala. 5 Empírica: acredita-se que a fala só se desenvolverá através da interação com seus pares. 20 de internalização e assimilação, avança um degrau na sua evolução. A criança, ao nascer, não se comunica através da fala; ela interage com o meio, chorando, para comunicar algum desconforto. Aos três meses, ela inicia gestos indicativos, pouco depois, começa a balbuciar e a produzir alguns sons. Após os seis meses, ela começa a prestar atenção nos sons de seu interesse com intenção comunicativa. A partir de então, se desenvolve neurologicamente para ter condições de reproduzir o que ela ouve, procurando captar-lhe o sentido. Vigotski (2018) explica que àquilo que a criança ouve atribuirá sentido diferente à medida que a idade avança, mesmo que ditas com as mesmas palavras e pela mesma pessoa. A partir de um ano, ela desenvolve as primeiras palavras. Felix (2009) afirma que o ideal seria que o desenvolvimento da fala e da linguagem ocorresse nos dois primeiros anos de vida. Para Mousinho (2008), a comunicação humana se diferencia da comunicação das demais espécies animais por três fatores: pela possibilidade de simbolizar; pela estrutura gramaticalmente organizada; e pelo fato de possuir diversos sistemas de comunicação. Assim como Vigotiski, ele afirma que a criança aprende as convenções comunicativas utilizadas no meio do qual fazem parte. Afirma Vigotski (2018) que os sons da fala humana diferem dos demais sons existentes na natureza pelo objetivo de transmitir um determinado sentido ou um som significante. Os fonemas se unem para formar um som com significado, por exemplo, a troca dos fonemas /m/ e /g/ nas palavras mato e gato, muda o significado da palavra. Existe uma linha organizacional no desenvolvimento da fala e, de acordo com Mousinho (2008), a criança inicia os primeiros sons pronunciando com os lábios os fonemas /b/m/p/, depois surgem o /n/t/l/ e, em seguida, /d/c/f/s/ /g/v/z/R/ch/j. Diz ele também que as produções mais complexas /lh/nh/r, exemplificadas nas palavras: calha, barata e caminho, aparecem de forma adequada apenas posteriormente, visto ser a combinação desses fonemas complicadora. Vigotski (2018) faz uma observação interessante quanto ao /r/ /er/ e /rr/, uma vez que surgem desde cedo no balbucio da criança; porém, entre os três e cinco anos, ela encontra dificuldade em pronunciá-los com seu valor semântico. A literatura científica aponta que o desenvolvimento da linguagem oral na criança inicia-se com uma única palavra que funciona como frase. Um exemplo disso é quando a criança, com sede, aponta para o copo e diz “água”. Nesse momento, o adulto tem um papel importante, pois pode intervir nessas interações da fala, ampliando o repertório da criança, ao 21 completar a frase ou ao perguntar: “Você quer beber água?” Assim, as frases com duas ou mais palavras irão tomando forma e, por volta dos três anos, a criança poderá ser capaz de formular frases mais complexas. Ainda de acordo com Mousinho (2008), a partir dos 4 anos, a criança já deve formular falas fluentes com todos os seus elementos. Quando estiver em idade escolar formal, ou seja, seis anos, observamos que sua fala já se tornou clara e objetiva e quanto maior for seu repertório, mais facilidade encontrará no seu processo de alfabetização. Entendemos que o progresso é contínuo, principalmente em relação à linguagem; por essa razão, apresentamos aqui, de modo sucinto, algumas das principais características do desenvolvimento da linguagem oral na criança de zero a quatro anos. 1.2 LINGUAGEM ESCRITA E SEUS PROCESSOS A linguagem escrita surgiu na região da Mesopotâmia para suprir, inicialmente, a necessidade que o homem tem de realizar registros comerciais, sendo depois aperfeiçoada e tornada permanente para registrar tudo aquilo que deveria ser lembrado, sem se dissolver no tempo. No caso da fala, entendemos ter, hoje, recursos tecnológicos para fazer registros, algo impensável há mais ou menos 3.000 a.C. Diz Soares (2020) que, quando surgiu, a escrita era vista como uma tecnologia também utilizada para mediar práticas sociais, econômicas e culturais. Rojo (2006) afirma que podemos distinguir três sistemas de escrita: o sistema ideográfico ou logográfico, em que cada signo representa uma ideia e isso exige milhares de signos, o que torna seu aprendizado mais longo; o sistema silábico, no qual cada signo representa o som de uma sílaba; e, por fim, o sistema alfabético, em que cada signo representa um fonema. Nesse último sistema, os signos podem combinar-se para formar sons diferentes, compondo-se por cerca de 30 signos que formam o alfabeto de uma língua e simplificando a sua aprendizagem. Para Rojo, essas três formas de escrita ainda são usadas por diferentes sociedades, que foram historicamente criando novas formas e modificando esses sistemas para atender suas necessidades sociais. Após este breve relato histórico sobre a escrita, discorreremos um pouco sobre como a criança aprende o sistema de escrita que pertence à sociedade da qual faz parte. Sabemos que o contato com a escrita ocorre muito antes de a criança entrar na escola para ser alfabetizada, e que, assim como o desenvolvimento da fala, até conseguir escrever com entendimento e independência, a criança precisa passar por um processo longo; este que se denomina 22 alfabetização, consiste em codificar e decodificar signos e atribuir-lhes sentido. Soares (2020) descreve esse processo como a etapa de apropriação da tecnologia de escrita ou domínio das habilidades necessárias para ler e escrever. A leitura e a escrita seguem convenções específicas em cada sociedade, como a organização de escrita “de cima para baixo, da esquerda para a direita e a manipulação correta dos suportes em que se escreve” (SOARES, 2020, p.26) Além de fazer essas construções sobre a escrita, Soares diz também que, por viver em um meio permeado pela escrita, a criança percebe que escrever é transformar a fala em sinais, através de diferentes suportes e ler é converter estes suportes em fala. Apesar de sua experiência com a escrita se desenvolver predominantemente por interações sociais de uso frequente na sociedade, é através da escola que esta aprendizagem é sistematizada e sua compreensão do sistema de escrita alfabética ocorre de forma progressiva. Compreender a leitura como um sistema representativo de sons da língua, formado por letras, não é algo automático e, tampouco, imediato. Para chegar ao nível alfabético, a criança passa por várias etapas evolutivas de escrita e, para que este desenvolvimento seja bem estimulado, caberá a escola conhecer o que a criança já consegue fazer sozinha6 e o que consegue fazer com ajuda7 para, a partir daí, direcionar novos caminhos mediante os quais ela possa avançar no seu desenvolvimento8, como nos explica Vigotski (apud SOARES, 2020). Inicialmente, as crianças entendem a escrita como marcas que as pessoas usam como meio de comunicação e tentam reproduzi-las por meio de rabiscos e garatujas para, só depois, evoluírem para a escrita de letras. No entanto, antes disso, precisam entender que aquelas marcas escritas representam a fala ouvida por elas, sendo a reflexão sobre as partes sonoras da fala o que chamamos de consciência fonológica que, conforme Soares (2020), se distingue por alguns aspectos que são: a palavra; as sílabas; as rimas e os fonemas. Apenas após a compreensão desses fenômenos é que a criança chegará a entender o princípio alfabético e terá condições de refletir a respeito dos processos de leitura e escrita. 6 Zona de desenvolvimento real: é determinado pela capacidade que a criança tem de resolver tarefas com independência (o conhecimento real). 7 Zona de desenvolvimento proximal ou eminente (Zóia Prestes, 2012): é a distância entre o desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial. (a criança necessita de mediação, mas isso, não garante o seu efetivo desenvolvimento.). 8Zona de Desenvolvimento potencial: aquilo que nesse momento uma criança só consegue fazer com a ajuda de alguém (o saber a ser alcançado). 23 Figura 1 – Consciência Fonológica – Imagem inspirada nas explicações de Magda Soares (2020, p. 77). Franchi (2001) define a fase inicial como pré-silábica ou momento em que as crianças não fazem relação da grafia com o som, caracterizando a escrita como algo primitivo e sem controle de quantidade de grafias. Soares (2020) destaca também que, durante sua fase de desenvolvimento na escrita, é comum a criança ter aquilo a que se denomina realismo nominal; em outros dizeres, imagina que a palavra possui semelhança com o objeto: nomes grandes representam objetos grandes e nomes pequenos representam objetos pequenos. ABSGERNDORMNSAOE (CASA) NIED (MINHOCA) Figuras 2 e 3 – Exemplos de realismo nominal Aqui, representamos a escrita com letras, mas ressaltamos que, antes de aprender a grafia correta dessas letras, a criança faz representações por meio de rabiscos ordenados e desordenados. Após a escrita pré-silábica, a criança avança para a escrita silábica com ou sem valor sonoro, isso porque, neste momento, ela já consegue segmentar e compreender a ligação entre Consciência lexical •a palavra é uma cadeia de sons; segmentos de palavras podem ser iguais- aliterações e rimas. Consciência Silábica •a palavra pode ser segmentada em sílabas. Consciência fonêmica •as sílabas são construídas de pequenos sons – os fonemas. 24 o som das palavras dividindo-as em sílabas bem como representar cada pedaço da palavra (sílaba) com apenas uma letra; no entanto, esta representação é aleatória ao que quer dizer que as letras usadas na representação, na maioria das vezes, não possuem conformidade com os sons (fonemas) que compõem a sílaba. Vejamos o quadro abaixo: ANIMAIS DINOSSAURO CAMELO GATO RÃ EU TENHO UM GATO AVTR ADI RH I ANJUERTOCVBTOE Figura 4 – Lista de sugestão para a sondagem das hipóteses de escrita no decorrer do ano, pelo material “Ler e Escrever” - Exemplo de escrita sem valor sonoro. Em seguida, a criança evolui em sua aprendizagem do sistema escrito e chega à escrita silábica com valor sonoro, isto é, passa a dividir as palavras em sílabas, com a representação escrita de uma letra para cada som; porém, isso já não ocorre mais aleatoriamente, pois ela escolhe o som que mais lhe chama a atenção na pronúncia da sílaba. Soares (2020) afirma que o mais comum é que a letra escolhida seja vogal: [...] obrigatória em todas as sílabas do português, considerada o núcleo da sílaba. Além disso, as vogais são as únicas letras cujo nome corresponde ao fonema que representam, são os únicos fonemas pronunciáveis [...]. Assim [...] escrevem, por exemplo, a palavra MARACUJÁ silabicamente, uma letra para cada sílaba, mas fonetizam as sílabas representando-as pela vogal núcleo de cada uma: AAUA; escrevem a palavra PERA por EA, [...]. (SOARES, 2020, p. 97) ANIMAIS DINOSSAURO CAMELO GATO RÃ EU TENHO UM GATO IOAO AEO AO A E EO U AO Figura 5- Lista de sugestão para a sondagem das hipóteses de escrita no decorrer do ano, pelo material “Ler e Escrever” - Exemplo de escrita com valor sonoro, a criança também já começa a escrever pequenas frases, valendo-se da mesma estratégia de escrita. À medida que a criança avança no seu processo de aprendizado da linguagem escrita, passa a perceber, cada vez mais, os fonemas e começa a deduzir que o fonema pode ser 25 representado por mais de uma letra. A essa altura, ela já está dominando a escrita silábico- alfabética e poderá desenvolver rapidamente a capacidade de segmentar todas as sílabas das palavras, pois terá a compreensão da escrita como representação dos sons da fala. Para Soares (2020), junto com essa compreensão, a criança terá um desenvolvimento cognitivo e linguístico e, se receber os estímulos necessários, avançará no domínio da fonetização da escrita, e assim sucessivamente, até se apropriar do princípio alfabético e, progressivamente, também do ortográfico. Todos esses processos Soares (2007) representa na imagem a seguir: Figura 6 - Consciência fonêmica e relação fonema/grafema (SOARES, 2007b). É importante lembrarmos que a proposta do Ministério da Educação é que a criança esteja alfabetizada ao final do 3º ano do Ensino Fundamental I, lembrando que a educação infantil passou a ser obrigatória a partir dos quatro anos. Sendo assim, a criança deve ser alfabetizada dos 4 até os 8 anos, deve ser capaz de ler e escrever, produzir textos e já ter o domínio da escrita ortográfica e também saber interpretação textual. Temos conhecimento, no entanto, que, em muitos casos, isso não acontece porque saber ler e escrever ou codificar e decodificar os signos não é suficiente para atender a todas as situações em que a escrita e a leitura ocorrem em nossa sociedade. O letramento que, quando ensinado junto à alfabetização, trará resultados mais eficientes no desenvolvimento da criança. 1.3 RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM ORAL E LINGUAGEM ESCRITA Vimos, no tópico anterior, que a criança, durante o processo de alfabetização, precisa da consciência fonêmica, o que implica em compreender os sons (fonemas) e as letras que os 26 representam. Esses processos evolutivos na escrita são o resultado das vivências nas relações socioculturais do meio do qual a criança faz parte. Quando chega à escola, ela já teve contato com diversos contextos linguísticos ou com a linguagem em suas diversas modalidades. Neste trabalho, tratamos não apenas da modalidade oral, mas também da escrita. A seguir, esclareceremos a relação entre essas duas modalidades, formas de interação e mediação da sociedade. Diz Rojo (2006) que o grande advento que colocou em foco a separação entre a língua falada e a língua escrita foi a criação da imprensa e da escrita mecânica quando o texto ganhou autonomia em relação à palavra falada. O escrito “começou a significar mais do que simplesmente a escrita” (ROJO, 2006, p.26), pois o texto passou a ter sentido por si mesmo ou a colocar-se como discurso de um autor que se põe em relação com outros discursos de outros autores. Rojo, em suas explicações, prossegue dizendo que uma das diferenças entre texto e fala é a ampla possibilidade de interpretação que o texto possui. Como exemplo, ela esclarece que, durante uma interação, em uma conversa, os sujeitos interlocutores estarão discutindo sobre o mesmo assunto e, a qualquer momento, uma das partes pode interromper a fala e tirar dúvidas, o que nem sempre ocorre na leitura de um texto, porquanto a leitura depende do contexto de quem lê e interpreta o texto. Numa conversa informal entre dois amigos, podemos distinguir características próprias do contexto social em que estão inseridos: em sua fala pode haver gírias, palavras abreviadas e até mesmo suprimidas em razão da percepção de um dos interlocutores sobre o conhecimento do outro em relação ao assunto tratado. Quando comparamos o mesmo tema, porém em outro meio de comunicação como parte de uma notícia de um jornal ou revista, identificaremos que no texto escrito existe uma organização diferente da conversa, isto é, mais detalhada e completa, que possibilita que alguém que não conheça muitos detalhes do assunto precisa ler para entender e atribuir sentido ao texto. Por isso, autores como Vigostski, Barthes e Marty (apud ROJO, 2006, p.26) “pensam o texto como formas de linguagem (modalidades) distintas e, por vezes, bastante opostas em suas características”. Marcuschi (1997) afirma que é tradição, entre os linguistas, a análise das relações entre fala e escrita, as quais revelam diferenças sempre na perspectiva da dicotomia. Essa análise se volta para o código e permanece ligado ao fato linguístico como um fenômeno. Foi nessa concepção dicotômica que se deu sua forma mais rigorosa e restritiva e resultou no prescritivismo e na origem da norma culta. 27 No quadro abaixo, criado por Marcuschi (1997), podemos observar as dicotomias que conhecemos: Figura 7- Diferenças entre fala e escrita apontada por autores que assumem a perspectiva da dicotomia. (MARCUSCHI, 1997, p.127) Para Rojo (2006), o problema dessa análise é a generalização de toda a produção oral e toda a produção escrita, pois existem textos, como um bilhete, que se encaixam em um modelo informal, enquanto a oralidade de um noticiário televisivo é usada formalmente, como ocorre em palestras acadêmicas ou em uma entrevista. Para ela, a perspectiva da dicotomia criou uma série de mitos sobre a escrita e a oralidade, que refletem na visão de suas características e de seus efeitos sociais e culturais. Assim, podemos afirmar que tanto a fala quanto a escrita podem assumir diferentes formas ou organização, a depender de contexto e gênero. Marcuschi (1997) ressalta que a escrita é supervalorizada, separa os povos civilizados dos primitivos; a escrita possibilitou descontextualizar os significados. Na passagem da fala para a escrita, o pensamento passou de abstrato para concreto, sendo o domínio das técnicas de escrita alfabética visto como a detenção do poder por um pequeno grupo elitizado, o que aumenta a diferença interna já existente na sociedade entre esse grupo e outros não elitizados. Mesmo com dicotomias que, como diz Rojo, criaram mitos em relação à oralidade e à escrita, Marcuschi (1997) reafirma que as duas modalidades refletem a boa organização da sociedade e que, apesar da escrita ter um lugar de prestígio, a fala a precede e, embora a escrita exista e seja reconhecida, a oralidade jamais desaparecerá: “as duas são modos de representação cognitiva que se revelam em práticas específicas”. (MARCUSCHI, 1997, p.134) Nas práticas sociais, encontramos usos diferentes tanto para a escrita quanto para a fala contextualizada implícita redundante não planejada imprecisa não normatizada escrita descontextualizada explícita condensada planejada precisa normatizada 28 fala, ainda que ambas se relacionem constantemente. Marcuschi (1997) esclarece que tais dicotomias surgiram do fato de analisá-las sob a mesma óptica, quando na verdade são modalidades diferentes e possuem aspectos também diferentes. Marcuschi defende a hipótese de que “as diferenças entre fala e escrita se dão dentro de um continuum tipológico de práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos” (MARCUSCHI, 1997, p. 136). No quadro a seguir, Marcuschi apresenta a distribuição dos gêneros textuais no mencionado contínuo: Figura 8- Distribuição dos gêneros textuais no contínuo (MARCUSCHI, 1997, p.137) Dessa maneira, percebemos que o uso da fala e da escrita deve ser contextualizado, a fim de evitar equívocos quanto ao uso de cada uma das modalidades, pois tanto uma quanto a outra, dependendo do contexto, pode se enquadrar como linguagem formal ou informal, já que apresentam um continuum de variações. Como vimos no quadro acima, a língua deve ser vista e analisada em sua funcionalidade, uma vez que “a língua se realiza essencialmente como heterogeneidade e variação e não como sistema único e abstrato” (MARCUSCHI, 1997, p.138). 29 1.4- ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO - SUAS RELAÇÕES NA APRENDIZAGEM Anteriormente, discorremos sobre a alfabetização, prática social de substancial importância em nossa sociedade, principalmente por ter um caráter social e representativo no desenvolvimento de crianças e adultos. Essa observação é pertinente devido ao grande número de adultos não alfabetizados que, atualmente, podem ser atendidos educacionalmente na modalidade EJA9. Nesse sentido, vale lembrar que, para nós, ser alfabetizado significa ter o domínio das práticas de leitura e escrita em nosso cotidiano. Durante muito tempo, muitos profissionais da área da educação acreditavam que ser alfabetizado teria o mesmo significado de ser letrado. Esse pensamento ainda existe atualmente, sobretudo em meio àqueles que não trabalham em ambiente educacional ou possui uma relação distante com as escolas de ensino fundamental. No entanto, nas palavras de Marcuschi (1997), a alfabetização diz respeito aos processos evolutivos dentro do aprendizado da leitura e escrita, enquanto que o letramento está relacionado a práticas sociais, um processo de aprendizagem da leitura e da escrita que ocorre para uso utilitário e em contextos informais. Kleiman (2014) em sua obra “Letramento na contemporaneidade”, nos relata uma visita a uma sala de aula da EJA. Ela se confessa surpresa com a quantidade a e superioridade dos recursos, o que demonstra respeito pelos alunos quando compara a sala de aula de 2014 com uma de 1991, em que os alunos da EJA não tinham muito espaço mesmo dentro do ambiente escolar. Mas, Kleiman também manifesta certa frustração pela falta de um ambiente alfabetizador, afirmando que, apesar de todos os avanços, as práticas de uso da língua continuam não levando em conta a historicidade dos sujeitos. Em sua pesquisa, a autora pretendeu responder a três perguntas: Quais as finalidades contemporâneas da leitura e da escrita atual? Quais as práticas mobilizadas e as realizadas na escola para atingir essas finalidades? O que significa ser letrado na contemporaneidade? Para responder essas questões, ela considerou as novas tecnologias, lembrando principalmente sobre analfabetismo funcional ou disfuncional10. Em sua análise, admitiu que a internet proporcionou certa liberdade, porém não chegou a romper as barreiras construídas 9 Educação para Jovens e Adultos. 10 Analfabetos funcionais é o termo usado para se referir à indivíduos que, embora saibam reconhecer letras e números, encontram dificuldades em compreender textos simples e realizar operações matemáticas mais complicadas. 30 pela escola, que ainda consagra a tradição e a institui como única forma de acesso ao conhecimento. O sujeito precisa utilizar estratégias de uso da internet, em razão da grande variedade de conteúdos; além disso, este processo de busca por informações de forma rápida faz parte da “cultura digital”. Em dias atuais, é indispensável que o sujeito saiba manusear as novas tecnologias. Kleiman (2014) comparou duas práticas pedagógicas para o ensino do uso da internet: na primeira, um professor ensina o gênero e-mail em uma sala regular. Nessa situação o professor não foi bem sucedido, pois sua abordagem não colocou seus alunos em contato com o computador, havendo apenas uma comunicação do que se tratava e depois, os alunos produziram um texto no caderno; na segunda, a situação de aprendizagem, bem sucedida, ocorreu em uma ONG com duas senhoras analfabetas que queriam aprender a enviar e-mails para facilitar a comunicação com seus familiares de outra cidade. Durante as aulas, elas tiveram contato direto com o computador e, embora não sabendo ler nem escrever, conseguiram realizar a leitura através da decodificação das imagens e fazer a relação com situações do cotidiano. A autora observou ainda que as duas escolhiam por onde começar seu aprendizado e a professora apenas mediava as situações de aprendizagem. Após reflexão bem elaborada sobre as duas experiências, Kleiman conclui que, não obstante as duas aulas serem de temas contemporâneos, o que realmente torna um aprendizado significativo é a mediação do professor, ajudando o aluno a construir um saber sólido para o uso dinâmico e bem sucedido nas práticas sociais, ou seja, o professor os ajudará a se tornarem letrados. No Brasil, principalmente em estados e municípios mais pobres, identificamos altos índices de analfabetismo funcional: pessoas que passaram pela escola, mas não conseguem interpretar pequenos textos e dar sentido ao que se lê. Em contrapartida, observamos que existe uma pequena parcela da sociedade que tem acesso ao mais elevado nível do saber, consegue criar, ler, interpretar e, com estes benefícios, também consegue se destacar no cenário de trabalho, obtendo os melhores postos e cargos. Com essa breve observação, sem nos aprofundarmos em mais detalhes, percebemos, de forma gritante, que existe um abismo no acesso aos conhecimentos entre ricos e pobres e que a luta entre classes nunca esteve tão clara como nos dias atuais. As pessoas de classes sociais menos favorecidas recebem apenas o que é essencial para ocupar postos de trabalho e operar as máquinas cada vez mais digitalizadas; todavia, não lhes são oferecidos a oportunidade de aprender a tão necessária criticidade para a construção de uma sociedade mais justa. 31 A demanda por letramento aumentou quando o capitalismo mudou os setores de investimento e a elite se deu conta de que, para uma nova era de modernidade, necessitava-se de novos hábitos, pois quem iria manusear as novas tecnologias se uma ampla camada da sociedade trabalhadora não soubesse ler? Daí surge o interesse em ampliar o acesso à escola, contudo, com diferentes objetivos: as diferentes propostas de leitura e escrita são adaptadas às diferentes necessidades sociais a que o sujeito está inserido, o que produz diferentes níveis de letramento. Sendo assim, um analfabeto pode ser letrado em alguma área, já que vive em um meio em que a leitura e a escrita estão presentes; no entanto, isso não o torna totalmente alfabetizado, pois dependendo do texto que lhe for apresentado, não conseguirá fazer uma leitura com plena interpretação. Geraldi (2014) pondera sobre o real papel da escola apresentando uma crítica social, porquanto a ligação que muitas vezes a escola estabelece entre a necessidade de letramento e a produtividade priva os alunos do que realmente importa para que se crie uma sociedade justa, com sujeitos críticos e eticamente responsáveis. Ele defende que não cabe à escola introduzir e ensinar todos os gêneros em circulação na sociedade, posto que não daria conta de atender os diferentes campos existentes; cabe, sim, a ela apresentar a existência de uma ampla variedade de gêneros discursivos, escolher alguns e sempre privilegiar os bens culturais produzidos pela arte e literatura, patrimônios da humanidade. Soares (2020) vai além da reflexão sobre as discussões entre as diferenças de alfabetização e letramento, apontando ser essencial que o sujeito, desde sua infância, tenha acesso ao aprendizado da leitura e escrita do sistema alfabético, bem como condições de interpretar, conhecer as situações de uso social da leitura e da escrita e produzir textos com autonomia, em outras palavras, que alfabetização e letramento caminhem juntos durante o período escolar. Dessa união, surgiu o termo “Alfaletrar”, pois, de acordo com a pesquisadora, embora haja tantos dados pessimistas sobre a educação pública, existe solução para que crianças das camadas sociais populares sejam alfabetizadas com sucesso. Esta constatação é o resultado de suas pesquisas na Rede Pública de Educação de Minas Gerais. Diz Soares: O que se mostrou essencial para reverter o fracasso foi a mudança do foco da ação docente, por meio de um processo cotidiano de desenvolvimento profissional das professoras e dos professores: definição de metas a alcançarem cada ano de escolarização, construídas coletivamente [...]; análise criteriosa e enriquecimento das práticas de ensino; orientação dos processos de conceitualização da língua escrita 32 pela crianças e de sua progressiva apropriação do princípio alfabético; desenvolvimento de leitura fluente e de interpretação de textos, desde a educação infantil até os anos iniciais do Ensino Fundamental; tudo isso com o apoio de uma biblioteca infantil em cada escola, com riqueza de livros que são o centro das atividades de aprendizagem. Sobretudo essas ações se davam em um clima de comprometimento com a aprendizagem das crianças, apoiado na confiança em sua capacidade de aprender que elas demonstram realmente ter; toda criança pode aprender a ler e escrever. (Grifo do autor) (SOARES, 2020, p. 13) Temos a clara percepção de que só uma boa formação de professores poderá mudar os rumos da educação brasileira. Houve grandes avanços tecnológicos em níveis mundiais, mas ainda temos um sistema que anula todo conhecimento prévio que os alunos já possuem quando iniciam sua trajetória escolar; portanto, existe uma grande necessidade de revermos as práticas em sala de aula. Oliveira (2014) propõe, para uma sociedade que não é estável, sérias discussões sobre todas essas mudanças a respeito de uma reformulação na formação dos professores, que, por sua vez, formarão sujeitos capazes de transitar socialmente, estando eles aptos para interpretar diversos discursos e impor seus posicionamentos de forma crítica. Desse modo, educar de uma maneira responsiva é saber que os discursos são de origem política e devem ser criados de forma ética, uma vez que sempre irão influenciar a vida de outras pessoas. Não vivemos sozinhos, fazemos parte de uma sociedade. Em nossa sociedade atual, o estudo de língua e linguagens também precisa se atualizar, já que não podemos falar apenas em norma culta como única forma de comunicação aceitável; existem múltiplas linguagens, verbais e não verbais, e estas devem fazer parte da nova era digital que ressignificou os saberes cristalizados. Propõe-se, com isso, a pedagogia dos multiletramentos, que projeta novos desenhos para o futuro. De fato, temos de ser proativos, porque essa responsabilidade é nossa. Nossa profissão nos delega contribuir e lutar para oferecer todas as possibilidades possíveis aos alunos, favorecendo-lhes o amplo acesso ao aprendizado, bem como aos bens culturais produzidos pela humanidade. Como diz Geraldi (2014), para que isso ocorra de forma equilibrada, compete ao professor refletir sobre as necessidades de seus alunos e mediar o aprendizado de forma razoável. 33 2- TRANSTORNO DE ESPECTRO AUTISTA (TEA) 2.1- MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM) Antes de tudo, apresentaremos um breve histórico do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), considerado um guia de classificação diagnóstica de todos os distúrbios mentais, incluindo: transtorno autista, transtorno desintegrativo da infância, transtorno generalizado do desenvolvimento não especificado e Síndrome de Asperger, que se transformaram em um único diagnóstico denominado Transtornos do Espectro Autista – TEA. O DMS é destinado à prática clínica e à pesquisa em psiquiatria. A partir de 1940, os EUA começaram a realizar um censo que contava com a categoria "idiotia/loucura" para registrar a frequência de doenças mentais. Expõe Araújo (2013), no censo de 1880, “as doenças mentais eram divididas em sete categorias distintas (mania, melancolia, monomania, paresia, demência, dipsomania e epilepsia)” (ARAUJO, 2013, p.69). Tais classificações, as primeiras norte-americanas a respeito de transtornos mentais aplicadas em larga escala, tinham objetivo meramente estatístico. No início do século XX, o Exército Norte-Americano, em conjunto com a Associação de Veteranos de Guerra, desenvolveu uma categorização de transtornos mentais para ser utilizada nos ambulatórios que prestavam atendimento a ex-combatentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em decorrência dessa categorização, incluiu pela primeira vez, em 1948, uma sessão destinada aos Transtornos Mentais na sexta edição de seu sistema de Classificação Internacional de Doenças - CID-6. (ARAÚJO, 2013) A primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), publicada pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), em 1953, constitui o primeiro manual de transtornos mentais focado na aplicação clínica. O DSM-I consistia, basicamente, em uma lista de diagnósticos categorizados, com um glossário que trazia a descrição clínica de cada categoria diagnóstica. Criado de forma simples e considerado bem rústico, o manual motivou uma série de revisões sobre questões relacionadas às doenças mentais. Também outros profissionais tiveram a oportunidade de aprimorá-lo, o que tornou possível a criação de novos manuais, como foi o caso do DSM-II, publicado em 1968, desenvolvido simultaneamente com o CID-8 e muito parecido com DSM- I, ao trazer discretas alterações na terminologia. 34 Após 12 anos, mais precisamente em 1980, a APA (American Psychological Association, no original) publicou a terceira edição do seu manual com critérios mais específicos sobre o transtorno do espectro autista, apresentando importantes modificações metodológicas e estruturais: déficits sociais difusos, amplos déficits no desenvolvimento da linguagem, padrões incomuns da fala e ausência de delírios presentes nos quadros de esquizofrenia. O manual exigia, ainda, evidências destas manifestações até o trigésimo sexto mês de vida. Além de facilitar a realização de pesquisas empíricas, a publicação do DSM-III representou um importante avanço em termos de diagnóstico de transtornos mentais (ORRÚ, 2012). Com critérios explícitos de diagnóstico, organizados em um sistema multiaxial11 e sob enfoque mais descritivo, o DSM-III objetivava oferecer ferramentas para clínicos e pesquisadores, que facilitavam a coleta de dados estatísticos (ARAÚJO, 2013). Para Orrú (2013), o documento apresentava falhas em relação ao aspecto evolutivo da síndrome e aos critérios restritivos e, ainda, enfatizava mais os problemas de linguagem dos que os de comunicação. Por isso, esse manual passou, em 1987, por revisões e correções que ocasionaram a publicação do DSM-III-R, enfatizando a evolução da síndrome e observando os sinais do distúrbio que podem ocorrer por toda vida do paciente, mesmo havendo diversificações de idade e de comprometimento das deficiências. O DSM-IV, lançado pela APA, em 1994, foi consequência do aumento de pesquisas, revisões bibliográficas e testes de campo, que permitiram a mudança não só do termo global para invasivo, como também dos critérios para o diagnóstico da síndrome. No Brasil, a tradução foi realizada, em 1995, sob a expressão “Transtornos Invasivos do Desenvolvimento”. Tal classificação passou a fazer parte do CID 10 (Código Internacional de Doenças - 10ª versão), publicada pela OMS, em 1993. Em 1996, o Brasil passou a usar a versão do CID 10, na qual se apresentavam as seguintes características destacadas por Orrú (2013, p.26): “[...] anormalidades qualitativas na interação social recíproca e nos padrões de comunicação por repertório de interesses e atividades restritas, repetitivas e estereotipadas sob o código F84”. Por sua vez, indica Araújo (2013) que no DSM-IV houve um aumento significativo de dados com a inclusão de diversos novos diagnósticos descritos com critérios mais claros e precisos. Uma revisão dessa edição do DSM-IV foi publicada, em 2000, como DSM-IV-TR, 11 Diagnóstico que possibilita uma avaliação adequada e aprofundada, pois possui diferentes eixos. https://pt.wikipedia.org/wiki/American_Psychological_Association https://pt.wikipedia.org/wiki/American_Psychological_Association 35 formalmente utilizada até o início de 2013. O DSM-5, publicado em 18 de maio de 2013, é a mais nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana. Trata-se de uma publicação que resultou de um processo de doze anos de estudos, revisões e pesquisas de campo, realizadas por centenas de profissionais, divididos em 20 diferentes grupos de trabalho. De acordo com Araújo (2013), o objetivo final do DSM-5 foi [...] garantir que a nova classificação, com a inclusão, reformulação e exclusão de diagnósticos, fornecesse uma fonte segura e cientificamente embasada para aplicação em pesquisa e na prática clínica. Em seu aspecto estrutural o DSM-5 rompeu com o modelo multiaxial introduzido na terceira edição do manual. Os transtornos de personalidade e o retardo mental, anteriormente apontado como transtornos do Eixo II, deixaram de ser condições subjacentes e se uniram aos demais transtornos psiquiátricos no Eixo I. Outros diagnósticos médicos, costumeiramente listados no Eixo III, também receberam o mesmo tratamento. Conceitualmente não existem diferenças fundamentais que sustentem a divisão dos diagnósticos em Eixos I, II e III, pois o objetivo da distinção era apenas o de estimular uma avaliação completa e detalhada do paciente; fatores psicossociais e ambientais (Eixo IV) continuam sendo foco de atenção, mas o DSM-5 recomendou que a codificação dessas condições fosse realizada com base no Capítulo da CID10- CM- Fatores que Influenciam o Estado de Saúde e o Contato com os Serviços de Saúde (ARAÚJO 2013, p.101). Na sequência, Araújo (2013) explica que a Escala de Avaliação Global do Funcionamento, Eixo V, foi removida do Manual devido ao fato de que a nota de uma única escala não pode transmitir informações suficientes e adequadas para a compreensão global do paciente. No entanto, a APA recomenda a aplicação das diversas escalas que contribuem com cada caso e apresenta algumas medidas de avaliação na Seção III do DSM-5. O transtorno de espetro autista (TEA) é uma condição geral para um grupo de desordens complexas do desenvolvimento do cérebro antes, durante ou logo após o nascimento. Esses distúrbios se caracterizam pela dificuldade na comunicação social e comportamentos repetitivos. Embora todas as pessoas com TEA compartilhem essas dificuldades, o transtorno irá afetá-las com intensidades diferentes. Assim, essas diferenças podem existir desde o nascimento, mostrando-se óbvias para todos ou podem ser mais sutis, tornando-se visíveis ao longo do desenvolvimento. 2.2 - O QUE É AUTISMO? O termo “autismo” foi criado por Bleuler, psiquiatra alemão, contemporâneo de Freud, que o utilizou para descrever sintomas da esquizofrenia. Na década de 40, durante a Segunda 36 Guerra Mundial, o termo “autismo” foi utilizado por Leo Kanner, psiquiatra austríaco naturalizado americano, para se referir a crianças com distúrbios do contato afetivo e com dificuldades em relação à linguagem ecolálica12 quando presente, pois, em muitos casos, observamos o que chamamos de autistas não-verbais. Kanner (apud Cavalcanti, 2001) também verificou que, apesar da dificuldade de se comunicarem eficazmente, tais crianças possuíam outras habilidades, como a incrível capacidade de memorização. A partir dessa sua constatação, o autismo passou a diferenciar-se das psicoses infantis e novas linhas de estudo foram criadas tanto no campo neurológico quanto no campo da psicanálise. Segundo Cavalcanti (2001), para alguns autores, Kanner criou os conceitos de síndrome e controvérsias, visto que a neurologia descreve o autismo como uma síndrome causadora de um déficit da capacidade afetiva de caráter orgânico, da comunicação e da linguagem, enquanto a psicanálise se divide entre tendências de um distúrbio psicoafetivo ou uma doença geneticamente determinada. Diferentes autores, como Kanner, Mahler e Klein, formularam diversas hipóteses sobre o transtorno autista, o que contribuiu para o surgimento de duas teorias básicas, com indicações terapêuticas específicas: a teoria de natureza etiológica organicista e a ambientalista ou afetiva. Facion (2005) explica estas duas concepções da seguinte forma: - Abordagem organicista é aquela que se baseia na hipótese, levantada por Kanner, de que crianças que apresentam o quadro autista têm uma incapacidade inata para desenvolver o contato afetivo. Esse caráter inato corresponderia a déficits em diferentes níveis comportamentais, afetivos e de linguagem, que se relacionam a alguma disfunção de natureza bioquímica, genética ou neuropsicológica; - Abordagem afetiva é aquela que considera a “refrigeração emocional” dos pais como a causa para o transtorno. Dentre os autores que optam por essa vertente, também chamada de Psicodinamicista, que toma a psicanálise como eixo central, destacam-se Melanie Klein, Margareth Mahler e Frances Tustin. A psicanálise, cujo fundamento é o determinismo psíquico, atribui as causas do comportamento anormal à esfera psíquica; seu objeto de estudo é o das representações mentais. Apesar de enfatizarem diferenças quanto as suas postulações teóricas acerca desse transtorno, o autismo seria, para essas autoras, um quadro clínico estabelecido sobre a expressão de um “quadro de psicose.” (FACION, 2005 p.20) Os preceitos de Kanner, segundo Cavalcanti (2001), criaram noções equivocadas sobre 12 Forma de afasia, em que o paciente repete mecanicamente palavras ou frases que ouve. 37 o autismo, como a ideia de que crianças autistas seriam incapacitadas, sendo, por isso, chamadas por alguns autores de “fortalezas vazias”, “tomadas desligadas”, “conchas” e “carapaças”; em outras situações, os familiares eram descritos como “mães geladeiras” e “pais intelectuais”. A autora ainda relata que a experiência de Kanner, baseada no estudo com 11 pais e seus filhos autistas, apontam fatores em comum entre eles, como inteligência elevada e dificuldade na socialização. Facion (2005) ressalta, porém, que essas percepções poderiam retratar somente a realidade da amostragem selecionada para a pesquisa, considerando que o tratamento para crianças autistas era, na época, inacessível a pessoas de classe social baixa, enquanto as crianças de classe social privilegiada eram atendidas apenas em consultório particular. Algumas pesquisas indicam, também, perdas sociais em parentes próximos aos autistas; as informações delas resultantes são que eles apresentam pouco trato no falar, preocupações em excesso, falta de habilidade ao fazer relatos, entre outras, independentemente do nível de escolaridade ou QI. Como menciona Facion (2005, p.43), “[...] fatores genéticos podem existir, mas eles não estão só associados ao autismo, há evidências de que o sexo do indivíduo, QI, e problemas perinatais, eventualmente, amenizam essa propensão genética”. Orrú (2012) afirma que apesar de compor os primeiros registros a respeito do autismo, as investigações minuciosas publicadas por Léo Kanner foram revistas inúmeras vezes por estudiosos como Bruno Bettlheim, que coletou dados em um campo de concentração no qual esteve preso e observou os fenômenos de isolamento apresentados por outros prisioneiros, assim como Tustin que também iniciou suas pesquisas a partir das publicações de Kanner. No entanto, tanto Bettlheim quanto Tustin formularam novas perspectivas para o estudo do autismo, as quais, mesmo nos dias atuais, causam controvérsias entre as linhas de pesquisa sobre esse tema. Kanner diferenciava o distúrbio autístico da esquizofrenia, em oposição à Bleuler, que considerava o autismo mais um sintoma da esquizofrenia; para Kanner, o esquizofrênico se isolava do mundo, enquanto o autista jamais conseguiu penetrar no mundo mencionado por Bleuler. Gillberg (1990) (apud Órru, 2012, p.23) define autismo como “síndrome comportamental com etiologias múltiplas e curso de um distúrbio em desenvolvimento”, com predominância no sexo masculino, uma vez que, de cada quatro crianças portadoras dessa síndrome, três são do sexo masculino e apenas uma do sexo feminino. Em estudos 38 desenvolvidos em 1998, o neurologista Gaspar (1998) (apud Órru, 2012) concluiu que, a cada dez mil nascidos, o autismo pode estar presente em até 20 crianças. Tais números também são mencionados por Facion (2007), que ainda afirma ser esse transtorno encontrado em qualquer família, independentemente da sua classe social, etnia ou configuração racial. Interessante é a declaração de Joel Birman (Rocha, 1997, p.11) para quem “o autismo se materializa no plural: autismos”, pois o autismo não existe em uma forma universal, isto é, todo autista é dotado de características próprias, o que abre espaço para o enigmático em cada caso a que atendemos, uma vez que as reações são diferentes a cada novo contato. O Transtorno do Espectro Autista (TEA), ou autismo, é um assunto complexo que necessita de uma análise particular, de um diagnóstico a ser elaborado para cada criança ou pessoa. No entanto, há alguns aspectos básicos para compreender, de forma clara, as peculiaridades da síndrome. Isso posto, podemos definir o autismo como uma síndrome comportamental que apresenta sintomas básicos como: dificuldade de interação social; déficit de comunicação social, tanto quantitativo quanto qualitativo; e padrões inadequados de comportamento que não possuem finalidade social. Ao identificarmos estas características básicas, é possível definir e diagnosticar quem é portador da síndrome. 2.3 - PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO AUTISMO A literatura especializada informa que os sintomas do autismo surgem até os três anos de idade. Das possíveis causas ou modelos etiológicos para o autismo, Facion (2007) enfatiza três: o primeiro refere-se a causas relacionadas ao ambiente ou a traumas que podem ocorrer após o nascimento, ou seja, ela nasce mental e fisiologicamente saudável e algum fator externo causa o autismo; o segundo, a uma predisposição congênita ao autismo, independente do meio em que vive; e a terceira, a uma lesão cerebral exógena, que pode ocorrer na fase uterina, perinatal ou pós- natal até o 30° mês de gestação. Esse mesmo autor seleciona 14 sintomas cardeais para facilitar a identificação do autismo afirmando que, se a criança apresentar pelo menos cinco deles, a família deve ser orientada a procurar auxílio médico. Segundo ele, os sintomas tornam-se perceptíveis quando a criança: “1- Não se relaciona com outras crianças; 2- Age como se fosse surdo; 3- Resiste ao 39 aprendizado; 4- Não demonstra medo de perigos reais; 5- Resiste a mudanças de rotina; 6- Usa as pessoas como ferramenta; 7- Manifesta risos e movimentos não apropriados; 8- Resiste ao contato físico; 9- Apresenta acentuada hiperatividade física; 10- Não mantém contato visual; 11- Tem apego não-apropriado a objetos; 12- Gira objetos de maneira bizarra e peculiar; 13- Às vezes é agressiva e destrutiva; 14- Apresenta comportamento indiferente e arredio.” (FACION 2007, pp. 32, 33, 34) Não existe, porém, um exame específico para identificar o autismo; na verdade, é necessário realizar um conjunto de exames para auxiliar em seu diagnóstico. Alguns recursos foram desenvolvidos para se fazer uma avaliação crítica, como os diversos questionários, as listas de observações de comportamento e as escalas para esta finalidade. Facion (2007) traduziu o Catálogo de Características e Sintomas para o Reconhecimento da Síndrome de Autismo, escrito por H. E. Kehrer, que configura uma alternativa de formulação adequada para o diagnóstico. Esse catálogo é composto por 73 descrições de comportamento que indicam que, se o sujeito apresentar mais de um terço dos sintomas ali descritos, o diagnóstico resulta como transtorno autista. Ademais, aceita-se a identificação desse transtorno após os 36 meses do nascimento, visto que o autismo pode se apresentar tanto de forma mais severa – portanto, mais rápida e fácil de identificar - como de forma menos severa ou menos grave, quando se apresenta com características muitas vezes imperceptíveis e em idades mais avançadas. Daí o motivo para se substituir a denominação “autismo infantil” por “transtorno autista”. Fato conferido na literatura especializada, a dificuldade na comunicação é uma das características mais recorrentes. Orrú (2012) destaca as seguintes características diagnósticas em relação à fala: a sua ausência; o seu retardo; o seu retrocesso em casos específicos; o emudecimento13; a ausência de espontaneidade; a troca da elaboração de frases por expressões ou uso de uma ou duas palavras; a presença de monólogos; a fala que nem sempre correspondente ao contexto; o uso constante da terceira pessoa ao invés da primeira; o uso de frases gramaticalmente incorretas ou incompletas; as expressões bizarras; os neologismos; a linguagem monótona e melódica; o uso de mímica e de gesticulações; a ecolalia imediata ou posterior; a imutabilidade da expressão emocional; o pouco ou nenhum contato visual; a limitação quanto aos interesses e iniciativas; e a pouca tolerância com frustrações. Todas essas observações são relevantes para nossa pesquisa, tendo em vista nosso interesse em obter informações detalhadas não apenas sobre como se dá a interação e a comunicação entre 13 Situação em que a criança inicia a fala com algumas palavras e frases e deixa de exercitá-la posteriormente, recusando-se a falar. 40 portadores desse transtorno e seu entorno, seja por meio da fala seja pelas alternativas aceitas pelos envolvidos, mas também sobre como conciliar possíveis recursos alternativos em uma sala regular. Por ora, tentaremos compreender melhor o TEA, enfatizando a importância de um diagnóstico para promover atividades que estimulem a ampliação ou o desenvolvimento da linguagem oral e escrita para alunos que se enquadram nesta síndrome. Gauderer (1993) simplifica substancialmente as características comportamentais presentes em portadores de autismo, dividindo-as em cinco grupos: distúrbios de relacionamento; distúrbios da fala e linguagem; distúrbios do ritmo de desenvolvimento; distúrbios da motilidade; e distúrbios de percepção. Em relação aos distúrbios da fala e linguagem, ele os relaciona a casos de fixações e paradas ou a casos de total mutismo, espécies de fobia social que levam o indivíduo a manter diálogo somente com pessoas de seu convívio direto e a rejeitar a interação com grupos diferentes; a ecolalia também se refere a dificuldades da fala, relacionadas à extrema rigidez de imitação observada nessas crianças. Autistas, portadores de um QI mais avançado, podem alcançar o desenvolvimento da linguagem de forma funcional, chamando a atenção por sua semelhança comportamental com indivíduos esquizofrênicos. Verifica-se também que, com o passar do tempo, as deficiências mentais tornam-se mais acentuadas, o que pode representar perda de algumas das características autistas da infância. (GAUDERER 1993). Quando, no espectro autista, falamos de crescimento cognitivo das crianças, sabemos que todas as habilidades – as motoras, as emocionais, as sociais, entre outras - são importantes e podem influenciar no desenvolvimento de seu repertório comportamental, necessário ao seu bom convívio em sociedade. Todavia, também sabemos que a linguagem, usada de forma funcional, é uma das principais habilidades que diferencia o homem dos demais seres vivos. Como seres sociais e culturais que somos, ainda podemos pensar no salto de desenvolvimento ocorrido com a aprendizagem da linguagem na modalidade escrita. No que tange, por exemplo, ao registro da historicidade da raça humana, é de nosso conhecimento que tal registro foi, está sendo e será feito mediante a linguagem escrita, mesmo que o sistema de comunicação atual tenha sido amplamente diversificado com o uso da tecnologia. Em razão disso, podemos afirmar categoricamente que, tanto a modalidade oral quanto a modalidade escrita da linguagem, têm um papel importante para quem vive em sociedade. 41 3 - DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E AUTISMO 3.1- COMUNICAÇÃO DE CRIANÇAS PORTADORAS DE TEA Grande parte da literatura pesquisada faz referência às dificuldades de interação entre os autistas e as outras pessoas. Por isso, a importância de discorrermos sobre o atendimento de portadores do espectro autista, realizado por profissionais compromissados com a aquisição e o desenvolvimento da linguagem dessas crianças, considerando as opções metodológicas disponíveis para o trabalho. A comunicação está presente em nossa vida desde o nascimento. Na primeira infância, ela se estabelece através do choro, das risadas e dos gestos; com o passar do tempo e após o desenvolvimento da linguagem, a comunicação se externa mediante a fala, com os pedidos ou expressões que revelam necessidade no ambiente familiar, estendendo-se, posteriormente, ao convívio escolar, o que lhe proporciona um enriquecimento do vocabulário. (CARDOSO 2012) Os estudos sobre a linguagem remontam à Antiguidade, uma vez que eram comuns, na Grécia, entre naturalistas e convencionalistas, discussões de caráter filosófico sobre o tema; os naturalistas pensavam haver uma relação intrínseca entre o som e o sentido, entre os nomes e as coisas, acreditando ser a linguagem dependente da natureza; a esta ideia colocaram-se contrários os convencionalistas, que concebiam ser o nome resultado de um acordo entre homens, não havendo, portanto, harmonia entre eles. Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) enfatizou a importância da linguagem para traduzir o mundo, enquanto, no século XVII, o filósofo Descartes (1596-1650) formulou a ideia de língua como representação, sendo o pensamento a ligação entre ela e o mundo. Aprofundando esses estudos, Baruch Spinoza (1632-1677), discípulo de Descartes, refletiu sobre o funcionalismo da linguagem, dando-lhe abertura para uma perspectiva evolucionista, genética, histórica e fundadora da tradição hegeliana e marxista, que explica como o homem se constrói. (CARDOSO 2012). A Psicologia e a Linguística, respeitadas como ciências, debateram por muito tempo o assunto, considerando a língua como “a representação do pensamento ou um instrumento da comunicação” (CARDOSO, 2012, P.16). Tais ideias tomaram outra direção com o desenvolvimento da Psicologia Social ou do Desenvolvimento, a qual admite que o sujeito tem consciência de si e do outro, sendo capaz de trabalhar em conjunto, fazendo uso da 42 linguagem. Essas concepções também estão presentes na obra de Vigotski (2008)14, para quem a passagem do pensamento à palavra perpassa seu significado e a comunicação só se realiza pela interação com o outro. Necessitamos assim, quando interagimos, da compreensão verbal e não verbal para todas as manifestações do pensamento. A principal função da linguagem é a interacionista em razão de constituir-se um sistema simbólico, criado por grupos sociais para se comunicar. Por isso, o homem criou sistemas de linguagem, compartilhados e entendidos em grupo; caso eles não sejam compreendidos, não alcançam o objetivo desejado, isto é, o indivíduo deve compreender o significado da palavra no contexto em que esta é usada. O conceito de “mesa”, por exemplo, que designa um móvel que possui uma ou mais pranchas apoiadas em um ou mais pés, é construído pelo contato do indivíduo em seu meio social. (VIGOTSKI, 2008). O desenvolvimento da criança ocorre, de início, em nível social para depois ocorrer no individual, o que explica a criança realizar, primeiramente, ações de acordo com a cultura de seu grupo, as quais serão, por ela, internalizadas mais tarde. Isso quer dizer que “as funções de desenvolvimento da criança aparecerão duas vezes primeiro de maneira interpsicológica ou entre pessoas e depois intrapsicológica ou no interior da criança.” (VIGOTSKI, 2007, p. 58). Assim, o homem participa diretamente na construção social do meio em que vive, não sendo, portanto, determinado por ele; o homem é um ser social e tem suas relações mediadas pela linguagem. Brito (2007) também destaca o uso funcional da linguagem para o bom desenvolvimento da criança, pois, através dela, podemos comunicar fatos, interagir com pessoas, expressar desejos e insatisfações, compreender normas e fatores sociais, explicar e compreender comportamentos. Quanto mais cedo a criança desenvolver a habilidade oral, mais rápido será sua adaptação no convívio em sociedade, principalmente no contexto escolar. Essa mesma autora relaciona o desenvolvimento da criança com o desenvolvimento da linguagem infantil, uma vez que este resulta das interações do indivíduo com suas experiências. Ela ainda destaca alguns fatores mencionados por Haynes (1986): Assim vale mencionar os fatores apontados por Emerick e Haynes (1986) como pré- 14 Vigotski (1896-1934). O nome Vigotski aparece com diferentes grafias nas obras consultadas para este trabalho. No entanto, optamos por utilizar grafá-lo Vigotski a fim de padronização e que foi utilizada na tradução da obra de Ester Orrú (2012). 43 requisitos para o seu desenvolvimento normal, que são: um trato vocal, maturação neuromotora, sistema auditivo, capacidade intelectual e desenvolvimento cognitivo normais, saúde emocional e física adequadas para favorecer e sustentar o desenvolvimento da linguagem oral e um ambiente instigante e encorajador (HAYNES, 1986, apud BRITO, 2007, p. 16). As crianças com TEA apresentam dificuldades para se comunicar para estabelecer e manter relacionamentos sociais; apresentam também dificuldades para entender algumas formas de comunicação não verbal, como expressões faciais, gestos físicos e contato visual. Na maioria dos casos, essas crianças são incapazes de expressar suas necessidades básicas e podem encontrar problemas para interpretar e compreender as necessidades dos outros. Isso prejudica sua capacidade de partilhar interesses e atividades com outras pessoas. Por esta razão, elas podem parecer distantes e indiferentes em relação a outras pessoas. O déficit na comunicação tem sido alvo de preocupação para os que fazem pesquisa sobre o autismo, visto existir uma evolução natural na transição do sistema de comunicação concreto para o abstrato, inerente à linguagem e que lhe faculta participar de um grupo e interagir com ele. Um dos maiores obstáculos a ser enfrentado por autistas está no desenvolvimento da linguagem e da comunicação, pois embora muitos tenham desenvolvido habilidades verbais, grande parte deles só avança em habilidades não verbais de comunicação (ORRÚ, 2012). A dificuldade de comunicação verbal pode prejudicar o envolvimento do autista em brincadeiras e jogos. Ele tam