p.6993 1 EDUCAÇAO EM DIREITOS HUMANOS: regras e justiça frente à indisciplina dos alunos e alunas. Heyde Aparecida Pereira de Jesus; Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo. Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. Políticas e Gestão Educacional. FAPESP. Introdução Nesta comunicação apresentam-se resultados de um estudo de caso etnográfico, desenvolvido nos moldes de pesquisa qualitativa, realizada em 2007 numa escola pública de periferia da rede estadual das séries iniciais do Ensino Fundamental de Marília (SP) acerca da concepção, se e como a escola trabalha a educação em direitos humanos. Após a Constituição de 1988, a educação em direitos humanos tornou-se tema central da política de Estado, tendo por objetivo contribuir para a edificação de uma sociedade alicerçada nos princípios éticos da justiça, da liberdade, da solidariedade e do respeito às diferenças. Neste momento, optamos por explicitar parte das regras e justiça frente a indisciplina dos alunos e alunas a partir do recorte feito da coleta de dados, a qual tivemos por instrumentos a observação participante, a entrevista e a análise documental, conforme proposto por Sarmento (2003) em correspondência com as tarefas de investigação etnográfica. Participaram da pesquisa seis professoras, quatorze alunos e alunas, diretora substituta, coordenadora pedagógica, duas funcionárias e um funcionário que também exercia a função de professor de Música1. Durante o desenvolvimento da pesquisa a questão da (in)disciplina revelou-se importante, visto que a perspectiva de educação em direitos humanos2 percorre o conjunto da prática escolar, do clima e das interações que nela se desenrolam. E, dentre as características associadas ao estudo de caso destaca-se que: Os estudos de caso visam à descoberta. Mesmo que o investigador parta de alguns pressupostos teóricos iniciais, ele procurará se manter constantemente atento a novos elementos que podem emergir como importantes durante o estudo. O quadro teórico inicial servirá assim de esqueleto, de estrutura básica a partir da qual novos aspectos poderão ser detectados, novos elementos ou dimensões poderão ser acrescentados, na medida em que o estudo avance. (LUDKE e ANDRÉ, 1986, p.18). De acordo com Aquino (2003), a indisciplina ganhou visibilidade a partir dos anos 1990 quando surgiram publicações voltadas para a temática. p.6994 2 O autor ressalta que é a partir desse momento que o tema despontou entre os educadores como um complicador do trabalho pedagógico. Ressaltamos que a indisciplina escolar não está centrada em apenas uma ou outra causa: ela é produto de vários fatores, sendo diversas as razões que a justificam. A concepção na qual acreditamos apresenta-se como comportamentos de desrespeito ao outro e às regras construídas em princípios de justiça3. Regras e justiça frente à indisciplina dos alunos e alunas Durante a nossa permanência na escola, tivemos a oportunidade de presenciar algumas situações que julgamos serem pertinentes explicitarmos aqui. E, para isso, a utilização da observação como instrumento de coleta de dados tornou-se muito importante. A observação, como aponta Abramovay e Castro (2006), não é simplesmente um olhar atento, mas sim, um olhar ativo, ancorado por um problema de pesquisa. De acordo com a autora, será sempre o problema de pesquisa que guiará o olho e o ouvido do pesquisador e que o levará a estar atento às questões de pesquisa, mas permitindo também o campo falar, captando novas questões que a realidade observada lhe for apresentando. A observação pode informar muito sobre os perfis dos atores sociais, seus desejos, dificuldades, sentimentos e percepções, enfim um conjunto de dimensões que em primeiro momento podem parecer confusas e desconexas, mas que podem fornecer valiosas informações para a pesquisa. Ou seja, fazer uma pesquisa é sobretudo olhar, ouvir e descrever. (ABRAMOVAY e CASTRO, 2006, p. 48). Procuramos, durante as observações, atentarmos para as conversas informais e as diversas comunicações, estando atentas quer às formas de contatos entre a equipe escolar, alunos e alunas, como também com a pesquisadora. Isto se tornou básico para o estudo, considerando-se que a educação em direitos humanos se dá muito pela postura/forma em que a equipe escolar se apresenta na relação com os alunos e alunas, ou seja, por meios de atitudes, gestos e pelo não dito. As regras são muito importantes no ambiente escolar e é preciso que os alunos e alunas participem da elaboração das mesmas. Entretanto, deve- se tomar o cuidado de não fazer destes momentos um faz de conta pedagógico, pois embora se pretenda ter crianças cidadãs, na fase escolar elas ainda não são, por isso torna-se impossível transpassar o sistema p.6995 3 democrático para a escola em toda a sua abrangência. Isto porque o sistema democrático, além de dizer respeito à vida pública, garante, pelo menos em tese, uma posição de igualdade aos cidadãos. Daí que essa condição não se sustenta na escola, visto que os alunos e alunas não são iguais aos seus professores e professoras, embora sejam preparados (as) para sê-lo, como afirma Maudonnet (2003, p. 26) citando Savater (2000). É um disparate aplicar rigorosamente, desde a pré-escola, o princípio democrático de que tudo deve ser decido entre iguais, pois as crianças não são “iguais” a seus professores no que se refere aos conteúdos educacionais. Elas são educadas para que mais tarde cheguem a ser iguais em conhecimento e autonomia. Elas podem e devem ser treinadas, naturalmente, no exercício igualitário da deliberação democrática, [...] no entanto é uma fraude transformá-las em uma minoria oprimida pelo autoritarismo docente dos adultos. (supressão da autora) Maudonnet (2004) esclarece que embora a educação para a democracia deva pressupor a vivência cotidiana de valores vinculados a esse regime, não se deve submeter as crianças a decisões que elas ainda não podem e não devem tomar. Toda e qualquer instituição precisa de regras para funcionar, caso contrário, vive-se arbitrariamente. Por isso, na escola as regras existem e precisam ser explicitadas para as crianças, porque só as instruções explícitas podem estar abertas a críticas. E é justamente essa discussão crítica das regras que deve começar desde cedo na vida dos alunos e alunas. Sem esse processo de explicitação/discussão temos ou o autoritarismo ou a demagogia. Essa demagogia (em que as crianças pensam que estabelecem as regras, mas são os professores e as professoras que as levam a decidirem aquilo que consideram válido), é algo extremamente indesejável a uma educação em direitos humanos para a cidadania e a democracia (MAUDONNET, 2004). Infelizmente não tivemos oportunidade de assistir o início do ano letivo da escola e, por isso, desconhecemos a elaboração das regras, visto que tivemos autorização para realizarmos as observações em sala de aula depois do planejamento escolar, já no final de fevereiro. Quando chegamos às salas de aula notamos que nelas tinham cartazes em papel pardo ou de outro tipo com a inscrição das regras que valiam para todos os alunos e alunas. Neles, porém não estavam previstas as sanções no caso de infrações às regras. Aquino (2003, p. 69) enfatiza que o primeiro dia de aula é um bom p.6996 4 espaço para esclarecer as regras da rotina escolar. “Muitas vezes, apenas o bom senso não é suficiente para nos guiar mediante a engenhosa tarefa de iniciar o ano letivo. Trata-se do momento mais propício para a celebração dos contratos.”4 Observamos, algumas vezes, as professoras partindo de alguma situação que surgiu em sala de aula inserir um novo “combinado” interrogando os alunos e alunas se estavam “combinados”. Antes mesmo das crianças se pronunciarem diziam “então estamos combinados”. Essas situações nos levam a hipótese de que talvez não aconteça uma discussão coletiva sobre a construção das regras o que contrariaria a maioria das falas das professoras durante as entrevistas de que as regras seriam construídas coletivamente. A atitude das professoras em registrar as normas nos cartazes nos faz recordar o registro do contrato pedagógico proposto por Aquino (2003) de forma escrita, a fim de evitar possíveis ambigüidades de suas regras, pois em caso de dúvidas será possível consultá-las e caso haja necessidade revisá-las. É preciso, não esquecer também, do risco de cair no faz de conta- pedagógico no qual as crianças pensam que constroem as regras, quando na verdade são os professores e as professoras que conduzem as suas opiniões sem o necessário debate das regras. Davis e Luna (1991) citado por Aquino (2003, p. 68) explicitam que Um exercício saudável a ser empreendido em cada escola e cada sala de aula é a explicitação não só das razões pelas quais se considera importante cumprir determinadas atividades, como também das formas através das quais se espera cumpri-las. Estipular em conjunto as regras que pautarão a conduta a ser seguida por todos aqueles envolvidos no processo de conhecer – diretores, professores e alunos – constitui uma rica ocasião para se enfronhar na elaboração tanto de regras comuns como de artifícios para garanti-las, uma vez que a participação coletiva nesse processo legitima a necessidade de obedecer aos resultados. De La Taille (2008, p. 28) explica os aspectos que validam os combinados fazendo com que eles valham em sala de aula. Para que um combinado seja efetivamente aceito, é preciso prestar atenção a três aspectos. Primeiro, é necessário que os princípios inspiradores norteiem o acordo e sejam explicitamente colocados, não fiquem apenas implícitos para a turma. Na escola inglesa Summerhill, por exemplo, um dos princípios fundamentais é o da igualdade. Com base nele, ficou decidido que nenhuma assembléia poderia resolver que os meninos menores serviriam aos maiores – algo que, na prática, poderia acontecer caso os mais velhos tivessem maioria em uma votação, digamos. Esse, p.6997 5 aliás, é o segundo ponto importante: deve-se evitar ao máximo que os combinados se dêem por votação. É preferível procurar o consenso, o que dá muito mais trabalho mas é bem mais rico porque desenvolve a prática de escutar o outro. Se o grupo segue muito rápido para a votação, elimina-se uma etapa preciosa que poderia ser dedicada ao diálogo. A votação não é diálogo, a votação é poder: se eu tenho mais votos que você, você perde e eu ganho. Em terceiro lugar, o professor não pode abrir mão de seu papel de autoridade, simplesmente jogando para o grupo as responsabilidades pelas sanções que o combinado pode gerar. A respeito do último aspecto apontado por La Taille (2008), ressaltamos a importância do(a) professor(a) como autoridade, não enquanto ser inflexível e determinante, mas enquanto ser organizador(a) da aprendizagem e das interações pessoais, responsável por propiciar um ambiente cooperativo, sendo ele(a) o adulto e o(a) profissional da relação professor-aluno. Ressalta Araújo (1996, p. 112) O que está chamando de ambiente escolar cooperativo não abre mão da figura da autoridade moral e intelectual, não autoritária, do professor como coordenador do processo educacional. O que muda o quadro é que esse professor nem é o que determina tudo dentro da sala de aula e nem deixa que os alunos determinem, porque ele é quem conhece os objetivos pedagógicos. A prática pedagógica da professora Joseane, a partir de nossas observações, parece coincidir com a sua fala. De acordo com ela a elaboração das regras aconteceu de duas formas. Houve um... pedido entre aspas da escola pra que algumas das regras fossem faladas, comunicadas, escritas num cartaz e relidas constantemente e, eu acatei e fiz. Agora periodicamente a gente vem conversando sobre problemas que acontecem no dia-a- dia, né? O ponto forte que eu estou agora é a questão do comportamento agressivo, não é... problema tão grave como eu tinha no ano passado, né? [...] não tinha condições de dar aula, mas pra que não aconteça e não fique do jeito que ficou nos anos anteriores eu já comecei a fazer esse trabalho com rodas de conversa: que é o comportamento agressivo? Como a pessoa se sente quando ela é agredida? De que forma a gente pode trabalhar? E aí aos pouquinhos a gente sempre vai retomando e conversando. A professora Joseane assim nos relatou sua experiência com a sua turma de 2006: No ano passado eu sofri muito com a minha turminha. Eu tinha uma aluninha que puxava os meus cabelos até o joelho. Prendia o cabelo, mas a franja sempre soltava, aqui ó [apontando o tornozelo] era tudo roxo. Só fui consegui a atenção da classe e em especial a dela no mês de agosto e por causa da indisciplina não consegui desenvolver sequer os conteúdos. [...] Quando conseguia, conversando com ela, dizia que quando ela tivesse algum problema me chamasse pra conversar. Percebi que quando ela estava nervosa me chamava, me puxando pelo braço p.6998 6 apertando-me e falando toda séria : vem conversar. A indisciplina foi uma queixa constante das professoras, queixa essa que nos motivou a tomá-la como objeto de estudo numa segunda etapa de nossa pesquisa. No livro de Ocorrências da escola encontramos muitos registros de várias situações que retratam essa indisciplina. Tomamos anotações5 de fevereiro a setembro. Eis alguns exemplos: 16/02 Os alunos J. L. A. L., J. S. B. e J. F de G. da 3ª A, não tem mantido o respeito e o comportamento. O professor fala e os alunos não obedecem. Os pais serão convocados para um diálogo. Se os alunos não melhorarem serão suspensos das atividades. 25/09 Nesta manhã, após o recreio os alunos da 4ªB, A. T. dos S. C. e L. P. S. compareceram a esta secretaria porque estão desrespeitando a professora da sala, não fazem e nem obedecem ninguém na sala de aula, deixam de fazer as atividades propostas, respondem as pessoas e até dentro desta sala desacatam as pessoas cantando música de besteira com desrespeito as pessoas e aos colegas na sala de aula. Foram aconselhados e levaram convocação aos pais, porque tiveram que sair da sala de aula pois não obedecem e só tumultuam dentro da sala de aula. [...] De modo geral, as punições mais comumente empregadas giram em torno de repressões orais, advertências por escrito, raramente expulsões da sala de aula, convocação dos pais ou responsáveis, suspensão por determinados períodos, normalmente relacionadas a infrações comportamentais. Gostaríamos de destacar a primeira ocorrência citada que data do dia 16/02: a possível utilização de suspensão das atividades como forma de sanção. Concordamos com Assis (2003, p. 52) quando diz que a suspensão não é uma medida pedagógica reintegradora. Para o autor, É uma penalidade com característica de castigo. Impedir a criança ou o adolescente da freqüência às aulas, só é justificado se essa ausência não afastar a criança ou o adolescente de dentro escola e se o tempo for aproveitado para a aprendizagem do assunto, a cuja aula ele não assistiu, já que ele tem direito à educação (art. 53) do ECA. [...] Suspender por suspender pode ter resultados contrários aos objetivos da penalidade, além de contrariar os fundamentos do ECA. [...] A suspensão é usada como ameaça, às vezes, pelas professoras na tentativa de inibir alguns comportamentos indesejados das crianças em sala de aula, como por exemplo, as brincadeiras de lutinhas. Presenciamos também a ameaça de transferência compulsória. Certa p.6999 7 vez, logo no início da aula as crianças da segunda série estavam muito agitadas e a professora não conseguia chamar-lhes a atenção. O AOJ estava agressivo com as outras crianças e por isso a professora optou por chamar a inspetora. Quando esta chegou, chamou a atenção das crianças com voz imperativa conseguindo o silêncio da sala. Dirigindo-se ao AOJ enfatizou que se ouvisse mais uma reclamação ele sairia da escola com a remoção de matrícula, pois não permaneceria mais estudando naquela escola. Acrescentou que sairia da escola no final do dia depois de limpar a carteira em que estava. É claro que todo direito corresponde a um dever. Os alunos e as alunas têm o direito de estudar num local limpo e também tem o dever de manter este local limpo. Entretanto, o AOJ sentou-se rapidamente naquela carteira ao perceber que a inspetora se aproximava. E, não tinha sido ele quem sujara a carteira. Mas, ele foi até as agentes responsáveis pela limpeza e pegou bucha, sabão e um pano, ensaboou não somente a sua carteira como também a carteira de alguns colegas que também estavam sujas. Entretanto, ele apenas passou o pano na sua carteira deixando as demais ensaboadas e, ainda passou o pano sujo na boca de vários colegas da turma. Outra observação pertinente aconteceu em meados de abril. Estávamos na segunda série e não muito diferente dos outros dias, as crianças estavam muito agitadas. A professora achou que o aluno AOJ estava bagunçando muito e acabou chamando a diretora substituta. Esta veio até a sala e fez ameaças ao aluno na frente dos demais colegas de turma. Caso o aluno não se comportasse ela convocaria o seu pai a comparecer na escola. Observamos que o aluno quietou-se rapidamente. Após algumas semanas, na hora da entrada, a professora Lucimara nos contou que no dia anterior o AOJ havia recebido uma advertência6 e que por isso estava muito carente pedindo a ela que o deixasse ir à escola no dia seguinte (dia em que conversávamos) alegando que se ficasse em casa sua vida iria acabar. “Como ele é levado, combinei com ele que ficasse quieto, fizesse as atividades e depois fosse conversar com a Olga para permitir que ele viesse. Ele fez tudo bonitinho precisa ver e foi lá e mostrou pra Olga. A Olga disse que iria salvar a vida dele apenas daquela vez” – contou a professora Lucimara sorrindo. Ficamos sem entender o motivo pelo qual a vida do aluno acabaria p.7000 8 caso ficasse em sua casa. No entanto, na hora do recreio, na sala das professoras, a Mariana contou que na semana passada ele estava com alguns hematomas pelo corpo de tanto apanhar dos pais. Em uma outra conversa informal a professora Lucimara disse que quando esse aluno recebe uma advertência e a mostra em casa, ele apanha da mãe ao chegar em casa e apanha novamente quando o pai chega de noite do serviço. Este é o motivo pela qual ele não queria ficar em casa. A professora contou que ficou com dó quando ele pediu a ela que o deixasse ir à escola no dia seguinte e por isso sugeriu dele conversar com a diretora mostrando-lhe as atividades que havia feito com capricho. Situação semelhante observamos quando estávamos na terceira série e dois alunos começaram a brincar de lutinha até que se desentenderam e passaram a se agredir com socos no rosto, chutes e pontapés. Agarram-se com tanta violência que a professora imediatamente solicitou ajuda. Levamos alguns segundos até conseguirmos separá-los. Fomos levá-los para a inspetora, porém um dos alunos resistia firmemente. Na volta para a sala de aula, a professora contou que o JEM não queria ir porque certamente levaria um bilhete para casa e sua mãe o colocaria de castigo - de joelhos em cima de tampinhas de garrafas viradas pra cima. Nas duas situações descritas é possível questionar se a escola não teria outro caminho que não a advertência ou o bilhete para casa, uma vez, que tinha conhecimento de que as crianças seriam castigadas fisicamente. A professora Lucimara em conversa informal enfatizou: “Não adianta deixar a criança em casa porque ela volta mais revoltada e acaba por descontar nas outras crianças.” Pappa (2004, p. 98) evidencia que muitas “[...] crianças sofrem maus- tratos, ou têm cuidados insuficientes. Se o professor manda uma ‘cartinha’ para os pais, às vezes os filhos são surrados pelo pai, por terem feito bagunça na escola.” Por isso a escola deve-se manter atenta e vigilante e não correr o risco de infringir o ECA, zelando pela integridade física de seus alunos. Outros mecanismos de coibir comportamentos indesejados em sala de aula pelas professoras são: mandar para a diretoria, chamar a inspetora e abaixar a nota. Por conta desta última, optamos por colocar no roteiro de entrevista os critérios utilizados pelas professoras para avaliarem os seus alunos. Duas professoras citaram o comportamento como um dos critérios p.7001 9 utilizados. Entretanto uma professora ponderou que nem toda conduta inadequada pode ser julgada como ruim, pois é preciso atentar para as suas causas. [...] Agora outra questão de comportamento eu olho o dia-a-dia. Hoje eu tive uma criança que chegou muito irritada por causa de algum problema e ela não conversou, ela não quis fazer nada e eu vou falar que ela é indisciplinada? Não posso. Eu vou falar que ela tem um comportamento ruim? Não posso. Eu percebi que ela já chegou assim. Ela precisou de uns 15-20 minutos dentro da sala pra começar, pra ela retomar a atividade. Eu tive que copiar o enunciado do problema inteirinho pra ela e dizer: “Olha agora você continua junto com a pro”? Ela continuou! Então pra eu avaliar o comportamento eu tenho que está tentando observar na medida do possível tudo que está acontecendo se eu não tivesse percebido que essa criança chegou na parte da manhã já na fila com comportamento diferente do dela eu não teria como ajudar. Então a avaliação de comportamento é tentar está observando tudo o que a criança está falando e pedindo pra ela me contar o que está acontecendo pra eu saber como é que ela está pensando. (Joseane) Retomando o Livro de Ocorrências percebemos que os pais ou responsáveis quase sempre são convocados a comparecer na escola por causa das infrações indisciplinares. Parece que a participação da família seria a solução para a indisciplina escolar. Quando desponta algum entrave de ordem disciplinar na sala de aula, uma das atitudes usuais por parte dos professores é convocar as autoridades escolares, e estes, os pais para que dêem um jeito no seu filho.” Imaginemos se, cada vez que o filho desses mesmos pais apresentasse um problema disciplinar em casa, eles convocassem o professor para que este também “desse um jeito no seu aluno”. Muito estranho, não? [...] Portanto, precisamos admitir um consenso básico, muitas vezes esquecido no dia-a-dia escolar: o de que aluno não é filho, e professor não é pai. (AQUINO, 1998, p.112). Zandonato (2004) fundamenta-se em Lepre (1999) e Vinha (2003) para discutir sobre a transferência de autoridade de responsabilidades sobre os comportamentos indisciplinares ou sobre situações conflitantes a quem considerar autoridade pra resolvê-los, no caso da escola, a professora para a diretora, etc. Daí que a transferência de responsabilidade pode possibilitar a interpretação de que a autoridade aclamada é maior e tem mais poder da que lhe pediu amparo. Para Aquino (1998) o encaminhamento para direção escolar, a convocação dos pais, significa que uma terceira pessoa que não o (a) professor(a) encarrega-se para regular as relações entre os alunos e entre docentes-alunos e alunas. Essa postura sinaliza que o(a) professor(a) não p.7002 10 se sente responsável pelos comportamentos indisciplinados apresentados ou não faz qualquer relação com suas posturas e, por isso, não deve incumbir-se de resolver esta questão. As situações de conflito disciplinar devem ser enfrentadas no âmbito em que ocorrem, até que se esgotem as possibilidades de soluções. Assim, por exemplo, dado um conflito em sala de aula, a professora deve procurar fazer tudo o que estiver ao seu alcance para resolvê-lo nesta esfera, individual ou coletivamente. A professora da quarta série adotou como medida para atenuar a indisciplina em sala de aula e o cumprimento de tarefas mínimas pelos alunos e alunas a entrega de prêmios uma vez por mês. Os prêmios eram entregues para as crianças que realizavam todas as tarefas e se comportavam adequadamente do ponto de vista da professora. No mês de setembro, por exemplo, de seus vinte e quatro alunos, seis conseguiram a premiação. Tiveram várias opções para escolher: bola, caderno, lápis de escrever ou de pintar e canetas. Mas a medida não pareceu ser muito eficiente, pois as crianças premiadas eram sempre as mesmas - aquelas consideradas quietas e obedientes. Também presenciamos a professora Lucimara, no final de uma aula, distribuindo bolachas de maizena para os alunos e alunas da segunda série quando substituía a professora Mariana. Ela disse que havia combinado que se elas se comportassem o dia inteiro, ganhariam a bolacha no final da aula. O professor [...] não deve recorrer ao condicionamento baseado no prêmio-castigo. Os alunos que apresentam problemas de disciplina precisam de uma ação educativa apropriada: aproximação, diálogo, investigação das causas, estabelecimento de contratos, abertura de possibilidades de integração no grupo, etc. e no limite, se for necessário, a sanção por reciprocidade, qual seja uma sanção que tenha a ver com o comportamento que está tendo. (VASCONCELLOS, 2000, p. 45). A professora Lucimara é substituta então não pudemos coletar muitas observações, mas em relação às outras três professoras (Mariana, Ester e Júlia) as sanções parecem padecer de um contra-senso. Parecem situar-se na contramão daquilo que a educação se propõe a buscar: a consciência crítica, a participação ativa e o fomento da cidadania. Novamente recorremos a Aquino (2003, p. 66) “É passada a hora, pois, a necessidade de uma revisão paradigmática dos valores que parecem embasar as ações/relações constitutivas do fazer escolar contemporâneo, p.7003 11 principalmente no que se refere às prescrições disciplinares.” Considerações finais A pesquisa revelou que a escola é uma organização complexa e deve ser estuda por dentro para que a pesquisa acadêmica possa contribuir para o desvelar dos fatores que dificultam a concretização da educação em direitos humanos. Em relação à questão disciplinar foi possível perceber que a concepção e prática de duas professoras contribuem com a formação de cidadãs e cidadãos críticos e participativos, conhecedores de seus direitos e deveres e que entendem a importância do cumprimento de seus deveres. Diferentemente, as outras professoras parecem valorizar uma concepção de disciplina calcada na obediência e subserviência cega dos alunos e alunas à autoridade docente. As sanções aplicadas às crianças não contribuem para a formação de sujeitos autônomos e independentes. A cidadania, os valores humanos precisam ser vivenciados e construídos, na escola, nas pequenas ações do dia-a-dia, abrangendo os direitos e os deveres, gerando compromisso, responsabilidade e participação. Notas Uma professora de cada série, uma professora substituta e uma professora de 1. Arte. O diretor estava de licença por tempo indeterminado e a estrutura da escola não comporta o cargo de vice. Os nomes aqui utilizados são fictícios. No caso dos alunos e alunas para garantir o anonimato utilizamos letras dos nomes e sobrenomes. A respeito do objetivo principal da pesquisa ver JESUS (2008).2. O modo como se interpreta a (in)disciplina, sem dúvidas gera uma série de 3. implicações à prática pedagógica por oferecer elementos capazes de interferir não somente nos tipos de interações estabelecidas com os alunos e alunas, na definição de critérios para avaliar seus desempenhos na escola, como também no estabelecimento dos objetivos que se quer alcançar. Cremos ser a indisciplina escolar resultado de vários fatores, não envolvendo somente características provenientes da escola e de suas relações, mas também, aquelas encontradas fora da escola como, por exemplo, os problemas sociais. Porém, como o espaço é curto para essa discussão optamos por explicitar a nossa perspectiva de indisciplina escolar a partir das leituras realizadas. Sobre esse assunto sugerimos ver, por exemplo, La Taille (1996), Pappa (2004) e Aquino (2003). Sobre o contrato pedagógico ver Aquino (2003).4. Poucas vezes está descrito no Livro de Ocorrências quem foi a profissional 5. responsável por registrar as informações, mas percebemos que geralmente p.7004 12 tratava-se da diretora substituta ou da inspetora de alunos e alunas. Advertência é uma medida disciplinar de convocação dos pais do aluno 6. envolvido em problemas na escola e suspensão é uma medida em que o aluno fica afastado das atividades escolares de um a dois dias. Mas essa prática contraria o ECA. Embora a professora tenha utilizado a palavra advertência acreditamos que poderia se tratar de uma suspensão visto que o aluno deveria ficar em casa. Referências bibliográficas ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G. (Org.). Relações raciais na escola: reprodução de desigualdades em nome da igualdade. Brasília: UNESCO, INEP, Observatório de Violências nas Escolas, 2006. AQUINO, J. G. A indisciplina e a escola atual. Revista da Faculdade de Educação. v. 24, n. 2, p. 181-204., 1998. AQUINO, J. G. 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