UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FLÁVIO ISMAEL DA SILVA OLIVEIRA AFFORDANCES: A RELAÇÃO ENTRE AGENTE E AMBIENTE MARÍLIA 2005 FLÁVIO ISMAEL DA SILVA OLIVEIRA AFFORDANCES: A RELAÇÃO ENTRE AGENTE E AMBIENTE Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Marília, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Filosofia na Área de Concentração em “Ciência Cognitiva e Filosofia da Mente”. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Tosi Rodrigues MARÍLIA 2005 BANCA EXAMINADORA Titulares: Prof. Dr. Sérgio Tosi Rodrigues (Orientador) – UNESP – Bauru. Profa. Dra. Maria Eunice Q. Gonzalez – UNESP – Marília. Prof. Dr. Umberto Cesar Corrêa – USP – São Paulo. Dedico este estudo àquelas pessoas que, como eu, fizeram escolhas que alteraram profundamente a maneira de verem o mundo e de se verem no mundo. AGRADECIMENTOS O sucesso na realização de um estudo desta natureza depende, além do empenho e da dedicação de quem se aventura fazê-lo, do apoio e da compreensão de algumas pessoas a quem serei eternamente grato: À minha esposa Juliana e ao meu filho Felipe, que se mostraram mestres da compreensão e da paciência, seguem um “muito obrigado” e um pedido de desculpas pela falta de tempo, pelos finais de semana perdidos, pelos feriados que passaram em casa e pelas viagens não realizadas. Aos meus pais Lucia e Paulo e aos meus sogros Maria e Jaime que, além do empenho para que eu pudesse concluir este etapa, souberam preencher um grande espaço no coração e na educação do meu filho. Aos meus irmãos Renato e Rogério, aos meus primos, tios, avós, cunhados e amigos que, através da amizade e compreensão, me ajudaram a suportar este período que, muitas vezes, parecia interminável. Ao Professor e amigo Sérgio Tosi Rodrigues que, além de se mostrar competente e sempre disposto a me orientar, é um exemplo de como se deve comportar um homem. Aos Professores e Alunos do Departamento de Educação Física, que, pela simples convivência e constante apoio, me possibilitam um eterno aprendizado. Aos amigos de trabalho Marlene, Canhoto, Kátia, Carmem e Conceição pelo carinho, amizade e apoio durante o período que precisei me ausentar. Aos meus amigos Juliano, Otávio, Adilson, Odete, Paulão, Orlando e Bel que, além da amizade, me ajudaram a lidar com a minha imensa limitação filosófica. Às Professoras Maria Cândida, Eunice e Mariana, que são algumas das principais responsáveis por eu ver o mundo de uma outra maneira. Sou um privilegiado por estar cercado de pessoas tão especiais. Sem o apoio de vocês não conseguiria. SUMÁRIO Lista de Figuras...................................................................................................... vii RESUMO................................................................................................................ viii ABSTRACT ............................................................................................................ ix INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1 CAPÍTULO I A PERSPECTIVA ECOLÓGICA DE JAMES GIBSON........................................... 6 1.1 Explicação Representacionista da Percepção Visual....................................... 7 1.2 A Perspectiva Ecológica de Gibson ................................................................. 15 1.3 As Estruturas Invariantes ................................................................................. 22 CAPÍTULO II O CONCEITO DE AFFORDANCE ......................................................................... 28 2.1 Definição de Affordance e a Relação Agente-Ambiente.................................. 28 2.2 A Origem do Conceito ...................................................................................... 33 2.3 Affordance e a Noção de Reciprocidade.......................................................... 38 CAPÍTULO III CRÍTICAS À NOÇÃO DE AFFORDANCES ........................................................... 46 3.1 Percepção “Mediada” de Affordances .............................................................. 47 CAPÍTULO IV REFLEXÕES SOBRE A NOÇÃO DE AFFORDANCE ........................................... 55 4.1 Affordances e Eventos ..................................................................................... 55 4.2 Affordances – Propriedades Disposicionais do Ambiente? .............................. 67 4.3 A Existência do Affordance .............................................................................. 75 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 79 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 85 Lista de Figuras Figura 1 – César, segundo a metáfora representacionista ..................................... 12 Figura 2 – A suposta seqüência dos estágios na percepção visual de um objeto de acordo com a Teoria de Processamento de Informação............................................................................................. 13 RESUMO O objetivo deste estudo é analisar o conceito de affordance de James Gibson (1977, 1979/1986) e suas implicações teóricas e filosóficas, principalmente no que se referem às noções de informação e de percepção. Como um organismo visualmente sensitivo, o homem se move para atingir as suas metas e tem grande parte de suas atividades sob controle direto da visão, possibilitando uma interação dinâmica com o meio. Duas perspectivas teóricas para a interação agente-ambiente, baseadas na percepção visual, foram revistas neste estudo – a perspectiva representacionista, que admite que representações mentais são necessárias para a percepção visual, e a perspectiva ecológica, que assume que o ambiente pode ser percebido sem o envolvimento de processos representacionais. De acordo com Gibson, muitas questões sobre como a informação visual é “construída” internamente pelo agente poderiam ser substituídas por questões que tratam das fontes de informação no ambiente, determinantes para o comportamento do agente. O conceito gibsoniano de informação reconcilia dois aspectos da relação agente-ambiente, os inseparáveis conceitos de invariantes e affordances. A noção de invariantes é baseada na idéia de que padrões de energia que estimulam os sentidos contêm informações que especificam o ambiente. O conceito de affordances especificamente faz referência ao agente, expressando as possibilidades de ação oferecidas pelo ambiente. Adicionalmente, o presente estudo discute uma variedade de aspectos relacionados ao conceito de affordances tais como a noção de reciprocidade (animal-ambiente, percepção-propriocepção e percepção-ação), as relações com eventos, sua ontologia e as principais críticas feitas por cientistas cognitivos. Palavras Chaves: percepção visual; perspectiva ecológica; informação; invariantes; affordances; reciprocidade; representação mental. ABSTRACT The purpose of this study is to analyse the James Gibson’s (1979/1986) concept of affordance and its theoretical and philosophical implications, specially those related to the notions of information and perception. As a visually sensitive organism, humans move to reach their goals and have great part of their activities under direct control of the vision, allowing a dynamic interaction with the environment. Two theoretical approaches to the agent-environment interaction based upon visual perception were reviewed in this study – the representationist approach, stating that mental representations are necessary to visual perception, and the ecological approach, assuming that the environment can be perceived without involving representational processes. According to Gibson, many issues regarding to how visual information is internally “built” by agent should be changed to issues regarding to the sources of visual information in the environment, relevant to agent’s behavior. The gibsonian concept of information reconciles two aspects of the relation agent-environment, the inseparable concepts of invariants and affordances. The notion of invariants is based on the idea that patterns of energy that stimulate the senses contain information that specifies the environment. The concept of affordances specifically refers to the agent, expressing possibilities of action offered by the environment. Additionally, the present study discusses a variety of aspects related to the concept of affordances, such as the notion of reciprocity (animal-environment, perception-propriception, and perception-action), the relations with events, its ontology, and its main criticisms by cognitive scientists. Key words: visual perception; ecological perspective; information; invariants; affordances; reciprocity; mental representation. INTRODUÇÃO Este estudo objetiva analisar o conceito de affordance proposto por James Gibson (1979/1986) e suas implicações teóricas e filosóficas, principalmente no que se referem às noções de informação e percepção. Uma das muitas repercussões do aprofundamento da noção de affordance no âmbito da Ciência Cognitiva é que a sua compreensão pode auxiliar no entendimento dos processos de formação de “identidade”1, não somente em seres humanos, mas também em robôs, levando-os a agirem de maneira autônoma. Gonzalez, Broens e Serzedello (2000), que associaram affordance ao conceito de “disposição”, colocam que “dado que pode haver muitas disponibilidades na relação organismo-meio, sua ‘individuação’ pode indicar marcas importantes na formação da identidade dos sistemas” (p. 72). Para as autoras, se houver a preocupação em entender como e porquê os organismos determinam os affordances, “estaremos reunindo as marcas que caracterizam o processo de formação de diferentes identidades” (p. 72). Como um organismo visualmente sensitivo, o homem se move para atingir as suas metas e tem grande parte de suas atividades sob o controle direto da visão, possibilitando uma interação dinâmica com o meio. O sucesso em um dado comportamento reflete o seu preciso envolvimento com o ambiente através da percepção, indicando a relevância da relação percepção-ação para a sua identidade. Nessa interação ele busca informações que lhe permite o controle adequado de suas ações. Tal busca é determinada pelas intenções e limitada pelas capacidades corporais e pelas informações oferecidas pelo ambiente que o envolve. Quanto mais 1 Identidade “constitui um complexo processo de auto-organização que, com o tempo, adquire relativa estabilidade e autonomia na geração de hábitos, formas ou tendências” (GONZALEZ; BROENS; SERZEDELLO, 2000, p. 77). esta relação se aprimora, comportamentos mais compatíveis com as sua metas podem ser observados. Duas perspectivas teóricas têm se destacado nas explicações sobre a interação animal-ambiente baseada na percepção visual – a perspectiva representacionista e a ecológica. A percepção, no entendimento de Michaels e Carello (1981), é a captação de informação útil que possibilita ao agente agir de modo adaptativo sobre o ambiente. Assim, ambas as concepções explicam, de modo distinto, como os animais interagem com o ambiente. A perspectiva representacionista admite que representações mentais e processos cognitivos são necessários para a percepção visual. A noção segundo a qual os estados mentais representam as características do mundo que estão sendo percebidas é central nesta concepção. Por outro lado, a perspectiva ecológica, cujo principal proponente foi James Gibson, defende que as propriedades do mundo são detectadas sem processos cognitivos abstratos, admitindo uma interação não mediada por representações mentais. Para Gibson (1979/1986), muitas questões sobre como a informação é “construída internamente” pelo percebedor poderiam ser substituídas por questões que tratam das fontes de informação no ambiente. De acordo com a perspectiva gibsoniana, o ambiente disponibiliza informações suficientes para a necessidade do agente. Nesse sentido, é fundamental para Gibson entender quais informações disponíveis para o agente são efetivamente percebidas e contribuem para a regulação de suas atividades. A concepção gibsoniana de informação concilia dois aspectos da relação agente-ambiente; os conceitos indissociáveis de invariantes e affordances expressam, respectivamente, “informação-sobre” o ambiente e “informação-para” o animal. O primeiro conceito é baseado na idéia de que padrões de energia que estimulam os sentidos contêm informações que especificam o ambiente. O segundo conceito, que é central neste estudo, faz referência específica ao agente, expressando as possibilidades de ação que o ambiente lhe oferece. Gibson (1979/1986) descreve o ambiente como “the surfaces that separate substances from the medium in which the animals live”2 (p. 127) e afirma que o ambiente affords3 o animal. São exatamente as possibilidades oferecidas pelo ambiente a um agente particular, disponíveis nas invariantes, que o autor denominou affordances. Superfícies possibilitam locomoção, alguns objetos possibilitam manuseio e outros animais possibilitam interações sociais. Assim, quando um agente percebe as superfícies, os objetos e outros animais, ele percebe affordances. Apesar de parecer um conceito simples, affordance envolve questões que necessitam de aprofundamento, como as reciprocidades animal- ambiente, percepção-propriocepção e percepção-ação. Além destas questões, outras tornam-se relevantes: durante a percepção de affordances é necessária a utilização de imagens “armazenadas” em nossa memória e do processamento representacional defendido pelos teóricos representacionistas da percepção? Como a proposta gibsoniana, em geral, e o conceito de affordance, em específico, minimizariam o abismo cartesiano entre matéria e mente? No sentido de alcançar o objetivo proposto, no primeiro capítulo são apresentados alguns dos principais pontos da proposta ecológica de Gibson (1979/1986). Na primeira seção é destacada, de maneira crítica, a maneira “indireta” que a perspectiva representacionista explica a percepção visual. Na segunda seção 2 Tradução nossa: “as superfícies que separam as substâncias do meio no qual os animais vivem”. 3 De acordo com Gibson (1979/1986), o verbo to afford é encontrado no dicionário (proporcionar, propiciar, fornecer), mas o substantivo affordance não. Gibson deu significado próprio ao termo, referindo-se à complementaridade existente entre o animal e o ambiente. são destacadas as idéias não representacionistas de Gibson, que caracterizam a maneira imediata que o agente se relaciona com o seu ambiente. Nesta seção foi dada ênfase ao conceito de informação. A compreensão da interação animal-ambiente, como defendeu Gibson (1979/1986), envolve necessariamente os conceitos de invariantes e affordances. No sentido de complementar o conceito gibsoniano de informação, na terceira seção é tratada a noção de invariantes, permitindo a compreensão de como estes padrões de estimulação estão vinculados ao ambiente e disponíveis para serem captados pelo agente. No segundo capítulo é tratado o aspecto da informação relativo ao agente, denominado de affordance, que é um conceito fundamental na perspectiva ecológica. Na primeira seção deste capítulo o termo é conceituado de acordo com a proposta original de Gibson (1979/1986). Para compreender a evolução do pensamento de Gibson e as contribuições que o levaram à elaboração do conceito de affordance, na segunda seção do capítulo são apontados aspectos e discussões que podem ter colaborado para a gênese do conceito. Como a definição de affordance relaciona observador e ambiente, na última seção deste capítulo é dada ênfase à noção de reciprocidade (animal-ambiente, percepção-propriocepção e percepção-ação), que, segundo Lombardo (1987), é a idéia chave da psicologia ecológica de Gibson. Por Gibson explicar a percepção como “captação direta de propriedades invariantes”, alguns cientistas cognitivos combatem as principais idéias da perspectiva ecológica. No sentido de apontar as principais críticas, no terceiro capítulo são destacados aspectos da perspectiva gibsoniana combatidos por cientistas cognitivos (e.g., Fodor e Pylyshyn, 1981), principalmente no que dizem respeito à percepção de affordances. Com a pretensão de apontar as discussões complementares ao conceito, a discussão sobre affordances é, no quarto capítulo, desenvolvida com base em interpretações e reformulações de outros autores. Na primeira seção do capítulo são discutidos pontos levantados por Stoffregen (2000a, 2000b, 2003a): uma teoria que prediz a percepção de affordances prediz a percepção de eventos? Se affordances e eventos podem ser percebidos, como se relacionam? Na segunda seção, alguns estudiosos (e.g., Turvey, 1992; Turvey et al., 1981) defendem a hipótese que affordances são propriedades disposicionais do ambiente que devem ser complementadas pelas efetividades do animal; para outros (e.g., Chemero, 2003; Stoffregen, 2003b) affordances são relações. Desta forma, affordances são propriedades do ambiente ou são propriedades emergentes da interação animal- ambiente? A terceira e última seção deste capítulo analisa a afirmação de Gibson (1979/1986) segundo a qual affordances existem independentemente da percepção do agente, conduzindo a uma discussão ontológica do conceito. Considerando que o objetivo principal deste estudo é a análise do conceito de affordance, a última parte aponta as considerações finais, possibilitando um posicionamento em relação ao conteúdo desenvolvido. CAPÍTULO I A PERSPECTIVA ECOLÓGICA DE JAMES GIBSON Entre as diversas perspectivas que discutem a relação animal- ambiente com base na percepção visual, duas delas estão em evidência no presente estudo – a perspectiva representacionista e a perspectiva ecológica de Gibson (1979/1986). Por um lado, centrada na tradição representacionista, a Teoria de Processamento de Informação “emphasizes the inferential and constructive nature of perception”4 (BRUCE; GREEN, 1990, p. 375). Por outro lado, a perspectiva ecológica defende que a “perception involves the direct pick-up of information”5 (p. 375). Há diferenças profundas entre as noções de percepção destas duas vertentes. Nas teorias inferenciais, o significado do mundo surge dentro do agente, apoiado em suas interações com o ambiente, resultando em uma percepção significante (CHEMERO, 2003). Na concepção de Gibson (1979/1986), a percepção não é vista como um estado mental isolado do mundo físico. Diferentemente, o seu significado não depende de inferências e encontra-se na interação entre agente e ambiente – o agente simplesmente obtém informação do ambiente, que está carregado de significado específico para o agente em questão (CHEMERO, 2003). Apesar de inúmeras diferenças, há, mesmo assim, características comuns às duas vertentes. Michaels e Carello (1981) consideram que ambas perspectivas objetivam explicar a riqueza, a variedade e a precisão com as quais o agente conhece o seu mundo. A partir de um ponto de vista filosófico, Bruce e Green (1990) apontam que essas perspectivas defendem a hipótese de que o agente está 4 Tradução nossa: “enfatizam a natureza inferencial e construtiva da percepção”. 5 Tradução nossa: “percepção envolve a captação direta de informação”. constantemente em contato sensorial com o mundo real, e que, através da percepção, esse mundo pode ser revelado. As duas vertentes aceitam que a percepção visual é mediada pela luz refletida pelas superfícies e objetos no mundo, sendo necessário algum tipo de sistema fisiológico na captação desta energia. Michaels e Carello (1981) afirmam que “the routes taken to explanation [of the relation animal-environment] may be different, but the goal […] is to account for the fact that animals perceive their surrounds sufficiently to guide [their] actions”6 (p. 1). Enquanto na perspectiva representacionista o percebedor é visto como responsável pela “construção” do mundo em que vive (GREENO, 1994), a informação visual, na perspectiva gibsoniana, pode ser fornecida por padrões de alta-ordem disponíveis ao agente, que se move naturalmente pelo ambiente (HOLYOAK, 1999). Assim, o pensamento de Gibson evoluiu da concepção de percepção como codificação das características do ambiente, que é ainda prevalente na Psicologia e na Filosofia, para a perspectiva segunda a qual a percepção é resultante da interação direta entre o agente e o ambiente (BICKHARD; RICHIE, 1983). Para possibilitar uma análise mais completa da relação animal- ambiente, torna-se necessária uma breve apresentação crítica da proposta representacionista da percepção, combatida por Gibson. 1.1 Explicação Representacionista da Percepção Visual Durante os séculos XVII e XVIII, alguns estudiosos (e.g., Descartes) fizeram descobertas sobre a fisiologia do olho. Pelas explicações, o ponto de partida 6 Tradução nossa: “os caminhos que levam à explicação [da relação animal-ambiente] podem ser diferentes, mas a meta é considerar o fato que animal percebe suficientemente seus meios circundantes para guiar [suas] ações”. para a visão está na retina, que, por captar imagens bidimensionais, não transmite todas as qualidades perceptíveis do mundo (BRUCE; GREEN, 1990). Dessa forma, Descartes (1999) entende que há um órgão, no qual as informações dos cinco sentidos são integradas. Tal hipótese é baseada na idéia de que a mente recebe informação do corpo e inicia movimentos na glândula pineal7, que recebe informações através dos nervos e, após a integração dos dados na glândula em um único sinal, o conhecimento ocorre (COTTINGHAM, 1995). Segundo o autor, Descartes argumenta a necessidade da existência de tal glândula por acreditar que haveria um local em que as duas imagens que chegam através dos dois olhos se juntariam e formariam uma única imagem – “a consciência sensorial tem lugar quando a alma ‘inspeciona’ uma imagem que está literalmente impressa na glândula” (p. 74). Descartes (1999), desse modo, concebe a alma como um “eu” dentro da cabeça, que tem como função, dar sentido às imagens captadas. Para Cottingham (1995), Descartes defende a hipótese de uma alma que habita a glândula pineal e tem como função inspecionar as imagens apresentadas a ela. Este modelo de homúnculo é ilustrado por Descartes (1999), através da seguinte passagem: [...] se observarmos um animal vir em nossa direção, a luz refletida de seu corpo cria duas imagens dele, uma em cada um de nossos olhos, e essas duas imagens formam duas outras, mediante os nervos ópticos, na superfície interior do cérebro defronte às suas 7 Descartes (1999) escreve em “As Paixões da Alma” (Art. 31) que “é preciso outrossim saber que, apesar de a alma estar unida à totalidade do corpo, existe nele alguma parte em que ela exerce suas funções mais diretamente do que em todas as outras [...]. Porém, [...] parece-me haver percebido com clareza que a parte do corpo em que a alma exerce diretamente suas funções não é de maneira alguma o coração, nem o cérebro todo, mas apenas a mais inteligente de suas partes, que é uma determinada glândula muito diminuta, situada no meio de sua substância” (p. 124). concavidades; em seguida, por meio dos espíritos [animais]8 que preenchem suas cavidades, essas imagens irradiam de tal forma para a diminuta glândula envolvida por esses espíritos [...] por meio do que as duas imagens existentes no cérebro compõem apenas uma única na glândula, a qual, agindo diretamente contra a alma, possibilita-lhe ver a figura desse animal. (p. 127) Esta explicação aponta os mecanismos que funcionam no cérebro quando há estímulos causados por objetos externos. Nesse sentido, Descartes (1999) descreve a maneira que os nervos ópticos são acionados e a maneira que as imagens são formadas na glândula pineal. Embora a fisiologia da visão devesse se basear em estímulos transmitidos pelos objetos, Descartes coloca que uma explicação ideal envolve mais que a fisiologia, ou seja, “é a alma que vê, não o olho; e não vê diretamente, mas somente por meio do cérebro” (COTTINGHAM, 1995, p. 102). Segundo Cottingham, a explicação cartesiana do processo de percepção sensorial envolve a presença, na mente, de representações de imagens, signos e palavras. Assim, a hipótese cartesiana sugere que o que se tem “é algum tipo de representação codificada que permite certos traços de um objeto serem mapeados na superfície interior do cérebro; a configuração [...] corresponderá [...] à estrutura do objeto original” (p. 81). Dessa forma, a hipótese representacionista, de um ponto de vista crítico, além de assumir que “the senses are provided with an impoverished description of the world”9 (MICHAELS; CARELLO, 1981, p. 2) e que “the input does 8 Quando Descartes se refere aos espíritos, tal como no contexto acima, ele se refere ao que denominou de “espíritos animais”. Em “As Paixões da Alma”, Descartes (1999) coloca que todos os movimentos dos músculos e dos sentidos “dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que provêm do cérebro e contêm, como ele, certo ar ou vento muito tênue que denominamos espíritos animais” (p. 109). Segundo Cottingham (1995), “apesar do nome um tanto enganador, os ‘espíritos animais’ cartesianos [...] desempenham o papel hoje atribuído aos impulsos neuro-elétricos: são os veículos de transmissão de informação no sistema nervoso” (p. 61). 9 Tradução nossa: “os sentidos são munidos com uma descrição empobrecida do mundo”. not provide accurate or complete information about objects and events”10 (p. 2), reflete a noção de que os estímulos recebidos devem ser processados através de operações cognitivas, devendo o agente interferir construtivamente no input. Como as imagens retinais são insuficientes, torna-se necessário o auxílio da memória na reorganização dessas imagens, transformando-as em imagens tridimensionais (MICHAELS; CARELLO, 1981; PICK Jr.; PICK, 1999). Para Bruce e Green (1990), “[…] the world of objects and surfaces that we see must be reconstructed by piecing together more primitive elements […]11 (p. 378). O objeto não se refere ao estímulo emitido e o seu significado é dado pelo agente; a sua natureza vai além do estímulo e da informação contida na retina (BRUCE; GREEN, 1990; MORAIS, 2000). O fato de o input ser empobrecido e a qualidade do ambiente ser dada, em parte, pelo agente, as informações fornecidas pelos sentidos são limitadas (MORAIS, 2000). Então, “as a single sensation cannot identify an object, sensations must be added together with the memory images associated with them”12 (MICHAELS; CARELLO, 1981, p. 3). De acordo com esta explicação, a informação considerada pura, conduzida pelo nervo óptico, necessita do “detalhe direto necessário para especificar os objetos no campo visual e especificar o tipo de resposta pelo observador” (RODRIGUES, 1994, p. 12). O reconhecimento de determinado objeto está associado à comparação entre a informação sensorial corrente ou atual e a informação armazenada na memória, invocando “a necessidade de representação central como uma característica essencial para a coerência desta teoria de percepção visual” (p. 13). 10 Tradução nossa: “o input não provê uma informação precisa ou completa sobre objetos e eventos”. 11 Tradução nossa: “[...] o mundo de objetos e superfícies que vemos, deve ser reconstruído compondo elementos mais primitivos [...]”. 12 Tradução nossa: “como uma simples sensação não pode identificar um objeto, sensações devem ser adicionadas em conjunto com as imagens da memória associadas com elas”. São vários os sentidos do termo representação. Para Bruce e Green (1990), este se refere a qualquer representação simbólica do mundo associado ao passado (memória), como ele é agora (descrição estrutural) ou como poderia ser no futuro (imaginário). No sentido especificado por Holyoak (1999) e Morais (2000), as representações, que são estruturas simbólicas organizadas segundo regras ou imagens, se combinariam e gerariam percepções e pensamentos no sentido de guiar as ações. Segundo Gibson (1979/1986), há várias metáforas que sugerem os modos nos quais os inputs sensoriais são processados para que ocorra a percepção. Na sua maneira de entender a explicação representacionista da percepção visual, Gibson aponta que o agente, ao interagir de maneira dinâmica com o ambiente que o circunda, fixa vários pontos formando imagens destes pontos, que são enviadas ao cérebro. Como o período de exposição é relativamente longo, o olho coloca os padrões que estão sendo expostos em uma seqüência de “instantâneos”13. Assim, Gibson faz uma analogia da visão com a exposição de um filme de uma câmera fotográfica, de tal forma que, o que cérebro adquire é uma seqüência de “agoras”. Com a revolução na informação tecnológica na década de 1960, foi criada, segundo Bruce e Green (1990), uma nova metáfora: a informação dos sentidos é processada tal como no computador. Segundo Holyoak (1999), a percepção implica na “ability to acquire and process information about the environment in order to select actions that are likely to achieve the fundamental goals of survival and propagation”14. Tal codificação sensorial, armazenagem e recuperação da informação se dão através de modelos computacionais (BRUCE; 13 Texto original: “snapshots”. 14 Tradução nossa: “habilidade para adquirir e processar informação sobre o ambiente na ordem para selecionar ações que são prováveis para alcançar as metas fundamentais de sobrevivência e reprodução”. GREEN, 1990). De acordo com esta perspectiva, o homem visualiza um objeto, uma superfície, um lugar, um evento ou um animal e os “compara” com as suas representações internas. A Figura 1, através da metáfora do processamento de informação, mostra o processamento de inputs sensoriais. De acordo com a figura, o sujeito vê uma águia; a luz refletida da águia é captada e processada; tal imagem sofre alterações e transformações até a resposta verbal “águia”. Figura 1. César, segundo a metáfora representacionista (MATURANA; VARELA, 2002). (A utilização da imagem foi autorizada pela Editora Phalas Athena). Gibson (1979/1986) afirma que teorias como a de processamento de informação defendem que as sensações ocorrem primeiro, a percepção ocorre depois e o conhecimento ocorre por último – uma progressão dos mais baixos aos mais altos processos mentais. O primeiro processo é resultado da entrada dos inputs sensoriais; o segundo processo refere-se à organização dos inputs sensoriais, agrupando os elementos em padrões espaciais; os processos subseqüentes são altamente especulativos, como operações mentais, resoluções de problemas ou processos análogos à decodificação de sinais. No entanto, em todos esses processos, a experiência passada é necessária para dar “suporte” aos inputs recebidos, que se “fundem” às memórias. A Figura 2 mostra um fluxograma dos estágios de processamento envolvidos na percepção visual. Consciência completa do objeto e seu significado Várias operações na imagem sensorial Imagem no cérebro Imagem retinal Objeto Figura 2. A suposta seqüência dos estágios na percepção visual de um objeto de acordo com a Teoria de Processamento de Informação. Adaptado de Gibson (1979/1986, p. 252). Assim, por explicar a visão como “computação” de descrições da imagem, a teoria de Marr (1982) caracteriza a visão como um processo de descoberta do que está presente no mundo e considera que o cérebro deve, de alguma forma, representar esta informação. Embora seja posterior à proposta de Gibson (1979/1986), a teoria de Marr, por ultrapassar os limites entre a fisiologia, psicologia e inteligência artificial, é considerada uma das que melhor explica a teoria do processamento de informação (BRUCE; GREEN, 1990). De acordo com a proposta de Marr (1982), há três níveis de processamento de informação em sua teoria computacional da visão que explicam o que está sendo computado e porquê. O primeiro nível, denominado de computacional, é responsável pelo mapeamento da informação. O nível intermediário, denominado de representacional ou algorítmico, diz respeito à escolha da representação e do algoritmo a ser utilizado na transformação de uma representação em outra. Já o terceiro nível, denominado de implementacional, corresponde aos detalhes de como as representações e os algoritmos são efetuados fisicamente. No primeiro nível, Bruce e Green (1990) entendem que as descrições seriam computadas, no segundo nível seria formado o algoritmo do input e output e, no terceiro nível, o algoritmo seria utilizado em um nível neural e computacional. Do ponto de vista de Rodrigues (1994), o nível computacional corresponde à capacidade de especificar a tarefa que o sistema visual deve completar; o nível algorítmico determina o processamento da informação disponível na retina e o implementacional trata da “descoberta de mecanismos neurais (fisiológicos) que levam os algoritmos para a função” (p. 14). Segundo Marr (1982), o estudo da visão não deve apenas ater-se à extração de aspectos relevantes do mundo, mas à formação e captura de representações internas, tornando-as disponíveis para servirem de base para a interação com o ambiente. Para exemplificar, Bruce e Green (1990) utilizam o reconhecimento de um objeto quando uma das descrições derivadas da imagem é comparada com a imagem que está armazenada, transformando-a em outra representação. Assim, a percepção visual é entendida como uma tarefa de processamento de informação. Para Rodrigues, além das informações captadas do ambiente serem analisadas e elaboradas cognitivamente, os resultados desta “computação” são utilizados na seleção e execução das ações. O processamento de informação possibilita a transformação de inputs sensoriais em outputs motores. Para Marr (1982), tal modelo pode auxiliar na compreensão não somente da percepção visual, mas de qualquer outro processo, tornando-se uma hipótese para a explicação da maneira na qual a informação é representada e processada pelos animais. 1.2 A Perspectiva Ecológica de Gibson Segundo os proponentes da perspectiva representacionista, o input sensorial se agrupa com as imagens armazenadas na memória formando uma determinada classe, tipo, esquema ou conceito, gerando um novo input (GIBSON, 1979/1986). Nesta perspectiva, de acordo com a crítica gibsoniana, a percepção nada mais é do que um processamento de inputs. No entanto, quando Gibson (1979/1986) propôs uma explicação para a percepção visual, ele considerava improvável que a visão pudesse ser compreendida como uma sucessão de snapshots, ou que simplesmente funcionasse como uma câmara fotográfica que registra rapidamente uma sucessão de imagens. Lombardo (1987) e Pick Jr. e Pick (1999) consideram que Gibson desafiou teóricos empiristas e inatistas ao afirmar que há informação suficiente disponível para a percepção, não sendo necessária a complementação de experiências passadas ou de operações mentais inatas, tal como defendem o empirismo e o inatismo, respectivamente. De acordo com a explicação empirista, a percepção é construída através de processos de aprendizagem por associação. Em contraste, para os inatistas, os conhecimentos espaciais e temporais são inatos ou dados “divinamente” (BRUCE; GREEN, 1990). Em síntese, ambas teorias compartilham a idéia de que a mente “contribui” durante a percepção visual (LOBARDO, 1987). Ao contrário dos representacionistas, os teóricos que aderem à idéia de percepção sem representação não depreciam a riqueza da experiência perceptual (MICHAELS; CARELLO, 1981). A riqueza é reconhecida e está no próprio estímulo e não na elaboração através de processos cognitivos – “a precise specification of the nature of objects, places and events is available to the organism in the stimulation”15 (p. 9). O próprio estímulo especifica o ambiente e para isso nenhuma elaboração é necessária. A hipótese segundo a qual a informação visual não necessita de complementação no sentido destacado na seção anterior, faz com que a percepção visual seja considerada “direta”. Nesta perspectiva, as propriedades do mundo podem ser detectadas sem processos “cognitivos” de inferência, interpretações e julgamento (BRUCE; GREEN, 1990). Para Morais (2000), há uma interação direta, emergente e não mediada por representações entre o organismo e o meio externo. Na perspectiva gibsoniana, as imagens retinais, as neurais ou as mentais podem ser excluídas do processo perceptivo, pois as percepções são “recognized as being very rich, elaborate, and accurate”16 (MICHAELS; CARELLO, 1981, p. 2). A percepção aqui analisada é uma conseqüência de leis naturais que coordenam a relação sujeito-ambiente, e não um processo psicológico. Como destacado, Gibson (1979/1986) defende a hipótese de que a informação ambiental é rica e suficiente para a percepção. Neste sentido, torna-se necessário o entendimento do conceito gibsoniano de “informação”, que é central para a compreensão da atividade humana e suas relações com o meio ambiente, com referência especial aos processos de percepção, cognição e ação. 15 Tradução nossa: “uma especificação precisa da natureza de objetos, lugares e eventos está disponível para o organismo no estímulo”. 16 Tradução nossa: “reconhecidas como sendo muito ricas, elaboradas e precisas”. Segundo Gibson (1979/1986), a definição de informação mais comum vem das experiências de comunicação entre pessoas, através da transmissão de mensagens, signos e sinais. Este conceito de informação foi proposto por Claude Shannon em 1949, em sua Teoria Matemática da Comunicação, para resolver o problema da reprodução exata em um ponto de uma mensagem originada em outro ponto (SHANNON, 1975). Este sistema de comunicação é composto por uma fonte de informação, um transmissor, um canal de transmissão, um receptor e um destino. A fonte de informação seleciona, dentro de um grupo de possíveis mensagens, a mensagem desejada; o transmissor transforma a mensagem da fonte de informação em sinais, que são enviados por um canal de comunicação; o receptor faz o papel inverso do transmissor, transforma novamente o sinal transmitido em mensagem e o envia ao seu destino, que é a pessoa ou coisa a quem se deseja alcançar através das mensagens transmitidas. Para ilustrar, Weaver (1975) faz a seguinte analogia: “Quando falo com você, meu cérebro é a fonte de informação e o seu é o destino; meu sistema vocal é o transmissor e o seu ouvido e nervo óptico, associados, constituem o receptor” (p. 8). Shannon também define uma medida da quantidade de informação que pode ser transmitida utilizando um determinado código (FLÜCKIGER, 1995). Embora a informação possa ser medida em caracteres, na teoria da informação a unidade de medida é bit17, que está associada à noção de redução de incertezas na comunicação (COVER; THOMAS, 1999; GIBSON 1979/1986; SHANNON, 1975; TOURETSKY, 2002; WEAVER, 1975). Apesar de psicólogos tentarem explicar o funcionamento dos 17 Esta palavra foi sugerida por John W. Tukey e é abreviação de binary digit (dígito binário) (WEAVER, 1975). sentidos em termos de bits e de alguns neuropsicólogos argumentarem que os impulsos nervosos funcionam desta forma, o conceito de informação nesses moldes, para Gibson (1979/1986), não procede. A definição de informação de Shannon pode ser ideal para as conexões telefônicas e transmissões de rádio, mas não parece apropriada para lidar com a maneira imediata pela qual Gibson estabelece a percepção do indivíduo no mundo. Para Gibson, a informação disponível para a percepção não pode ser interpretada como um conhecimento comunicado ao recebedor e nem mensurada como Shannon propôs. A captação de informação não pode ser descrita nestes termos – “the assumption that information can be transmitted and the assumption that it can be stored are appropriate for the theory of communication, nor for the theory of perception”18 (p. 242). Segundo Lombardo (1987), sinais, como palavras, estão relacionados a fatos do mundo devido às convenções feitas pelos homens. Estes sim requerem mediações. Bickhard e Richie (1983) destacam que os padrões de luz do ambiente são informações, pois constituem e fornecem conhecimento. A questão é se podem ser codificados ou comunicados para serem acessados ou se há outras alternativas. Segundo Gibson (1979/1986), pensa-se a informação como sendo enviada e recebida, assumindo algum tipo intermediário de transmissão. Em contraste, a informação para a percepção não é transmitida e nem requer emissor – o ambiente não se comunica com o observador no modo que os animais se comunicam com as suas espécies. A informação disponível no ambiente não é transmitida por um canal. Para Gibson (1969; 1979/1986), não há um “remetente” fora da cabeça e nem um recebedor dentro dela. A informação é exterior ao agente e está disponível e não necessita ser interpretada. A percepção, em Gibson, é 18 Tradução nossa: “o pressuposto que a informação pode ser transmitida e o pressuposto que ela pode ser armazenada, são apropriados para teoria da comunicação, mas não para teoria da percepção”. específica ao ambiente sem a necessidade de associações ou mediações. Entre as próprias teorias da percepção não existe consenso quanto à natureza da informação. Para Gibson (1969), há dois significados diferentes no estudo da visão – a informação input sensorial e a informação no arranjo óptico. Na informação input sensorial, a informação é baseada em sinais aferentes que, através de receptores19, chegam ao cérebro. Assim, a informação consiste de impulsos nas fibras dos nervos ópticos20. Para entender essa colocação, é necessário compreender a distinção entre estimulação e informação do estímulo21. Se o observador ocupa uma posição onde há luz ambiente, parte desta luz é absorvida e atua como estimulação. Esta hipótese é tradicionalmente considerada a base para a percepção visual. A questão que Gibson (1979/1986) destaca é que este estímulo, não necessariamente contém informação. Para que o estímulo contenha informação, a luz ambiente tem que ser estruturada. O que seria, então, luz ambiente estruturada? Gibson (1979/1986) ilustra a ausência de estrutura como falta de diferença de intensidade e direção da luz radiante a partir de um ponto de observação, tal como em uma densa névoa ou em um ambiente homogeneamente escuro. Dessa forma, luz ambiente com estrutura seria um campo com diferenças de intensidade em diferentes partes. Para que haja estrutura, o ambiente não pode ser homogêneo. O termo utilizado por Gibson na descrição da luz ambiente com 19 Receptores são específicos na detecção de certas formas de energia. Os receptores da visão são denominados fotorreceptores ou fotoceptores e são sensíveis a estímulos luminosos. Em vertebrados formam o complexo órgão receptor da visão. Sua morfologia é especializada na “captação de radiação eletromagnética [...] na formação de imagens” (LENT, 2001, p. 176). 20 Para a estimulação dos fotorreceptores, a energia a ser absorvida deve exceder o limiar do receptor para que possa ocorrer a transdução (GIBSON, 1979/1986), que, por sua vez, “consiste na absorção da energia do estímulo seguida da gênese de um potencial biolétrico lento” (LENT, 2001, p. 179). Segundo o autor, os tipos de transdução são determinados pelos tipos de receptores. Assim, os fotorreceptores realizam transdução fotoneural ou fotoelétrica. 21 Antes, porém, é necessário mostrar a diferença entre luz radiante e luz ambiente. Resumidamente falando, a luz radiante parte de uma fonte de energia (e.g., sol ou lâmpada) e causa iluminação. A luz ambiente é o resultado da iluminação e converge a um ponto de observação. Esta pode ser entendida pela luz que circunda um determinado ponto, em um espaço ocupado pelo observador (GIBSON, 1979/1986). estrutura é “arranjo óptico do ambiente”. A informação no arranjo óptico está na luz22 e não em impulsos nervosos (GIBSON, 1969). O arranjo óptico envolve a projeção a partir de um ponto de observação23 e não tem relação com a comunicação nos moldes de Shannon, pois o fato da informação visual passar pelo sentido da visão não significa dizer que é transmitida por fibras nervosas através de algum tipo de código sensorial. A informação não é exatamente uma luz que ativa os fotorreceptores, ela está na luz que ativa o sistema; a informação pode ser entendida como uma especificação do ambiente e não como uma especificação dos receptores do percebedor – “The qualities of objects are specified by information; the qualities of the receptors and nerves are specified by sensations”24 (GIBSON, 1979/1986, p. 242). Assim, a informação pode ser entendida como um padrão que especifica o ambiente para o agente e, por ser extrínseca ao agente, a informação é alguma coisa a ser explorada e está na luz e não é dada ou recebida, ela está disponível para ser captada pelo agente. Ao analisarem a obra gibsoniana, Lombardo (1987) e Rogers (2000) interpretam informação em termos espaços-temporais relacionados ao agente e ao ambiente; a informação une o agente e seu ambiente e especifica ambos, pois envolve estrutura que, por sua vez, envolve relações. Para Michaels e Carello (1981), a informação pode ser entendida como uma seta bi-direcional que aponta, de um lado, para o ambiente e, de outro lado, para o agente, sendo a ligação entre o conhecedor e o conhecido – quando se fala em informação, na perspectiva 22 O termo “luz” apresenta diferentes significados em diferentes ciências. Apesar da ciência da luz e a ciência da visão serem denominadas de Óptica, livros e textos que tratam do assunto, não apontam as diferenças. A óptica ecológica que Gibson (1979/1986) defende está centrada na informação disponível para a percepção e difere da óptica física, geométrica e fisiológica. 23 Gibson (1979/1986) indica que o “ponto de observação” é um lugar que pode ser ocupado por um observador, ou o lugar onde a ação de observar é realizada. 24 Tradução nossa: “As qualidades dos objetos são especificadas pela informação; as qualidades dos receptores e nervos são especificadas pelas sensações”. ecológica, refere-se ao agente e ao percebido25. Outro aspecto característico do conceito de informação no âmbito da perspectiva ecológica é dado por Michaels e Carello (1981). O fato de o arranjo óptico prover informação para os animais em relação às posições que ocupam no ambiente e às posições de objetos e outros animais em relação a eles, faz com que as autoras considerem que só tem sentido caracterizar as estruturas ópticas como informação, se os animais forem sensíveis a elas. If a small mammal is hiding in a room, the heat it radiates will identify its location. That is, the thermal structure of the room specifies the location of the animal. This energy pattern is not information to human beings because biologically we are not equipped to detect that information [...] rattlesnakes are sensitive to such information […]26. (p. 38) A radiação ultravioleta, segundo as autoras, que indica a direção do néctar das flores, também não pode ser considerada informação para seres humanos, pois estes, diferentes das abelhas, não são sensíveis a este padrão de energia. Assim, algumas estruturas são informações para alguns animais, mas não para outros. Além da necessidade de possuir um aparato biológico para captar as informações provenientes do ambiente, Michaels e Carello consideram importante destacar que a estrutura que especifica o ambiente só pode ser considerada informação se for de alguma utilidade para o agente. Para a estrutura constituir informação, ela deve ser relevante para alguma possível ação do organismo (ROGERS, 2000). 25 Esse tipo de interação conduz ao que Gibson (1979/1986) classificou como reciprocidade, que será tratada no próximo capítulo. 26 Tradução nossa: “Se um pequeno mamífero está escondido em uma sala, o calor que ele irradia identificará sua localização. Isto é, a estrutura térmica da sala especifica a localização do animal. Este padrão de energia não é informação para seres humanos porque biologicamente não são equipados para detectarem esta informação [...] cascavéis são sensíveis a tais informações [...].” Além dessas características do conceito de informação, Gibson, em seu livro “The Senses Considered as Perceptual Systems” de 1966, aponta que há dois tipos de informação: “informação sobre”, que permite a “percepção de”, e informação como estrutura que permite discriminação. Porém, em seu livro “The Ecological Approach to Visual Perception” de 1979/1986, Gibson parece reformular essa divisão, afirmando que a informação apresenta dois aspectos inseparáveis – “informação sobre” o ambiente, denominada de invariantes e “informação para” o agente, denominada de affordances27. De acordo com Varela, Thompson e Rosch (1991), as invariantes estão relacionadas à existência de informação suficiente no ambiente que o especifica diretamente, sem intermediação representacional, e os affordances28 dizem respeito às propriedades significativas do ambiente que são consistentes com as possibilidades comportamentais. Para Michaels e Carello (1981), se não forem considerados necessariamente estes dois pólos da informação – “information ‘about’ an environment ‘for’ an animal”29 (p. 38) –, perde-se a essência do conceito de informação. 1.3 As Estruturas Invariantes Como já visto, a perspectiva ecológica da percepção se baseia na idéia de que os padrões de energia que estimulam os sentidos contêm informações suficientes para especificarem o ambiente. Assumir que o input sensorial não necessita ser enriquecido é assumir que, no caso da visão, a luz para os olhos está 27 As definições de informação apresentadas por Gibson nas duas obras mostram claramente a evolução em seu pensamento. Quando, em 1979/1986, o autor se refere à “informação-sobre”, percebe-se a união dos dois tipos de informação apresentados na obra de 1966, pois ambos referem-se à estrutura do ambiente para o animal. 28 Nesta obra, os autores traduzem affordances como “concessões”. 29 Tradução nossa: “informação ‘sobre’ um ambiente ‘para’ um animal”. única e invariantemente vinculada às suas fontes (MICHAELS; CARELLO, 1981). Esta especificação é determinada através do conceito de invariantes. Gibson (1979/1986) afirma que as noções de invariância e variância estão relacionadas, respectivamente, à persistência e à mudança no ambiente. Há variantes e invariantes em qualquer transformação, na qual algumas propriedades são conservadas e outras não. Gibson afirma que, apesar de não apresentarem o mesmo significado em algumas áreas, é certo que invariantes e variantes são conceitos recíprocos30 e um é detectado através do outro, o que requer a hipótese de que as invariantes estão relacionadas às mudanças no arranjo óptico. Para Gibson, há quatro fatores que podem influenciar as mudanças no arranjo óptico, determinando assim, as invariantes. O primeiro fator diz respeito à iluminação. A luz recebida por um objeto, independentemente da fonte, pode oscilar, por exemplo, em quantidade e direção. O segundo fator é descrito através da alteração do ponto de observação. No caso de humanos, a disparidade ocasionada pelos dois olhos e o movimento da cabeça provocam diferenças nos pontos de observação. Algumas das mudanças do arranjo óptico se devem à ação conjunta desses fatores, que podem, através da oclusão e sobreposição de imagens, provocar “ganhos” e “perdas” das formas percebidas. O terceiro fator está relacionado à amostragem do arranjo óptico do ambiente. O que Gibson denomina de “olhar ao redor”31 envolve grande alcance do campo visual dentro do arranjo completo, de um lado para o outro, com sobreposições sucessivas. A persistência do ambiente, a coexistência de suas partes e a simultaneidade de eventos são captadas em conjunto pelo sistema visual. 30 Esta reciprocidade já era central no tratamento da estrutura do estímulo dado por Gibson em sua obra de 1950, intitulada The Perception of the Visual World e continuou tendo a mesma importância em sua teoria ecológica, através de estudos realizados a partir do final da década de 1960 (LOMBARDO, 1987). 31 Texto Original: “looking around”. Assim, pode-se presumir a estrutura comum em todas as amostras, que pode ser caracterizada como invariante32. No quarto fator, Gibson destaca os distúrbios e rotações que ocorrem em objetos e superfícies mais flexíveis. Cada evento produz alterações específicas da estrutura óptica, independentemente do seu tipo (e.g., uma bola rolando ou a ondulação da água). No entanto, a bola e a água possuem certas características que, independentemente do evento, não sofrem alterações. Nota-se que, nos quatro tipos de alterações que o arranjo óptico pode sofrer, há propriedades que permanecem invariantes – apesar das influências destes fatores, “the flow of the array does not destroy the structure beneath the flow”33 (GIBSON, 1979/1986, p. 310). Michaels e Carello (1981), através de uma análise geométrica, também especificam as transformações no sentido de definirem e exemplificarem o conceito. Assim, se efeitos de rotação, translação e reflexão são aplicados a um determinado objeto (e.g., um quadrado), a distância entre os dois pontos no objeto modificado permanece equivalente a do objeto original; se um objeto é fotografado em diferentes distâncias, o tamanho da imagem dependerá da distância em que está sendo fotografado, no entanto, algumas propriedades do objeto são preservadas. Nesses exemplos, a forma é definida pela relação de equivalência entre as diferentes distâncias; quando as distâncias entre as partes do objeto permanecem proporcionais, as suas formas permanecem inalteradas. Um lápis mantém suas características mesmo se for apontado até ficar um toco; se um quadrado é transformado em retângulo, algumas relações iniciais entre as partes do objeto são 32 Nota-se que na segunda e terceira categorias há influência direta da estrutura do sistema visual. Gibson (1979/1986) afirma que a pessoa vê o ambiente com os olhos na cabeça, que está no ombro em um corpo. Os detalhes podem ser visualizados pelos olhos, mas o “olhar ao redor” se dá pela ação conjunta dos olhos, cabeça, ombro e tronco. 33 Tradução nossa: “o fluxo do arranjo não desfaz a estrutura subjacente ao fluxo”. preservadas apesar das transformações. Em todos os exemplos, as formas são consideradas equivalentes. Em razão desses fatores, Lombardo (1987) e Michaels e Carello (1981) afirmam que as invariantes podem somente ser definidas através das mudanças no arranjo óptico. Para esses autores, as invariantes de uma série contínua de arranjos ópticos são específicas às características constantes do ambiente; ao invés de absolutamente eternas, as invariantes são relativamente persistentes e referem-se às constâncias incorporadas dentro da mudança. Entre mudanças em algumas variáveis de estimulação, há padrões constantes que especificam a continuidade e a coerência dentro do ambiente e devem ser descritos com referência às transformações. Em síntese, as invariantes são descritas como sendo propriedades que não sofrem alterações, apesar de certas transformações. Segundo Michaels e Carello (1981), há duas categorias de invariantes – as estruturais e as transformacionais. As estruturais são “properties that are constant with respect to certain transformations”34, enquanto que as transformacionais “are those styles of change common to a class of transformation that leave certain structures invariant”35 (p. 40). Para exemplificarem as invariantes estruturais, Michaels e Carello consideram importante a idéia de constância perceptual, que é responsável pela explicação do fenômeno no qual as propriedades percebidas permanecem as mesmas, embora haja significantes mudanças nos estímulos próximos. Ao explicarem a noção de invariantes estruturais, as autoras utilizam vários exemplos de constância perceptual: o tamanho do objeto permanece constante apesar do aumento do anglo visual quando há aproximação do objeto; a forma da mesa não se 34 Tradução nossa: “propriedades que são constantes com relação a certas transformações”. 35 Tradução nossa: “são aqueles estilos de mudanças comuns a uma classe de transformação que permitem certas estruturas invariantes”. modifica se for observada de outras perspectivas; a luz transmitida pelo carvão é característica de sua superfície irregular, multi-faceada, acromática e absorvente. Assim, há certas características invariantes que especificam a aproximação do objeto, a mudança de perspectiva em relação à mesa e as alterações na intensidade de luz direcionada ao carvão. Nestes exemplos, nota-se que há propriedades que permanecem constantes em relação a outras que se alteram – os padrões de energia do objeto permanecem invariantes enquanto o objeto sofre algumas transformações. Já as invariantes transformacionais são estruturas baseadas nos estilos de mudanças nos estímulos próximos que especificam as mudanças no ou para o objeto, tal como a aproximação de um objeto distante. São padrões que, numa determinada velocidade e certa distância, são constantes (MICHAELS; CARELLO, 1981). O estudo realizado por Johansson (1973) permite ilustrar a noção de invariantes transformacionais. Neste experimento, os participantes foram colocados em um quarto escuro e vestidos com uma roupa preta que possuíam pontos de luz acoplados às principais articulações do corpo humano (ombros, cotovelos, punhos, quadril, joelhos e tornozelos) de modo que apenas os pontos de luz eram visualizados. Os observadores tinham que descrever o que estavam vendo. Quando os pontos permaneciam imóveis, os observadores afirmavam que eram pontos aleatórios de luz. Quando os pontos se moviam, ou seja, quando os participantes do experimento realizavam alguma tarefa (e.g., andar e saltar), os observadores facilmente identificavam a tarefa que estava sendo realizada. O que torna esse experimento interessante, segundo Michaels e Carello (1981), é que os estímulos separam as formas humanas das invariantes que especificam o movimento humano, o que comprova que os estilos de mudanças entre pontos de luz são suficientes para conterem informações. Outro aspecto interessante observado é que a maneira na qual os pontos de luz se relacionam, em um determinado tempo e espaço, pode especificar um evento. Quando o movimento é cessado, o observador volta a perceber pontos de luz aleatórios. Os resultados deste experimento confirmam que as invariantes não somente especificam objetos, lugares e eventos, mas também as atividades do organismo, tais como velocidade e direção de locomoção, além de alterações na posição e na perspectiva do agente. Em síntese, este capítulo tratou de duas diferentes propostas para a explicação da percepção visual. Por um lado, foi dada ênfase às idéias representacionistas, como as da perspectiva de processamento de informação. Por outro lado, foi apresentada a proposta de Gibson (1979/1986), que apresentou algumas novidades em relação às explicações mais tradicionais da percepção: a informação não é transmitida, ela está disponível sem a necessidade de interpretação e mediação de representações mentais. Adicionalmente, Gibson (1979/1986) propõe que há dois aspectos da informação que necessariamente a compõe de modo simultâneo – “informação-sobre”, denominada de invariantes e “informação-para” denominada de affordances. Após a especificação do conceito de invariantes nesta seção, o conceito de affordance será discutido no próximo capítulo. CAPÍTULO II O CONCEITO DE AFFORDANCE A interação animal-ambiente pode, como propôs Gibson (1979/1986), ser compreendida através dos conceitos de invariantes e affordances. A formulação do conceito de affordance por Gibson (1977, 1979/1986), assim como toda a sua obra, tem causado repercussões e estimulado o debate científico e filosófico não só dos interessados nos estudos da percepção e informação, como da Psicologia de modo geral e de outras áreas de conhecimento, como a Ergonomia, Sociologia, Filosofia e Ciência Cognitiva. 2.1 Definição de Affordance e a Relação Agente-Ambiente Na concepção de Gibson (1979/1986), o sistema perceptivo é capaz de captar as informações necessárias para a interação animal-ambiente. Para Greeno (1994), “perception is a system that picks up information that supports coordination of the agent’s actions with the systems that the environment provides”36 (p. 341). De acordo com Oudejans et al. (1996), “perception is seen as an active pickup of meaningful information that specifies the behavioral possibilities of the environment”37 (p. 879). Dessa forma, as informações sobre as características do ambiente são necessárias para que ocorra uma atividade interativa do agente. Ao entender que as possibilidades do organismo no ambiente dependem, em algum sentido, da forma ou das características de quem as 36 Tradução nossa: “a percepção é um sistema que capta informação que apóia coordenação das ações do agente com os sistemas que o ambiente provê”. 37 Tradução nossa: “a percepção é vista como uma constante obtenção de informação significante que especifica as possibilidades comportamentais do ambiente”. percebem, Gibson (1971b) afirma que o significado do ambiente consiste do que é possibilitado. São exatamente essas possibilidades que, mais tarde, Gibson (1977, 1979/1986) denominou affordances – a maneira de perceber o mundo é orientada e designada para as ações sobre ele. Affordances do ambiente são “what it [environment] ‘offers’ the animal, what it ‘provides’ or ‘furnishes’, either for good or ill”38 (GIBSON, 1979/1986, p. 127). Superfícies possibilitam locomoção, postura, colisão; fogo possibilita aquecimento, queimadura; alguns objetos possibilitam manuseio (e.g., ferramentas); outros possibilitam ferimentos (e.g., armas de fogo); animais e outras pessoas possibilitam “a rich and complex set of interactions, sexual, predatory, […] cooperating, and communicating”39 (p. 128); “cadeiras ou bancos expressam affordance no ato de sentar. Uma xícara expressa affordance no ato de segurá-la. Uma bola expressa affordance em uma recepção” (RODRIGUES, 1994, p. 21); affordances incluem substâncias comestíveis e prejudiciais à saúde; lugares que servem de esconderijo e proteção (LOMBARDO, 1987). Ao afirmar que a percepção é a captação de affordances, e que estes podem ser diretamente percebidos, Gibson (1971b) diz que, durante o ato perceptivo, não são as qualidades ou as propriedades do ambiente que são captadas, mas as possibilidades de ação. Uma das novidades que Gibson (1979/1986) propõe está exatamente neste ponto: o agente, ao invés de perceber as qualidades dos objetos, percebe os affordances; ele percebe o comportamento associado às características do ambiente, e não a qualidade e estrutura do objeto, tal como, segundo Lombardo (1987), assume-se freqüentemente. O fato de uma pedra ser usada como um “projétil”, não significa que 38 Tradução nossa: “são o que ele [ambiente] ‘oferece’ para o animal, o que ele provém e fornece, de bom ou ruim”. 39 Tradução nossa: “Um rico e complexo grupo de interações, sexuais, predatórias, [...] de cooperação e comunicação”. não possa ser usada como um peso para papel, apoio para livros, martelo, prumo para um pêndulo ou para formar uma parede. Determinado objeto, de tamanho e peso moderados, possibilita manuseio; se usado para golpear, pode ser um porrete ou um martelo; se usado por um chimpanzé preso em uma jaula para pegar uma banana, pode ser um tipo de gancho (GIBSON, 1979/1986). Todos esses affordances são consistentes, mas para a percepção não importa os nomes pelos quais são chamados, pois, se tem conhecimento da utilidade do objeto, este pode possuir milhares de nomes e ser classificado de várias maneiras. Classificações, sim, são referentes às propriedades ou às qualidades (e.g., cor, textura, composição, tamanho, forma, massa, elasticidade, rigidez e mobilidade) do que é percebido (MICHAELS; CARELLO, 1981). Para Gibson (1977), as propriedades são menos importantes do que os affordances. Ao perceber que a superfície é plana e sólida, o agente não percebe as qualidades, mas que a superfície é “caminhável”; quando a cobra percebe a presença de sua presa, através da informação térmica, ela não detecta a temperatura em si, mas a direção de seu ataque; o indivíduo não percebe a cadeira e a caneta, mas a possibilidade de sentar e escrever, respectivamente (MICHAELS; CARELLO, 1981); a mãe é percebida como fonte de alimentação pelo filho, antes que este perceba que ela possui longos cabelos escuros (LOMBARDO, 1987). Para demonstrarem que as pessoas percebem affordances e não qualidades, Michaels e Carello (1981) relatam os resultados encontrados no experimento realizado por N. Maier em 1933. Neste experimento, o sujeito se encontra em uma sala com dois barbantes suspensos cruzando-a paralelamente. A tarefa é unir os barbantes, e para isso pode-se utilizar um alicate. Porém, mesmo utilizando o objeto como uma extensão do próprio braço, não se consegue realizar a tarefa. Então, o que deve ser feito? De acordo com Maier, deve-se prender o alicate em um dos barbantes e balançá-lo como um pêndulo e correr e agarrar o outro barbante. Muitos dos participantes apresentaram dificuldades na resolução desse problema. Isso, talvez, tenha ocorrido dado ao fato de não visualizarem as propriedades intrínsecas do alicate (e.g., peso) e sim suas possibilidades de agarrar, prender ou como extensão do braço. Outra novidade apresentada por Gibson (1977, 1979/1986) é que o significado e a utilidade do ambiente são percebidos e estão diretamente ligados ao agente. Affordance é “a specific combination of the properties of its substance and its surfaces taken with reference to an animal”40 (GIBSON, 1977, p. 67). A noção de affordance é uma combinação de propriedades físicas do ambiente que está unicamente situada em relação ao sistema nutritivo, de ação e de locomoção de determinado animal ou de uma espécie em particular, ou seja, affordances são relativos ao animal que está sendo considerado (GIBSON, 1977, 1979/1986). Do ponto de vista gibsoniano, affordance é entendido como uma “relação funcional entre um objeto no espaço e um indivíduo com uma constituição física específica em determinado ambiente” (PELLEGRINI, 1996, p. 311). Segundo Lombardo (1987), Michaels (1988) e Oudejans et al. (1996), affordances dependem das características ambientais referentes à escala corporal e capacidades do agente. Para que ocorra um ajuste de comportamento, é importante que as decisões sobre as possibilidades de ação dependam do reconhecimento do que o sujeito pode fazer corporalmente, qual a sua capacidade de produção de movimento, limitações articulares, força, entre outras (PELLEGRINI, 2000). Sendo assim, o mesmo layout terá diferentes affordances para diferentes organismos, pois cada um 40 Tradução nossa: “uma combinação específica de propriedades de sua substância e sua superfície tomada com referência a um animal”. possui repertórios diferentes de ações (GIBSON, 1971b). Para Gibson (1979/1986), “knee-high for a child is not the same as knee-high for an adult […]”41 (p. 128). Então, talvez, a criança não veja na cadeira, tal como o adulto, a possibilidade de sentar-se, e sim uma mesa para pintar42. Quando um agente percebe affordances, pelo fato de as propriedades do ambiente estarem situadas exclusivamente no seu contexto, a informação é para um indivíduo ou para uma espécie distinta (MICHAELS; CARELLO, 1981). Embora sejam relativos às espécies de animais, Lombardo (1987) reconhece que existem certos affordances fundamentais para elementos de formas básicas de vida (e.g., a água possibilita locomoção para animais aquáticos). Para Gibson (1979/1986), “if a terrestrial surface is nearly horizontal [...], nearly flat [...], and sufficiently extended (relative to the size of the animal) and if its substance is rigid (relative to the weight of the animal), then the surface ‘affords’ support”43 (p. 127). As quatro características citadas [horizontal, plana, extensa e rígida] possibilitam, segundo Gibson, suporte e apoio para animais relativamente grandes que, em superfícies aquáticas ou pantanosas, certamente afundariam. Assim, torna-se interessante destacar que affordances expressam a “possibilidade do meio ambiente estimular os organismos no processo da percepção, bem como a capacidade do agente em perceber o que está disponível a ele [no ambiente]” (MORAIS, 2000, p. 47). A espécie ou o animal que apresenta a capacidade de perceber os affordances apropriados apresentam maior chance de sobrevivência (ALBRECHTSEN et al., 2001; LOMBARDO, 1987; MICHAELS; CARELLO, 1981; MORAIS, 2000). 41 Tradução nossa: “a altura do joelho de uma criança não é a mesma de um adulto [...]”. 42 Para Gibson (1977; 1979/1986), essas interações também podem ser determinadas pelo conjunto de significados sociais do que está sendo percebido. 43 Tradução nossa: “se uma superfície terrestre é aproximadamente horizontal [...], aproximadamente plana [...], e suficientemente extensa (relativa ao tamanho do animal) e se sua substância é rígida (relativa ao peso do animal), então a superfície affords suporte”. 2.2 A Origem do Conceito Durante o início da vida acadêmica de Gibson, Lombardo (1987) afirma que este recebeu fortes influências das teorias tradicionais da percepção e da psicologia, que era principalmente baseada no dualismo mente e matéria, de Platão, para quem o cosmos se divide em idéias eternas, que fazem parte do mundo da realidade, e no que denominou de particulares, que se referem ao mundo das aparências. Platão “divides existence into a unified eternal realm of abstract forms and a diversified temporal flux of particulars”44 (p. 31). Para Lombardo, o conhecimento em Platão é abstrato e pode ser alcançado através da razão, e o mundo percebido de objetos físicos particulares é ilusório e subjetivo – a alma racional eterna, por ser distinta do corpo físico mortal, pode alcançar conhecimento eterno abstrato ou verdades universais. Nestes termos, “the senses yield particulars and the mind brings them together through thought”45 (p. 25). Apesar das influências, Gibson desafia o dualismo de Platão46, principalmente por sua ligação com Aristóteles que antecipa as idéias de Gibson mais que qualquer outro (LOMBARDO, 1987). Mesmo sendo aluno de Platão, Aristóteles combate o seu dualismo. Ao mesmo tempo em que distinguiu conhecedor (sujeito) e conhecido (objeto), Aristóteles defendeu que há uma interdependência funcional entre eles – “the psyche and the body can be analyzed into parts but there exists a functional unity of the parts”47 (p. 38). Este posicionamento também é defendido por Gibson, que considera, através do conceito de reciprocidade, que há 44 Tradução nossa: “divide existência em um unificado reino eterno de formas abstratas e um fluxo temporal diversificado de particulares”. 45 Tradução nossa: “os sentidos concedem particulares e a mente os traz juntos através do pensamento”. 46 De acordo com Lombardo (1987), o desenvolvimento da idéia de Gibson pode ser dividido através da sua psicofísica (1930-1960), na qual ele rompe com muitas idéias tradicionais da percepção, e sua concepção ecológica (1960-1980). 47 Tradução nossa: “a ‘psique’ e o corpo podem ser analisados em partes, mas aí existe uma unidade funcional das partes”. uma interdependência dinâmica entre agente e ambiente. Para Aristóteles e Gibson, percepção “do not invoke a ‘separate reality’ beyond the physical environment, […], psychological processes are integrated – the body is organized in terms of ‘co- operative’ interdependent activities”48 (LOMBARDO, 1987, p. 37). Por percepção envolver interdependência entre agente e ambiente, Aristóteles e Gibson, segundo Lombardo, entendem que percepção é um evento ecológico, ao invés de um estado isolado da mente – “in perception, the psyche does not add mental elements to what is sensed. [...] the physical world is knowable as it is without embellishment or transformation”49 (p. 40). Em síntese, Aristóteles relaciona corpo e mente sem uní-los ou separá-los ontologicamente; rejeita a separação de Platão entre universais e particulares – “where Plato separated particulars and universals ontologically and epistemologically, Aristotle [and Gibson] wishes to unite them”50 (LOMBARDO, 1987, p. 36). Além disso, Aristóteles aponta uma conexão e uma complementaridade entre a mente e o mundo. Mesmo com alguns pontos em comuns com Aristóteles, Gibson (1977, 1979/1986), ao localizar especificamente a origem do conceito de affordance, aponta principalmente a Gestalt51. Esta vertente contraria, tal como ele, idéias representacionistas da percepção, nas quais “bare sensations had to be clothed with meaning”52 (GIBSON, 1977, p. 79). Para os psicólogos da Gestalt “the meaning or the value of a thing seems to be perceived just as immediately as its color. The value 48 Tradução nossa: “percepção não invoca uma ‘realidade separada’ além do ambiente físico, [...], processos psicológicos são integrados – o corpo é organizado em termos de atividades ‘co-operativas’ interdependentes”. 49 Tradução nossa: “na percepção, a psique não adiciona elementos mentais para o que é percebido. [...] o mundo físico é conhecido como ele é, sem embelezamento ou transformação”. 50 Tradução nossa: “onde Platão separa particulares e universais ontologicamente e epistemologicamente, Aristóteles [e Gibson] deseja uní-los”. 51 De acordo com Lombardo (1987), um único trabalho dentro da Gestalt “Principles of Gestalt Psychology” publicado em 1935 por K. Koffka, parece ter influenciado Gibson. 52 Tradução nossa: “Sensações nuas necessitam ser vestidas de significados”. is clear on the face of it”53 (GIBSON, 1979/1986, p. 138). Ao cunhar o termo “demand character”54, K. Koffka afirma que cada coisa diz qual comportamento pode ser potencialmente realizado – uma cadeira diz “sente-se em mim”; o alimento diz “coma-me”; a bola diz “chute-me”; uma escada diz “suba em mim” (GIBSON, 1979/1986). Ao justificar que cada coisa diz o que é, e o que se deve fazer com ela, Gibson coloca que Kurt Lewin, em 1936, cunhou o termo Auffordrungscharakter, que foi traduzido como “invitation character”55 ou valência – uma caixa postal “convida” o remetente de uma carta; uma alavanca “quer” ser pega. Porém, psicólogos da Gestalt argumentam que o valor do objeto muda de acordo com a necessidade do observador56, pois uma caixa postal apresenta um caráter de demanda se, e somente se, o observador necessita enviar uma carta (GIBSON, 1979/1986). O que tem que ficar claro para Gibson, é que os conceitos “demand character” e “invitation character” são valores característicos vividos e essenciais da própria experiência, que, assim como defende Koffka, não podem ser explicados através de imagens na memória. Apesar de Gibson apontar a Gestalt como sua motivação para a elaboração de sua teoria, Jones (2003) aponta, em trabalhos mais recentes de Gibson (e.g., Gibson e Crooks, 1938; Gibson, 1947, 1950 e 1966), a evolução de algumas de suas idéias, que podem ter culminado na formulação de sua Teoria do Affordance. Jones localiza, em obras anteriores a The Theory of Affordance de 1977 53 Tradução nossa: “o significado e o valor de uma coisa parece ser percebido imediatamente como a sua cor. O valor está claro na face dela”. 54 Tradução nossa: “caráter de demanda”. 55 Tradução nossa: “caráter de convite”. 56 De acordo com Gibson (1979/1986), affordance não muda com a necessidade do observador. Independentemente de affordance estar ou não sendo percebido, e da necessidade do observador determinar qual affordance será utilizado; por ser invariante, affordance está sempre disponível para ser percebido. Gibson também discorda de Koffka quando coloca que cada coisa diz o que é. Segundo o autor, Koffka não leva em consideração que objetos, superfícies e outros animais podem “mentir” com relação às ações que possibilitam (e.g., areia movediça e gato selvagem). e The Ecological Approach to Visual Perception de 1979/1986, que são conhecidas pela gênese da Teoria de Affordance, algumas passagens que mostram que Gibson, mesmo sem cunhar o termo “affordance”, já apontava idéias características que, em algumas situações, estão relacionadas à Psicologia da Gestalt. No estudo de Gibson e Crooks, no qual foram discutidos aspectos da ação de dirigir automóveis, Jones notou a idéia de significados intrínsecos de objetos contidos no ambiente que, potencialmente, afetam o comportamento (i.e. a ação de dirigir automóveis). Ao analisarem a percepção de movimento, Jones mostra, através do conceito de valência, idéias que talvez possam ter influenciado Gibson57. Neste estudo, ao definirem “field of safe travel”58, que consiste em caminhos livres de obstáculos, e “minimum stopping zone”59, que corresponde à distância necessária para frear seguramente o automóvel, Gibson e Crooks afirmam que os significados do ambiente interferem no comportamento. Assim, eles propõem que a ação de dirigir pode ser controlada nestes termos, pois, em situação normal de condução de veículos, quando o “campo de viagem segura” (valência positiva) diminui em conseqüência da aproximação de um obstáculo (valência negativa), deve haver uma desaceleração proporcional à “zona mínima de freada”. Nestes termos, os autores sugerem que o comportamento é determinado pelas características relevantes do ambiente (e.g., “campo de viagem segura” e “zona mínima de freada”) em relação às características relevantes do agente (e.g., a experiência do motorista). Em um relatório direcionado à Força Aérea dos Estados Unidos, em 1947, Gibson mostrou como o padrão de movimento retinal (o que denominou mais 57 Lombardo (1987) também aponta a influência do conceito de valência. Nestes termos, o ambiente apresenta características significantes que podem determinar as atividades humanas (e.g., obstáculos podem impedir a passagem de carros, uma pista molhada pode ser perigosa a certas velocidades). 58 Tradução nossa: “campo de viagem segura”. 59 Tradução nossa: “zona mínima de freada”. tarde de fluxo óptico) poderia conter informação. Gibson, a partir desse estudo, deixou de lado o conceito de valência e iniciou a discussão de como as variáveis ópticas contêm informação (JONES, 2003). Em sua pesquisa, Gibson constatou que a expansão óptica, que indica a direção do vôo, a velocidade de descida e a aproximação da pista de aterrissagem são importantes para a ação do piloto, o que confirma que esta variável óptica é determinante para o comportamento – “if the center of expansion is positioned correctly, then the glide is going according to plan”60 (JONES, 2003, p. 110). Já em 1950, Gibson, de acordo com Jones (2003), ao aprofundar-se nas questões da percepção, concluiu que os significados e as propriedades espaciais não estão totalmente separados. Gibson considerou a possibilidade do significado ser inerente ao ambiente em algum sentido, e não ser necessariamente “criado” ou “elaborado” para ser percebido. Para Lombardo (1987), Gibson, ao se fundamentar na hipótese de que a percepção é verídica e que a especificidade objetiva da percepção baseia-se na especificidade objetiva do estímulo, opôs-se à existência de relações probabilísticas entre o estímulo e o ambiente. Para Eleonora Gibson (2000), esposa de James Gibson, a noção de affordance foi desenvolvida gradualmente a partir do livro “The Senses Considered as Perceptual System” de 1966. Ao apontar a relação entre percepção e comportamento, ela afirma que Gibson tentou entender como o sistema perceptivo conduz ao comportamento – a relação percepção-ação é inerente à relação animal- ambiente. De acordo com Jones (2003), Gibson, nesta obra, ao se referir ao conceito de affordance, aborda a relação entre percepção e ação: 60 Tradução nossa: “se o centro de expansão é posicionado corretamente, então o vôo está indo de acordo com o plano”. When the constant properties of constant objects are perceived (the shape, size, color, texture, composition, motion, animation, and position relative to other objects), the observer can go on to detect their affordances. I have coined this word as a substitute for ‘values’, a term which carries an old burden of philosophical meaning. I mean simply what things furnish, for good or ill. What they afford the observer […] depends on their properties61. (p. 285) Lombardo (1987) também aponta semelhanças na obra de 1966. Ao conceber o ambiente como portador de condições necessárias para evolução da vida, proporcionando vantagens com relação ao que tem a oferecer, Gibson defendeu que modos de vida envolvem affordances do ambiente. A idéia chave desta obra, segundo o autor, é a descrição ecológica do ambiente com referência ao agente. 2.3 Affordance e a Noção de Reciprocidade A percepção, na proposta gibsoniana, não reside no cérebro ou na mente, ela é ecológica e existe na interação recíproca entre o agente e o ambiente. Formas de vida e ambiente compõem um ecossistema reciprocamente integrado – “life functions such as perception and behavior, necessarily involve an environment, and, complimentarily, environmental properties necessarily involve animate life forms”62 (LOMBARDO, 1987, p. 3). Neste contexto, a atividade perceptual e a informação são recíprocas – “[...] perceptual activities are activities of the perceiver, 61 Tradução nossa: “Quando as propriedades constantes de objetos constantes são percebidas (forma, tamanho, cor, textura, composição, movimento, animação e posição relativa a outros objetos), o observador pode detectar seus affordances. Tenho cunhado esta palavra como substituta de ‘valores’, um termo que carrega um velho peso de significado filosófico. Eu simplesmente quero dizer que coisas fornecem, para o bem ou para o mal. O que elas possibilitam o observador [...] depende de suas propriedades”. 62 Tradução nossa: “funções da vida tais como percepção e comportamento, necessariamente envolvem ambiente, e, complementarmente, propriedades ambientais necessariamente envolvem formas de vida animada”. they are functionally related to information about the environment”63 (p. 264-265). Desta forma, o agente e o ambiente são unidos no ato perceptivo. Se considerado o entendimento que as ciências físicas fazem dos conceitos de ambiente e animal, poder-se-ia afirmar, em conformidade com Gibson (1979/1986), que o animal, mesmo sendo altamente organizado e complexo, faria apenas parte do ambiente físico. De acordo com Lombardo (1987), o entendimento que Gibson tem das estruturas e propriedades do ambiente não condiz com esta descrição do mundo, pois o ambiente está ligado à existência do animal. Gibson (1979/1986) considera que ao entender o mundo a partir da perspectiva da Física, não se leva em conta que o ambiente é o ambiente para o animal, de maneira distinta que um grupo de objetos é ambiente para um objeto físico. Ao evitar o conceito de ambiente físico, Gibson afirma que o animal e o ambiente são inseparáveis e que um animal não pode existir sem um ambiente que o circunde e o ambiente implica o animal a ser circundado. Embora se possa apontar várias reciprocidades no contexto da teoria de Gibson (1979/1986), há algumas que são facilmente notadas: animal- ambiente, percepção-propriocepção e percepção-ação. Dentre estas, a reciprocidade animal-ambiente é central na perspectiva ecológica – o animal é um ser no mundo e o ambiente é o mundo do animal; um está funcionalmente e estruturalmente ligado ao outro (LOMBARDO, 1987). Apesar da noção de reciprocidade constar no livro The Senses Considered as Perceptual Systems de 1966, como indica Lombardo, nesta obra o ambiente é apenas tratado como “o que é percebido”, ou seja, a fonte de estimulação. Gibson, nesse momento, ainda não reconhece a relevância da relação 63 Tradução nossa: “[...] atividades perceptuais são atividades do percebedor, elas são funcionalmente relacionadas à informação sobre o ambiente”. animal-ambiente como condição para entender a percepção. No entanto, em The Ecological Approach to Visual Perception de 1979/1986, a idéia de reciprocidade torna-se essencial, principalmente através do conceito de affordance que, segundo Morais (2000), expressa a “relação (potencial) de complementaridade, que se estabelece entre o organismo e o seu meio ambiente” (p. 48). Ao considerar que affordances referem-se às possibilidades de ação do agente frente ao ambiente, e que a sua percepção depende da capacidade de ação do agente, nota-se a idéia intrínseca de reciprocidade. Ao propor que affordance é determinado pela relação ambiente- organismo e que ambos são mutuamente limitantes e complementares, Gibson (1979/1986) indica que ao perceber o ambiente percebe-se o agente. Este tipo de mutualidade assume, para Lombardo (1987), a idéia de interdependência, pois as informações que especificam as utilidades do ambiente estão acompanhadas das que especificam o agente. Em Gibson (1979/1986), “[...] information about a world that surrounds a point of observation implies information about the point of observation that is surrounded by a world”64 (p. 116) e não podem ser tratadas em separado. Michaels e Carello (1981), ao explicarem que o agente e o ambiente se adaptam como peças de um quebra-cabeça, destacam que essa complementaridade pode ser visualizada através do conceito ecológico de nicho65. A idéia de que o nicho implica em determinadas espécies e espécies implicam em determinado nicho, faz com que Gibson (1979/1986) afirme que a reciprocidade está subentendida no conceito de affordance. Para Gibson (1977, 1979/1986), nicho é 64 Tradução nossa: “[...] informação sobre o mundo que circunda um ponto de observação implica informação sobre o ponto de observação que é circundado por um mundo”. 65 Cientistas ambientais e ecologistas fazem uso deste conceito. Ecologicamente falando, nicho não é o mesmo que habitat das espécies, isto é, onde elas vivem, mas como elas vivem. Embora não seja literalmente um lugar, nicho é um cenário de características ambientais que é apropriado aos animais que se ajustam adequadamente (GIBSON, 1977, 1979/1976). um grupo de affordances; o ambiente natural oferece muitos modos de vida e os modos de vida também podem ser considerados grupos de affordances. Em uma área úmida e escura (e.g., um porão) há a possibilidade do surgimento de aranhas e escorpiões, que em locais secos e iluminados, dificilmente apareceriam; os olhos e as barbatanas do peixe estão localizados para facilitar a visualização e a locomoção embaixo d’água; a parede possibilita o caminhar se, e somente se, o agente (e.g., uma mosca) apresenta aparato biológico que o permita movimentar-se nela (MICHAELS; CARELLO, 1981). O agente requer um tipo particular de ambiente e determinado ambiente implica um certo tipo de agente. Se o ambiente circundante é recíproco ao agente circundado, há, no entendimento de Lombardo (1987), um componente da propriocepção (consciência de si mesmo) na percepção (consciência do ambiente). Por percepção ser entendida como “conhecimento do mundo” e propriocepção envolver conhecimento de si mesmo no ambiente, segundo o autor, percepção e propriocepção são processos contínuos e simultâneos. O agente, ao captar affordances, percebe a sua própria localização e suas possibilidades – perceber o ambiente é perceber a si mesmo. Para Gibson (1979/1986), “information to specify the utilities of the environment is accompanied by information to specify the observer himself […] exteroception is accompanied by proprioception – to perceive the world is to coperceive oneself”66 (p. 141). Com isso, percepção possui dois pólos – subjetivo e objetivo. O primeiro pólo diz respeito a certo indivíduo, distinto de outro67; o segundo pólo está relacionado à objetividade do ambiente. Segundo Gibson (1979/1986), as duas fontes de informações 66 Tradução nossa: “Informação para especificar utilidades do ambiente está acompanhada pela informação para especificar o próprio observador [...] exteriocepção está acompanhada da propriocepção – perceber o mundo é co-perceber a si próprio”. 67 Michaels (2003) enfatiza que entender a subjetividade no sentido tradicional, conduz à incorreta interpretação do conceito de affordance. coexistem – “When a man sees the world, he sees his nose at the same time [...] the world and his nose are both specified [...]”68 (p. 116). Assim, o ambiente é percebido referente ao agente, pois não há, tal como implícito no conceito de affordance, ambiente independente do agente. Por haver captação de informação, o agente terá consciência de si e de suas possibilidades de ação (LOMBARDO, 1987). Ao defender a relação animal-ambiente e que a percepção do ambiente possibilita percepção de si mesmo, Gibson, tal como destacado na seção anterior, contraria o dualismo de Platão e Descartes (LOMBARDO, 1987; VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991). Na perspectiva de Gibson (1979/1986), o agente e o ambiente, por suas características dinâmicas, são considerados recíprocos e a percepção, além de envolver agente e ambiente, não está dentro do agente. Se a percepção se baseasse na experiência mental, esta seria ontologicamente separada do ambiente e a construção mental tornaria o mundo compreensível. O fato de o significado ser revelado no ambiente, não significa que há domínios distintos de consciência e matéria – “the awareness of the world and of one’s complementary relations to the world are not separable”69 (LOMBARDO, 1987, p. 141). Para Gibson (1971a, 1977), affordances não são como valores ou significados que normalmente são dependentes do observador; não são qualidades subjetivas nem propriedades objetivas de uma coisa, são ecológicos no sentido que são propriedades do ambiente com referência ao agente. Affordances são o que são “in a sense objective, real, and physical, unlike values and meanings, which are often supposed to be subjective, phenomenal, and mental”70 (GIBSON, 1979/1986, p. 129). Na interpretação de Lombardo (1987), affordances “are not intrinsic, 68 Tradução nossa: “Quando um homem vê o mundo, ele vê o seu nariz ao mesmo tempo [...] o mundo e o seu nariz são ambos especificados [...]”. 69 Tradução nossa: “a consciência do mundo e as relações complementares do animal para o mundo não são separadas”. 70 Tradução nossa: “em um sentido objetivo, real e físico, ao contrário de valores e significados, que são freqüentemente considerados ser subjetivo, fenomenal e mental”. independent, and absolute but relational and reciprocal to the animal”71 (p. 307). Ao afirmar que o solo possibilita locomoção e que alguns objetos possibilitam manuseio, Gibson identifica affordances com significados – “Structure and function are related; what something ‘is’ is related to what it ‘means’; the gulf between matter and mind is bridged”72 (LOMBARDO, 1987, p. 307). A principal diferença entre a proposta de Gibson e a do dualismo é que Gibson tenta mostrar cientificamente que o ambiente é “ontologically relative to the perceiver and there is no absolute separation of mind and matter or perceiver and world”73 (LOMBARDO, 1987, p. 253). A ecologia de Gibson é objetiva e transpõe a dicotomia subjetivo-objetivo (SANDERS, 1997). De acordo com Albrechtsen et al. (2001), a unidade de análise primária está no ecossistema, e não no agente e no ambiente, como categorias distintas. Segundo os autores, ao romper com as concepções dualísticas, através do conceito de affordance, Gibson constitui uma alternativa para a perspectiva representacionista de processamento de informação. Por Gibson descrever percepção na “linguagem” da ação, Michaels e Carello (1981) indicam a necessidade de entendimento de outra reciprocidade – percepção-ação. Segundo as autoras, para que a percepção seja considerada útil, ela deve estar associada às ações apropriadas e efetivas no ambiente e “for actions to be appropriate and effective they must be constrained by accurate perception of the environment”74 (p. 47). O comportamento requer informações de caráter individual que, de algum modo, implica em ligação com o ambiente. Para Albrechtsen et al. (2001), Lombardo (1987) e Michaels e 71 Tradução nossa: “não são intrínsecos, independentes e absolutos, mas relacionais e recíprocos ao animal”. 72 Tradução nossa: “Estrutura e função são relacionadas; o que uma coisa ‘é’ está relacionada ao que ela ‘significa’ ; o abismo entre matéria e mente está preenchido”. 73 Tradução nossa: “ontologicamente relativo ao percebedor e não há separação absoluta de mente e matéria ou percebedor e mundo”. 74 Tradução nossa: “para ações serem apropriadas e efetivas devem ser limitadas pela percepção precisa do ambiente”. Carello (1981), Gibson propõe que percepção e comportamento são recíprocos e formam um único sistema: à medida que a bola se aproxima, para a criança agarrá- la, ela necessita captar informações disponíveis no arranjo óptico (invariantes) e utilizar a sua estrutura corporal (e.g., organização muscular, capacidade articular, coordenação etc.); ao caminhar sobre um solo inclinado, o passo se ajusta diretamente ao declive do solo; o rebatedor, para realizar a ação no tempo certo, utiliza as informações contidas nos movimentos realizados pelo arremessador e na aproximação da bola através da expansão do arranjo óptico. O exemplo dado por Michaels e Carello (1981) da aproximação do agente em relação a uma árvore, pode ser útil no entendimento de como a captação de algumas variáveis pode auxiliar no controle do comportamento. Quando ocorre a aproximação da árvore, o agente deve, durante a ação, mantê-la no centro de expansão óptica75. Para evitar a colisão, o agente tem que reduzir a sua velocidade e, posteriormente, parar ou desviar. Nos casos especificados acima, o agente tem especificações diretas das variáveis que geram adaptações em suas atividades motoras, levando-o ao domínio da relação percepção-ação, através de aspectos globais (e.g., o chão possibilita o caminhar) e aspectos mais detalhados (e.g., o chão possibilita o caminhar utilizando um específico padrão de movimento). De acordo com Greeno (1994), Gibson desenvolveu esta perspectiva interacionista entre percepção e ação, por acreditar que as informações estão disponíveis no ambiente e que os agentes devem ser capazes de detectá-las no arranjo óptico. Quando Gibson (1979/1986) defende que a ação é controlada pela informação, ele afirma que as invariantes, que especificam a relação agente- ambiente, são utilizadas para guiar o comportamento. 75 A expansão da imagem da árvore no arranjo óptico especifica a aproximação, enquanto a velocidade da expansão especifica a possibilidade de colisão (MICHAELS; CARELLO, 1981). Em síntese, neste capítulo, o conceito de affordance foi definido de acordo com a proposta original de Gibson e algumas das principais idéias que o influenciaram em sua formulaç