0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA Vinícius Jonas de Aguiar A Escuta Musical no Monismo de Triplo Aspecto MARÍLIA 2015 1 Vinícius Jonas de Aguiar A Escuta Musical no Monismo de Triplo Aspecto Dissertação apresentada ao Programa de Pós – Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP) para defesa de mestrado na área de concentração Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica. Orientador: Prof. Dr. Alfredo Pereira Júnior. MARÍLIA 2015 2 3 Vinícius Jonas de Aguiar A ESCUTA MUSICAL NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, na área de concentração Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica. BANCA EXAMINADORA (Qualificação) Orientador: Prof. Dr. Alfredo Pereira Júnior. UNESP/Botucatu. 1º Examinador: Prof. Dr. Ricardo Pereira Tassinari. UNESP/Marília 2º Examinador: Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho. UNESP/Bauru. 1º Suplente: Prof. Dr. Kleber Cecon. UNESP/Marília 2º Suplente: Prof. Dr. Márcio Benchimol Barros. UNESP/Marília BANCA EXAMINADORA (Defesa) Orientador: Prof. Dr. Alfredo Pereira Júnior. UNESP/Botucatu. 2° Examinador: Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho. UNESP/Bauru. 3°Examinador: Prof. Dr. José Monserrat Neto. UFLA. 1º Suplente: Prof. Dr. Edvaldo Soares. UNESP/Marília 2 Suplente: Prof. Dr. Kleber Cecon. UNESP/Marília Marília, 29 de Maio de 2015 4 Aos meus avós. 5 Agradecimentos Aos meus pais e familiares por sempre incentivarem e auxiliarem meus estudos. Ao Alfredo Pereira Júnior pela orientação e confiança. Aos professores do departamento de música da UEL por despertarem meu interesse pela pesquisa acadêmica. Em especial ao professor Mário Loureiro por me apresentar o universo da percepção musical. Aos professores do departamento de filosofia da UNESP, em especial ao professor Ricardo Pereira Tassinari por todas as aulas, explicações e discussões sobre o tema desta pesquisa e sobre outros problemas filosóficos. Ao meu amigo Luã Carlos Valle Dantas pelo companheirismo de sempre. A CAPES pelo auxílio financeiro que foi essencial para que esta pesquisa fosse concluída. 6 Words, after speech, reach Into silence. Only by the form, the pattern, Can words or music reach The stillness, as a Chinese jar still Moves perpetually in its stillness. T. S. Eliot 7 RESUMO Nesta pesquisa discutiremos o papel das abordagens neurocientífica e fenomenológica da escuta musical segundo o Monismo de Triplo Aspecto. Iniciamos com a descrição dessas diferentes abordagens da mesma atividade apontando que a neurociência fornece descrições em terceira pessoa sobre o funcionamento do cérebro durante a escuta musical, enquanto compositores e educadores musicais focam em descrições sobre como experienciamos as diferentes formas de ouvir música. Por um lado, nas pesquisas da neurociência da música, notamos descrições sobre a escuta musical baseadas em estímulos sonoros simples e, em alguns casos mais recentes, trechos de músicas de diferentes gêneros. Nas abordagens fenomenológicas diversos aspectos sutis que influenciam a forma como percebemos a música são levados em conta, apesar de tais pesquisas não se pautarem em dados sobre o funcionamento cerebral. Com o intuito de estabelecer uma complementaridade entre tais abordagens, julgando que ambas são relevantes para a compreensão da escuta musical, assumimos como base a ontologia proposta pelo MTA, segundo a qual a Natureza é composta por três aspectos irredutíveis. Nesse sentido, fica claro que cada uma dessas abordagens oferece descrições sobre diferentes aspectos que compõe o fenômeno musical. Palavras-chave: Escuta Musical. Neurociência Cognitiva. Cognição Musical. Monismo de Triplo Aspecto. 8 ABSTRACT In this research we discuss the role of the neuroscientific and the phenomenological approaches of the musical listening according to the Triple Aspect Monism. We initiate describing those two different approaches of the same activity pointing out that the neuroscience of music provides explanations from a third person perspective of what happens to the brain while the subject listens to music, while composers and music educators focus on how we experience the different ways of listening to music. On one hand, in neuroscientific researches we notice descriptions of musical listening based on simple sound stimulus and, in some recent data, based on parts of music of different styles. In the phenomenological approach, several aspects that influence the way we perceive music are taken into consideration, even though that approach is not based on data about the brain functioning. Aiming to establish a complementarity between those approaches, considering they are both important to understand the musical listening activity, we assume the ontology proposed by the TAM. That ontology considers Nature as composed by three irreducible aspects and, therefore, it becomes clear that each approach on the musical listening is providing descriptions on different aspects that compose the musical phenomenon. Keywords: Musical Listening. Cognitive Neuroscience. Music Cognition. Triple Aspect Monism. 9 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Modelo da Percepção Musical.......................................................23 Figura 2 – Melodias utilizadas no experimento..............................................25 Figura 3 – Resultado do EEG do grupo controle e dos amusicos.................25 Figura 4 – Resultado do PET enquanto músicos deviam ler e perceber na performance ouvida possíveis erros na harmonia, ritmo ou melodia............26 Figura 5 – Diagrama da Escuta Musical segundo o MTA..............................76 10 Sumário INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 Capítulo 1 – Música e Neurociência ............................................................. 17 1.1 A Neurociência Cognitiva da Música ....................................................... 18 1.2 Escuta Musical na Neurociência Cognitiva da Música................................20 1.3 Considerações finais sobre a abordagem neurocientífica da escuta musical............ ................................................................................................. 30 Capítulo 2 – A Filosofia da Neurociência de William Bechtel: o paradigma Localizacionista e as principais técnicas da neurociência cognitiva segundo William Bechtel ............................................................................... 32 2.1. Neurociência Cognitiva segundo Bechtel .................................................. 34 2.2 O paradigma Localizacionista .................................................................... 35 2.3 Principais métodos da Neurociência Cognitiva .......................................... 37 2.4 Considerações finais sobre a perspectiva filosófica da neurociência cognitiva........ ................................................................................................... 41 Capítulo 3 – Abordagens fenomenológicas da escuta musical ................. 43 3.1 Musicalização e Musicalidade segundo Helena Loureiro ........................... 45 3.2. Edwin Gordon e a Audiação ...................................................................... 47 3.3 Os quatro tipos de Escuta de Pierre Schaeffer .......................................... 52 3.4 Relatos de compositores sobre a escuta musical....................................... 56 3.6 Considerações finais sobre as abordagens fenomenológicas da escuta musical........ ..................................................................................................... 59 Capítulo 4 – Abordagens fenomenológicas e científicas da música segundo o Monismo de Triplo Aspecto ....................................................................... 61 4.1 Aspectos gerais do Monismo de Triplo Aspecto ......................................... 62 4.1.1 Ontologia no MTA.................................................................................... 62 4.1.2 Atividade cerebral no MTA ...................................................................... 65 4.2 A escuta musical segundo o Monismo de Triplo Aspecto..........................68 11 4.3 A irredutibilidade do Fenômeno Musical ..................................................... 75 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 78 Referências ..................................................................................................... 82 12 INTRODUÇÃO Após os quatro anos de graduação em música, notei uma diferença gigantesca na forma como eu e outros estudantes ouvíamos música. Talvez esse desenvolvimento das minhas habilidades de ouvinte tenha sido o ponto mais relevante, para mim, de toda minha formação acadêmica. E, ao mesmo tempo, o ponto mais incompreendido por mim mesmo. Como é possível ontem eu não ter percebido aquela melodia no violino, e hoje ela se sobressair em meio ao resto da orquestra? Como explicar por que ontem os sons da percussão pareciam batidas aleatórias, e hoje o padrão rítmico não poderia estar mais claro? Por que quando ouço a mesma música, na mesma sala, em frente aos meus alunos, eu sou capaz de distinguir diversos elementos presentes naquela música, enquanto alguns alunos só notam uma voz feminina que canta acompanhada por um violão. Ora, os sons (físicos), em todos esses exemplos que mencionei, definitivamente continuaram os mesmos de um dia para o outro, eram os mesmos para mim e meus alunos, mas a minha experiência com a música, com o passar dos dias, provavelmente alterava minha forma de ouvi-la. Possivelmente ocorriam alterações em meu cérebro que possibilitavam essas novas escutas. Nesse momento, passei a buscar em pesquisas da neurociência as respostas sobre o que exatamente ocorria em meu cérebro que possibilitava meu desenvolvimento como ouvinte. Notando que as pesquisas prezavam por uma descrição cada vez mais precisa de mecanismos cerebrais envolvidos na escuta musical e pouco diziam sobre o desenvolvimento da percepção musical, passei a tentar encontrar uma possível correlação entre os dados da neurociência, e os relatos de compositores e educadores a respeito da escuta musical. Em tal empreitada não obtive sucesso algum. Ambas as abordagens, a de cunho científico e a outra mais fenomenológica, pareciam estar falando de assuntos completamente diferentes e nenhuma das duas conseguia, de fato, dar uma descrição completa e precisa sobre o que e como as coisas acontecem durante a escuta de uma música. Foi nesse ponto que passei a me perguntar se eu deveria optar por buscar essas respostas nas neurociências ou em outras áreas como a filosofia e a música. Após muitas leituras e conversas com professores e amigos, ficou cada vez mais claro 13 para mim que o problema que se escondia por trás dos meus questionamentos era, na verdade, o problema da relação entre mente e corpo, antigo conhecido da filosofia da mente. Mais ainda, ficou claro que, para discutir como é possível duas áreas diferentes falarem sobre a música de maneiras tão distintas e, ainda assim, serem importantes para entender o mesmo fenômeno, era preciso assumir uma perspectiva filosófica da relação mente e corpo e, a partir daí, analisar o papel de cada abordagem e como é possível pensar uma complementaridade entre ambas. Nesse contexto surgiu o objetivo central desta pesquisa: discutir a música, como recebida pelo ouvinte, na perspectiva do Monismo de Triplo Aspecto (MTA). Tal preocupação surge do interesse em integrar as diferentes abordagens de pesquisa da música e da escuta musical. A neurociência cognitiva da música tem apresentado diversas descobertas a respeito do funcionamento do cérebro humano durante a escuta de estímulos musicais. Por outro lado, teorias de educadores musicais e compositores fornecem explicações sobre a mesma atividade através de uma fenomenologia da escuta, sem fazer referência ao funcionamento cerebral – ainda que não neguem a importância do cérebro. Comparando esses dois grupos de pesquisa, observamos de um lado explicações por modelos e conceitos científicos com descrições em terceira pessoa e, por outro lado explicações fenomenológicas em primeira pessoa. Com o intuito de discutir uma possível contribuição entre ambas as áreas e, consequentemente seus respectivos dados, julgamos ser necessário, como dissemos anteriormente, assumir alguma perspectiva específica da relação mente/corpo. A perspectiva aqui adotada é o Monismo de Triplo Aspecto, já que este nos parece completo o suficiente para incluir tanto os conceitos científicos quanto os fenomenológicos além de trazer na sua própria noção de música, o papel do ouvinte. No primeiro capítulo buscamos contextualizar as pesquisas em neurociência cognitiva da música que focam no ouvinte. Primeiro apresentamos diversos exemplos de pesquisas em neurociência cognitiva da música, enfatizando algumas das questões que movem a área, os métodos utilizados e alguns resultados (PERETZ, ZATORRE, 2003). Em seguida focamos em modelos da percepção musical ou, em outros termos, de como o cérebro processa a música ouvida. Partimos das descrições propostas no âmbito mais psicológico, como em Sloboda (2008) e Krumhnsl (2006), até chegar a descrições de fato baseadas em dados sobre o funcionamento do cérebro, como em Koelsch e Siebel (2005) e Levitin 14 (2010). Tais pesquisadores, entre outros mencionados, relacionam eventos cerebrais a certas habilidades relacionadas à escuta musical, como o processamento notas, melodias, acordes, reconhecer estilos musicais, etc. Algumas dessas habilidades são relacionadas ao cérebro através de dados de eletroencefalogramas (EEG) ou técnicas de imageamento cerebral. Variando o estímulo e os experimentos, esses pesquisadores buscam, como veremos, uma descrição cada vez mais precisa do funcionamento cerebral durante a atividade de escuta musical. O segundo capítulo tem como objetivo apresentar uma visão mais crítica da área baseada na filosofia da neurociência de William Bechtel (2008, 2012). Acreditamos que, assim, poderemos evitar discutir uma visão ingênua da neurociência que não corresponde de fato as atividades propostas por tal área. A filosofia de Bechtel é descritiva e, portanto, sua leitura das pesquisas em neurociência está baseada em problemas e questões que próprios neurocientistas enfrentam. Acreditamos ser necessário apresentar as bases da neurociência (de forma geral) visto que nos textos de pesquisas neurocientíficas tal apresentação não ocupa um lugar de destaque, ficando subentendido alguns pressupostos importantes da área como, por exemplo, o paradigma Localizacionista, adotado por grande parte dos neurocientistas. A neurociência busca, como aponta Bechtel, descrever os mecanismos cerebrais que possibilitam a ocorrência de um dado fenômeno, no caso, a percepção musical, no sentido de ouvir música. Muitas dessas pesquisas, ao menos no caso da música, focam em possíveis especializações que o cérebro apresenta e, descobrindo essas áreas especializadas, podem investigar e descrever os mecanismos cerebrais responsáveis pela percepção melódica, rítmica, harmônica, etc. Bechtel observa que algumas mudanças na forma de fazer neurociência cognitiva marcam uma nova compreensão do conceito de mecanismo, principalmente por parte da biologia. Tais mudanças se refletem na superação do próprio paradigma Localizacionista, que passa a ser entendido como uma atividade heurística. Explicar o funcionamento de um mecanismo cerebral/mental é entendido agora não só como identificar quais partes do cérebro são responsáveis pelo fenômeno, mas também compreender sua organização temporal e sua relação com outros mecanismos cerebrais. Essa abordagem tem aparecido em pesquisas mais recentes, descritas no final do primeiro capítulo, que buscam não mais separar os 15 componentes da música, mas sim aproximar as condições de laboratório nas quais os testes acontecem da experiência cotidiana de ouvir música. Isso ocorre principalmente através do uso de músicas inteiras nos experimentos, por exemplo, que tem revelado a existência de redes neurais que podem ser relacionadas com a percepção de certos tipos de música. Além disso, discutimos nesse capítulo os três principais métodos de pesquisa da neurociência cognitiva. Com isso, é possível ter uma ideia mais clara de que tipo de explicação que a neurociência pode oferecer ao se utilizar de tais métodos. No terceiro capítulo nos debruçamos sobre teorias de educadores musicais e compositores que tratam da escuta musical. Várias teorias poderiam ter sido escolhidas para ilustrar essa abordagem fenomenológica da escuta. Optamos pelas aqui apresentadas não só pela relevância delas no meio musical, mas também pela familiaridade com os autores. Notaremos que, além de não precisarem levar em conta dados da fisiologia ou de modelos científicos em suas pesquisas, os autores apresentados nesta seção ampliam tanto as noções de escuta/percepção quanto a de música. O contexto em que a escuta ocorre passa a ser de extrema relevância para compreender, por exemplo, o que caracteriza a escuta musical. A teoria da aprendizagem musical de Edwin Gordon (2000) traz o conceito de audiação, muito ligado a noção de compreensão e apropriação da música; a educadora musical Helena Loureiro (1999) argumenta a favor da existência de esquemas perceptivos mentais que, com o estudo e contato com a música, são sensibilizados para as estruturas que compõe diferentes poéticas; na mesma linha, o compositor Silvio Ferraz (RAMOS, FERRAZ, 2014) descreve exemplos das suas próprias aulas de composição que corroboram a noção de que nossa percepção musical pode ser modificada de acordo com o contato (formal ou não) que temos com a música; e vale mencionar novamente a teoria da escuta do compositor francês Pierre Schaeffer (2003), que faz uma minuciosa investigação acerca da escuta em diferentes contextos bem como sua relação com os outros sentidos. Discutir uma possível complementaridade entre as abordagens científica e fenomenológica e, nesse sentido, como integrar explicações tão diferentes da mesma atividade, exige assumir ao menos um pressuposto, qual seja, o da relação mente e corpo. A perspectiva que optamos é o Monismo de Triplo Aspecto (PEREIRA JR., 2013, 2014). A ontologia proposta pelo MTA, como iremos observar 16 no capítulo 4, possibilita compreender as duas abordagens discutidas nesta pesquisa de forma a ressaltar a importância de ambas e entender de que maneira estão relacionadas, sem que nenhuma seja tida como menos relevante que a outra ou redutível à outra. Além disso, poder contar com a orientação do próprio criador dessa teoria despertou ainda mais nosso interesse em adotá-la como ponto de partida para discutir o problema aqui proposto, além de podermos, também, explorar e desenvolver sua proposta. Veremos que, de acordo com o MTA, o próprio fenômeno musical necessita do ouvinte para ser de fato atualizado na Natureza. Os diferentes aspectos que compõem a totalidade das coisas, de acordo com o MTA, podem também ser observados na atualização da música. Nesse sentido, diferentes disciplinas, entre elas a fenomenologia da escuta e a neurociência da música, são responsáveis por descrever diferentes aspectos que, ainda que irredutíveis uns aos outros, devem ocorrer simultaneamente para que a música seja experienciada como a conhecemos. 17 CAPÍTULO 1 – Música e Neurociência 18 Nesta primeira parte do trabalho apresentaremos alguns momentos de aproximação entre as neurociências e a escuta musical. Procuramos contextualizar, de forma breve e focando na atividade empírica e seus pesquisadores, algumas abordagens da música. Foge do objetivo desse trabalho fazer uma revisão bibliográfica sistemática do tema. Alguns expoentes, que julgamos estar em sintonia com diversos outros pesquisadores da área, são apresentados aqui. O ponto que nos interessa é entender que tipo de informação é apresentada pela abordagem neurocientífica, ou seja, entender os conceitos e modelos científicos baseados em experimentos que a neurociência cognitiva da música cria e utiliza. Visto que não parece ser o caso de que já exista um modelo científico completo da percepção musical, não buscamos neste capítulo focar exatamente nos resultados enquanto corretos ou não, mas sim no tipo de resultado e de descrição que esses pesquisadores fornecem. 1.1 A Neurociência Cognitiva da Música No prefácio do livro The Cognitive Neuroscience of Music (PERETZ, ZATORRE, 2003, p. v, tradução nossa) os autores colocam que “durante a última década tem ocorrido uma explosão de pesquisas sobre percepção e performance musical e seus correlatos no cérebro humano.” Como justificativa para o desenvolvimento de tais pesquisas os autores apontam para o fato de a música ser um elemento presente em todas as culturas, além de possuir estreita relação com a linguagem. Em outro artigo chamado Biological Foundations of Music, Peretz (2013, p. 553, tradução nossa) caracteriza com mais detalhes sua visão sobre a área dizendo que Com o intuito de identificar esse potencial musical e estudar seus correlatos e especificidades neurais para a música eu estudo anomalias comportamentais combinadas com neuroimagem e, mais recentemente, estudos genéticos. Essa abordagem baseada em anomalias tem sido uma das melhores fontes de evidência para o estudo do funcionamento de um sistema complexo como é o sistema associado à capacidade musical. A lógica é essencialmente a da engenharia reversa. Ou seja, os componentes 19 internos de um sistema complexos são mais bem entendidos quando o sistema apresenta algum problema do que quando ele funciona bem. Tentar entender nossa relação com a música analisando o funcionamento do cérebro em atividades musicais encontra ecos não só na pesquisa de Peretz, mas de diversos outros neurocientistas. Brust (2003, apud PERETZ, 2003, p.181, tradução nossa) diz que Como o cérebro processa música tem intrigado neurologistas e psicólogos por mais de um século. Uma resposta direta/simplista não é esperada devido aos componentes da música – por exemplo, altura, timbre, duração, intensidade e ritmo – serem, possivelmente, processados em circuitos separados. Música pode ser tanto linear (e.g. melodia) e não linear (e.g. acordes), e diferentes tipos de música demandam diferentes potenciais intelectuais e emocionais em diferentes ouvintes ou performers. Rodrigues (2009, p. 1) pontua que A música é uma forma de arte e expressão humana presente mundialmente (Hauser E Mcdermott, 2003; Gray e colaboradores, 2001; Tramo, 2001), irrestrito a gênero, classe social, língua ou idade. Freqüentemente tratada apenas como uma manifestação cultural, um alvo de pesquisa “não- essencial” (Zatorre, 2003), essa distribuição global gera indícios de que a música é mais do que isso. Ainda assim, não há uma explicação clara e consensual de suas vantagens adaptativas (Pinker, 1998). Segundo Rodrigues (2009), descobrir os mecanismos cerebrais que possibilitam a existência da música são importantes para responder, ou ao menos contribuir para responder, questões relacionadas à sua origem, possíveis vantagens evolutivas da mesma, a relação de outras espécies com a música, temas que, ainda que interessantes, não são o foco da nossa pesquisa. Um ponto importante que o autor conclui baseado no processamento cerebral das alturas, a título de ilustração, é que “fazemos a classificação de notas musicais de acordo com aquilo que nosso cérebro está apto a perceber e não por pura subjetividade.” (RODRIGUES, 2009, p. 2). Segundo Rodrigues, esse tipo de dado fornecido por estudos acerca do cérebro é importante também para discutir que aspectos da música são produtos somente da cultura, somente do funcionamento cerebral, ou se a música seria um fenômeno biológico e cultural ao mesmo tempo. Sendo assim, partindo de uma visão mais ampla da relação entre seres humanos e música, o neurocientista se vê frente a várias possibilidades. O pesquisador pode buscar responder questões sobre a origem da música e suas possíveis vantagens evolutivas; pode focar na questão da execução e as habilidades 20 motoras relacionadas; pode lidar com a questão da criatividade ligada a composição e a improvisação; e pode ainda buscar compreender nossa habilidade de ouvir música. Como acontece com a maioria das pessoas, o potencial musical se manifesta nas habilidades de ouvinte e “apreciador” da música. Esse último ponto, que é o que nos interessa aqui, longe de ser uma atividade simplesmente “amadora”, se mostra extremamente complexa. Como aponta Peretz et al. (2009, p.1, tradução nossa) Para a maioria dos indivíduos que não são treinados musicalmente, esse traço humano fundamental é expresso na ávida atividade de apreciação musical e ocasionalmente pela dança e pelo canto. A propensão para se engajar com a música finalmente dá origem a um sofisticado sistema de processamento musical que é amplamente adquirido implicitamente pela experiência. 1.2 Escuta Musical na Neurociência Cognitiva da Música Tal atividade, qual seja, ouvir música, tem sido amplamente discutida por neurocientistas (PERETZ e ZATORRE, 2003), além dos aqui já citados, que buscam, estudando o cérebro, entender como é possível nos lembrarmos de melodias, apontar uma nota como errada, reconhecer timbres de diferentes instrumentos, e uma série de outras habilidades que são desenvolvidas em maior ou menor grau por quase todos os humanos – sejam músicos com treino formal ou não. Essa empreitada dá origem a diversos conceitos, modelos e noções que serão aqui apresentados. No nível mais abstrato de explicações que ainda não estão baseadas em estudos sobre o cérebro especificamente estão os estudos comportamentais. Estes, mais ligados à psicologia da música, são frequentemente utilizados por neurocientistas visto que tais dados auxiliam na delimitação do fenômeno a ser estudado. Apesar de não serem produtos de testes neurocientíficos, os dados que testes comportamentais revelam são importantes para um quadro maior de pesquisa interdisciplinar chamado de neurociência cognitiva. Bechtel (2008, p. 41) ressalta que além dos problemas éticos envolvidos em pesquisas realizadas diretamente no cérebro, a relevância de testes comportamentais vem também do fato de que mesmo quando os dados retirados do cérebro são possíveis, geralmente eles só são informativos quando se sabe o funcionamento do mecanismo como um todo. 21 No livro referência da psicologia da música A Mente Musical (SLOBODA, 2008), o autor divide a percepção musical em três componentes principais: a “audição natural”, que possibilita mecanismos primitivos de agrupamento em música; a atenção e a memória. Esses três elementos seriam no mínimo necessários para nossa percepção musical e possuem, possivelmente, bases cerebrais diferentes, que se organizam para gerar o que experienciamos quando ouvimos música. Especificando um pouco mais, Levitin (2010, p. 2.) coloca que são nove atributos que percebemos quando ouvimos música: nota/tom, altura, ritmo, andamento, contorno, timbre, intensidade, localização e reverberação. Uma extensa revisão bibliográfica de experimentos comportamentais realizados por psicólogos acerca da percepção do ritmo e da altura é apresentada em Krumhansl (2006). Nesse texto, a percepção do ritmo é dividida em: percepção de categorias rítmicas, percepção da hierarquia dos acentos e percepção do agrupamento dos sons no tempo. Já a percepção das alturas foi dividida por Krummhansl (2006), entre outros elementos, em: intervalos, consonância/dissonância e categorias. Aqui, assim como no exemplo de Sloboda (2008), as estruturas físicas que dão suporte e possibilitam o fenômeno ainda não estão em jogo. Isso não significa, contudo, que esse tipo de dado é irrelevante para a neurociência. Esse tipo de informação pode direcionar a investigação neurocientífica na medida em que sugere que diferentes mecanismos, possivelmente com diferentes bases cerebrais, dão suporte à atividade a ser explicada. No nível cerebral a divisão do mecanismo em partes e operações cerebrais é descrita por Bechtel como Decomposição Estrutural. Aqui o foco, como coloca Bechtel (2008, p. 50), são as partes e operações de cada mecanismo. Nas pesquisas aqui tratadas essa parte da explicação ocorre quando se busca identificar no cérebro o que acontece e onde acontece cada “passo” envolvido na escuta de uma música – memória, atenção, percepção de melodias, percepção rítmica, emoção, “significado”, e quaisquer outros mecanismos que sejam considerados necessários para a audição de uma música. Os estudos envolvendo lesões no cérebro bem como imageamento cerebral e eletroencefalograma (EEG) são fontes bastante informativas para essa etapa. Vejamos alguns exemplos de pesquisas que buscam relacionar certos aspectos da escuta musical a regiões cerebrais ou a padrões de ondas no cérebro. 22 Oliver Sacks (2007) escreve acerca de diversas anomalias relacionadas à escuta musical e lesões cerebrais. Ainda que os casos descritos pelo autor não apresentem dados específicos sobre o funcionamento cerebral na escuta musical, são importantes para corroborar a relação pressuposta na neurociência cognitiva da música, qual seja, a de que o cérebro possui certos mecanismos necessários para ouvirmos música como ouvimos. O caso de Rachel Y., por exemplo, envolve a perda da capacidade de “sintetizar” o material musical de uma peça em um todo coerente. Por mais abstrata que possa parecer essa operação é isso que a paciente de Sacks relata. Segundo Sacks (2007, p.121-122) após ter sofrido um acidente de carro que, além diversas lesões, inclusive na cabeça, a levou ao coma por alguns dias, Rachel Y diz ao ouvir música que cada “voz” ou cada instrumento possui um peso igual para sua percepção. A capacidade de ouvir um trecho de um quarteto de cordas, por exemplo, soando como um todo foi perdida, e o que ela ouve são quatro instrumentos tocando como que de forma independente uns dos outros. Outro caso que Sacks (2007, p. 162-163) descreve envolve não a perda de alguma operação necessária à percepção musical, mas sim uma melhora nas habilidades musicais de um paciente que apresenta diversas dificuldades cognitivas. Por conta de uma meningite contraída quando criança, Martin teve sua personalidade alterada, se tornando impulsivo e estranho, como Sacks o descreve. Contudo, suas habilidades musicais são muito acima da média. Além de saber mais de duas mil óperas “de cabeça”, Martin consegue memorizar o que cada instrumento e voz toca em cada uma das peças que conhece. Sacks (2007, p. 163, tradução nossa) conta que Quando eu toquei para ele uma peça de Debussy que ele nunca tinha ouvido, ele conseguiu repetir a peça ao piano, quase que sem errar. Então ele transpôs a peça para outros tons e improvisou sobre a peça com um estilo debussyniano. Ele conseguia captar as regras e convenções de qualquer música que ele ouvia, mesmo quando não eram familiares ou algo que ele gostasse. Esses “experimentos da natureza”, ainda que apresentem características curiosas e importantes dos mecanismos estudados, são difíceis de serem interpretados. Como coloca Bechtel (2008, p. 41, tradução nossa), nesses casos envolvendo acidentes nenhuma área específica foi pensada como “alvo” a ser desativado para se entender melhor um mecanismo. Em derrames, por exemplo, qualquer tecido que receba seu sangue de uma “cama vascular” específica é afetado, e isso não mapeia de forma nítida as 23 áreas dos tecidos que devem funcionar como partes funcionais baseado em organização arquitetônica e função. Koeslch e Siebel (2005) apresentam um modelo mais específico da percepção musical. Tal atividade é, para os autores, composta por diferentes módulos responsáveis por lidar com aspectos específicos que compõe a música. Os autores conseguem relacionar certos padrões de frequência no cérebro à realização de atividades específicas dentro da escuta musical. Figura 1 – Modelo da Percepção Musical Fonte: Koelsch e Siebel (2005, p. 579) Com modelos da escuta musical disponíveis, a atividade é mais bem delimitada e os pesquisadores podem ter uma ideia de quais mecanismos serão necessários para que a atividade pesquisada ocorra, ainda que essa delimitação possa modificada no decorrer da pesquisa de acordo com novos dados colhidos. A descrição de Levitin (2010, p. 100) sobre a relação cérebro e música ilustra de forma clara a abordagem neurocientifica da percepção musical enquanto a “habilidade de ouvir música”. Para o autor Os diferentes aspectos da música são tratados por diversas regiões neurais: o cérebro vale-se da segregação funcional para o processamento musical, utilizando um sistema de detectores cuja função é analisar determinados aspectos do sinal musical, como altura, andamento, timbre, etc. Mais especificamente sobre a escuta musical diz o autor (LEVITIN, 2010, p. 100) que 24 O ato de ouvir música começa nas estruturas subcorticais (abaixo do córtex) – os núcleos cocleares, o tronco cerebral, o cerebelo – e em seguida avança para o córtex auditivo de ambos os lados do cérebro. A tentativa de acompanhar uma música que já conhecemos – ou pelo menos de um estilo com o qual estamos familiarizados, como a música barroca ou blues – mobiliza outras regiões do cérebro, entra elas o hipocampo – o centro da memória – e subseções do lobo frontal, especialmente uma região chamada córtex frontal inferior, situada nas partes inferiores do lobo frontal (...) Para Peretz e Zatorre (2005, p. 2) a percepção musical compartilha de diversos componentes da percepção que temos do nosso ambiente sonoro de forma geral. Nas palavras dos autores (PERETZ; ZATORRE, 2005, p. 2, tradução nossa), “Um som atinge o tímpano e dá início a uma complexa cascata de eventos mecânicos, químicos e neurais na cóclea, tronco cerebral, núcleos do mesencéfalo e córtex que, eventualmente – mas rapidamente – resulta em um percepto.” Nas revisões apresentadas em Rodrigues (2011) e Thenille (2008), encontram-se diversos exemplos de pesquisas identificando partes e/ou operações no cérebro com base em dados de imageamento cerebral e eletroencefalograma. Isabelle Peretz, já mencionada nesse trabalho, realiza diversas pesquisas com pessoas que por diferentes motivos apresentam alguma deficiência na percepção musical. Nas palavras da autora (PERETZ, 2013, p. 556, tradução nossa, grifo nosso) Um aspecto intrigante dessa condição [amusia] é que ela afeta música mas não a linguagem [speech]. Indivíduos amusicos produzem e compreendem linguagem de maneira normal. Em contraste, eles experienciam dificuldades em reconhecer melodias instrumentais; eles têm problemas em ouvir quando alguém canta fora do tom ou desafinado (geralmente notas desafinadas ou fora do tom, como foi mencionado); e a maioria não consegue cantar afinado. Essa dissociação entre linguagem normal e dificuldades com melodias é mais bem revelada no processamento de canções. Como descreve Rodrigues (2009, p. 2) esse tipo de dado apresenta uma dupla dissociação entre música e linguagem. Bechtel (2008, p. 43, tradução nossa) diz que se encontra uma dupla dissociação quando “danos em uma área [do cérebro] causam problemas em uma atividade [X] (enquanto praticamente não afeta a outra atividade [Y]), e danos em uma segunda área provocam deficiência à segunda atividade [Y] (praticamente não afetando a primeira [X])”. Apesar de ser bem aceito na comunidade científica, esse tipo de evidência, segundo Bechtel (2008, p. 43, tradução nossa) pode também levar a uma interpretação errônea do fenômeno visto 25 que “dupla dissociações podem surgir mesmo quando duas atividades compartilham um número de operações componentes” (BECHTEL, 2008, p. 43, tradução nossa). Nesse sentido, a localização de funções seria apenas uma estratégia heurística para a decomposição de um mecanismo em operações mais elementares. Em Peretz et al. (2009) os pesquisadores utilizam EEG para encontrar possíveis diferenças no processamento de melodias em amúsicos e um grupo controle. O teste consiste em ouvir a mesma melodia três vezes, sendo que em uma das vezes uma das notas é tocada fora do tom, e em outra vez uma nota é tocada de forma desafinada. Os resultados de EEG corroboram a ideia de que o mecanismo de percepção melódica em sujeitos amúsicos é diferente dos sujeitos do grupo controle, visto que os potenciais evocados são diferentes. Figura 2 – Melodias utilizadas no experimento Fonte: Peretz et al. (2009, p.1280) Figura 3 – Resultado do EEG do grupo controle e nos amúsicos 26 Fonte: Peretz et. al. (2009, p. 1282) Em Parsons (2003), o autor discute as bases neuronais do processamento musical (na performance, percepção e compreensão da música) baseado em quatro resultados de tomografia por emissão de pósitron. Segue na Figura 4 um exemplo do artigo de Parsons (2003). Figura 4 – Resultado do PET enquanto músicos deviam ler e perceber na performance ouvida possíveis erros na harmonia, ritmo ou melodia. A música utilizada foi um coral de J.S. Bach. 27 Fonte: Parsons (2003, p. 252) Talvez o passo mais complicado na abordagem dos neurocientisitas seja descrever a organização conjunta entre todas as partes identificadas nos estudos focados em habilidades mais específicas (por exemplo, percepção de alturas, timbres, melodias, ritmo, etc.). É natural assumir que há a integração entre todas essas informações musicais processadas em partes separadas do cérebro já que, ao ouvir música, ouvimos como um todo, e não como vários componentes separados. Enquanto em experimentos mais antigos utilizava-se EEG como um primeiro momento na localização de determinada operação cerebral ou mesmo na delimitação de certas operações cerebrais, em pesquisas mais recentes fica evidente a busca de alguns cientistas em tentar entender o fenômeno de forma mais abrangente e com experimentos construídos para aproximar a maneira como a atividade de ouvir música irá ocorrer no laboratório da forma como ela se dá em situações cotidianas, como quando ouvimos música no rádio ou em um concerto. Em Alluri et al. (2012) os pesquisadores utilizam ressonância magnética funcional para observar o comportamento do cérebro enquanto os sujeitos ouviam um tango moderno, ao invés de um estímulo sonoro “simples” como em muitas pesquisas na área. Os resultados obtidos foram comparados com resultados de pesquisas anteriores que utilizavam certos métodos de controle para investigar o processamento do timbre, ritmo e tonalidade. Além de áreas previamente encontradas, em Alluri et al. (2012) o experimento revela outras áreas recrutadas. 28 Os autores descrevem os resultados como revelando os “circuitos cerebrais cognitivo, motor e límbico em larga escala responsáveis pelo processamento de informação acústica” (ALLURI et al., 2012, p.1, tradução nossa). No texto em questão os pesquisadores mostram a preocupação em entender a organização dos mecanismos e não apenas sua localização dizendo que Estudos prévios de neuroimagem tem tentado identificar estruturas cerebrais envolvidas na percepção de elementos [perceptual features] da música, tais como altura (Patterson, et al. 2002), dissonância sensorial (Blood et al. 1999; Koelsch et al. 2006), ritmo (Chen et al. 2008; Grahn e Rowe, 2009), timbre (Calcin et al. 2006; Halpern et al. 2004) e tom [key] (Janata et al. 2202a, 2002b). Contudo, ainda que esses estudos tenham identificado com sucesso as regiões cerebrais que participam no processamento de elementos [features] musicais individuais, eles tem se baseado em paradigmas de controle auditivo nos quais tais elementos são apresentados isoladamente e manipulados artificialmente. Em Abrams et al. (2013) os autores iniciam o artigo apresentando a mesma preocupação de Alluri et al. (2012). De acordo com Abrams et al. (2013, p. 1, tradução nossa, grifo nosso) Estudos de imageamento cerebral tem identificado uma ordem de estruturas que estão na base de [processamento de] componentes cruciais da música, incluindo altura (Zatorre et al., 1994; Patel & Balaban, 2001), harmonia (Janata et al., 2002; Passynkova et al., 2005), ritmo (Snyder & Large, 2005; Grahn & Rowe, 2009), timbre (Menon et al., 2002; Deike et al., 2004) e sintaxe musical (Levitin & Menon, 2005; Abrams et al., 2011; Oechslin et al., 2012). Um esquema de prováveis substratos neurais de elementos musicais individuais que é construído baseado em estímulos artificialmente criados em laboratórios não representa a música como é comummente ouvida, limitando a validade ecológica de tais estudos. Além disso, essa abordagem componencial falha em lidar com um dos aspectos mais importantes da musicalidade do ouvinte – a habilidade de integrar componentes da informação musical [que são apresentados] durante períodos temporais estendidos (na escala de minutos) em uma gestalt perceptual coerente (Leaver et al., 2009) A abordagem que Abrams et al. (2013) utilizam é a Sincronização Inter- Subjetiva (ISS) com ressonância magnética que, nas palavras dos autores “detectam entre os sujeitos, através do cálculo de correlações baseada no voxel da atividade da RMf, quais estruturas cerebrais que respondem aos mesmos estímulos no decorrer do tempo” (Abrams et al. 2013, p. 1, tradução nossa). Além disso, esse tipo de abordagem possibilita “examinar processos cognitivos que requerem a integração da informação no decorrer do tempo: isso é essencial para o estudo da música visto que seus elementos são manifestos no tempo.” (Abrams et al. 2013, p.1, tradução nossa) 29 Os autores utilizaram dois estímulos como controle e compararam os resultados do ISS com o obtido na escuta dos estímulos controle. A hipótese inicial era de que mais áreas seriam recrutadas e apareceriam no ISS quando a música era utilizada, em comparação aos outros estímulos sonoros. As imagens dos resultados podem ser encontradas em Abrams et al. (2013, p. 5-7) e mostram uma grande rede que inclui “estruturas subcorticais e do córtex auditivo no lobo temporal, córtex pré frontal inferior e regiões parentais associadas com atenção e memória de trabalho, e regiões medial frontal associadas com planejamento motor” (Abrams et al., 2013, p. 8, tradução nossa). A hipótese inicial foi confirmada e nas imagens é possível notar o quão reduzida é a sincronização intersubjetiva nos estímulos controle. Contudo, ainda que seja relevante a proposta desse tipo de experimento, nada é explicado acerca da organização temporal dos mecanismos no cérebro. Apenas é identificada uma rede que inclui áreas previamente associadas à percepção musical e outras que parecem ser recrutadas somente quando estímulos musicais mais complexos são utilizados, ou seja, quando há integração entre os componentes da música. Um terceiro e último exemplo de pesquisas que ao menos tentam dar um passo além da identificação de áreas cerebrais envolvidas na atividade de escuta musical é o experimento de Wilkins et al. (2014) no qual os autores já trabalham com a noção de redes e investigam o comportamento cerebral em indivíduos ouvindo suas músicas preferidas. A questão que move tais pesquisadores é como é possível estilos/gêneros musicais extremamente diferentes, como a música do rapper Eminem e do compositor Beethoven, levar ouvintes que apreciam essas músicas a experienciarem estados mentais semelhantes, correspondendo a padrões de ativação cerebral equivalentes. Esses estados estão relacionados a memórias, emoções e estados de introspecção que são vivenciados por diversas pessoas quando ouvem suas músicas favoritas, independente das características dessas músicas. Nas palavras dos autores “como ouvir diferentes tipos de música podem conectar os mesmos sistemas cerebrais (i.e. circuitos no cérebro que são similarmente experienciados) associados a pensamentos e memórias?” (Wilkins et al., 2014, p. 1, tradução nossa) 30 Uma das preocupações dessa pesquisa é, assim como em Abrams et al. (2013), a necessidade de utilizar estímulos de fato musicais e criar condições de escuta mais próximas das que vivenciamos no cotidiano. Para isso, Wilkins et al. (2014) trabalham com dados de ressonância magnética fornecidos durante a escuta de canções inteiras que variam de acordo com a preferência relatada por cada participante. Além disso, os pesquisadores utilizam a Network Science para interpretar esses dados e buscar por redes cerebrais que possam estar associadas à apreciação de canções/gêneros favoritos em comparação a canções/gêneros que os participantes não gostam. Segundo Wilkins et al. (2014, p. 1, tradução nossa) Network science é um promissor e emergente método de análise para investigar sistemas complexos em termos dos seus elementos e das relações e interações entre os elementos da rede. O recente advento de estudar o cérebro como um sistema complexo oferece uma compreensão mais completa da organização e do funcionamento cerebral. Os resultados das análises apontam para uma rede funcional que pode ser associada a ouvir músicas favoritas independente das qualidades acústicas (timbres, melodias, ritmos, etc.) das mesmas. Nessa rede, além de áreas cerebrais que participam do processamento de informação musical, mecanismos cerebrais responsáveis pelo “self reflective thought” e pela memória sócio-emocional também tem um papel importante (Wilkins et al., 2014, p. 4). 1.3 Considerações finais sobre a abordagem neurocientífica da escuta musical Podemos observar, com base nas citações acima colocadas, o interesse das abordagens neurocientíficas sobre a música que, ainda que por diferentes motivos, buscam no cérebro respostas para perguntas acerca da nossa percepção musical ou, ainda de forma mais abrangente, da nossa relação com a música. Segundo os pesquisadores mencionados, existem correlatos cerebrais que de alguma forma dão suporte tanto a nossa percepção musical, tema desse trabalho, bem como o fazer musical como um todo. Observando os exemplos, podemos também concluir que a neurociência cognitiva da música, ao propor explicações sobre nossa habilidade de ouvir música, oferece descrições do comportamento cerebral enquanto a escuta musical acontece. 31 São propostas tarefas que visam o uso de certos aspectos dessa habilidade e, a partir dos dados colhidos, os pesquisadores podem construir modelos que representam tal atividade. É possível, a partir disso, comparar diferentes modelos, verificar possíveis divergências e criar novos testes para melhorar a descrição da atividade pesquisada. Além desse modus operandi da neurociência da música que possibilita confirmação empírica de certas capacidades cognitivas relacionadas à percepção musical, existem ainda outros pontos que estão na base da neurociência cognitiva de forma geral. O filósofo William Bechtel (2008, 2012) descreve alguns pressupostos e direcionamentos da área que julgamos serem importantes para situar melhor o campo aqui discutido. Sem levar em conta a existência de tais pressupostos, a comparação entre as diferentes abordagens pode ser prejudicada. 32 CAPÍTULO 2 – A Filosofia da Neurociência de William Bechtel: o paradigma Localizacionista e as principais técnicas da neurociência cognitiva segundo William Bechtel 33 O objetivo desta seção é apresentar alguns pontos da filosofia da neurociência de William Bechtel entendendo que a leitura que o autor faz da pesquisa neurocientífica de modo geral pode servir também à nossa compreensão da neurociência da música. Discutiremos, baseados em Bechtel, alguns dos objetivos da neurociência, um importante paradigma atrelado a esse campo e as principais metodologias utilizadas nessa área. Apesar de optar por uma filosofia da neurociência descritiva, Bechtel também assume certos pressupostos para poder construir sua análise. Veremos que tal autor toma como referência a abordagem funcionalista da relação mente/cérebro e, a partir daí, desenvolve sua descrição dos estudos neurocientíficos. Contudo, o ponto que nos interessa da filosofia de Bechtel é sua descrição dos métodos de pesquisa da neurociência e a descrição que o autor faz do paradigma Localizacionista. Como poderemos observar, tais pontos independem do pressuposto funcionalista adotado por Bechtel, ainda que possam ser interpretados segundo o mesmo. Sendo assim, descreveremos brevemente e apenas a título de ilustração o posicionamento funcionalista de Bechtel a respeito da descrição que ele faz dos métodos neurocientíficos e do paradigma Localizacionista. É interessante notar a ênfase que Bechtel dá à necessidade de descrições dos mecanismos cerebrais em termos de sincronias e diacronias. Diferente do paradigma Localizacionista que, por sua vez se aproxima de uma frenologia no sentido de analisar o funcionamento das partes cerebrais isoladas umas das outras, Bechtel observa em alguns estudos mais recentes da neurociência cognitiva a preocupação em entender o funcionamento dessas partes do ponto de vista temporal e global do cérebro. Em Damásio (2000, p. 87, tradução nossa), se referindo ao comportamento geral de um organismo, o autor apresenta uma ótima analogia com a música que ilustra a importância das abordagens dinâmicas e sistêmicas do cérebro dizendo que, assim como a música que você escuta é o resultado de muitos grupos de instrumentos tocando juntos no tempo, o comportamento de um organismo é o resultado de diversos sistemas biológicos atuando simultaneamente. Sendo assim, acreditamos que essa preocupação é de extrema relevância no caso dos estudos sobre a escuta musical e, de forma geral, para a compreensão do cérebro na cognição musical. 34 2.1. Neurociência Cognitiva segundo Bechtel Bechtel (2008) parte do conceito de mecanismo, muito caro à biologia e às ciências cognitivas, para explicar a descrição neurocientífica do funcionamento da mente/cérebro. Para Bechtel (2008, p.14, tradução nossa) um mecanismo é constituído por partes e operações. Por partes eu designo os componentes estruturais do mecanismo, enquanto que por operações eu me refiro aos processos ou mudanças envolvendo as partes. Quando se trata de mecanismos mentais/cerebrais o autor (BECHTEL, 2008, p. 23) nota a importância de considerá-los não apenas enquanto mecanismos de transformações materiais, mas também como mecanismos que processam informação. Tal fato coloca em cena a possibilidade de um segundo plano de análise do fenômeno mental, qual seja, o plano informacional. Para entender o funcionamento de sistemas que lidam com o processamento de informação, Bechtel (2008, p. 26) adota a posição de David Marr (1982) que propõe a existência três planos de análise. São eles: 1) Teoria Computacional, que foca no mecanismo já contextualizado, no tipo de atividade que ele realiza; 2) Representação e Algoritmo, que busca responder como o mecanismo executa tal computação e 3) Implementação no Hardware, que tem como objeto de pesquisa “as estruturas físicas que realizam as representações e as operações nelas realizadas” (BECHTEL, 2008, p. 26, tradução nossa). Dentro do quadro explicativo que caracteriza o mental/cerebral como composto por mecanismos que processam informação, e levando em conta a possibilidade de mais de um plano de análise do mesmo fenômeno, qual a função da neurociência? Em que medida os dados fornecidos por tal área podem contribuir na descrição dos mecanismos mentais/cerebrais? Nas palavras de Bechtel (2008, p.34, tradução nossa) Se não a neurociência, o que então fornece a perspectiva implementacional [implementação no hardware] no contexto do processamento de informação? O ponto é notar que a perspectiva implementacional é uma perspectiva diferente das mesmas entidades e processos descritos na perspectiva informacional. 35 Além disso, a neurociência pode não só descrever esse sistema mente/cérebro em um dos seus planos de análise, mas pode também, com seus dados, contribuir para o entendimento do nível de análise informacional (frequentemente descrito em termos da psicologia). E isso porque, segundo Bechtel (2008, p. 31, tradução nossa), Componentes cerebrais não foram construídos para serem máquinas computacionais universais, mas para realizar [performar] tarefas particulares importantes para o organismo. Mecanismos cerebrais, portanto, são, mais provavelmente, estruturados e organizados da maneira mais adequada para realizar a tarefa que ele deve realizar. Sendo assim, os processos físicos podem ser altamente úteis para cientistas buscando entender como a/o mente/cérebro funciona. Após essa descrição, de acordo com Bechtel, acerca do campo em que a neurociência atua (dentro da perspectiva funcionalista que esse filósofo adota), apresentaremos agora como tais pesquisadores podem chegar aos resultados desejados. 2.2 O paradigma Localizacionista Um dos principais paradigmas que guia as pesquisas neurocientíficas é o Localizacionismo. Dentro dos conceitos utilizados por Bechtel (2008 p. 14, tradução nossa) “localizar uma operação é relacioná-la a uma parte específica [do cérebro]”. E isso por que “Partes de mecanismos não são apenas quaisquer partes fisicamente separáveis do mecanismo – mas sim partes funcionais, partes envolvidas em operações” (CRAVER, 2007, apud. BECHTEL, 2008, p.14, tradução nossa). Sobre a abordagem Localizacionista nas neurociências, Bechtel (2012) considera que esta traz de forma implícita uma abordagem muito particular do cérebro. Para Bechtel (2012, p. 3, tradução nossa), implicitamente, ao diferenciar áreas cerebrais e se referir a funções localizadas nessas, neurocientistas adotam a concepção de um sistema hierarquicamente organizado quase decomponível, articulada por Simon (1962). Em tal concepção, ainda que não seja um pré-requisito, segundo Bechtel (2012, p. 4, tradução nossa), 36 é natural assumir que um mecanismo construído de tal maneira irá funcionar através de uma sequência de operações especializadas, e que cada parte torna seu produto disponível para processamento futuro [...]. Simon (1962. p. 474, apud BECHTEL, 2012, p.3, tradução nossa) caracteriza sua visão de sistema hierarquicamente organizado quase decomponível da seguinte maneira: (a) em um sistema quase decomponível, o comportamento a curto prazo de cada um dos subsistemas componente é aproximadamente independente do comportamento a curto prazo dos outros componentes; (b) a longo prazo, o comportamento de cada um dos componentes depende dos outros componentes somente de forma agregada Na contramão de visões Localizacionistas estão os argumentos que defendem uma visão de sistemas dinâmicos para entender o funcionamento cerebral. Um dos principais argumentos, segundo Bechtel (2012), a favor dessa perspectiva e, portanto, contra a visão Localizacionista, é a questão da grande variabilidade nos dados apresentados em estudos Localizacionistas. A abordagem dos sistemas dinâmicos, como descreve Bechtel (2012, p. 4, tradução nossa) provê uma variedade de formas de identificar padrões de relação entre variáveis que caracterizam o sistema (e.g, descrevendo trajetórias no espaço de estados definidos em termos dessas variáveis e padrões dessas trajetórias) que podem estar relacionadas a diferentes atividades cognitivas. A abordagem resultante enfatiza padrões no comportamento global do cérebro que correspondem a atividades cognitivas particulares (...) Apesar de reconhecer a importância de localizar determinadas operações em áreas específicas do cérebro, Bechtel (2008) e Bechtel (2012) pontuam duas condições importantes para entendermos o Localizacionismo de maneira adequada. A primeira condição diz respeito à noção de sistema hierarquicamente organizado quase decomponível de Simon (1962) que está por trás do paradigma em questão. A partir de exemplos da biologia Bechtel (2012, p. 6, tradução nossa) diz que, mesmo quando componentes separados, originalmente capazes de funcionar de forma independente, se juntam, com o passar do tempo eles integram suas operações e se tornam bem menos decomponíveis. Além disso, diz Bechtel (2012, p. 6, tradução nossa), Mais comummente, contudo, a evolução procede expandindo, frequentemente duplicando (i.e. através de uma volta extra na divisão celular durante o desenvolvimento) partes existentes de um mecanismo permitindo, então, a diferenciação funcional e estrutural no sistema. Como possível candidato para ocupar a abordagem do cérebro baseada nas ideias até aqui expostas, Bechtel (2012, p. 6 – 7) apresenta evidências de redes 37 “small-world” na arquitetura do córtex que, ao contrário das ideias de Simon, podem dar suporte tanto para a emergência de áreas especializadas no cérebro quanto a integrações entre diferentes áreas. Através dessa proposta Bechtel relaciona a perspectiva Localizacionista e a perspectiva dos Sistemas Dinâmicos que, no primeiro momento, pareciam incompatíveis. Essa articulação entre Holismo e Localizacionismo que Bechtel (2012) esboça, baseado em dados fornecidos por ambos os paradigmas, pela noção de mecanismo de Simon (1962) e de redes small world, evidencia a limitação da explicação Localizacionista, apesar de não excluí-la. O Localizacionismo passar a ser entendido por Bechtel (2008, p.71) como heurístico e não ontológico – como seria para Simon e Fodor. Nesse contexto aparece a segunda condição para aceitarmos o Localizacionismo: a atividade de relacionar operações a áreas específicas do cérebro é apenas um dos momentos da explicação do fenômeno estudado. Para além desse passo é necessário entender quais operações estão sendo realizadas em cada parte, e mais ainda, como elas estão organizadas, inclusive temporalmente. 2.3 Principais métodos da Neurociência Cognitiva Para analisar o mecanismo da maneira desejada, apenas observações sobre o fenômeno não são suficientes. Segundo Bechtel (2008, p. 37, tradução nossa), para descobrir partes, operações e organização de um mecanismo é necessário outro tipo de intervenção, um tipo comumente relacionado a experimentos. Em um experimento sobre um mecanismo o investigador intervém para alterar o funcionamento do mecanismo e obter insights sobre o que acontece quando ele está funcionando normalmente. Três métodos de pesquisa são amplamente empregados com tal fim: experimentos comportamentais, experimentos que manipulam operações internas e experimentos que medem as operações internas. Os experimentos comportamentais não são precisos como os outros dois tipos, visto que não tem o potencial de decompor o mecanismo de forma muito detalhada. Contudo, pelo fato de não intervir diretamente no cérebro, é relativamente 38 menos problemático de ser empregado. Segundo Bechtel (2008, p. 39, tradução nossa) O que distingue experimentos comportamentais é que o pesquisador não manipula ou mede diretamente nenhuma operação do mecanismo. Ele manipula a tarefa proposta para o sujeito de diferentes maneiras para evocar operações internas. Nesse tipo de pesquisa o tempo que o sujeito necessita para realizar a tarefa proposta é um dos principais indicativos acerca do funcionamento do mecanismo (que é melhorado ou não dependendo das condições apresentadas na tarefa). Essa metodologia pode contribuir para delimitar melhor o mecanismo a ser descrito. Por exemplo, Krumhansl e Iverson (1992) a utilizam para investigar possíveis interferências entre a percepção de timbres e a percepção de alturas; Miyazak (2004) utiliza experimentos em que os sujeitos, alguns com ouvido absoluto, devem responder questões sobre as melodias ouvidas com o intuito de avaliar o que é facilitado ou não na percepção melódica de indivíduos com ouvido absoluto; por fim, Eerola et al. (2001) também utilizam experimentos comportamentais para investigar quais elementos da percepção melódica mais influenciam a categorização de melodias. Nos experimentos que envolvem manipulação das operações internas existem duas possibilidades: desabilitar ou estimular parte do mecanismo. Em alguns casos, como em Peretz et al. (2009), por uma má formação cerebral ou algum tipo de acidente, determinado mecanismo pode apresentar alguma deficiência. Os pesquisadores então conduzem análises com o intuito de descobrir qual a função daquela parte do cérebro danificada dentro do mecanismo estudado. Independente de a lesão ou estímulo ser ou não fruto de algum acidente e ser ou não permanente, a interpretação que se dá aos dados é de que aquela área afetada é responsável por certa operação do mecanismo (que está ausente ou melhorada) ou ainda que de alguma forma aquela parte seja necessária para o funcionamento do mecanismo (BECHTEL, 2008, p.42). A primeira dessas interpretações tem como base a ideia de mente/cérebro como compostos por módulos independentes, como a ideia de sistema em Simon (1972) ou de Fodor (1983). Um dos problemas nesse tipo de interpretação é que, como aponta Bechtel (2008, p. 42, tradução nossa), o cérebro é uma estrutura que está constantemente se adaptando: uma vez que uma área é removida o processamento em outras áreas também é 39 alterado. A área danificada pode não ter relação alguma com a atividade que foi impossibilitada; ao invés disso, o dano a tal área pode ter afetado a área que é de fato responsável pela atividade ou pode simplesmente ter alterado os sinais que ela recebe. Um exemplo desse tipo de metodologia na neurociência da música pode ser encontrado também em Peretz (2002). Baseada em resultados de testes em que os sujeitos apresentam deficiências na percepção musical enquanto outros aspectos da cognição são mantidos intactos, ou ainda em pesquisas que revelam autistas e epilépticos com diversas dificuldades cognitivas, exceto para a música, a autora argumenta a favor da existência de redes neurais especializadas no processamento musical. No caso dos experimentos envolvendo estimulação de certas áreas cerebrais, uma interpretação similar é utilizada. Tais experimentos “são comumente interpretados como mostrando que a área estimulada é responsável pela resposta gerada” (BECHTEL, 2008, p. 44, tradução nossa). Contudo, a visão do cérebro como sistema dinâmico discutida em Bechtel (2008, p. 44, tradução nossa) é importante aqui, Visto que uma região cerebral é conectada a outras regiões e que a ativação em uma pode levar a ativação de outras áreas que contribuem para o comportamento, tal suficiência [uma área cerebral ser condição suficiente para certa resposta] deve ser interpretada no contexto de um cérebro normalmente conectado. Portanto, para Bechtel (2008, p. 44), ainda que importantes, tais dados não são suficientes para explicar quais operações são executadas nas áreas cerebrais identificadas. Por fim, os experimentos que medem as operações internas podem ser não invasivos e medir a atividade cerebral durante a execução de uma tarefa específica. Segundo Bechtel (2008, p. 46), desde 1929 Berger já analisava diferentes padrões de onda provenientes de eletroencefalogramas (EEG). Além disso, pesquisadores conseguem, observando o potencial de resposta evocado (ERP), “informação temporal de alta resolução acerca da atividade cerebral (...) [ainda que sejam] incapazes de fornecer informações detalhadas sobre o local dessa atividade no cérebro” (BECTHEL, 2008, p. 46, tradução nossa). Mais recentemente – décadas de 1980 e 1990 – outras duas tecnologias foram desenvolvidas: Tomografia por emissão de pósitrons (TEP) e ressonância 40 magnética funcional (RMf). Segundo Bechtel (2008, p. 46, tradução nossa) essas tecnologias têm permitido que os pesquisadores localizem atividade cerebral com alta resolução espacial. Essas técnicas são comumente usadas para obter imagens estáticas de estruturas, mas usando o sinal que está relacionado aos processos metabólicos dos neurônios podem também ser usadas para revelar atividades funcionais no cérebro (...) Na neurociência da música essas tecnologias tem um papel de destaque. Estudos que utilizam ressonância magnética funcional também são frequentes e ainda mais compatíveis com o paradigma Localizacionista. Enquanto o EEG pode fornecer dados sobre o funcionamento geral de mecanismos mentais no cérebro, o imageamento cerebral pode dizer em quais partes do cérebro aquele fenômeno é processado. Por exemplo, nos experimentos realizados por Parsons (2003) e já citados nesse trabalho o pesquisador utiliza o imageamento cerebral para encontrar as áreas que ficam mais ativas durante a escuta de um coral de J.S Bach. Os sujeitos eram instruídos a realizar certas tarefas que teriam como objetivo focar a escuta na harmonia, melodia e ritmo do coral e, então, os pesquisadores teriam acesso a partes do cérebro que ficam mais ativas durante cada uma das atividades. Por mais promissores que possam ser as portas abertas por técnicas como TEP e RMf, os testes aplicados devem ser muito bem elaborados e a análise dos dados feita com muita cautela. Para Bechtel (2008, p. 47, tradução nossa) como resultado de análises inadequadas sobre dados fornecidos por tais tecnologias “pesquisadores acabam, como na tradição da frenologia, clamando que certa área do cérebro é responsável pela tarefa cognitiva como um todo”. A posição de Petersen e Fiez (1993, p. 513. apud Bechtel, 2008, p. 47, tradução nossa, grifo nosso) enfatiza a necessidade de contextualizar os resultados dizendo que, operações elementares, definidas com base na análise do processamento de informação da tarefa realizada, são localizadas em diferentes regiões do cérebro. Dado que muitas operações elementares estão envolvidas em qualquer atividade cognitiva, um grupo de áreas funcionais distribuídas devem ser orquestradas na performance mesmo de atividades cognitivas simples... Uma área funcional do cérebro não realiza uma tarefa completa: não há uma área forehand do tênis [o jogo] para ser encontrada. Da mesma forma, nenhuma área do cérebro se dedica a uma função complexa; “atenção” ou “linguagem” não estão localizadas em uma área de Brodmann ou lobo particular (...) 41 2.4 Considerações finais sobre a perspectiva filosófica da neurociência cognitiva Nesta seção buscamos expor alguns pontos importantes da filosofia da neurociência segundo William Bechtel e que julgamos serem relevantes para entendermos a neurociência da música, quais sejam: o paradigma Localizacionista e as principais técnicas da área. Pensamos que apresentar a leitura de Bechtel sobre a neurociência cognitiva, em especial o paradigma Localizacionista, seja importante para não tomarmos como base para a discussão aqui proposta uma visão ingênua. Como pudemos ver, é também de interesse da neurociência contextualizar dados provenientes de experimentos controlados, ainda que tal tarefa não seja fácil. Um segundo ponto que aparece na filosofia de Bechtel e que nos interessa aqui é o fato de tal filósofo adotar um pressuposto acerca da relação mente/corpo e, a partir do mesmo, definir o papel da neurociência. Ao optar pela perspectiva funcionalista – segundo a qual uma mesma função mental pode ser executada por diferentes estruturas físicas – e, só então, descrever o âmbito que ocupam as pesquisas neurocientíficas (no sentido de deixar claro qual o intuito de tal área), Bechtel coloca a possibilidade e a necessidade de assumir tal pressuposto filosófico na relação mente/cérebro. Vale ressaltar, contudo, que nesta pesquisa não temos a intenção de discutir o pressuposto adotado por Bechtel, nos restringindo apenas a utilizar sua descrição do paradigma Localizacionista bem como sua descrição das técnicas que fornecem os dados para a neurociência. Pretendemos definir o papel da neurociência dentro do monismo de triplo aspecto, postura filosófica que será tomada como base. Além disso, dedicamos algumas páginas à descrição que Bechtel faz dos principais métodos de pesquisa da neurociência cognitiva. É importante que o leitor note que a abordagem neurocientífica preza pela descrição do que ocorre em determinado sujeito ao realizar certa tarefa; ou o que ocorre no cérebro do sujeito que realiza alguma tarefa específica. Esse aspecto da neurociência é o que será contraposto com as explicações fenomenológicas apresentadas por autores de outras áreas, como a educação musical, que focam em descrições em primeira 42 pessoa. Tais descrições têm como base discutir o que experienciamos ao ouvir música, ao passo que a abordagem neurocientífica parece estar focada naquilo podemos abordar experimentalmente da escuta musical. 43 CAPÍTULO 3 – Abordagens fenomenológicas da escuta musical 44 O objetivo deste capítulo é apresentar algumas considerações realizadas por músicos e educadores musicais sobre conceitos e termos ligados à música e à escuta musical. É interessante notar aqui algumas características que são tidas como essenciais, segundo músicos e educadores musicais, na audição de uma música, além do tipo de descrição fenomenológica proposta por esses autores. Assim, no próximo capítulo será possível investigar uma possível complementaridade entre o que é apresentado por músicos/educadores e neurocientistas dentro da perspectiva do Monismo de Triplo Aspecto. Capurro (2007, p. 1) faz uma apresentação muita clara do tema deste capítulo dizendo que, Não basta, portanto, ver para se ser pintor, escrever para se dominar a arte da escrita, coordenar os movimentos do corpo para se ser bailarino, saber as regras do raciocínio numérico para se ser matemático. Também na música não será de todo suficiente ouvir para se cantar, tocar com excelência ou compor uma obra polifónica, nem tão-pouco executar ou harmonizar ‘de ouvido’ uma bela canção de Mozart ou improvisar sobre um tema conhecido. Além disso, conclui a autora (CAPURRO, 2007, p. 2) que, Sem dúvida que a forma como se aprende a assimilar música é um factor decisivo para o desenvolvimento não apenas de diferentes maneiras ou qualidades de audição, como de diferentes atitudes ou necessidades perante a música. A compreensão do fenómeno sonoro, no sentido de uma apropriação intrínseca da própria música, parece ser a variável que, estando muito para além do fenómeno estritamente perceptivo, permite estabelecer, senão totalmente, pelo menos de forma significativa, a dita diferença qualitativa. Essa problemática é que leva, segundo Capurro (2007), psicólogos e educadores a criarem conceitos como os de audiação, escuta, percepção, entre outros que serão apresentados nessa parte do trabalho. A tentativa de tais autores é compreender a atividade de ouvir música – o que caracteriza tal atividade, o que possibilita a mesma, como é possível desenvolvê-la, etc. Os autores apresentados neste capítulo foram escolhidos principalmente pela relevância dos seus conceitos no meio acadêmico musical. É importante ressaltar que não visamos aqui discutir a validade das teorias apresentadas, mas sim focar no tipo de abordagem que tais autores utilizam bem como no tipo de informação e descrição sobre a escuta musical que esses pesquisadores fornecem. Notaremos que nestas teorias os autores conseguem descrever diversas facetas da escuta musical sem precisarem fazer uso de dados acerca do cérebro. Outro ponto 45 relevante para nossa pesquisa é o fato de tais autores não se basearem em experimentos com variáveis controladas para investigarem o tema, o que possibilita descrições em primeira pessoa sobre como experienciamos a música. 3.1 Musicalização e Musicalidade segundo Helena Loureiro As considerações que Loureiro (1999) apresenta acerca dos conceitos de musicalização e de musicalidade trazem algumas ideias sobre a percepção musical, visto que esta é necessária para a compreensão daqueles conceitos, que reforçam um ponto importante deste capítulo, qual seja, que diferentes habilidades compõe a escuta musical. Loureiro (1999, p. 6) conceitua os dois termos da seguinte forma: Assim, as duas noções até aqui desenvolvidas são: a de que “musicalizar é desenvolver os instrumentos de percepção necessários para que o indivíduo possa ser sensível à música”; e a de musicalidade, definida como sensibilidade à música. A partir destas duas noções, pode-se definir musicalização como sendo o processo de desenvolvimento da musicalidade. Para refletir sobre musicalidade Loureiro (1999, p. 4) cita Martins (1985, p. 26) que diz: A música, como expressão e como arte, depende da existência na natureza humana de uma função mental que tem sido denominada pelo termo ‘musicalidade’. Musicalidade pode ser definida como a susceptibilidade ou a sensibilidade a padrões ou a propostas rítmicas e tonais que são a substância do discurso musical. (...) Este conceito não pode ser confundido com o conceito de talento musical. A autora enfatiza a noção de “sensibilidade” que Martins (1985, p. 26) apresenta. Mais do que tornar-se sensível a padrões rítmicos e tonais, Loureiro (1999, p. 5), embasada por outros autores mencionados em seu texto, acredita que o que está em jogo é uma sensibilização para o código musical no sentido mais amplo. Ser sensível a esse código é ser musical. O processo de sensibilização para tal código é a musicalização. Para ser musical, portanto, o indivíduo precisa desenvolver instrumentos de percepção que o tornem apto a “distinguir elementos estruturais dessa obra, levantar 46 traços distintivos, classificá-la segundo semelhanças e diferenças, situá-la em relação a outras, enfim “decodificá-la”” (LOUREIRO, 1999, p. 3). E é nesse sentido que [...] musicalizar é desenvolver os instrumentos de percepção necessários para que o indivíduo possa ser sensível à música, apreendê-la recebendo o material sonoro/musical como significativo – pois nada é significativo no vazio, mas apenas quando relacionado e articulado no quadro das experiências acumuladas, quando compatível com os esquemas de percepção desenvolvidos. (PENA, 1990, p. 22 apud LOUREIRO, 1999, p. 4) O ponto que nos interessa aqui é a compreensão de Loureiro (1999, p. 5) sobre a musicalidade como inerente a qualquer ser humano, enquanto potencialidade genérica de reagir a esses estímulos, ou ainda, conforme podemos deduzir, de desenvolver instrumentos de percepção da linguagem musical. E isso porque tal ideia traz consigo a visão de que a percepção musical, ou os instrumentos perceptivos necessários para ser musical, não estão prontos, mas são desenvolvidos. Como, então, se dá o processo de desenvolvimento das estruturas perceptivas necessárias à música? Em outras palavras, como ocorre o processo de musicalização? Loureiro (1999, p. 7-12) busca principalmente em Gainza (1997) e Martins (1985) explicações acerca de tal processo. Para Gainza (1997, p. 22 apud Loureiro, 1999, p. 7) a musicalização é entendida como algo externo ao sujeito – a música – que entra em contato com suas zonas perceptivas – sentido, afeto e mente – e tende a internalizar-se no sujeito. E como observa Loureiro (1999, p.10) a tendência da música a “internalizar-se”, como afirma Gainza, pode ser entendida como a construção do código musical, culturalmente compartilhado, realizada pelo sujeito através da vivência, do contato cotidiano e da familiarização. Ou seja, da interação entre o homem e o ambiente. Martins (1997, p. 19 apud LOUREIRO, 1999, p. 10) chama a atenção para a relação entre percepção e formação de conceitos e a importância desses para a compreensão do código musical. A aprendizagem musical começa com percepções e destas percepções são formados os conceitos que embasam o pensamento musical. Há uma relação de dependência entre percepção e formação de conceitos. Em qualquer campo perceptivo, é necessário um foco seletivo, para a atenção do indivíduo. Então seguem-se operações internas de classificação, 47 categorização e de organização. É nesse momento que a formação de conceitos acontece. Os conceitos, avalia Loureiro (1999, p. 10), organizam a experiência sensorial tornando aquilo que é percebido em algo significativo. Acerca de tais propostas Loureiro (1999, p. 11) destaca “a importância da interação do indivíduo com a música, tanto para a percepção quanto para a formação de conceitos musicais.” Além da relação estabelecida entre percepção e formação de conceitos, vale enfatizar a título de conclusão desta seção as ideias de “desenvolvimento” ou construção de instrumentos da percepção musical e como esses dependem e são alterados (desenvolvidos) de acordo com as experiências que o sujeito tem com o ambiente musical. Assim como nas outras teorias que serão exploradas neste capítulo, a forma como lidamos com a música através da audição não é uma questão de ter ou não um bom ouvido, ou de ter ou não um ouvido musical. Pelo contrário, nota-se a existência de diferentes maneiras de se ouvir música e a possibilidade de se desenvolver diferentes formas de escuta, o que caracteriza a escuta musical como algo mutável e passível de ser modificada pelo nosso contato com a música, pela atenção, pela memória e até mesmo pela linguagem. 3.2. Edwin Gordon e a Audiação O educador musical Edwin E. Gordon (1927-presente), atual professor e pesquisador na universidade da Carolina do Sul, traz em seu livro Teoria da Aprendizagem Musical (2000) importantes considerações sobre a escuta musical. Contudo, o autor coloca como relevante uma capacidade que vai além da escuta e mesmo do que ele trata por “percepção”. A capacidade de audiar uma música, ou elementos musicais é o que, segundo Gordon (2000) de fato torna possível a compreensão da música enquanto tal. Apesar de traçar uma distinção entre percepção e audiação em sua teoria, é necessário esclarecer que esses conceitos possuem um significado especial para o autor e que ambos, no contexto desta dissertação, podem ser entendidos como habilidades relacionadas à percepção 48 musical ou à escuta musical, visto que a audiação também é parte e é necessária para a atividade de ouvir música. De acordo com Grodon (2000, p.4) A audiação é para a música o que o pensamento é para a fala. Quando os alunos aprendem a audiar e a executar música em resultado de uma formação sequencial, desenvolvem um sentido de posse, porque compreendem a música. Em outro ponto Gordon (2000, p. 16) distingue a audiação da percepção dizendo que A audiação tem lugar quando assimilamos e compreendemos na nossa mente a música que acabámos de ouvir executar, ou que ouvimos executar num determinado momento do passado. Também procedemos a uma audiação quando assimilamos e compreendemos música que podemos não ter ouvido, mas que lemos em notação, compomos ou improvisamos. A percepção auditiva tem lugar quando ouvimos realmente um som, no momento em que ele está a ser produzido. Para Gordon (2000), portanto, o que de fato caracteriza o ouvir musical é a capacidade de audiar os sons. Simplesmente ser atingido por sons não é ouvir música. Só quando conseguimos “pensar os sons” que ouvimos é que a percepção musical se torna possível. Gordon (2000, p. 24) coloca que imitação, memória e reconhecimento fazem parte do processo de audiação, mas que isoladamente não são a audiação em si. Vejamos agora alguns exemplos e outras passagens do autor para esclarecer melhor o funcionamento da audiação. Ao ler esta dissertação é muito provável que, quem quer que a leia, o faça sem precisar repetir as palavras em voz alta para entender o que está escrito. Os sons das palavras e frases acontecem na mente do leitor e este pode, se quiser, mudar a entonação das palavras, ler mais rápido ou devagar, fazer comentários sobre algum trecho e tudo isso sem precisar enunciar em voz alta uma palavra sequer. A audiação acontece, por exemplo, quando o músico olha uma partitura e consegue lê-la mentalmente, assim como faz o leitor de um texto que acaba de ser exemplificado. Sem precisar recorrer a nenhum instrumento os símbolos na partitura são compreendidos e, logo, audiados pelo músico. Essa habilidade, contudo, é ainda mais ampla. Gordon (2000) enumera oito tipos de audiação e seis estágios pelos quais essas passam, sendo que essa que acaba de ser exemplificada é a audiação notacional. Vejamos agora as descrições de Gordon sobre essa habilidade tão cara à escuta musical. 49 De acordo com Gordon (2000, p. 28-33) a audiação pode ocorrer quando (i) escutamos música e pela lembrança, antecipação e predição de padrões tonais e rítmicos damos sentido ao que escutamos; (ii) quando lemos música (partitura) e conseguimos em nossa mente saber o que será executado antes que o som seja fisicamente ouvido; (iii) ao escrever uma música que nos é ditada e audiamos o que percebemos auditivamente (ou seja, damos sentido aos sons que ouvimos) e somos capazes de traduzi-los em símbolos na partitura; (iv) quando recordamos uma música já memorizada, visto que a música apenas memorizada requer uma execução vocal ou instrumental para acontecer, enquanto a audiada pode ser lembrada apenas mentalmente; (v) ao escrevermos uma música memorizada – processo similar ao de escrever uma música que nos é ditada, com a diferença de que aqui o som físico não está presente; (vi) quando criamos ou improvisamos música e, durante a execução, a audiação dos padrões que já ocorrem nos guiam para os próximos padrões; (vii) quando lemos música e a partir da audiação do que é lido criamos ou improvisamos novos padrões; e (viii) quando escrevemos música que nos é familiar ou não e, ao mesmo tempo, guiados pela audiação do que é escrito, criamos ou improvisamos novos padrões. Se a audiação se manifesta nessas oito categorias, os estágios pelos quais ela passa são divididos por Gordon (2000, p. 34 – 40) em seis. Os quatro primeiros estágios - quais sejam (i) retenção momentânea, (ii) imitação e audiação de padrões tonais e rítmicos e reconhecimento e identificação de um centro tonal e dos macrotempos, (iii) estabelecimento da tonalidade e da métrica objetiva ou subjetiva, e (iv) retenção, pela audiação, dos padrões tonais e rítmicos organizados - ocorrem de forma muito parecida. São responsáveis pela primeira organização mental dos sons ouvidos, desde a primeira retenção (i), passando pelo reconhecimento das estruturas mais essenciais do trecho ouvido (ii) (iii), culminando no estágio (iv) onde fatores como forma, estilo, repetição, timbre, dinâmica, entre outros, são levados em conta e nos permitem, junto aos estágios anteriores, dar sentido à música. O estágio (v) diz respeito à lembrança de padrões tonais e rítmicos organizados e audiados em outras peças musicais já ouvidas e nos leva ao estágio (vi) que corresponde às antecipações e predições de padrões tonais e rítmicos que fazemos baseados no que acabamos de ouvir (estágios i ao iv), e no que já audiamos previamente (estágio v). 50 Duas coisas devem ser ressaltadas: o fato de que a audiação se desenvolve por níveis (pode-se audiar “mais” ou “menos”, audiar alguns elementos da música e outros não) e que para Gordon (2000, p. 42) é importante desenvolver a habilidade de audiar até o máximo que a aptidão musical de cada um permite para que se possa ter bons resultados em música. Para Gordon (2000, p. 49-52), a audiação é tão fundamental para o ‘ouvir música’ (bem como para o ‘fazer música’) que até mesmo as reações estéticas que experienciamos ao apreciar uma peça provém da nossa compreensão e habilidade de audiar os padrões que percebemos. Essa proposta vai de encontro com o que propõe Leonard Meyer (1961) em seu livro Emotion and Meaning in Music, onde o autor defende a ideia de que tanto as emoções que a música suscita nos ouvintes quanto nossa compreensão da mesma passa pela habilidade de perceber padrões (o que Gordon (2000) chama de audiar) e fazer previsões acerca das próximas estruturas musicais que aparecerão na peça. Para explicar o desenvolvimento dessa habilidade (audiação), Gordon (2000) não se baseia em dados da neurociência para embasar seu método, mas faz uma importante consideração sobre o papel do corpo nesse processo. Diz Gordon (2000, p. 52) que O cérebro é um tipo específico de inteligência no corpo, enquanto o corpo, na sua totalidade, é a fonte de muitos tipos de inteligência. Quando tentamos apreciar qualquer coisa sem um sentido profundo de compreensão, o nosso cérebro, cheio de informações irrelevantes ou sem quaisquer informações, impede-nos de ouvir o nosso corpo. (...) Só quando o corpo fornece ao cérebro informação significativa, para ele processar, é que nós podemos dar novo significado a tudo que experimentamos. Essa afirmação justifica a ênfase que Gordon (2000, p. 43) dá à ideia de ensinar música pelo “ouvido” e não pelos “olhos”, no sentido de a experiência prática com a música e a percepção virem antes dos conceitos e termos. Os estudos da neurociência apresentados no Capítulo 1 dessa dissertação focam em como o cérebro processa elementos que os cientistas julgam como importantes em música, tais como ritmo e melodia, e nada falam sobre como a capacidade de processar tais informações musicais pode ser desenvolvida (o que não excluir a possibilidade de uma abordagem neurocientífica desse tema). Sendo a abordagem mecanicista utilizada por aqueles autores, o que encontramos neles é a descrição de mecanismos cerebrais que possibilitam a percepção dos elementos musicais estudados. Esse tipo de explicação, contudo, deixa de fora um ponto 51 importante, qual seja a capacidade que temos de “melhorar” ou “desenvolver” nossa escuta, percebendo, ou nos tornando sensíveis a mais elementos ou características da música. As considerações que Gordon (2000) faz acerca de atividades envolvidas na aprendizagem musical e, portanto, no desenvolvimento da audiação, apontam para a importância do corpo no desenvolvimento dessa habilidade. Para o desenvolvimento da percepção melódica, Gordon (2000, p.81-82) lembra a importância do solfejo de padrões melódicos e do uso de canções familiares. Utilizar a voz e aos poucos conseguir “afinar” certos padrões, utilizando em um primeiro momento canções simples e aos poucos conseguindo audiar os padrões desejados sem precisar se lembrar de uma canção como referência, pode ser considerado um primeiro uso do corpo no desenvolvimento de algo tão abstrato que é nossa percepção de melodias (ou audiação de melodias, dentro da teoria do Gordon). No desenvolvimento da percepção rítmica Gordon (2000, p. 99) deixa claro que “o único modo de compreender o ritmo musicalmente é através do movimento do corpo e da audiação do movimento do corpo”. Gordon (2000, p. 116-117) pontua que os exercícios envolvendo ritmo, melodia e corpo devem, contudo, ser vistos como meio de desenvolvimento da audiação, e não como a audiação em si. Nesse sentido, tais atividades são como um suporte para que o sujeito melhore sua escuta que, no nível “ideal”, não dependerá mais de ter que cantar a melodia para saber qual é o padrão, ou qual o tom da música, e nem terá que solfejar o ritmo da música para entender o tempo da mesma. O nível “ideal”, para Gordon (2000), é conseguir compreender tudo isso apenas no nível “mental”, da mesma forma que conseguimos “ouvir mentalmente” o som das palavras que lemos em um texto, fazer “notas mentais” sobre o mesmo, corrigir possíveis erros, tudo sem precisar pegar um papel e uma caneta, ou falar as palavras em voz alta. Para se chegar então ao que Gordon (2000) considera como a escuta musical de fato, diferentes estágios são necessários. Não é apenas uma modalidade cognitiva que está em jogo, mas várias, além da participação do próprio corpo como um todo. Nas palavras de Gordon (2000, p. 123) Sentimos quando reagimos ao objeto que percepcionamos, real ou imaginário, como por exemplo, quando nos emocionamos, cantamos, entoamos e movemos. Percepcionamos, quando recolhemos informação 52 do nosso meio ambiente através dos sentidos, como, por exemplo, quando ouvimos executar música. Discriminamos, quando estabelecemos que duas coisas que sentimos e percepcionamos não são iguais, mas só audiamos quando somos capazes de evocar e compreender o que sentimos, percepcionamos e discriminamos. Além disso, Gordon (2000, p. 123) diz que “para audiar, devemos primeiro aprender a discriminar. Para aprender a discriminar, devemos primeiro ser capazes de sentir e percepcionar o som”. Podemos notar, portanto, que para Gordon (2000), algumas capacidades precisam existir para que se possa ter uma escuta musical. A compreensão do que se ouve é um fator crucial para esse autor que, além do elemento “compreensão”, acrescenta que tal habilidade pode ser desenvolvida por estágios e que não ocorre de forma “abstrata”, mas que passa primeiro pelo corpo, através do canto e do movimento. Logo, supõe-se que diversas habilidades são necessárias para o que Gordon (2000) considera como escuta musical, e entre elas estão a percepção mais básica dos sons (não necessariamente musicais), a vivência e experiência através do corpo dos elementos que fazem parte do universo musical e a memória. 3.3 Os quatro tipos de Escuta de Pierre Schaeffer Pierre Schaeffer (1910-1995) foi um engenheiro de som, escritor e compositor francês. Seu trabalho teórico sobre a música e a escuta, bem como sua obra artística são claramente influenciados pelo seu trabalho como engenheiro de som em rádios. Entre diversos escritos podemos destacar o seu Tratado dos Objetos Musicais de 1966, onde se encontra, no segundo capítulo, sua teoria já madura acerca da Escuta Musical. Utilizaremos aqui estudos acerca da Teoria da Escuta de Schaeffer bem como citações do próprio autor para descrever o que, para ele, compõe a Escuta Musical. Para Pierre Schaeffer as características do perceber música são diferentes da audiação descrita por Gordon, ainda que não sejam teorias divergentes. Ao invés de eleger a habilidade de “audiar” como a mais importante para a percepção musical, Schaeffer identifica quatro “lados” que se manifestam na escuta de forma geral. A escuta musical, por sua vez, pode ocorrer como produto de diferentes tipos de 53 escuta, de acordo com o tipo de música que se está a ouvir. Segundo Reyner (2011, p. 19-24) a escuta em Schaeffer é dividida em: Escutar (Écouter), que é a tendência em identificar a fonte sonora (um violino, um trem, a voz de uma pessoa, etc.); Ouvir (Ouir), que diz respeito à receptividade do som; Entendre (sem tradução exata para o Português), que é a função da escuta relacionada à intencionalidade da mesma, é selecionar aspectos específicos do som; e por fim, Compreender (Comprendre), que lida com o significado do som, com o fazer referências e confrontar o som com noções extra-sonoras. É interessante notar que na teoria de Schaeffer a escuta musical não é um fenômeno estático, ela muda de acordo com o contexto em que acontece. Não existe uma forma de perceber a música, existem formas de perceber a música, formas essas que serão determinadas tanto pela própria música ouvida (suas características), quanto pelo contexto em que a escuta ocorre (se é um concerto ao vivo, na televisão, rádio, se quem ouve também está tocando, etc.). Schaeffer, antes de formalizar sua teoria da Escuta descrevendo essas quatro funções, já havia notado como a maneira como percebemos os sons é influenciada pelos outros sentidos e, principalmente no caso de pessoas com treino formal em música, por hábitos de escuta “tradicionais” que são inputados nos sons. Ao falar sobre as ideias de Schaeffer acerca da condição em que se encontravam os ouvintes com o advento do rádio, Reyner (2011, p. 7) coloca que O ouvinte esquece que, na escuta radiofônica, a realidade sonora encontra- se divorciada de sua realidade visual complementar, despertando uma percepção diferenciada. Há não somente a cisão entre visão e audição, mas o próprio comportamento do microfone impõe desafios e, consequentemente, novos paradigmas. Há um microfone que capta sem restrições, sem preferências. Aquele ruído de passo ou a mudança de volume sonoro decorrente do deslocamento dos cantores pelo palco durante uma ópera não são um incômodo, uma vez que, como explica Schaeffer, a escuta direta faz com que esses “defeitos” afundem no inconsciente por meio de uma reação psicológica de um ouvido conivente com os olhos. No entanto, o som captado pelo microfone é selecionado pelo ouvido sem ajuda dos olhos. Seguramente, a atenção recairá sobre novas características, selecionando um novo material sonoro, extraindo outras informações. A emissão radiofônica revela uma outra realidade, na qual a escuta é senhora da percepção. Os ruídos, antes descartados como insignificantes, são indiscriminadamente trazidos à “tela sonora” e ali dividem espaço com a obra musical. Essa audição desvinculada da visão e dos demais sentidos, cega e senhora de si, é um dos princípios da escuta acusmática. 54 Três pontos podem ser levantados a partir dessas considerações. Primeiro é a relação entre a percepção visual e a percepção auditiva. Schaeffer nota o quanto nossa escuta musical é influenciada pelo que vemos, fazendo com que certos elementos de uma performance, como o movimento dos cantores no palco por exemplo, passem despercebidos, ao passo que se tais eventos fossem apenas ouvidos certamente notaríamos a diferença nos sons. Um segundo ponto, que também traz à tona a ideia de que perceber música depende de outros aspectos cognitivos que não a percepção auditiva, é a relação entre ouvir e a atenção. Schaeffer nota que uma das funções da escuta é justamente “selecionar” o que ouvir. O terceiro ponto que podemos observar na passagem de Reyner (2011, p. 7) é como a própria forma de fazer música (ou de transmitir, nesse caso) direciona a maneira como iremos percebê-la. No caso da difusão radiofônica, o fato de não termos a influência direta da percepção visual da música executada, além da forma como a mesma é captada e difundida, já coloca em evidencia para nossa percepção auditiva certos aspectos da música que passariam despercebidos em outros contextos, e agora “Os silêncios falam; o menor ruído, uma folha de papel amassado, a batida de uma porta, e nossos ouvidos parecem escutar pela primeira vez.” (SCHAFFER, 2010, p.69, apud REYNER, 2011, p. 8). A maneira como percebemos a música, segundo Schaeffer (1950, apud REYNER, 2011) também é diretamente influenciada pelos conceitos ligados a mesma que aprendemos principalmente em cursos de teoria musical. Como coloca Reyner (2011, p. 12) Schaeffer (1950) “trata de uma das diferenças entre a música concreta [estética que Schaeffer propunha] e a música clássica (abstrata): o caráter dominante do conceito sobre o som, e a desconsideração sistemática do contexto do som”. Nas palavras de Schaeffer (1950, p.45 apud REYNER 2011 p. 12), “Na realidade, ele [o ouvinte], não escuta a música tal qual ela é, mas tal qual ele a abstrai no sistema racional dentro do qual nós, Ocidentais, tomamos o hábito secular de coordená-la”. Schaeffer (2003, p. 84) apresenta alguns exemplos sobre a “intenção” presente na escuta, e tais exemplos enfatizam um dos pontos deste capítulo da dissertação: as diferentes formas de se perceber a música. Diz Schaeffer (2003, p.84, tradução nossa) que 55 Não se pode negar que o ouvinte de um concerto, um virtuoso, um professor de solfejo ou de violino, seus respectivos alunos, um crítico musical, um diretor de orquestra, um afinador, um recém-chegado e o engenheiro de som tenham a intenção de ouvir musicalmente. O autor (SCHAEFFER, 2003, p.84) descreve que no caso do aluno de solfejo este deve ouvir certas notas no piano ou em outros instrumentos e dar um “valor” à mesma (como reconhecer qual nota foi tocada ou, mais comumente, qual intervalo musical foi tocado). Já no caso de um aluno de violino este deve atentar para a afinação da nota que é tocada bem como para o timbre adequado para a passagem executada, o que configura um caso mais complicado que o do aluno de solfejo. Caso seja um professor de violino, ou um crítico musical, pode comparar a performance ouvida com outras, pode apontar especificamente quais elementos da execução estavam bons e quais não, etc. Um ouvinte pode ter, portanto, inúmeras intenções de escuta. Encontramo