Fragmentação socioespacial na Região Metropolitana de São Paulo: uma introdução à análise das práticas cotidianas de mobilidade e consumo em Cidade Tiradentes (São Paulo) e Pimentas (Guarulhos) 1 Gustavo Nagib Pós-doutorando, Departamento de Geografia, Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente (FCT), Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Sessão Temática 3: Redes de cidades e a questão metropolitana no Brasil Resumo. Este artigo apresenta uma introdução à análise das práticas cotidianas de mobilidade e consumo em dois contextos específicos da periferia da Região Metropolitana de São Paulo: Cidade Tiradentes, na capital paulista, e Pimentas, em Guarulhos. Fruto de uma pesquisa em andamento, este trabalho preliminar recorreu especialmente a um conjunto de entrevistas com citadinos para compreender, dos discursos e experiências destes últimos, os indicativos do processo de fragmentação socioespacial. Em decorrência das precárias condições de mobilidade urbana e da lógica dual centro-periférica, que dirigiu a produção do espaço metropolitano, o apartamento material e simbólico das periferias tornou-se, dialeticamente, propulsor de gradativas alterações e complexificações socioespaciais. Neste sentido, constata-se a redefinição do então padrão monofuncional de cidades-dormitório a partir, por exemplo, da (re)produção de shopping centers, da segmentação do consumo e do estabelecimento progressivo de grandes redes de fast-food, supermercados, farmácias etc. também nas periferias. Consequentemente, os lugares e os tipos de consumo, em maior proximidade com o local de moradia dos citadinos, ganham um progressivo protagonismo na transformação dos espaços de circulação e frequentação nos bairros e distritos periféricos, tais como Cidade Tiradentes e Pimentas. Palavras-chave: fragmentação socioespacial; metrópole; práticas cotidianas; mobilidade; consumo. Socio-spatial fragmentation in the Metropolitan Area of São Paulo: an introduction to the analysis of everyday mobility and consumption practices in Cidade Tiradentes (São Paulo) and Pimentas (Guarulhos) Abstract. This article presents an introduction to the analysis of everyday mobility and consumption practices in two specific contexts on the periphery of the Metropolitan Area of São Paulo: Cidade Tiradentes, in the city of São Paulo, and Pimentas, in Guarulhos. As a result of ongoing research, this preliminary work resorted mainly to a set of interviews with city dwellers in order to understand, from their speeches and experiences, the indicators of the process of socio- spatial fragmentation. Due to the precarious conditions of urban mobility and the dual center-peripheral logic, which guided the production of the metropolitan space, the material and symbolic apartment of the peripheries became, dialectically, a gradual propeller of socio-spatial alterations and complexifications. In this sense, the redefinition of the 1Este trabalho foi realizado com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2022/08290-7, vinculando-se ao projeto temático "Fragmentação socioespacial e urbanização brasileira: Escalas, vetores, ritmos e formas (FragUrb)", financiado pela FAPESP, processo nº 2018/07701-8. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO monofunctional pattern of commuter towns can be seen, for example, from the (re)production of shopping malls, the segmentation of and the progressive establishment of large fast-food, supermarkets, pharmacies, etc. chains also in the peripheries. Consequently, places and types of consumption, in greater proximity to where city dwellers live, gain a progressive role in the transformation of spaces for circulation and frequentation in peripheral neighborhoods and districts, such as Cidade Tiradentes and Pimentas. Keywords: socio-spatial fragmentation; metropolis; everyday practices; mobility; consumption. Fragmentación socioespacial en la Región Metropolitana de São Paulo: una introducción al análisis de las prácticas cotidianas de movilidad y consumo en Cidade Tiradentes (São Paulo) y Pimentas (Guarulhos) Resumen. Este artículo presenta una introducción al análisis de las prácticas cotidianas de movilidad y consumo en dos contextos específicos de la periferia de la Región Metropolitana de São Paulo: Cidade Tiradentes, en la ciudad de São Paulo, y Pimentas, en Guarulhos. Fruto de una investigación en curso, este trabajo preliminar recurrió especialmente a un conjunto de entrevistas con citadinos para comprender, de los discursos y experiencias de estos últimos, los indicios del proceso de fragmentación socioespacial. Debido a las precarias condiciones de movilidad urbana y a la lógica dual centro-periférica, que dirigió la producción del espacio metropolitano, el apartamento material y simbólico de las periferias se convirtió, dialécticamente, en propulsor de paulatinos cambios y complejizaciones socioespaciales. En este sentido, la redefinición del patrón monofuncional de ciudades dormitorio puede verse a partir, por ejemplo, de la (re)producción de centros comerciales, la segmentación del consumo y la progresiva implantación de grandes cadenas de comida rápida, supermercados, farmacias, etc. también en las periferias. En consecuencia, los lugares y tipos de consumo, en mayor proximidad a donde viven los citadinos, adquieren un papel progresivo en la transformación de los espacios de circulación y frecuentación en los barrios y distritos periféricos, como Cidade Tiradentes y Pimentas. Palabras clave: fragmentación socioespacial; metrópoli; prácticas cotidianas; movilidad; consumo. 1. Introdução O presente artigo tem por objetivo apresentar uma contribuição analítica acerca do processo de fragmentação socioespacial (SPOSITO; SPOSITO, 2020) a partir de pesquisas atualmente em curso em dois contextos específicos da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP): o distrito de Cidade Tiradentes, na capital paulista, e o distrito dos Pimentas, em Guarulhos. Sem dissociá-las do conjunto territorial ao qual ambas as áreas de estudo pertencem material e simbolicamente – a maior região metropolitana do país –, este trabalho voltou-se, mais especificamente, ao que os discursos e as experiências dos citadinos revelam sobre suas práticas cotidianas de mobilidade e consumo e, por sua vez, como se evidencia (ou não) a lógica socioespacial fragmentária. Parte integrante do projeto temático “Fragmentação socioespacial e urbanização brasileira: Escalas, vetores, ritmos e formas (FragUrb)”, este trabalho recorreu a um conjunto de dezenas de entrevistas realizadas em Cidade Tiradentes e Pimentas entre o segundo semestre de 2020 e o segundo semestre de 2022, bem como às escutas e aos registros de campo efetuados por este pesquisador em ambos os distritos. Deve-se ressaltar que os nomes de todos os entrevistados são fictícios, a fim de preservar suas identidades, e a gravação das entrevistas realizadas foi autorizada por eles, possibilitando a transcrição de trechos de suas falas. No âmbito do projeto temático, entrevistou-se homens e mulheres de diferentes faixas etárias (jovens entre 18 e 30 anos, adultos entre 31 e 65 anos, e idosos com mais de 65 anos) em diferentes bairros e habitats, a saber: grandes e pequenos conjuntos habitacionais de casas ou prédios de apartamento, áreas não condominiais de bairros tradicionais, favelas e ocupações. No que tange ao “habitat”, terminologia mencionada anteriormente, deve-se destacar que ele XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO envolve as relações entre os espaços de moradia e aqueles que os circundam, isto é, tanto a função residencial quanto os modos de ocupação do solo e as condições de vida (SPOSITO; GÓES, 2013). Já o roteiro de entrevistas utilizado, diferentemente de um questionário fixo aplicado igualmente a todos os citadinos, foi composto por sete blocos de questões adaptáveis aos contextos socioespaciais: o primeiro bloco, de caráter introdutório, serviu para identificar o perfil dos entrevistados; do segundo ao sexto bloco, as questões foram organizadas respeitando as dimensões empíricas estabelecidas pelo projeto temático (habitação, lazer, mobilidade, consumo e trabalho) – voltou-se aqui, mais especificamente, à mobilidade e ao consumo –; e o último bloco foi composto por questões complementares transversais àquelas dimensões empíricas. Recorreu-se também, dentre os procedimentos metodológicos, às observações e anotações de campo feitas em diferentes dias da semana e horários, aos registros fotográficos, além da revisão bibliográfica de base. Nesta “Geografia do cotidiano” de Cidade Tiradentes e Pimentas, valorizou-se o papel dos citadinos como sujeitos ativos (GÓES; SPOSITO, 2016) e estabeleceu-se a periferia da RMSP como centralidade da análise aqui desenvolvida. Cabe salientar que este trabalho não pretendeu analisar todas as entrevistas realizadas, nem focou nas especificidades de Cidade Tiradentes e Pimentas, que são dois distritos que podem apresentar grandes distinções sociais, econômicas e espaciais à luz de uma análise comparativa. O recorte das entrevistas aqui utilizadas seguiu a proposta de elaborar, a partir de um grande conjunto e diversidade de narrativas, uma análise preliminar sobre a relação existente entre mobilidade e consumo, sem se voltar, neste momento, às singularidades e especificidades reveladas pelos citadinos. Tratou- se, ainda, de buscar os pontos de encontro entre dois distritos periféricos da RMSP, a fim de apresentar um panorama geral que possa, em um momento posterior, permitir análises pormenorizadas – bem como apontar caminhos analíticos mais precisos – a partir de outras dimensões empíricas e/ou temas que emergem das próprias entrevistas. 2. Da fragmentação socioespacial na RMSP O processo de fragmentação socioespacial (SPOSITO; SPOSITO, 2020) delineia abordagens contemporâneas sobre a reestruturação urbana (SOJA, 1993) no contexto da cidade neoliberal e aponta a uma redefinição de dinâmicas socioespaciais não mais explicadas unicamente pela tradicional relação centro- periférica (CALDEIRA, 2000). Esta última, que caracterizou o padrão morfológico e das representações sociais relativas à produção do urbano na América Latina, especialmente entre as décadas de 1940 e 1980, passa por transformações que indicam a emergência da lógica pós-fordista (ou flexível), na qual as cidades são caracterizadas, por exemplo, pela policentralidade, pela proliferação de “enclaves fortificados” e pela complexidade de fluxos materiais e imateriais no conjunto do tecido urbano (SALGUEIRO, 2001), tanto em metrópoles (SANTOS, M., 2019; PRÉVÔT-SCHAPIRA, 2001) quanto em cidades médias (SPOSITO; GÓES, 2013). As mudanças verificadas na RMSP igualmente questionam a unanimidade analítico-interpretativa respaldada pela lógica dual centro- XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO periférica, que contrapõe, de um lado, o centro concentrador de capitais e infraestruturas (o chamado “Setor Sudoeste”) e, de outro, a periferia pobre reduzida quase que exclusivamente a bairros ou cidades-dormitório. As mais recentes rupturas no modo de produção do espaço urbano, que materializaram periferias destinadas às classes de alto e médio poder aquisitivo, destacadamente na forma de condomínios fechados, além da proliferação de espaços fechados e segmentados de consumo, a exemplo da reprodução do modelo de shopping centers, passaram, enfim, a caracterizar uma sobreposição de processos que não invalidam a lógica centro-periférica, mas a torna insuficiente para explicar as dinâmicas das cidades contemporâneas (CHETRY, 2014). Na RMSP, a fragmentação é mais facilmente percebida na paisagem urbana através dos muros altos dos edifícios e condomínios fechados; das edge cities dotadas de ampla rede de infraestruturas de serviços e comércios para a população de alta renda, revelando-se como “enclaves fortificados” não raramente vizinhos de áreas favelizadas, onde os grandes muros fazem a fronteira material de realidades sociais muito contrastantes; dos inúmeros shopping centers; entre outras evidências materializadas no espaço. No entanto, a fragmentação também se evidencia nas relações sociais cotidianas, isto é, para além da aparência, no que é entendido enquanto processo e não apenas como forma (NAGIB, 2018). Mais especificamente sobre as áreas de estudo aqui selecionadas, Cidade Tiradentes e Pimentas localizam-se, respectivamente, na periferia dos municípios de São Paulo e de Guarulhos. Tal condição periférica (SPOSITO, 2022) faz emergir, consequentemente, representações e dimensões simbólicas inevitavelmente entrecruzadas à vida cotidiana nos referidos distritos, assim como nos estigmas (KOWARICK, 2009) atribuídos aos seus habitantes. Quanto à desconexão física (PRÉVÔT-SCHAPIRA, 2001) de ambas as áreas de estudos, a fragmentação revela-se evidente, uma vez que as porções territoriais nas quais aqueles distritos se localizam estão apartadas do restante da cidade, devido à sua longinquidade em relação ao centro e à impossibilidade de continuidade espacial imposta pelo traçado das estradas ou avenidas que os margeiam e delimitam. A fragmentação espacialmente óbvia soma-se, ainda, às condicionantes limitadoras da mobilidade, baseadas predominantemente no transporte rodoviário, isto é, via ônibus (inter)urbanos de uso coletivo (transporte público) e automóveis e motos de uso individual ou compartilhado (transporte privado). Esta dupla conformação urbana confirma o modelo de cidade fractal (ROLNIK, 2014), caracterizada pelo maior impedimento da heterogeneidade de convivências socioespaciais e baseada no rodoviarismo, sendo este último, não apenas a condição imposta para a efetivação dos deslocamentos de mais longa distância pelo território metropolitano, mas também uma escolha urbanística e política que resultou na produção de rupturas e fraturas na morfologia e na paisagem da RMSP. Mas como a fragmentação socioespacial não se encerra nos fatores e condicionantes materiais, uma vez que ela se refere tanto às formas quanto aos conteúdos (MAGRINI; CATALÃO, 2019), torna-se necessário, assim, contemplar sua dimensão simbólica, nas quais as práticas dos citadinos a revelam e a consolidam na vida cotidiana (SPOSITO; GÓES, 2013). XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Neste sentido, as relações de vizinhança, os usos dos espaços públicos e dos espaços privados de uso coletivo, os espaços de consumo e de lazer, as escolhas e limitações para se locomover pela cidade, a sensação de insegurança, os estigmas socioespaciais e a autossegregação engendram a perda de integração da cidade (PRÉVÔT-SCHAPIRA, 2001). A fragmentação socioespacial ressignifica, complementarmente, a experiência da (e sobre a) cidade, revelando não apenas as diferenciações sociais e as descontinuidades espaciais, mas como as pessoas se identificam e o que sentem pela cidade (CHETRY, 2014). Nesta perspectiva, é preciso buscar, nos discursos e nas experiências dos citadinos, os indicativos ou as evidências da constituição desse processo. Neste artigo, como dito anteriormente, o recorte dado à análise direciona-se às práticas cotidianas de mobilidade e consumo. Antes, porém, é impreterível contextualizar as duas áreas de estudo sobre as quais este trabalho se debruçou: Cidade Tiradentes e Pimentas. 2.1. Cidade Tiradentes: contextualização de base Cidade Tiradentes, distrito localizado no extremo leste do município de São Paulo (figura 1), tem sua origem diretamente relacionada à produção de moradia popular mediante a aquisição de terras, na década de 1970, e a consequente construção, sob a condução da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB), do que seria o maior complexo habitacional da América Latina (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2022). Figura 1. Cidade Tiradentes: situação geográfica (fonte: elaborado por OLIVEIRA, P. M., 2020 in RIZZON, 2022, p. 21). XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Até o século XIX, esta porção territorial compunha o aldeamento indígena de São Miguel, que na atualidade compreende extensos bairros da zona leste da capital paulista, tais como Guaianases e Itaquera. O processo de abertura de loteamentos ocorreu após a aquisição de terras que pertenciam à então Fazenda Santa Etelvina, onde, por sinal, havia áreas remanescentes de Mata Atlântica que resistiram à urbanização e seguem integrando a paisagem atual. Os problemas estruturais nas obras, as ocupações de casas semiprontas e a carência de infraestruturas e serviços básicos disponíveis à população que se estabelecia e crescia exponencialmente ao longo de anos foram questões noticiadas desde as primeiras levas de conjuntos habitacionais entregues em Cidade Tiradentes, o que muito contribuiu para caracterizar negativamente a produção habitacional local e estigmatizar o distrito desde a sua origem (RIZZON, 2022). A questão da mobilidade urbana também sempre foi fator da lógica centro- periférica que se evidencia em Cidade Tiradentes. Além do transporte rodoviário ser a principal opção disponível e viável aos longos deslocamentos efetuados pela população local, a enorme distância em relação ao centro da cidade e ao Setor Sudoeste (os percursos podem levar de duas a três horas para serem realizados) e a insuficiência de linhas de ônibus e do número de veículos disponíveis para cumprir os trajetos diuturnos de e para o referido distrito reafirmaram, ao longo das décadas, a sua condição periférica. Cidade Tiradentes dista 30 km do centro de São Paulo e faz limite, a leste, com o município de Ferraz de Vasconcelos. Limita-se, ainda, respectivamente a norte, oeste e sul, com os distritos paulistanos de Guaianases, Itaquera e São Mateus. Sua população atual aproxima-se dos 212 mil habitantes, dentre os quais 20% possuem renda familiar média de até meio salário mínimo. Contando com mais de uma dezena de grandes conjuntos habitacionais, cerca de 75% do território distrital são classificados como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), permeadas por áreas favelizadas e ocupações caracterizadas pela autoconstrução (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2022; RIZZON, 2022). Os mais de 30 km que separam Cidade Tiradentes do centro e do Setor Sudoeste revelam não apenas o apartamento espacial do distrito, mas também a enorme desigualdade socioespacial que se estabelece entre as diferentes regiões da capital paulista e a segregação imposta a uma grande parte de sua população, destacadamente às classes trabalhadoras (CORRÊA, 1989; VILLAÇA, 2001). Mais recentemente, porém, Cidade Tiradentes tem rompido com o modelo monofuncional de bairro-dormitório, revelando-se um subcentro com maior diversidade comercial e de serviços, o que reduz a dependência dos habitantes locais em relação a outros distritos da zona leste e aos bairros mais centrais de São Paulo (RIZZON; MORCUENDE, 2020). Muito embora os citadinos ainda tenham que recorrer com relativa frequência aos espaços de consumo, lazer e demais infraestruturas básicas em Guaianases, Itaquera e São Mateus, um novo shopping center (inaugurado em novembro de 2022) ilustra parte das transformações locais em curso e apresenta-se como elemento indicativo do processo de fragmentação socioespacial. Complementarmente, as novas dinâmicas econômicas locais também revelam a contínua produção de novos empreendimentos imobiliários nas XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO proximidades do terminal de ônibus urbanos, das principais vias de acesso e dos eixos comerciais, indicando futuros adensamentos e valorização de áreas privilegiadas dentro do distrito (RIZZON, 2022) e estruturando novas territorialidades e dimensões do consumo e do habitar que se entrecruzam à lógica centro-periférica e a redefinem. A condição periférica atrelada às origens e às percepções embutidas no imaginário coletivo acerca de Cidade Tiradentes passa, enfim, a se combinar, dialeticamente, com os novos modos de reprodução do urbano e de consumo do espaço, indicando alterações na vida cotidiana dos citadinos e, portanto, nas suas formas de se relacionar com a cidade. 2.2. Pimentas: contextualização de base A origem de Guarulhos remonta o processo de colonização e ocupação territorial portuguesa no Planalto Atlântico, mais especificamente, atrela-se à vila fundada pelos jesuítas nos “Campos de Piratininga”, embrião estrutural da capital paulista (AZEVEDO, 1958). A constituição desta última como centralidade política e econômica resultou na manutenção ou no estabelecimento de aldeamentos indígenas vizinhos, a exemplo de Nossa Senhora da Conceição (atual Guarulhos), a fim de garantir a segurança do empreendimento português (GAMA, 2009). A formação territorial dos Pimentas, por sua vez, também decorre do aldeamento indígena de São Miguel, que está na origem da estruturação urbana de diversos bairros da zona leste de São Paulo e de Guarulhos (CRUZ, 2022). Além de sua importância quanto à defesa territorial da ocupação jesuítica em São Paulo, o processo histórico aponta à relevância estratégica locacional da referida região, destacadamente no que tange às conexões terrestres que seriam ali estabelecidas através da abertura de caminhos e, posteriormente, da construção de grandes estradas em direção ao Rio de Janeiro (via Vale do Paraíba) e a Minas Gerais. É na primeira metade do século XX que Guarulhos, embora ainda de economia essencialmente agrário-extrativa, passa a estruturar e consolidar um parque industrial de destaque no entorno da capital paulista, a partir do desenvolvimento inicial de setores como o têxtil e da cerâmica. A partir do Estado Novo, a concentração industrial em São Paulo, devido ao acúmulo de capitais oriundos da cafeicultura e às políticas estatais então implementadas nos governos de Getúlio Vargas, finda por consolidar o município de Guarulhos como um dos principais polos industriais do país. Nas décadas de 1940 e 1950, inauguram-se a base aérea de Cumbica (onde seria construído o Aeroporto Internacional de Guarulhos, entregue em 1979) e as rodovias Presidente Dutra e Fernão Dias, servindo de eixos estruturantes para a consolidação das plantas industriais e dos loteamentos operários. As áreas ocupadas pelos trabalhadores fabris, que iam em busca da casa própria onde o preço da terra era mais acessível, terminaram por consolidar esta periferia urbana e social da RMSP (CRUZ, 2022). Já na segunda metade do século XX, o crescimento vegetativo e o fluxo migratório positivo caracterizaram o padrão de expansão horizontal da RMSP, deflagrando no processo de conurbação entre a capital paulista e as cidades do seu entorno e evidenciando a formação de periferias urbanas em detrimento das antigas áreas de produção agrícola (especialmente hortifrutigranjeira) voltadas XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO ao abastecimento local, além da expansão da favelização e dos loteamentos irregulares ou ilegais (NAGIB, 2018). O atual distrito dos Pimentas (figura 2) – também definido, pela Prefeitura de Guarulhos, como uma das Unidades de Planejamento Regional (UPR) do município – é delimitado, ao norte, pela Rodovia Presidente Dutra e, ao sul, pela Rodovia Ayrton Senna, constituindo-se de seis bairros, sendo um deles de mesmo nome, além de Água Chata, Jardim Aracília, Bonsucesso, Itaim e Presidente Dutra. Distando 18 km do centro de Guarulhos e 33 km do centro de São Paulo, trata-se do distrito guarulhense mais populoso, somando 400 mil habitantes. Infere-se, portanto, que os Pimentas estão na periferia de Guarulhos e, por extensão, na periferia da RMSP, o que configura sua dupla condição periférica, tanto na escala municipal quanto metropolitana (CRUZ, 2022). Figura 2. Pimentas: situação geográfica (fonte: elaborado por OLIVEIRA, P. M., 2020 in CRUZ, 2022, p. 42). Os traçados das rodovias vieram a exercer, assim, os eixos estruturantes da localização industrial e dos novos loteamentos periféricos, orientando a lógica rodoviarista e espacialmente fragmentária do processo de urbanização (ROLNIK, 2014), ainda mais acentuada após a construção do aeroporto internacional, devido às dificuldades impostas à mobilidade entre os bairros da zona leste guarulhense e o centro da cidade. Parte integrante da lógica centro-periférica do processo de produção desigual do espaço metropolitano (CALDEIRA, 2000), os loteamentos e ocupações nos Pimentas consumam mais um exemplo da segregação imposta às classes trabalhadoras. Inicialmente, os proprietários das glebas entravam com a terra e aos loteadores competiam o restante da operacionalidade do XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO negócio, sendo que a autoconstrução era o procedimento mais comum na produção das moradias em áreas onde o Estado revelava-se ausente na prestação de serviços básicos e as infraestruturas urbanas eram evidentemente precárias ou inexistentes (VILLAÇA, 2001). A partir da década de 1980, o processo de reterritorialização industrial no estado de São Paulo culminou na saída de bases fabris de Guarulhos e a transformação urbana impactou diretamente os Pimentas, resultando, contraditoriamente, tanto na produção de novos conjuntos habitacionais populares quanto no aumento do número de favelas (SANTOS, P., 2017). Enquanto a pressão por habitação social levou ao processo de regularização dos loteamentos existentes, o significativo aumento populacional contribuiu para a expansão do comércio e da oferta de serviços públicos e privados, a fim de responder às necessidades de consumo e de apresentar-se como alternativa de trabalho e renda à população local. Na chegada dos anos 2000, os Pimentas já se constituíam, assim, como subcentro (CRUZ; LEGROUX, 2021), dada a sua diversidade comercial e de serviços: agências bancárias, terminal de ônibus urbanos, super e hipermercados, restaurantes, shopping center, hospital e um campus da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O processo de reestruturação urbana local indica assim, tal como em Cidade Tiradentes, a superação de uma lógica socioespacial que enquadra a periferia metropolitana exclusivamente como sinônimo de cidades ou bairros- dormitório. Deste modo, Pimentas e Cidade Tiradentes tornam-se um indicativo do processo de estruturação de subcentros e de novas centralidades na periferia metropolitana, exacerbando o sentimento, daqueles que os vivenciam, de que são porções territoriais autônomas do restante da cidade, não apenas devido à fragmentação espacial e às distâncias em relação ao centro de Guarulhos ou de São Paulo, mas também devido às dinâmicas (de consumo) locais da vida cotidiana. 3. Mobilidade e consumo: indicativos da lógica fragmentária na vida cotidiana Os longos deslocamentos diários compõem a primeira experiência em campo para todo pesquisador que se aloja fora dos limites territoriais de Cidade Tiradentes ou Pimentas. É preciso contar com duas horas de transporte público, entre baldeações de metrô e trocas de ônibus (inter)urbanos. O monotrilho entre a Vila Prudente e São Mateus (linha 15-prata do metrô de São Paulo) agilizou o deslocamento na zona leste da capital paulista (figura 3), possibilitando recorrer ao ônibus diretamente no terminal de São Mateus, que demora cerca de 45 minutos (fora da hora do rush) até o terminal de Cidade Tiradentes (figura 4). Nas entrevistas, os citadinos frequentemente expressam a esperança de que o monotrilho chegue até o distrito do extremo leste, conforme consta no plano estadual de expansão da rede de transportes sobre trilhos na RMSP. XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Figura 3. Estação São Mateus do metrô de São Paulo, inaugurada em dezembro de 2019. São Paulo-SP, Brasil, outubro de 2022 (fonte: fotografia elaborada pelo autor). Figura 4. Terminal de ônibus urbanos de Cidade Tiradentes. São Paulo-SP, Brasil, outubro de 2022 (fonte: fotografia elaborada pelo autor). Até o Terminal Pimentas (figura 5), por sua vez, é preciso contar com cerca de 1 hora de viagem partindo do centro de Guarulhos ou cerca de 1 hora e 30 minutos para quem vem de São Paulo, saindo da estação Armênia (linha 1- azul do metrô), na região central da capital. XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Figura 5. Vista a partir da Estrada do Caminho Velho, que dá acesso ao terminal de ônibus (inter)urbanos dos Pimentas. Guarulhos-SP, Brasil, outubro de 2022 (fonte: fotografia elaborada pelo autor). Recorrendo-se aos aplicativos de transporte de passageiros, tais como 99 e Uber, pode-se fazer o trajeto dos Pimentas ao centro de São Paulo em 50 minutos. De Cidade Tiradentes, no entanto, os percursos de carro podem demorar bem mais, cerca de duas horas, por isso, recorrer ao metrô em São Mateus é uma alternativa para escapar dos congestionamentos frequentes nas principais vias de acesso à zona leste. Para os citadinos, as dificuldades de deslocamento são parte dos desafios cotidianos historicamente a eles impostos. Não apenas porque a produção destes distritos seguiu a lógica centro-periférica de reafirmação do apartamento espacial da periferia e de seus moradores, mas porque somam-se a isso as lotações e o número reduzido de linhas e de ônibus em circulação, impondo restrições ainda mais severas à população local. Os depoimentos indicam uma dupla condição: acordar muito cedo, por vezes às 4 horas da manhã, para conseguir chegar ao trabalho sem atrasos, e evitar sair do distrito se não for para trabalhar, justamente para atenuar o estresse cotidiano dos longos trajetos e do desconforto em realizá-los nos ônibus (inter)urbanos. Em Cidade Tiradentes: Aqui mesmo, na avenida, só passa o São Miguel [linha de ônibus] e ele demora muito. Às vezes demora duas, três horas para vir, a gente fica no ponto e não vem. (Izilda, informação verbal, dez. 2021.) Eu trabalhava na Lapa [na zona oeste de São Paulo], eu passava quatro horas para chegar no trabalho e quatro horas para voltar, eu passava mais tempo no ônibus do que no trabalho. [...] Não tem como a pessoa falar: “Eu gosto daqui”. Eu não! Eu ficava oito horas no ônibus, como uma pessoa fala “Eu gosto de lá”? Não tem como! O transporte público daqui está terrível. (Adalberto, informação verbal, maio 2021.) XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Quando eu entrei nesse concurso, eu trabalhava no Tatuapé e é na mesma região, na região leste, e eu demorava duas horas para chegar em casa, só por causa do trânsito, muito trânsito, muito trânsito mesmo, tudo parado, muito carro, muito ônibus, é terrível. […] Eu já trabalhei na Cidade Ademar, que é finalzinho da zona sul, divisa com Diadema. Nossa, acho que eram umas três horas para chegar em casa […]. (Wilma, informação verbal, abr. 2021.) [...] Eu não iria para o centro [da cidade de São Paulo] à toa, para não fazer nada, é sempre um risco calculado, são quatro horas que eu vou perder [...]. (Luiz Fernando, informação verbal, abr. 2020.) Eu não fui muito à faculdade [à USP, localizada na zona oeste de São Paulo] por causa do Covid, mas quando eu ia, era bem complicado, porque tinha [...] que acordar umas 4h30, [...] é bem imprevisível, às vezes demoramos três horas ou três horas e meia. (Matheus, informação verbal, mar. 2021.) Nos Pimentas: [...] Quando comecei a ir para o centro de Guarulhos todo dia de manhã, eu não dirijo, aí pegar ônibus, às vezes eu passava duas horas dentro do ônibus assim. Então eu já chegava no trabalho muito cansada, muito estressada. (Marinalva, informação verbal, mar. 2021.) Varia de uma hora e meia a duas horas [até o centro de São Paulo]. Depende do trânsito. No final de semana é garantido uma hora e meia. Mas dia de semana, em geral, sempre tem algum momento em que trava tudo e viram duas horas de viagem. (João Osvaldo, informação verbal, abr. 2021.) [...] Quando eu me mudei para cá, eu cheguei a demorar mais de três horas no transporte [para ir ao trabalho, no centro de São Paulo], então tinha dias que eu chegava em casa e chorava. Aí que eu decidi tirar a carta de moto e tive a minha primeira moto. [...] [Agora, são] geralmente 40 minutos, 45 no máximo. (Letícia, informação verbal, out. 2021.) Eu pego um ônibus intermunicipal que leva mais ou menos uma hora e meia até metrô, depois eu pego o metrô porque eu trabalho no centro. Eu trabalho na Vergueiro [na região central de São Paulo], e como Guarulhos não tem metrô ainda, então o transporte é uma coisa bem caótica, geralmente é um transporte muito cheio, que não tem nenhum tipo de conforto [...]. (Edilene, informação verbal, mar. 2022.) Os percursos demasiadamente longos, demorados e desgastantes física e mentalmente são um dos alicerces da cidade constituída sob a lógica centro- periférica, tratando-se de uma característica comum da vida cotidiana de muitas pessoas que vivem nas periferias das metrópoles brasileiras. Consequentemente, esta mobilidade dificultada, imposta a milhares de trabalhadores, relaciona-se à emergência do processo de fragmentação socioespacial, na medida em que muitos citadinos buscam meios de concentrar suas atividades de trabalho no próprio distrito ou em bairros mais próximos ao local de moradia. Ademais, a condicionante socioeconômica também impõe severas restrições aos deslocamentos, uma vez que os custos com o transporte público – custos estes que podem ser ainda mais elevados com combustível ou pagamento do serviço via aplicativo, caso a opção seja o automóvel – impedem que os citadinos frequentem bairros mais distantes, dentre eles, o centro da cidade. Este aspecto contraditório da lógica centro-periférica reforça, dialeticamente, o entendimento sobre o processo de fragmentação socioespacial em curso. Ambos os distritos vão se firmando enquanto subcentros e assumem uma centralidade relativa no conjunto de periferias da RMSP. XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Em Cidade Tiradentes: Eu tenho parceria com vários amigos aqui em Cidade Tiradentes, nós editamos uma TV, então tem uma companhia teatral, um galpão de arte, chamado “Pombas Urbanas”, temos uma parceria, quando há necessidade de efetuar uma gravação, fazer um trabalho que exija a utilização de um espaço maior, de equipamentos, insumos, uma logística mais apurada, eles nos ajudam. (Hélio, informação verbal, fev. 2021.) Ajudo meu pai aqui em um comércio que ele tem [...]. Ele tem uma mercearia aqui em casa, que ele vende produtos para casa: comida, doces, bebidas, essas coisas. (João Vítor, informação verbal, ago. 2020.) Trabalho com vendas, eu sou autônoma. [Trabalho] em casa, eu entrego também, mas é mais em casa, as pessoas retiram [na minha casa]. [Vendo] acessórios em geral, tipo fone, roupa, cueca, sapato, tudo. (Rúbia, informação verbal, dez. 2021.) Eu sou jornalista e biógrafa. Eu trabalho home office. (Ludmila, informação verbal, jul. 2020.) Agora eu estou entrando às 7h no trabalho, então, quando é umas 6h50, eu saio de casa e venho trabalhar, fico até às 16h. No meio período, às 13h, eu vou para casa almoçar, porque eu moro próximo, vou para a casa almoçar e volto para terminar o meu trabalho. (Wilma, informação verbal, abr. 2020.) Eu tenho um facilitador que é trabalhar no mesmo bairro que eu moro. [...] Eu já trabalhei fora, não era tão longe, mas é o que a gente chama de contramão. Eu pegava três condições [...]. (Alice, informação verbal, mar. 2021.) Nos Pimentas: Primeiro, veio o registro como auxiliar de limpeza. Fui promovida na mesma empresa para recepção, e eu só saí dessa empresa porque ela faliu. [...] Foi aí que eu fiz o curso de cabeleireira e comecei a trabalhar como cabeleireira. [...] Eu comecei trabalhando indo nas casas dos clientes, depois eu e a minha irmã abrimos um espaçosinho, locamos um salão e começamos a trabalhar juntas. (Ana Lúcia, informação verbal, mar. 2021.) Sou auxiliar de escritório. [...] [Trabalho] aqui perto mesmo, no bairro, no bairro Pimentas. [...] Se for de carro, não dá nem dez minutos de Uber [...]. (Linda, informação verbal, out. 2022.) No momento, eu estou trabalhando de segurança [...] em um supermercado, em um hortifrúti. [...] Eu vejo que tem muita gente que também trabalha aqui. (Frederico, informação verbal, out. 2022.) Sou encarregado de segurança, num hospital nos Pimentas mesmo. [...] [Vou] a pé [para o trabalho], almoço em casa, menos de cinco minutos [a pé]. (Kauê, informação verbal, out. 2022.) O exercício das atividades profissionais em estabelecimentos comerciais ou na prestação de serviços em Cidade Tiradentes e Pimentas apresentam-se, assim, como um meio de redução de despesas e de tempo com longos percursos entre a casa e o trabalho, mas também ativam e diversificam a economia local, reforçando a presença dos habitantes nos respectivos territórios distritais ou em bairros da mesma região da cidade (as zonas leste de São Paulo e de Guarulhos). A possibilidade de trabalhar nos limites territoriais do distrito faz com que mais citadinos almocem em suas próprias residências. Além desta prática poder lhes significar mais comodidade no dia a dia, isto lhes permite ter maior controle de gastos com as refeições diárias e maior controle do tempo (livre) para se XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO dedicar à vida privada (buscar o filho na escola na hora do almoço, poder almoçar com os pais ou com os filhos etc.). Complementarmente, o consumo local tende a ganhar protagonismo não apenas em pequenos comércios de bairro, como restaurantes, lanchonetes (figuras 6 e 7), bares, óticas, lojas de roupa, perfumarias, academias de ginástica, postos de gasolina, lojas de materiais de construção etc., mas também com a presença de redes de médio e grande porte, especialmente restaurantes de fast-food (cadeias como Habib's, McDonald’s e Burger King), varejistas de móveis e eletrodomésticos, farmácias (figuras 8 e 9), supermercados e atacadistas, além de agências bancárias. Em Cidade Tiradentes: O pessoal acha que o bairro é evoluído se tem McDonald's. Ai que tristeza, mas enfim... Entrou na Cidade Tiradentes, passou pelo mercado Negreiros, onde tem a subprefeitura, tem o banco Bradesco, o Banco do Brasil, e esses são os serviços que tem dentro do mercado: Magazine Luiza e o McDonald's (Eliete, informação verbal, mar. 2021.) Cada vez que eu vou [no centro comercial de] Cidade Tiradentes tem uma nova franquia dessas famosas, tem Extra, tem Casas Bahia, tem Lojas Cem, tem academia Smart Fit, tem McDonald’s. (Adalberto, informação verbal, maio 2021.) Recentemente, veio [para Cidade Tiradentes] o primeiro quiosque do McDonald’s, e aí veio o McDonald’s, lembro de todos falando disso toda hora lá no [supermercado] Negreiros. (Adriana, informação verbal, ago. 2021.) Nos Pimentas: Principalmente próximo do terminal [de ônibus], está abrindo muito comércio lá, abriu recentemente um McDonald’s, abriu um comércio para animais domésticos, e antes lá era vazio. (Evelim, informação verbal, mar. 2021.) [...] Chegou lá McDonald's, chegaram lá essas lojas de redes maiores, então posso dizer que hoje é uma cidade, o Pimentas é uma cidade dentro de Guarulhos. (Agnaldo, informação verbal, maio 2021.) [...] O Burger King chegou, como também o McDonald‘s, que não tinha, chegou. Tem aquela franquia Madero também. [...] (Marinalva, informação verbal, mar. 2021.) [...] O que abriu bastante que não tinha foi McDonald’s, Habib’s, essas redes assim, foram para lá. Agora, recentemente, abriu um Habib’s ali perto da região do shopping. McDonald’s, Burguer King, essas coisas não tinha lá. (Bianca, informação verbal, jun. 2020.) Agora eu vou te falar, o que melhorou foi que aqui nós temos próximo o shopping, mercado, lojas, banco [...]. (Ana Lúcia, informação verbal, out. 2021.) XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Figuras 6 e 7. Nome e sanduíches ofertados por lanchonete nos Pimentas faz referência a grandes cadeias do fast-food em tom de sátira. Guarulhos-SP, Brasil, outubro de 2022 (fonte: fotografias elaboradas pelo autor). Figuras 8 e 9. A mesma rede de farmácias que possui lojas em Cidade Tiradentes (à esquerda) e nos Pimentas (à direita). São Paulo-SP (figura 8) e Guarulhos-SP (figura 9), Brasil, outubro de 2022 (fonte: fotografias elaboradas pelo autor). XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Marcas já bem consolidadas no imaginário popular tornam-se opções para o consumo local e integram o referencial espacial dos citadinos em Cidade Tiradentes e Pimentas. O conjunto territorial destes distritos vai sendo gradativamente ressignificado material e simbolicamente pela presença (ou ausência) dos novos eixos comerciais e de serviços. O solo urbano no entorno mais próximo às grandes redes, por exemplo, tende a se valorizar dadas as novas condições facilitadas de consumo local. A presença de shopping centers também altera a paisagem e a lógica do consumo em ambos os distritos, direcionando consumidores e trabalhadores aos novos estabelecimentos comerciais ali existentes. Já bem consolidado como espaço de consumo e lazer nos Pimentas, o Shopping Bonsucesso cumpre este papel, o que também deve acontecer com o recém-inaugurado Shopping Cidade Tiradentes (figura 10). Figura 10. Shopping Cidade Tiradentes em fase final de construção, algumas semanas antes de sua inauguração. No gradil, empresa responsável pelo empreendimento comercial anuncia a contratação de açougueiro, sushiman, balconista, peixeiro, organizador de estacionamento, entre outros cargos e funções. São Paulo-SP, Brasil, outubro de 2022 (fonte: fotografia elaborada pelo autor). A segmentação do consumo tende a reforçar a permanência desta população no distrito, contribuindo para que os citadinos reduzam a frequentação de outras áreas de consumo tradicionais em bairros centrais de São Paulo e Guarulhos. A possibilidade de ampliação das práticas de consumo, entretanto, esbarra na condicionante socioeconômica mais evidente, que é a baixa renda familiar média. Muitos citadinos, embora dizem ser frequentadores de shopping centers, se autoquestionam sobre a utilidade de tais espaços de consumo se as suas condições de renda não lhes permitem ter acesso aos bens que desejam adquirir. XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Em Cidade Tiradentes: Eu só vou no shopping quando eu vou ao médico. Então, eu já marco o médico de manhã para eu passar o tempo todo lá dentro. Aí eu já vou, já almoço, tomo um sorvete, se eu tiver dinheiro, compro algo, se não tiver, eu bato perna. Adoro ver lojas. [...] Se não tiver dinheiro para gastar, eu vou sem dinheiro mesmo. (Maria Odete, informação verbal, mar. 2021.) Fico andando, admirando [o shopping], porque sou pobre, [risos] e comendo casquinha do McDonald’s. (Edvaldo, informação verbal, mar. 2021.) Nos Pimentas: [...] No shopping, eu não vou muito porque tem que ir para gastar, e nem sempre dá para a gente gastar. (Antonieta, informação verbal, set. 2020.) Temos um shopping [Bonsucesso] aqui no Pimentas. Então, na maioria das vezes em que vamos lá, é para comer. Vamos para a praça de alimentação, para distrair, como uma forma de lazer ou para distrair. E o cinema, [...] já fomos três vezes para o cinema ali. Compras nós não fazemos porque é mais caro, então é mais uma questão de lazer mesmo que nos leva ao shopping. (Agnaldo, informação verbal, maio 2021.) As novas territorialidades do consumo local sugerem que o centro da cidade vá se descolando, material e simbolicamente, das práticas cotidianas dos citadinos, tornando-se um lugar onde se frequenta esporadicamente para resolver alguma demanda de consumo mais específica. Embora o bairro do Brás, por exemplo, ainda seja uma referência frequente quando mencionado o comércio de roupas e sapatos, as entrevistas revelam que as idas até lá são mais esporádicas quando comparadas à frequentação dos shopping centers mais próximos. Localizados em bairros vizinhos, os Shoppings Aricanduva e Itaquera são frequentemente citados por entrevistados de Cidade Tiradentes, assim como os estabelecimentos comerciais e de serviços de São Miguel Paulista são mencionados pelos entrevistados dos Pimentas. A expansão e a complexificação do setor terciário nestas periferias, indissociáveis das condicionantes locais de mobilidade, corroboram, portanto, ao processo de fragmentação socioespacial, na medida em que indicam a menor circulação de seus habitantes por outras regiões de São Paulo e Guarulhos, especialmente para além dos limites das respectivas zonas leste. 4. Considerações Finais A lógica centro-periférica que estruturou a RMSP, baseada na contínua expansão horizontal da cidade de São Paulo e na sua conurbação com as cidades do entrono, não permite que se ignore a extensão territorial e o peso demográfico – vale relembrar que Cidade Tiradentes assumiu o posto de maior complexo habitacional da América Latina e os Pimentas, de distrito mais populo de Guarulhos – enquanto fatores determinantes para a formação de uma “metrópole fragmentada” (SANTOS, M., 2019). A produção de bairros e distritos cada vez mais distantes e apartados do centro da cidade reforçou o afastamento socioespacial das camadas populares, aprofundou a divisão social do espaço, evidenciou as precárias condições de mobilidade urbana e induziu a segmentação do consumo, baseada na diferenciação entre classes sociais e nas formas de consumir o espaço de acordo com a faixa de renda dos citadinos. XX ENANPUR 2023 – BELÉM 23 A 26 DE MAIO Dialeticamente, tais aspectos impulsionam a reorganização das práticas cotidianas, que passam a ser orientadas em maior proximidade com o local de residência e evidenciam como o processo de fragmentação socioespacial se sobrepõe e ressignifica a lógica centro-periférica, a ela se articulando de modo contraditório. Complementarmente, a fragmentação socioespacial também se revela na distância de percepções sobre a metrópole. Neste sentido, contata-se que os citadinos apresentam dificuldades para se localizar e se reconhecer na totalidade do espaço metropolitano, tornando-se praticamente impossível de conhecer, frequentar e possuir uma relação de pertencimento com outras regiões da cidade para além daquela onde se vive – no caso de Cidade Tiradentes, em São Paulo, e dos Pimentas, em Guarulhos, as zonas leste de ambas as cidades. Portanto, o processo de fragmentação socioespacial expõe uma alienação social sobre o espaço-tempo (fragmentado) da metrópole. A (re)produção de shopping centers exemplifica e confirma esta lógica fragmentária. Enquanto base material e ideológica do consumo cotidiano na metrópole, tais empreendimentos revelam a progressiva expansão comercial e dominação concorrencial de grandes redes varejistas, atacadistas e de fast-food nas periferias, onde o lazer e os encontros vão sendo igualmente regulados pelos interesses (e pelas ofertas) de mercado em espaços privados e monitorados. Dessa forma, a heterogeneidade socioespacial da metrópole vai cedendo lugar à homogeneidade de práticas cotidianas de consumo entre iguais e circunscritas a seus respectivos territórios de moradia. E o consumo, enfim, tende a assumir, progressivamente, o protagonismo nos deslocamentos (ou o comando da mobilidade) dos citadinos e nas suas relações com os demais espaços do bairro, do distrito e da cidade, complexificando e redefinindo a vida cotidiana comandada pela lógica pretérita de estruturação da metrópole, a centro-periférica, ainda que a fragmentação socioespacial redefina continuamente os atuais processos espaciais. 5. Referências AZEVEDO, A. A cidade de São Paulo: estudos de geografia urbana. Volume 3 (Aspectos da metrópole paulista). São Paulo: Nacional, 1958. CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. CHETRY, M. “Os conceitos da metrópole latino-americana contemporânea”. 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