CAROLLINE RODRIGUES GUEDES ROVARI CULTURAS INFANTIS: INVESTIGAÇÕES E DESCOBERTAS COM CRIANÇAS NO ENSINO FUNDAMENTAL PRESIDENTE PRUDENTE/SP 2020 CAROLLINE RODRIGUES GUEDES ROVARI CULTURAS INFANTIS: INVESTIGAÇÕES E DESCOBERTAS COM CRIANÇAS NO ENSINO FUNDAMENTAL Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da FCT/Unesp, campus de Presidente Prudente, como requisito para obtenção do Título de Mestre, linha de pesquisa Processos Formativos, Infância e Juventude, sob orientação do Prof. Dr. José Milton de Lima. PRESIDENTE PRUDENTE/SP 2020 Dedico este trabalho à minha família, em especial à minha mãe Sueli, que sempre esteve comigo, me incentivando em todas as etapas da vida. Ao meu esposo Luiz Felipe, que em meio as dificuldades sempre me apoiou, segurando minha mão dizendo: “- Vamos vencer!”. Eu te amo. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, por sempre me sustentar em todos os momentos da minha vida. Sem Ele, a conclusão desta etapa não teria sido possível. Meu criador, meu salvador, meu refúgio, meu amigo fiel. Seu amor por mim é incondicional. À Virgem Maria, pela sua poderosa intercessão, que nunca me abandona. À minha família, em especial à minha mãe, que sempre fez de tudo para me proporcionar a melhor educação e estudos. Sempre me incentivou e fez tudo que estivesse ao seu alcance para me ajudar no que fosse preciso. Mãe, eu te amo. Ao meu esposo Luiz Felipe, que nunca deixou com que eu desacreditasse dos meus sonhos. Sempre esteve ao meu lado, me dando conselhos e me apoiando. Aos integrantes do CEPELIJ, e do grupo de pesquisa “Cultura Corporal: saberes e fazeres”, pelas discussões, pelos estudos e pelas reflexões que tivemos em toda a caminhada. Às crianças, às professoras, aos funcionários e à diretora da escola pesquisada, por toda acolhida. Aos meus queridos orientadores, Márcia Regina Canhoto de Lima e José Milton de Lima, por me ensinarem tanto desde 2012, ano em que iniciei a graduação em Educação Física. Agradeço imensamente por toda dedicação, competência e seriedade em me acompanharem em todo o percurso na FCT/Unesp de Presidente Prudente. Obrigada! O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso.” Antoine de Saint -- Exupéry (Trecho retirado do livro O pequeno príncipe, 2015). RESUMO Esta dissertação está vinculada à Linha de Pesquisa denominada: Processos formativos, Infância e Juventude, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Unesp/Campus de Presidente Prudente. A pesquisa recebeu financiamento da Capes. Ao realizarmos o levantamento bibliográfico, constatamos que haviam poucos estudos sobre as Culturas Infantis no Ensino Fundamental, especificamente no 4º e 5º ano, e que grande parte das pesquisas contemplava as crianças no contexto da Educação Infantil. Sendo assim, assumimos como objeto de pesquisa as Culturas Infantis no ambiente escolar do Ensino Fundamental – anos iniciais, especificamente em turmas de 4º e de 5º ano, em que o grupo etário previsto é de nove e de dez anos. A investigação estabeleceu como objetivo principal compreender como as Culturas da Infância comparecem e são vivenciadas nos seus eixos: Interactividade, ludicidade, fantasia do real e reiteração, pelas crianças no 4º e no 5º ano do Ensino Fundamental. Para a efetivação desta investigação, utilizamos como base teórica central os estudos da Sociologia da Infância, que caracterizam a infância como uma categoria social permanente na estrutura social e a criança como ator social, com especificidades, sujeito de direitos e produtor de cultura, na estreita relação que estabelece com o mundo social e natural. A observação foi realizada em uma escola de Ensino Fundamental, de um munícipio do Oeste do Estado de São Paulo, e contou com a participação de 34 crianças, sendo uma turma do 4º ano e outra turma do 5º ano. Utilizamos como metodologia a etnografia e como instrumento metodológico a observação participante e análises bibliográficas. Entre os resultados, destacamos que ao observar as crianças é nítido que as manifestações das culturas infantis e seus eixos comparecem em suas relações com seus pares e são intensamente vivenciadas no contexto escolar, em especial nos intervalos. As interações das crianças pesquisadas são marcadas por mudanças nas posições de grupos de amigos, preocupações com a aparência, romances e envolvimento em atividades secretas. Seus jogos e brincadeiras são vivenciados dando importância não apenas às regras, mas, também, utilizando-os como meio de reflexão. A fantasia do real não foi um eixo predominante e intenso nas vivências do grupo pesquisado. A repetição de jogos e de brincadeiras não é frequente, pois sempre estão com algo novo, para a interação com seus pares. Esperamos, através deste estudo, ampliar as bases teóricas sobre as Culturas da Infância, principalmente sobre as crianças do Ensino Fundamental, e motivar outras investigações sobre essas culturas, que possam contribuir para uma melhor compreensão da produção cultural das crianças. Palavras-chave: Sociologia da Infância. Ensino Fundamental. Culturas da Infância. ABSTRACT This dissertation is linked to the Research Line called: Formative Processes, Childhood and Youth, of the Graduate Program in Education of the Faculty of Science and Technology, Unesp/Campus de Presidente Prudente. The research received funding from Capes. When performing the bibliographic survey, we found that there were few studies on Children's Cultures in Elementary School, specifically in the 4th and 5th grade, and that most of the research included children in the context of Early Childhood Education. Thus, we assume as the object of research the Children's Cultures in the school environment of elementary school - initial years, specifically in classes of 4th and 5th year, in which the predicted age group is nine and ten years. The main objective of the research was to understand how childhood cultures attend and are experienced in their axes: Interactivity, ludicity, fantasy of the real and reiteration, by children in the 4th and 5th year of elementary school. For the effectiveness of this investigation, we used as central theoretical basis the studies of Sociology of Childhood, which characterize childhood as a permanent social category in the social structure and the child as a social actor, with specificities, subject of rights and producer of culture, in the close relationship it establishes with the social and natural world. The observation was carried out in a elementary school, in a municipality in the West of the State of São Paulo, and had the participation of 34 children, one of the 4th grade and another class of the 5th year. We used ethnography and as a methodological instrument the participant observation and bibliographic analyses. Among the results, we highlight that when observing the children it is clear that the manifestations of children's cultures and their axes appear in their relationships with their peers and are intensely experienced in the school context, especially in the intervals. The interactions of the children surveyed are marked by changes in the positions of groups of friends, concerns about appearance, romances and involvement in secret activities. Their games and games are experienced giving importance not only to the rules, but also to the use of them as a means of reflection. The fantasy of the real was not a predominant and intense axis in the experiences of the researched group. The repetition of games and games is not frequent, because they are always with something new, for interaction with their peers. We hope, through this study, to broaden the theoretical bases on childhood cultures, especially on elementary school children, and to motivate other investigations on these cultures, which can contribute to a better understanding of the cultural production of children. Key-words: Sociology of Childhood. Elementary School. Childhood Cultures. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Levantamento das produções .............................................................. 23 Quadro 2 – Sujeitos pesquisados, abordagens metodológicas e temas das pesquisas ................................................................................................................. 25 Quadro 3 – Sujeitos das pesquisas ......................................................................... 33 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Fitinha com o nome da chapa do grêmio ............................................... 51 Figura 2 – “The Graham Children” ........................................................................... 60 Figura 3 – Biscoito consumido durante o intervalo .................................................. 72 Figura 4 – Suco consumido durante o intervalo ...................................................... 72 Figura 5 – Reunião APM ......................................................................................... 86 Figura 6 – Apresentação do Projeto de Trânsito ..................................................... 87 Figura 7 – Passeio Cultural ao Anfiteatro Municipal ................................................ 87 Figura 8 – Projeto “Bombeiro Mirim” ........................................................................ 89 Figura 9 – Ação do Grêmio Estudantil ..................................................................... 90 Figura 10 – Crianças jogando bola no intervalo ...................................................... 94 Figura 11 – “Slime” ................................................................................................ 102 Figura 12 – Produção de “slime” ........................................................................... 105 Figura 13 – Crianças conversando sobre a produção ........................................... 106 Figura 14 – Crianças e interações ......................................................................... 108 Figura 15 – Brincadeiras e interações ................................................................... 108 Figura 16 – Crianças brincando de “coca-cola” ..................................................... 116 Figura 17 – Tazo .................................................................................................... 118 Figura 18 – Sala de vídeo/biblioteca ..................................................................... 120 Figura 19 – Materiais escolares ............................................................................. 121 Figura 20 – Meninas pintando a casinha da Barbie .............................................. 123 Figura 21 – Cabelos da boneca de Luiza .............................................................. 128 Figura 22 – Casa do Lucas .................................................................................... 130 Figura 23 – José molhando a horta ....................................................................... 137 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 13 2. REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................... 22 3. “VOCÊ VEIO!” – O CAMINHO METODOLÓGICO ............................................. 34 4. “ELA NÃO SABE DE NADA, QUEM DECIDE SOMOS NÓS” – SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA: A NECESSIDADE DE NOVAS PERSPECTIVAS PARA AS CRIANÇAS E PARA A EDUCAÇÃO NA INFÂNCIA .................................................................. 53 4.1 A infância enquanto categoria social do tipo geracional: diferentes infâncias ... 54 4.2 Um breve histórico da Infância ........................................................................... 57 4.3 A criança na perspectiva da Sociologia da Infância ........................................... 73 4.4 Correntes da Sociologia da Infância ................................................................... 76 4.5 Infâncias e crianças na escola: uma construção de direitos, conhecimento e socialização .............................................................................................................. 77 4.6 Infância, educação e cidadania .......................................................................... 84 5. “AH, A GENTE COME, BRINCA, PULA CORDA, CORRE” – OS EIXOS ESTRUTURADORES DAS CULTURAS DA INFÂNCIA ......................................... 91 5.1 Infância e suas culturas: a criança como sujeito ativo no mundo em que vive .. 91 5.2 As Culturas da Infância e a Reprodução Interpretativa ...................................... 93 5.2.1 Interactividade ................................................................................................. 98 5.2.2 Ludicidade.......................................................................................................110 5.2.3 Fantasia do Real ........................................................................................... 124 5.2.4 Reiteração ..................................................................................................... 132 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 136 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 142 ANEXOS ................................................................................................................ 151 13 1. INTRODUÇÃO As pesquisas com crianças e sobre a infância são relativamente recentes. As referências históricas sobre a infância apareceram bem tarde, e quando surgiram foi sob o olhar e o filtro dos adultos. Com isso, as crianças foram e ainda são vistas por muitos como um ser a vir, seres incompletos, adultos em miniatura ou uma “tábula rasa”, como é descrito pelo filósofo inglês, John Locke, desconsiderando suas especificidades. O pensamento sobre a infância, descrito acima, foi mudando a partir dos estudos feitos por Philippe Ariès (1981), em sua obra História social da criança e da família. A partir dela, “não apenas a história da infância, mas os estudos da infância, em geral, têm sofrido uma mudança de rumo significativa” (SARMENTO, 2007, p. 27). Com isso, nos séculos XVII e XVIII, a infância começa a ser vista como uma fase própria do desenvolvimento humano, e não mais a criança como um adulto em miniatura. Os novos estudos sociais defendem que a infância é um grupo social, do tipo geracional, permanente, e que este grupo geracional é formado por crianças. Esses estudos dizem que apesar de haver diferenças entre elas e de pertencerem a condições sociais de classe, de gênero, de etnia diferente, elas têm muitas coisas em comum: a vulnerabilidade e a dependência social, econômica e jurídica dos adultos; a falta de direitos cívicos e políticos. Diante disso, observamos que as crianças têm suas próprias culturas, fantasiam, reinventam, interagem, criam e recriam suas regras, suas brincadeiras, seus grupos, em especial no que diz respeito ao meio escolar, quando ficam em seu tempo livre. Essa concepção de infância e de crianças começou a fazer sentido somente quando ingressamos no curso de Educação Física/Licenciatura da Faculdade de Ciências e Tecnologia – Unesp, Campus de Presidente Prudente, estado de São Paulo, no ano de 2012. Não sabíamos o que nos esperava, mas quando começamos a ter contato com os professores, que posteriormente se tornaram nossos orientadores: Profs. Drs. José Milton de Lima e Márcia Regina Canhoto de Lima, através das reuniões do Grupo de Pesquisa “Cultura Corporal: saberes e fazeres” que constatamos que as crianças não eram simples indivíduos. Eles falavam com tanta profundidade, com brilho nos olhos e nos faziam cada dia mais 14 querer entender sobre o mundo das crianças. As discussões sobre crianças eram totalmente diferentes do que imaginávamos. Discussões e textos que davam estatuto novo à criança: uma condição de um ser que pensa, que tem particularidades, sentimentos, emoções, um ser diferente dos adultos, um ser que produz cultura e com capacidade de reprodução interpretativa. Fomos nos interessando cada vez mais pelas pesquisas com crianças, e não faltávamos às reuniões do grupo de pesquisa. Buscamos os trabalhos dos orientadores que abordavam as crianças, o jogo, a brincadeira no contexto escolar, as culturas da infância, as mídias e a educação física escolar. Artigos, livros, capítulos de livros, projetos de pesquisas e de extensão, publicações em periódicos, enfim, muitos conteúdos publicados de qualidade para quem desejava se aprofundar nesses temas, como foi o nosso caso. Alguns dos conteúdos publicados pelos orientadores que “clarearam” o início dos nossos estudos foram eles: os livros: Literatura, jogo e arte: uma trajetória de formação e experiências (2004); Corpo e Movimento: textos e contextos (2008); O jogo como recurso pedagógico no contexto educacional (2008); Pesquisa em educação escolar: percursos e perspectivas (2010). Também, os artigos: “A ludicidade como eixo das culturas da infância” (2013); “A sociologia da infância e a Educação Infantil: outro olhar para as crianças e suas culturas” (2014); “As Culturas Juvenis e a Cultura Corporal de Movimento: em busca de interlocução” (2012); “A importância do jogo na perspectiva das inteligências múltiplas” (2003). Foram estes e muitíssimos outros trabalhos que nos ajudaram a pensar sobre a relevância da cultura lúdica no meio escolar. Cabe destacar aqui, trabalhos realizados por membros do Grupo de Pesquisa: “Cultura Corporal: saberes e fazeres”, sob a liderança dos professores acima destacados. Trabalhos estes que também contribuíram muito para o nosso desenvolvimento enquanto pesquisadora, como: Manifestações de conteúdos televisivos nas culturas da infância: interpretações das professoras no contexto pré- escolar (2015), de Jéssika Naiara da Silva, uma dissertação que nos ajudou a refletir a presença da mídia no contexto escolar; Leonardo de Angelo Orlandi, com a dissertação intitulada A brincadeira e as atividades formais de ensino no primeiro ano do ensino fundamental: uma análise das manifestações das crianças de seis anos (2013), que descreveu a transformação da realidade escolar, a partir da obrigatoriedade do Ensino Fundamental de nove anos. 15 Outro pesquisador com a qual tivemos um contato e convivência mais direta e colaboração nas ações, devido às intervenções na escola, foi com o mestrando Tony Aparecido Moreira, que nos mostrou a importância da fantasia do real como fonte da ludicidade, com a dissertação: Imaginação e protagonismo na Educação Infantil: estreitando os vínculos entre adultos e crianças (2014). Mais pessoas nos ajudaram a trilhar o caminho da pesquisa com seus trabalhos: José Ricardo Silva, com a dissertação A brincadeira na Educação Infantil: uma experiência de pesquisa e intervenção (2012), que descreveu a brincadeira na Educação Infantil Jucileny Bochorny, que nos fez pensar nas transformações da cultura lúdica no decorrer do tempo com a pesquisa intitulada Cultura Lúdica e Televisão: mediações no contexto escolar (2012). Os estudos de outros pesquisadores também nos ajudaram, como Denise Watanabe, que investigou a relação dos eixos “interactividade” e “ludicidade” no ambiente escolar, com a dissertação: A interactividade como fomentadora da ludicidade: tudo fica “típico” quando as crianças brincam na Educação Infantil” (2017). Nair Correia Salgado de Azevedo, com a tese Culturas lúdicas infantis na escola: entre a proibição e a criação (2016), estudou as criações das culturas infantis com enfoque no jogo e na brincadeira e, ainda, Susana Angelin Furlan, nos fez pensar a respeito do eixo reiteração, o tempo na escola, com a dissertação intitulada: Mas eu acabei de começar?!: A reiteração e as nuances do tempo no contexto escolar (2018). Em 2013, conquistamos uma bolsa de Iniciação Cientifica (IC/PIBIC/CNPQ), que criou as condições para que entrássemos “de cabeça” na pesquisa com crianças. A pesquisa foi realizada no período de 2013 a 2015, e tinha como eixo estruturador das Culturas da Infância a “ludicidade”, que era concebido pelos professores, e esse eixo era trabalhado na Educação Infantil. Em 2014/2015, conquistamos uma bolsa de estudos internacional, através de um edital que selecionaria alunos da Unesp para estudar durante cinco meses na Universidad de Santiago de Compostela. A seleção foi feita através da análise de Curriculum Lattes e de entrevista. Fomos selecionados e tivemos a oportunidade de estudar na Espanha, em Santiago de Compostela. Lá, nos matriculamos em disciplinas voltadas à criança, à infância e à família, que nos ajudaram a pensar sobre o crescimento da infância, a importância da família no meio escolar e as relações existentes entre a criança e a família. Outra disciplina importante foi a de 16 jogos e de brincadeiras na infância, em que estudamos sobre os jogos e brincadeiras utilizados em cada idade de vida da criança, bem como sua importância e seus significados para o mundo infantil. Cursamos também a disciplina sobre a música na escola, que nos ajudou a pensar a importância da inserção de brinquedos cantados e de jogos musicais no contexto escolar, assim como a criação de instrumentos com sucatas e o desenvolvimento da cultura corporal por meio da música. Todas essas disciplinas contribuíram muito em todo percurso da pesquisa. Foi uma experiência e tanto, vai ficar guardado para sempre em nossa memória. Retornamos ao Brasil e a pesquisa com crianças através da Iniciação Científica continuou. Durante o trabalho de campo, surgia cada vez mais o interesse em estar no meio das crianças, conversando, brincando e aprendendo com elas. A pesquisa estava sempre voltada à Educação Infantil, ou seja, crianças entre quatro e seis anos de idade. Às vezes questionávamos: “Como acontece a produção das Culturas da Infância no Ensino Fundamental?”, “E se pesquisássemos com crianças do Ensino Fundamental?” Em 2016 iniciamos a modalidade Bacharelado do Curso de Educação Física também na Faculdade de Ciências e Tecnologia, Unesp, Campus de Presidente Prudente. Finalizamos mais esta etapa e, em 2018, ingressamos no Programa de Pós-Graduação em Educação, no curso de mestrado da mesma universidade, com o intuito de dar continuidade à investigação com crianças. Durante uma conversa com orientador sobre qual seria nosso objeto de estudo na pesquisa de mestrado, alguns fatores corroboram para a escolha da temática: a atuação em projetos de extensão junto ao Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Ludicidade, Infância e Juventude (CEPELIJ/Unesp, de Presidente Prudente); os estudos realizados como bolsista de Iniciação Científica, voltados para as Culturas da Infância presentes na Educação Infantil; a atuação como professora de Educação Física no Ensino Fundamental e a participação no Grupo de Pesquisa mencionado acima. Sendo assim, a base teórica e metodológica de nossa pesquisa foi sendo construída através dos estudos e dos trabalhos/pesquisas realizados no grupo de pesquisa. Nesses encontros, discutíamos temas e pesquisas em educação, que nos ajudaram a construir ainda mais nosso olhar de pesquisadora. Além, das trocas de experiências com professores, mestrandos e doutorandos, que relatavam sobre suas pesquisas com crianças e jovens, embasados na Sociologia da Infância, nas 17 Culturas Infantis e Juvenis e nos eixos das Culturas da Infância (ludicidade, fantasia do real, reiteração e interactividade). Esta relação contribuiu muito para refinar o nosso olhar de pesquisadora. Após muita discussão, chegamos à conclusão de que iríamos pesquisar crianças no Ensino Fundamental, especificamente as do 4º e 5º anos, pois gostaríamos de investigar como se dá a produção dos eixos das Culturas Infantis em crianças de nove e dez anos, bem como saber como são vivenciadas pelas crianças. Isso nos tiraria um pouco da zona de conforto, mas estávamos dispostos a entrar nessa aventura. A partir daí, assumimos como problema de pesquisa o que Sarmento (2011) descreve, ao afirmar que as crianças “morrem” em muitas instituições, e que seus saberes, emoções, sentimentos e vontades próprias dão lugar ao aprendiz, que será avaliado, premiado ou punido. Isso se consolidou, ainda mais, a partir do levantamento bibliográfico de autores e de pesquisas (será apresentado no decorrer da dissertação) que destacam as Culturas Infantis no ambiente escolar, mais voltadas para a Educação Infantil. Estas Culturas Infantis, mesmo nessa modalidade educacional, segundo Sarmento, Constitui um desafio científico a que se não podem furtar todos quantos se dedicam ao estudo da criança. Esse esforço científico deve, ao meu ver, seguir os quatro eixos estruturadores das culturas da infância: a interactividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração (SARMENTO, 2004, p. 23). Após a análise do levantamento bibliográfico e dos muitos estudos realizados por Sarmento sobre as Culturas Infantis, vimos que era necessário aprofundar os estudos da temática em questão, sobretudo seu aparecimento/manifestações no Ensino Fundamental, especificamente no 4º e 5º ano. Nesse sentido, a pesquisa partiu do pressuposto de que as pesquisas sobre as culturas da infância estão mais centradas nos ambientes da Educação Infantil e pouco investigadas no Ensino Fundamental. Com isso, assumimos como objetivo geral: compreender como as Culturas da Infância comparecem e são vivenciadas nos seus eixos – interactividade, ludicidade, fantasia do real e reiteração pelas crianças no 4º e 5º ano do Ensino Fundamental. 18 Nossos objetivos específicos são: ampliar e aprofundar a base teórica da Sociologia da Infância e das Culturas da Infância, através de referenciais consistentes sobre a área e o tema pesquisado; observar os momentos lúdicos que acontecem no ambiente escolar, visando levantar e compreender as manifestações das Culturas Infantis; e identificar como as Culturas da Infância comparecem no Ensino Fundamental e como cada um dos eixos é vivenciado pelas crianças em turmas de 4º e 5º ano do Ensino Fundamental. Pretendemos, ao alcançarmos estes objetivos, ampliar a compreensão e a valorização destas culturas no ambiente escolar, considerando que a trajetória das crianças, como pessoas e como alunos, trazem marcas, distintas dos adultos, que se refletem nas formas de inteligibilidade, atividades, representações, simbolização do mundo. Para alcançar os objetivos propostos, a nossa investigação caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, e tem como metodologia a etnografia. Os procedimentos metodológicos utilizados foram: análise bibliográfica, especialmente de autores da Sociologia da Infância; observação participante no cotidiano de crianças do Ensino Fundamental entre nove e dez anos de idade; diário de campo e fotos. A pesquisa de campo foi desenvolvida em uma instituição de Educação da Rede Municipal de Educação de Presidente Epitácio – São Paulo, em que foram realizadas as observações em duas turmas, sendo uma do 4º ano do Ensino Fundamental e outra do 5º ano do Ensino Fundamental, durante os intervalos e seus momentos livres. A escola em que realizamos a pesquisa não nos era desconhecida, pois lecionamos nela o componente curricular de Educação Física, no ano de 2017. Então, conhecíamos boa parte dos alunos que estudavam naquela instituição. Primeiramente, apresentamos a proposta da pesquisa, os objetivos, a metodologia e como seria a devolutiva à Secretária de Educação e também à Diretora e à Coordenadora Pedagógica, que prontamente disponibilizaram a escola para a realização da pesquisa. Já estávamos familiarizados com a Sociologia da Infância, então, o desafio foi aprofundar ainda mais em nossa base teórica, bem como os estudos sobre as crianças da faixa etária escolhida. Como a Sociologia da Infância nos ensina que ninguém melhor do que as crianças para nos dizerem sobre elas mesmas, sendo 19 assim, agilizamos os documentos ao Comitê de Ética, para adentrarmos no campo de investigação: a escola. Trinta e quatro crianças participaram da pesquisa, através da autorização assinada pelos pais. Para esclarecê-los, durante uma reunião, explicamos como seria a pesquisa, os objetivos e a metodologia utilizada. Após a explicação, eles estariam livres para autorizar ou não a participação de seus filhos na pesquisa. Comitê de Ética aprovado, e lá fomos nós, adentrar no mundo das crianças. Pesquisas como as de Corsaro (2005; 2011), Müller (2006; 2009), Qvortrup (2011), Sarmento (2004; 2005; 2007; 2008; 2013), Lima (2013; 2014), Silva (2015), Orlandi (2013), Araújo (2012), Moreira (2014), Azevedo (2016), Furlan (2018; 2019), Watanabe (2016; 2017), entre outros, apontam que as crianças produzem suas culturas e elas têm muitas coisas a nos dizer, sendo assim, as crianças têm suas particularidades e são pequenos cidadãos de direitos. A criança é um ser humano também do hoje que não pode ser limitado ao amanhã, precisa ser compreendida a partir de si mesma e do seu próprio contexto. Representa um sujeito social, que não está passivo em seu processo de socialização, faz história e produz cultura. Esse reconhecimento de ator social ativo é um dos pressupostos básicos propostos pela Sociologia da Infância (LIMA; MOREIRA, 2014, p. 99-100). Diante desse contexto, a Sociologia da Infância, base teórica adotada em nossa pesquisa, concebe a criança como um sujeito social com características próprias, que vê o mundo de uma maneira diferente do olhar dos adultos. Um sujeito ativo, pertencente a uma categoria social heterogênea, do tipo geracional, que tem diferentes formas de comunicação e de interação entre as pessoas. A Sociologia da Infância propõe o estabelecimento de uma distinção analítica no seu duplo objeto de estudo: as crianças como atores sociais, nos seus mundos de vida, e a infância, como categoria social do tipo geracional, socialmente construída (SARMENTO, 2008, p. 22). Deste modo, a Sociologia da Infância é uma área do saber que tem como objeto de estudo a criança e suas infâncias, e busca atribuir novos sentidos às diversas ações educativas, superando visões que as desvalorizam, compreendendo a criança em seu universo particular. 20 Sarmento (2004) nos apresenta, também, os quatro eixos estruturadores das Culturas da Infância (todos esses eixos e seus conceitos serão apresentados com maior profundidade no decorrer da dissertação), mas, de modo introdutório, recebem as seguintes definições: A Interactividade (relações sociais), a qual Sarmento (2002) considera a criança como um ser que vive num mundo heterogêneo, em contato com diversas realidades que colaboram para a formação de sua identidade pessoal e social, com destaque para: escola, família, adultos, crianças, demais pares etc. A Ludicidade (brincadeiras) representa um aspecto essencial da cultura infantil: o brincar. Segundo Sarmento (2002), o brincar não é exclusividade das crianças, mas é do próprio do homem, sendo ainda uma das suas atividades sociais mais significativas e, diferentemente do adulto, o brincar é o que as crianças fazem de mais sério. A Fantasia do real (imaginação) é a capacidade de imaginar, ou seja, as crianças transpõem o real imediato e o reconstroem criativamente pelo imaginário. (SARMENTO, 2004). E a Reiteração (tempo sincrônico ou diacrônico), em que Sarmento (2002) destaca o tempo da criança como recursivo, sempre provido de novas possibilidades, capaz de ser repetido, reiniciado a qualquer momento. Este tempo se manifesta tanto no plano sincrônico, em que as rotinas e as situações são recriadas, como no plano diacrônico, por meio da transmissão de jogos, de brincadeiras e de rituais “das crianças mais velhas para as crianças mais novas, de modo continuado e incessante, permitindo que seja toda a infância que se reinventa e recria, começando tudo de novo”. (SARMENTO, 2002, p. 18). Esta dissertação está estruturada da seguinte forma: a primeira seção buscou entender o que já havia sido pesquisado sobre o assunto dentro da literatura disponível; a seção dois, intitulada, “Revisão de Literatura” foi estruturada a partir do levantamento de dissertações e teses em algumas bases de dados, com o auxílio das palavras-chave: Ensino Fundamental; Culturas da Infância; Culturas Infantis, entre outras, para que pudéssemos saber o que já havia sido pesquisado sobre a temática escolhida. Na seção três, descrevemos a metodologia utilizada na pesquisa para responder nosso problema e ajudar a alcançar nossos objetivos. A seção “Você 21 veio!” – o caminho metodológico” mostra a nossa entrada no campo de pesquisa, utilizando a etnografia. Na seção quatro, discutimos novas perspectivas para as crianças e para a educação na infância, através de nossa base teórica, a Sociologia da Infância. A discussão nos traz a reflexão da infância enquanto categoria estrutural e as diferentes infâncias, bem como se deu o processo histórico da infância ao longo dos anos, do sentimento de infância e de seus ofícios, além de adentrar na Sociologia da Infância e em suas principais correntes teóricas. Na quinta seção, tratamos detalhadamente sobre o conceito de Reprodução Interpretativa nas culturas de pares, descrito por Corsaro (2005), assim como os eixos estruturadores das Culturas da Infância, descritos por Sarmento (2004), juntamente com alguns dados específicos desses eixos, que observamos ao longo da pesquisa na instituição investigada. Após toda discussão, concluímos com as considerações finais desta dissertação, acompanhadas, na sequência, pela relação das referências utilizadas para o desenvolvimento do trabalho. Nossa perspectiva, portanto, é que a produção de conhecimentos nessa temática auxilie de alguma forma a compreensão da realidade estudada e que as Culturas da Infância sejam reconhecidas como culturas produzidas pelas crianças não somente no contexto da Educação Infantil, mas em todos os ambientes em que elas vivem. 22 2. REVISÃO DE LITERATURA Após definirmos o tema da pesquisa e elegermos o problema, fizemos uma revisão de literatura, pois entendemos que é imprescindível reunir as contribuições mais relevantes sobre o tema escolhido: “Culturas Infantis: investigações e descobertas com crianças no Ensino Fundamental (4º e 5º anos)”. Sendo assim, a primeira etapa de nossa pesquisa, consistiu em realizar uma revisão de literatura dos temas já pesquisados no mesmo sentido que o nosso. A revisão de literatura foi escolhida para compor a etapa inicial da pesquisa, para que pudéssemos compreender os saberes já pesquisados, analisados e discutidos por outros pesquisadores, para que assim, pudéssemos contribuir no avanço dos conhecimentos da temática escolhida. A revisão de literatura caracteriza-se pela: Identificação e análise dos dados escritos em livros, artigos de revistas, dentre outros. Sua finalidade é colocar o investigador em contato com o que já se produziu a respeito do seu tema de pesquisa (GONSALVES, 2011, p. 36). É uma etapa muito importante e essencial na pesquisa, pois nos dá a possibilidade de analisar o que vem sendo pesquisado em determinado período, os níveis de produção, a área do conhecimento e as diversas maneiras, caminhos e objetivos que cada pesquisador utilizou. Sobre a revisão de literatura, Soares (1989, p. 3) justifica que, Essa compreensão do estado de conhecimento sobre um tema, em determinado momento, é necessária no processo de evolução da ciência, afim de que se ordene periodicamente o conjunto de informações e resultados já obtidos, ordenação que permita indicação das possibilidades de integração de diferentes perspectivas, aparentemente autônomas, a identificação de duplicações ou contradições, e a determinação de lacunas e vieses. Diante disso, com o objetivo de conhecer o que já foi produzido sobre as Culturas Infantis no Ensino Fundamental, especificamente no 4º e 5º anos e, posteriormente, analisar as lacunas apresentadas e também novas possibilidades de investigação para que não haja repetições, trouxemos nesta seção o levantamento 23 das produções de dissertações mestrado e teses de doutorado que contribuíram para o delineamento da temática de nossa pesquisa. Deste modo, realizamos o levantamento de dissertações de mestrado e de teses de doutorado nas bases de dados do Portal da Capes, da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e do Repositório da Universidade do Minho, pelo fato desta ter muitas investigações e produções apoiadas na Sociologia da Infância, base teórica de nossa pesquisa. Selecionamos as produções que foram publicadas nos últimos dez anos (2008 a 2017). Para isso, utilizamos as palavras-chave: Ensino Fundamental; Culturas da Infância; Culturas Infantis e Sociologia da Infância. A localização poderia estar no título, no resumo e nas palavras-chave do trabalho, entretanto, muitas vezes, as palavras-chave não eram coerentes com o material produzido, ou não condiziam com o que procurávamos. Dentre as pesquisas encontradas e que correspondiam, em partes, com o que procurávamos, destacamos 15 trabalhos, sendo 9 (nove) dissertações e 6 (seis) teses, distribuídas em programas de pós-graduação em Educação (12), Educação Escolar (2) e Educação: conhecimento e inclusão social (1). 11 dos trabalhos publicados tinham como principal referencial teórico, a Sociologia da Infância, referenciando Corsaro (2005), Müller (2007), Sarmento (2011), Ferreira (2004) e Kramer (2002). Quadro 1 – Levantamento das produções. Nº ANO TÍTULO AUTORIA NÍVEL 1 2009 As Culturas infantis no espaço e tempo do recreio: constituindo singularidade sobre a criança. Ana Paula Vieira e Souza Mestrado 2 2009 O encontro entre crianças e seus pares na escola: entre visibilidades e possibilidades. Mayanna Auxiliadora Martins Santos Mestrado 3 2010 Tensões contemporâneas no processo de passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental: um estudo de caso. Vanessa Ferraz Almeida Neves Doutorado 4 2010 De Crianças a Alunos: Transformações Sociais na Passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Flávia Miller Naethe Motta Doutorado 5 2010 O brinquedo na Educação Infantil Larissa Mestrado 24 como promotor das Culturas da Infância e humanização. Aparecida Trindade dos Santos 6 2012 Continuidades e descontinuidades na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental no contexto de nove anos. Keila Hellen Barbato Marcondes Doutorado 7 2012 Cultura lúdica e televisão: mediações no contexto escolar. Jucileny Bochorny Mestrado 8 2014 Chegou a hora do recreio! O recreio: espaço de construção de culturas da infância. Olga Maria Queirós de Azevedo Mestrado 9 2014 Participação e expressão das Culturas infantis no primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos: possibilidades de escuta das crianças. Viviane Aparecida da Silva Doutorado 10 2014 Imaginação e protagonismo na Educação Infantil: estreitando os vínculos entre adultos e crianças. Tony Aparecido Moreira Mestrado 11 2015 A criança e o lúdico na transição da Educação Infantil para o Primeiro ano do Ensino Fundamental em uma escola municipal. Rosa Maria Vilas Boas Espiridião Mestrado 12 2015 Manifestações de conteúdos televisivos nas Culturas Infantis e interpretações das professoras no contexto pré-escolar. Jéssika Naiara da Silva Mestrado 13 2016 O final da Educação Infantil e o início do Ensino Fundamental: a escola revelada por crianças e professoras. Caroline Raniro Doutorado 14 2016 Culturas lúdicas infantis na escola: entre a proibição e a criação. Nair Correia Salgado de Azevedo Doutorado 15 2017 A interactividade como fomentadora da ludicidade: tudo fica “típico” quando as crianças brincam na Educação Infantil. Denise Watanabe Mestrado Para embasar nossa investigação, avançamos na leitura dos materiais com o intuito de identificarmos nas teses e nas dissertações as seguintes informações: sujeitos pesquisados, abordagens metodológicas e temas investigados. 25 Quadro 2 – Sujeitos pesquisados, abordagens metodológicas e temas das pesquisas.1 Nº AUTOR (sobrenome) SUJEITOS PESQUISADOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS TEMAS INVESTIGADOS 1 Souza Crianças de 9 a 11 anos. Observação exploratória e questionário. As Culturas produzidas pelas crianças no tempo do recreio. 2 Santos Crianças de 5 e 6 anos. Observação participante, vídeo- gravação, relato oral das crianças. As maneiras que as crianças se expressam (verbalmente ou não) dentro do contexto escolar, principalmente na sala de aula. 3 Neves Crianças de 4 e 7 anos. Anotações no diário de campo, gravações em vídeo das salas de aulas, gravações em áudio de entrevistas informais e semiestruturadas e artefatos escritos usados e/ou produzidos nas salas de aulas. Vivência das crianças, durante uma transição de escola de Educação Infantil para uma de Ensino Fundamental. 4 Motta Crianças de 5 e 6 anos. Diário de campo, fotografia, entrevistas informais e questionário. Passagem das crianças da Educação Infantil para o Ensino Fundamental e a ação da cultura escolar sobre as culturas infantis. 5 Santos Crianças de 2 a 6 anos e professores. Observação e entrevistas semiestruturadas. Compreensão de como o brinquedo é utilizado no contexto da Educação Infantil, seu uso na prática educativa e as concepções do brincar e de criança dos professores investigados. 1 O quadro 2 segue a mesma ordem do quadro 1. 26 6 Marcondes Crianças de 6 anos, seus responsáveis e professores. Observação, entrevistas semiestruturadas, gravação, encontro com grupos de crianças e produção de desenhos. Compreensão das continuidades e descontinuidade nas práticas pedagógicas na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Como estas são vivenciadas e percebidas pelas crianças, professoras e familiares. 7 Bochorny Crianças de 9 a 12 anos. Observação participante, entrevistas estruturadas, gravação, vídeos, fotografias diário de campo. Compreensão da presença da televisão nas atividades lúdicas das crianças. 8 Azevedo Crianças de 3 a 6 anos. Observação participante, registros no diário de campo, entrevistas e gravações em áudio. Compreensão de como as crianças constroem suas culturas no espaço e no tempo do recreio. 9 Silva Crianças de 5 e 6 anos. Observação sistemática e entrevista semiestruturada. A participação e expressão das culturas infantis em uma turma do novo primeiro ano do Ensino Fundamental. 10 Moreira Crianças de 2 a 6 anos. Observação participante, fotografia e registros no diário de campo. A linguagem imaginativa das crianças. 11 Espiridião Crianças de 5 e 6 anos. Registros no caderno de campo, gravações em vídeo, gravações em áudio de entrevistas semiestruturadas e gravações em vídeo. Transição de crianças da Educação Infantil para o Primeiro Ano do Ensino Fundamental com destaque na importância do lúdico. 27 12 Silva Crianças de 4 a 6 anos e professores. Observação participante, entrevista semiestruturada e registros no diário de campo. As manifestações das culturas infantis com conteúdos televisivos e as interpretações e visões dos professores. 13 Raniro Crianças de 5 a 8 anos e professores. Grupo focal, gravador, fotografia e diário de campo. Constituição e influência em um Centro Educacional nos dois últimos anos da Educação Infantil e nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental. 14 Azevedo Crianças de 9 e 10 anos. Filmagens, diário de campo e entrevistas coletivas. A produção das culturas infantis no ambiente escolar, com enfoque no jogo e na brincadeira. 15 Watanabe Crianças de 4 e 5 anos. Observação, registros no diário de campo, fotos, diálogos com as crianças e professores. A interactividade como eixo fomentador da ludicidade. Além de identificar o percurso empregado pelos pesquisadores através dos dados expostos acima, procuramos identificar justificativas para os objetivos de nossa pesquisa, a fim de ressaltar e adotar um diferencial na mesma. Levamos em consideração, as lacunas encontradas e/ou não discutidas referente às pesquisas descritas acima. Deste modo, após termos feito o levantamento, nos aprofundamos na leitura de cada dissertação e tese. Após a leitura, notamos que as pesquisas encontradas investigaram a passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, suas vivências, suas continuidades e suas descontinuidades, as interações entre as crianças no contexto escolar, as manifestações de conteúdos televisivos no ambiente escolar, a linguagem imaginativa das crianças e as produções das culturas infantis no ambiente escolar focando no jogo e na brincadeira. Por meio de observações e questionários, Souza (2009) objetivou investigar as Culturas infantis no recreio e seguiu a linha sócio histórica que entende a criança 28 como sujeito histórico, social a produtor de cultura. Em sua dissertação, a pesquisadora descreve que As pesquisas sobre as crianças e suas culturas indicam que é preciso dar voz a elas, conhece-las, saber quem são, como vivem, como interagem em grupo, quais são suas preferências, o que pensam a respeito de si mesmas, das relações com seus pares e com os adultos, do mundo em que vivem (SOUZA, 2009, p. 22). A partir disso, Souza (2009) decidiu dar voz as crianças em sua pesquisa e durante as observações percebeu que as crianças produzem cultura no tempo do intervalo através de brincadeiras, jogos, interações entre eles e conversas. A pesquisadora escreve ainda, que o recreio é um espaço mágico e que deveria ter seu tempo separado da merenda, para que as crianças fossem livres. A pesquisa de Mayanna Auxiliadora Martins Santos (2009) teve o objetivo de compreender de que maneira as crianças se expressam (comunicação verbal e não verbal) dentro do contexto escolar, principalmente nas salas de aula. Santos (2009) apoiou-se na base teórica da Sociologia da Infância e na metodologia etnográfica. Ao analisar os dados da pesquisa, conseguidos através da observação participante, vídeo-gravação e relatos orais das crianças, a autora constatou que as crianças se organizam facilmente em pares e que questões de gênero aparecem de forma muito significativa na interação entre as crianças. Na dissertação de Vanessa Neves (2010), a pesquisadora teve como foco investigar como foi vivida a transição de uma escola de Educação Infantil para uma de Ensino Fundamental por um grupo de crianças de quatro e sete anos de idade, no contexto da ampliação do Ensino Fundamental para nove anos. Por meio de anotações no diário de campo, gravações em vídeo das salas de aulas, gravações em áudio de entrevistas informais e semiestruturadas com professoras e com crianças, artefatos escritos usados e/ou produzidos nas salas de aulas, Vanessa Neves (2010) concluiu que há a necessidade de maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, pois estas são fundamentais para as crianças dentro e fora da escola. Na mesma linha de pensamento, Flávia Motta (2010) também discutiu, em sua tese, a passagem das crianças da Educação Infantil para o Ensino Fundamental e a ação da cultura escolar sobre as Culturas Infantis. Usando a etnografia, e os procedimentos metodológicos: diário de campo, fotografia, entrevistas informais e 29 questionário. A autora acompanhou a passagem de uma turma de Educação Infantil para o Ensino Fundamental. A pesquisa de Motta (2010) pontuou que, as práticas pedagógicas não dialogaram entre si, apesar das duas turmas pesquisadas estarem na mesma escola. Isto colaborou para a descontinuidade das práticas educativas vivenciadas pelas crianças, que a autora considerou como uma transformação dos agentes sociais crianças para agentes sociais alunos. Por fim, a autora destacou que em relação à prática dos professores: [...] o movimento e a expressão corporal deveriam ser olhados como elementos formadores, tanto quanto a escrita, a leitura ou as operações matemáticas, que, por sua vez, deveriam ser trabalhadas a partir de suas funções sociais efetivas de forma a não desvincular os conteúdos escolares da vida real (MOTTA, 2010, p. 162). A investigação de mestrado de Larissa Aparecida Trindade dos Santos (2010) teve como objeto de pesquisa o brinquedo. Utilizando a metodologia do tipo descritivo-interpretativa com 12 professoras e 94 crianças de diversas turmas de Educação Infantil, ela objetivou diagnosticar e compreender como o brinquedo vem sendo utilizado no contexto da Educação Infantil, pois a pesquisa partiu do pressuposto de que as particularidades e necessidades do brincar das crianças não eram consideradas pela Educação Infantil. Ao término da investigação, Santos (2010) constatou que no que diz respeito ao grupo de crianças entre dois e três anos de idade, a instituição pesquisada prioriza os aspectos de higiene, sono e alimentação, deixando o desenvolvimento motor em segundo plano. No grupo de crianças entre quatro e seis anos de idade, observou-se que é predominantemente valorizado a disciplina, a imobilidade, o silêncio e introdução à alfabetização. No que diz respeito à visão dos professores, a maioria (exceto dois), têm concepções assistencialista e propedêutica da escola. Keila Marcondes (2012) objetivou compreender quais as continuidades e descontinuidades presentes na organização e nas práticas pedagógicas nesse momento de transição. Além disso, Marcondes (2012) buscou entender como essas mudanças são vivenciadas e percebidas pelas crianças, pelos professores e pelos familiares. Os dados foram coletados por meio de observações no ambiente escolar, tanto na Educação Infantil quanto no Ensino Fundamental, através de entrevistas com os responsáveis e os professores, além de encontros com as crianças, com 30 produção de desenhos temáticos, seguido de conversa através de um roteiro guia. Marcondes (2012) pôde concluir que: [...] a transição entre os dois ambientes mostra-se um momento de grande tensão em que há o desejo pelo crescimento e pelo “aprender”, contudo, há temores e desencontros. Destaca-se também as descontinuidades existentes entre os dois ambientes pesquisados, identificadas nos espaços físicos que se mostram menos adaptados nas escolas, assim como a diminuição no tempo de brincar, o desaparecimento da ludicidade e da fruição no Ensino Fundamental, centrando as práticas docentes em atividades relacionadas à alfabetização em seus moldes tradicionais (MARCONDES, 2012, p. 9). Jucileny Bochorny (2012), em sua dissertação intitulada: “Cultura lúdica e televisão: mediações no contexto escolar” pesquisou crianças que no início da pesquisa estavam com nove anos e no término da pesquisa estavam com 12 anos de idade. Após a realização de um levantamento bibliográfico, a pesquisadora (2012) procurou ampliar os conhecimentos sobre o processo de mediação e compreender a presença da televisão nas atividades lúdicas das crianças, analisando como elas partilham com seus pares os elementos vindos através da televisão. Bochorny (2012) constatou que os personagens de programas de televisão e filmes estão presentes no meio escolar através de materiais escolares e também nas brincadeiras. Além de que, por meio da vivência da cultura lúdica as crianças inserem objetos culturais produzidos a partir dos personagens midiáticos vistos na televisão. Em sua dissertação de mestrado, Olga Maria Queirós de Azevedo (2014), teve como foco principal, compreender como é que as crianças constroem as culturas identitárias da sua geração no espaço e tempo do recreio. Azevedo (2014) observou que as crianças inventam a reinventam brincadeiras de acordo com suas vivências e experiências sociais, e que as crianças constroem e seguem regras em suas brincadeiras, o que muitas vezes, no olhar dos adultos, é um caos. Encontramos outra pesquisa relacionada ao primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos, em que a pesquisadora objetivou entender como acontece a participação e expressão das culturas infantis em uma turma do novo primeiro ano do Ensino Fundamental. Apoiada na Sociologia da Infância e em documentos orientadores do Ministério da Educação e do Conselho Nacional de 31 Educação para a implantação do novo primeiro ano, Silva (2014) revelou que os modelos tradicionais e novos ainda estão no mesmo espaço escolar e isso gera conflitos no que diz respeito à participação e à expressão das culturas infantis, pois “[...] o que prevalece no novo primeiro ano é a reprodução de um currículo centralizado na voz e nas decisões do professor” (SILVA, 2014, p. 7), resultando na não consideração dos estudos sobre a infância, que defende a criança ativa, participativa e produtora de cultura. Em sua dissertação de mestrado, um integrante do nosso grupo de pesquisa2 (grupo mencionado na introdução desta dissertação), Tony Aparecido Moreira (2014), realizou uma investigação-ação com crianças entre dois e seis anos do Ensino Infantil, objetivando ampliar as experiências imaginárias das crianças através de brincadeiras, jogos de fantasia, contação e criação de histórias. Em todo seu trabalho, Moreira (2014) deu enfoque ao eixo estruturador das culturas da infância “fantasia do real”, e ao final da investigação Moreira (2014) destacou a ampliação da imaginação das crianças, além da qualificação das práticas pedagógicas das professoras, e o maior interesse dos pais e responsáveis em participar das brincadeiras de seus filhos. Rosa Maria Vilas Boas Espiridião (2015) investigou crianças entre cinco e seis anos de idade em sua dissertação de mestrado denominada “A criança e o lúdico na transição da Educação Infantil para o primeiro ano do Ensino Fundamental em uma escola municipal”. A autora pesquisou a transição de um grupo de crianças da Educação Infantil para o Primeiro Ano do Ensino Fundamental e destacou a importância do lúdico nessas duas modalidades de ensino. Espiridião (2015) analisou a interação entre as crianças e seus grupos de pares, entre as crianças e seus professores, o lúdico nas duas etapas de ensino. Além de analisar as legislações da Educação Infantil e da ampliação do Ensino Fundamental para nove anos. Ao final de sua pesquisa, Espiridião (2015) constatou que a alfabetização e o letramento foram o centro da Educação Infantil e do primeiro ano do Ensino Fundamental, o que levou a diminuir o tempo destinado ao brincar. A pesquisadora, também, destacou que a prática cotidiana é pouco flexível e controlada pelo adulto, e evidenciou a integração entre o brincar e os dois 2 CEPELIJ - CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, LUDICIDADE, INFÂNCIA E JUVENTUDE. 32 níveis de ensino, além da necessidade de maior escuta das vozes das crianças pelos adultos. No mesmo âmbito dessas pesquisas, Caroline Raniro (2016), em sua tese de doutorado intitulada O final da Educação Infantil e o início do Ensino Fundamental: a escola revelada por crianças e professoras, quis identificar, compreender e analisar como a escolarização, nos últimos dois anos da Educação Infantil e nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, vem se constituindo a partir da concepção das crianças e das suas professoras. Por meio da análise realizada, através de sessões de grupo focal, os dados mostraram que o Ensino Fundamental se mostrou menos flexível em relação à Educação Infantil, por se tratar de um ensino com foco na alfabetização. Sendo assim, há mais descontinuidades que continuidades entre uma etapa de ensino e outra. Jéssika Naiara da Silva (2015), outra integrante do nosso grupo de pesquisa, investigou em sua dissertação de mestrado as manifestações infantis e os conteúdos televisivos presentes no contexto escolar seguido das visões que os professores tinham em relação à criança e à televisão. A partir das observações realizadas nas turmas de Educação Infantil, Silva (2015) relata que durante as brincadeiras das crianças os conteúdos televisivos aparecem predominantemente, e que os professores apontam que esses conteúdos televisivos ora eram positivos e ora negativos. Em sua tese de doutorado, Azevedo (2016), integrante também do nosso grupo de pesquisa, buscou observar, descrever e interpretar as experiências lúdicas das crianças nos vários ambientes da escola pesquisada, focando nos jogos e brincadeiras. No decorrer das observações, a pesquisadora relata que as crianças em diversas situações suas culturas são proibidas pelos adultos e que é necessário a valorização das culturas infantis. Watanabe (2017), mais uma integrante do nosso grupo de pesquisa, em sua dissertação de mestrado: “A interactividade como fomentadora da ludicidade: tudo fica “típico” quando as crianças brincam na Educação Infantil”, utilizou da investigação-ação para aprofundar, compreender, investigar como se estabeleciam as relações sociais (eixo interactividade) entre adulto/criança, criança/adulto e criança/pares infantis. Após a realização da investigação-ação, Denise Watanabe (2017) concluiu que houve a ampliação da cultura lúdica no ambiente pesquisado, além da ressignificação das crianças em seus momentos de brincadeiras. 33 Após finalizarmos a leitura das teses e das dissertações e analisarmos os trabalhos encontrados, o que mais nos chamou atenção foram os sujeitos pesquisados e, com isso, justificamos e confirmamos os sujeitos de nossa pesquisa. Quadro 3 – Sujeitos das pesquisas. Crianças entre 2 e 6 anos Crianças entre 4 e 8 anos Crianças entre 8 e 10 anos Professores Pais/responsáveis 2 10 3 4 1 A partir do quadro acima, nota-se que o maior número de pesquisas encontradas foram com crianças entre quatro e oito anos de idade, ou seja, algumas estão no Educação Infantil e outras no 1º ano do Ensino Fundamental. Em relação às crianças do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental (grupo etário previsto de nove e dez anos) identificamos apenas 3 (três) pesquisas. Deste modo, a partir da revisão feita, verificamos que não há investigações com crianças de nove e dez anos, que buscam especificamente compreender como as Culturas Infantis aparecem e são vivenciadas nos seus eixos: ludicidade, interactividade, reiteração e fantasia do real. Por isso, elegemos, como sujeitos de nossa pesquisa, crianças de nove e dez anos, que estão no 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, visto que grande parte das pesquisas destacadas investigou a passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. 34 3. “VOCÊ VEIO!” – O CAMINHO METODOLÓGICO De início, sabíamos que precisaríamos utilizar uma metodologia que evidenciasse a criança e que desse voz a ela, ou seja, uma metodologia em que o sujeito pesquisado - no nosso caso, as crianças - fosse reposicionado como sujeito ativo ao invés de ser considerado mero objeto de pesquisa. Acreditamos que, ouvindo o que as crianças têm a dizer, vamos poder aumentar o conhecimento de infância. Desse modo, a nossa proposta foi a de fazer pesquisa para/com as crianças e não sobre crianças. Sendo assim, adotamos a pesquisa de natureza qualitativa, visto que os dados coletados são descritivos, interpretativos e procuram retratar, de modo mais fidedigno possível, a realidade estudada, no nosso caso, as culturas produzidas pelas crianças no contexto escolar. Por pesquisa qualitativa entendemos qualquer tipo de pesquisa que gera resultados que não foram alcançados por procedimentos estatísticos ou outro tipo de quantificação. Pode referir-se a pesquisa sobre a vida das pessoas, histórias, comportamentos e também ao funcionamento organizativo, aos movimentos sociais ou às relações e interações. Alguns dos dados podem ser quantificados, porém, a análise em si mesma é qualitativa (STRAUSS; CORBIN apud SANDÍN ESTEBAN, 2010, p. 124). Deste modo, compreendemos que a pesquisa de natureza qualitativa difere da pesquisa de natureza quantitativa, “pelo fato de não utilizar dados estatísticos como o centro do processo de análise de um problema, não tendo, portanto, a prioridade de numerar ou medir unidades”, conforme afirmam Prodanov e Freitas (2013, p. 70). Entende-se, portanto, que a pesquisa quantitativa remete à explanação através de medidas objetivas, testando hipóteses e utilizando a estatística. O termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível e, após este tirocínio, o autor interpreta e traduz em um texto, zelosamente escrito, com perspicácia e competência científicas, os significados patentes ou ocultos do seu objeto de pesquisa (CHIZZOTTI, 2003, p. 221). 35 Antonio Chizzotti (2003) ressalta a importância de nós, pesquisadores, termos clareza de como interpretar, de maneira eficiente e competente, os dados coletados no campo, e isso só é possível após um levantamento bibliográfico denso e sólido. E essa interpretação se dá à medida que o contato com o campo se torna frequente, com a interação e o contato direto do pesquisador com os sujeitos estudados. No artigo de Godoy (1995), a professora relata a relevância da pesquisa qualitativa e suas possibilidades e destaca algumas características básicas da pesquisa qualitativa como: a importância do contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente estudado; a utilização de vídeos, de gravações e de diário para as anotações e o fato de que o pesquisador é o instrumento mais confiável de observação, de seleção, de análise e de interpretação dos dados coletados. Do mesmo modo, afirma Godoy (1995, p. 63), “quando a nossa preocupação for a compreensão da teia de relações sociais e culturais que se estabelecem no interior das organizações, o trabalho qualitativo pode oferecer interessantes e relevantes dados”. Assim, partindo do princípio de que nossa pesquisa busca compreender como as Culturas Infantis são produzidas por crianças do grupo etário de 9 e 10 anos, no ambiente escolar, tivemos mais certeza de que a escolha metodológica foi a mais adequada. Através de diversas leituras de pesquisas com crianças, percebemos que a metodologia mais utilizada é a etnografia, pois ela possibilita um contato “face a face” com o ambiente escolar, o que permite ao pesquisador estar dentro da escola, entender seu cotidiano, conviver com os sujeitos que o compõem. Desse modo, conseguiríamos analisar e interpretar os dados, transformando-os em conhecimento significativo para a área da Educação. Sendo assim, utilizamos a etnografia como metodologia de nossa pesquisa, pois ela é a metodologia adotada em estudos da Sociologia da Infância e das Culturas Infantis e atendia aos objetivos assumidos pela nossa pesquisa. O pesquisador Marchi (2010, p. 194) diz que “a etnografia tem sido apontada como metodologia particularmente adequada ao imperativo de ´dar voz` às crianças fazendo-as participar na produção dos dados sociológicos sobre suas maneiras de ser, sentir, agir e pensar”. A etnografia permite que o pesquisador entre no mundo 36 das crianças, estabelecendo uma relação com elas, porém, para isso, dizem que o pesquisador deve ir a campo, Não como alguém que faz uma pequena paragem ao passar, mas como quem vai fazer uma visita; não como uma pessoa que sabe tudo, mas como alguém que quer aprender; não como uma pessoa que quer ser como o sujeito, mas como alguém que procura saber o que é ser como ele (BOGDAN; BIKLEN apud VIÉGAS, 2007, p. 104). A entrada no campo é crucial na etnografia, pois um dos objetivos centrais dessa metodologia interpretativa é ser considerado um membro dentro do grupo pesquisado. Ser aceito no grupo das crianças é uma tarefa um tanto quanto desafiadora, pelo fato de haver algumas diferenças entre os adultos e as crianças como: a maturidade cognitiva e comunicativa e também outra diferença óbvia: o tamanho físico. Para a utilização da pesquisa etnográfica, é importante conhecermos e compreendermos as suas três características-chave, consideradas por Corsaro (2009), que são descritas na obra “Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro”, organizada por Müller, Carvalho e outros pesquisadores, publicada em 2009. As três características são: sustentável e comprometida; microscópica e holística; flexível e autocorretiva. No que diz respeito à característica „sustentável e comprometida‟, Corsaro (2009) descreve que a pesquisa etnográfica compreende um trabalho prolongado no campo, em que o pesquisador faz observações por longos períodos (meses ou anos), em um determinado grupo social, e, a partir dessa observação, o pesquisador faz sua interpretação sustentada em bases teóricas. As informações são coletadas e registradas sistematicamente, por meio de notas em diário de campo, gravações em áudio ou vídeo, ou entrevistas formais e informais. Dentro dessa característica, Corsaro descreve que a maioria dos etnógrafos, defende a “observação participante” como sustentável e comprometida, pois são observações sólidas e fiéis do grupo pesquisado. A segunda característica da pesquisa etnográfica é a „microscópica e holística‟. Ambas são simultâneas, pois, nesse tipo de pesquisa, o pesquisador observa aspectos micro dos sujeitos pesquisados. Suas atividades e seus comportamentos, interpretando-os de maneira densa, a fim de compreender o contexto holisticamente. 37 A terceira e última característica é a „flexível e autocorretiva‟, que não se aplica “apenas às questões de pesquisa e à coleta de dados, mas também, à análise dos dados” (p. 87, 2009). Sendo assim, a análise dos dados não pode ser feita antes da coleta, e, sim, somente após um sólido estudo da teoria e dos referenciais teóricos utilizados na pesquisa. Após isso, realiza-se a coleta de dados e, em seguida, a análise desses dados, articulando com a teoria estudada, para que o pesquisador não faça uma análise a partir de seus pensamentos, mas sim dos autores estudados. Alves (1991, p. 60) relata que as pesquisas qualitativas constituem um volume muito grande de dados, e estes dados precisam ser organizados e compreendidos. O processo de organização e compreensão dos dados é complexo, implica organização e muito estudo do pesquisador, e “à medida que os dados vão sendo coletados, o pesquisador vai procurando tentativamente identificar os temas e relações, construindo interpretações e gerando novas questões e/ou aperfeiçoando as anteriores”. Ainda sobre a etnografia ser um método eficaz nos estudos com crianças, Corsaro (2011) afirma que as interações e as culturas produzidas e compartilhadas pelas crianças não são percebidas através de entrevistas reflexivas ou questionários. A etnografia envolve um trabalho de campo prolongado no qual o pesquisador obtém acesso a um grupo e realiza observação intensiva durante meses ou anos. O valor da observação prolongada está em o etnógrafo descobrir como é a vida cotidiana para os membros do grupo – suas configurações físicas e institucionais, suas rotinas diárias, suas crenças e seus valores e a linguística e outros semióticos que medeiam essas atividades e contextos (CORSARO, 2011, p. 63). O método etnográfico é um “modo de acercamento”, um “mergulho” no campo pesquisado. Assim, o “método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica, pode usar ou servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa” (MAGNANI, 2002, p. 17). Conforme dito anteriormente, primeiro, é necessário que seja feito um aprofundamento teórico, um “mergulho” na teoria, ou seja, estudar a fundo as informações e as interpretações teóricas que existem sobre a temática e o público escolhido. Depois, é feito o “trabalho de campo”, em que o pesquisador vai 38 mergulhar, por um longo período, no contexto dos sujeitos pesquisados. E, por último, a escrita. Uriarte (2012) destaca que não podemos confundir “trabalho de campo” com etnografia, porque o trabalho de campo não é uma invenção da Antropologia. Uriarte (2012) relata que, desde o final do século XIX, muitos pesquisadores, como geógrafos, geólogos e psicólogos, vão “a campo” testar suas teorias com materiais empíricos. Porém, o “campo” antropológico não consiste em apenas ir para ver ou ir para pegar amostras e ir embora, e, sim, algo mais profundo, “uma co-residência extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva (língua nativa), uma mistura de aliança, cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica”. Segundo Clifford (1999, p. 94), estabelecer relações com os sujeitos investigados. Durante as observações, procuramos dar voz às crianças, pois tínhamos convicção de que elas tinham muito a nos dizer. Dialogamos, conversamos, falamos, rimos, brincamos. Antes de irmos a campo, “mergulhamos” na teoria, a fim de nos familiarizamos com a temática da pesquisa e suas implicações. Refinamos nosso olhar. Fizemos a leitura de textos sobre a metodologia escolhida e seus procedimentos para, como descreve o professor Fernando Peñaranda (2004, p. 3), “definir orientaciones claras antes de embarcase en una investigación”. Depois, chegou o momento do “trabalho de campo”, que, na etnografia, exige muita atenção, inclusive para a “transformação das informações em dados”, pois o campo não nos dá dados, e, sim, informações, que, a partir da reflexão do pesquisador, se transformam em dados. Desse modo, o trabalho de campo foi dividido em dois momentos: no primeiro, fizemos as observações e seus registros e, no segundo, organizamos e interpretamos esses registros à luz dos estudos feitos. No primeiro momento, a cada dia na escola, fomos escrevendo as informações observadas (o que víamos e o que ouvíamos) em nosso diário, sempre atentos e com muito cuidado para anotarmos o que as crianças diziam e não o que queríamos que as crianças dissessem. Tudo era sinalizado com a maior descrição possível, com o máximo de detalhes, pois entendemos que este instrumento fez toda diferença no processo da “transformação das informações em dados”. Sobre esse instrumento de pesquisa, Pires (2011. p. 146), diz: 39 O diário de campo é um instrumento poderoso na pesquisa antropológica. Estejam sempre com ele a postos (não necessariamente em mãos, para evitar a natural curiosidade daqueles que se sabem observados) e reservem um momento ao longo do dia para relatar os acontecimentos passados. Os diários podem ser exclusivamente descritos, mas devem ser exaustivamente minuciosos. O diário de campo é um instrumento muito importante na pesquisa etnográfica. Sobre o diário de campo, Pires (2011, p. 146) também aconselha: Estejam sempre com ele a postos (não necessariamente em mãos, para evitar a natural curiosidade daqueles que se sabem observados) e reservem um momento ao longo do dia para relatar os acontecimentos passados. Os diários podem ser exclusivamente descritivos, mas devem ser exaustivamente minuciosos. Mesmo que a princípio não consigamos enxergar a necessidade de mencionar detalhes, eles podem, no mínimo, fazer a diferença no futuro num processo de rememoração do trabalho de campo através da leitura do diário. A sugestão é que tudo seja anotado. Escrevíamos tudo em detalhes e, para nos ajudar, tínhamos o auxílio do gravador de voz do celular. Ao chegarmos em casa, ouvíamos atentamente e transcrevíamos os áudios, sempre buscando ir além da escuta da voz das crianças através do gravador, ou seja, refletindo sobre essa voz, como ressalta James (2007). No segundo momento do trabalho de campo, fomos organizando as ideias, interpretando as anotações, relacionando-os com nosso aporte teórico e significando. Com isso, as informações foram se tornando os dados da pesquisa. Por último, a escrita, como diz Uriarte (2012, p.7), o “casamento entre teoria e prática”. Esse foi o momento mais complexo, pois foram muitas observações, informações e registros. O momento de descrever, de modo mais real possível, a fim de que o leitor “esteja lá”, no chão da escola e que consiga compreender o que se passou a cada instante escrito. Nosso desejo é que esse trabalho não seja composto apenas por registros das falas das crianças, mas que provoque reflexões no leitor. A etnografia é uma metodologia que exige do pesquisador a ausência de preconceito e a coragem para enfrentar o novo, características que permitem que o pesquisador consiga compreender a realidade pesquisada. 40 El investigador “hace parte” de ese escenario en el cual se desarrolla la investigación. No existe el investigador externo que analiza la realidad social como si fuera un bacteriólogo que, a través del microscopio, observa los microorganismos sin “contaminarse”. Utilizando una metáfora biológica, el investigador social no es aséptico: se “contamina” con el pretexto del otro y a su vez le “contamina” su pretexto (PEÑARANDA, 2004, p. 5). Sendo assim, a qualidade da etnografia depende muito da sensibilidade do pesquisador para compreender o sujeito pesquisado. Ganhar a confiança, estabelecer uma relação de compromisso e de amizade. Nesta metodologia, o pesquisador deixa suas certezas de lado, dando lugar ao novo, ouvindo e entrando no mundo da criança. É fundamental deixar que as crianças participem e se expressem, pois “somente ao ouvir e escutar o que as crianças dizem e ao tomar atenção à forma como comunicam conosco é que se fará progresso nas pesquisas que se levem a cabo com crianças, mais do que simplesmente, sobre as crianças”. (CHRISTENSEN; JAMES, 2005, p. 19). A etnografia é o método que os antropólogos mais empregam para estudar as culturas exóticas. Ela exige que os pesquisadores entrem e sejam aceitos na vida daqueles que estudam e dela participem. Neste sentido, por assim dizer, a etnografia envolve “tornar-se nativo” (CORSARO, 2005, p. 446). Estudar as culturas exóticas e utilizar da coleta de dados para conhecer o exótico e suas culturas, e a partir daí produzir interpretações não é uma tarefa simples. Um dos problemas enfrentados pelos pesquisadores ao fazerem o trabalho de campo, é o chamado rito de passagem, no qual o antropólogo se isola da sua sociedade e passa a fazer parte de outra, se ressocializando, deixando os seus preconceitos, por meio da absorção dos costumes do outro universo social, transformando o exótico em familiar e o familiar em exótico (SALES, 2013, p. 178- 179). Sobre os termos “familiar” e “exótico”, Sales (2013, p. 179) explica, através da resenha que fez do livro de Roberto Damatta, intitulado “Relativizando: uma introdução à antropologia social”, que esses dois termos possuem várias interpretações, e que Damatta usa o termo “familiar” como “algo que poderia ser parte do universo social diário”, e o termo “exótico” como “algo estando fora do 41 universo social e ideológico diário”. Sales (2013) escreve ainda que Damatta pensa que nem tudo que se conhece intimamente é familiar, como nem tudo que é desconhecido é exótico. Deste modo, “para transformar o familiar em exótico é necessário questionar, para situar os eventos do mundo diário à distância, do mesmo jeito questiona-se o exótico, descobrindo nele o conhecido e o familiar”. (SALES, 2013, p. 179). Com a pesquisa etnográfica, nós, pesquisadores, conseguimos com que as crianças fossem vistas como atores sociais, e não mais serem representadas, apenas, pelas vozes dos adultos. Portanto, diante dessas leituras e compreensões, entendemos que a etnografia é um método eficaz em pesquisa com crianças. Como afirma Corsaro (2011) ao dizer que métodos de nível micro: entrevistas presenciais, informais e formais, e a etnografia são métodos adequados para: Documentar e apreciar relacionamentos e culturas de pares das crianças, e para demonstrar como elas constroem sentido e contribuem para os processos de reprodução e mudanças sociais. Esses métodos, se usados com cuidado e apropriadamente, dão voz às preocupações infantis e fornecem descrições detalhadas e interpretações de como as crianças vivem sua infância. Esses métodos têm grande potencial porque não se concentram tanto sobre como as crianças se tornam adultos (que é o objetivo da pesquisa mais tradicional em socialização), mas sim no que as crianças podem nos ensinar e comunicar sobre suas experiências de vida compartilhada e suas lutas para obter algum controle sobre os poderosos adultos e suas regras (CORSARO, 2011, p. 61-62). Prodanov e Freitas (2013) apontam que algumas tarefas são essenciais nesse tipo de pesquisa, como: determinação dos referenciais teóricos da pesquisa, delimitar de que maneira vão ser coletados os dados, escolher a região que será estudada, organização do processo de pesquisa participante, preparação dos pesquisadores, elaboração do cronograma que vai ser seguido, e elaboração do relatório. Na etnografia, é feita uma documentação antes da entrada no campo, logo, de acordo com os pressupostos da metodologia e com os requisitos éticos para a execução de uma pesquisa científica, essa pesquisa apresenta o seguinte número do Comitê de Ética: 03755318.8.0000.5402. A partir disso, conversando com a diretora da escola, combinamos com ela qual seria o melhor dia para apresentarmos a pesquisa aos pais/responsáveis das crianças. Ela disse que teria uma reunião de 42 pais/responsáveis nas próximas semanas, então, fomos a essa reunião, levando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (está anexado ao final dessa dissertação) – contendo a descrição dos objetivos da pesquisa, a maneira que ocorreriam as observações e a coleta de dados, as possíveis fotos, vídeos e áudios realizados durante as observações, o sigilo e a privacidade em relação aos nomes das crianças – que foi explicado aos pais e às crianças. Depois disso, após a concordância de participação na pesquisa, solicitamos a assinatura do documento pelos pais. Explicamos também como seria a devolutiva da pesquisa à eles, afinal é importante que os colaboradores da pesquisa saibam os resultados finais do trabalho. Para isso, levaremos uma cópia da dissertação concluída à escola e apresentaremos o trabalho à diretora e coordenadora. Não será possível apresentar o trabalho às crianças que participaram da pesquisa, pois já irão ter concluído seus estudos na escola pesquisada, e terão ido para outra escola, uns iniciando o 6º ano, e outros o 7º ano do Ensino Fundamental. As questões éticas na pesquisa com crianças também é um aspecto importante a ser discutido, visto que é um desafio imediato não só em relação às questões éticas, mas também no que diz respeito às questões metodológicas na investigação com crianças. Todos os aspectos éticos precisam estar sempre bem esclarecidos e assegurar a preservação dos dados, a confidencialidade e o anonimato dos sujeitos pesquisados é fundamental. (GERHARDT; SILVEIRA, 2009). Desse modo, é importante ressaltar que a identidade da instituição escolar pesquisada, a identidade das crianças e de todos que participaram da pesquisa foram mantidas em sigilo, com o intuito de evitar qualquer tipo de exclusão ou reações negativas por conta de suas opiniões, realidades e relatos. Então, todos os nomes que aparecem na dissertação são fictícios. Sobre o sigilo e o anonimato em pesquisas científicas, Despret (2011) descreve que isso não significa que “qualquer pessoa” participou da pesquisa, mas sim um sujeito que tem parte significativa na mesma, com sua marca e sua história, além de ter feito parte da construção de novos conhecimentos para a ciência. É de grande importância a consideração e o respeito que todo pesquisador deve ter com os participantes do seu trabalho no que diz respeito à exposição dos seus nomes. (MONTEIRO; RAIMUNDO; MARTINS, 2019). 43 Sendo assim, é fundamental respeitar alguns caminhos éticos na pesquisa com crianças como: o consentimento informado aos sujeitos pesquisados, as questões de poder e diferenças existentes entre o pesquisador e as crianças e o papel que os comitês de pesquisa assumem na mesma. A ética na pesquisa com crianças deve ser considerada nas investigações, assim como as questões da idade das crianças, suas experiências, o contexto em que vive entre outras. Dornelles e Fernandes (2015, p. 71) afirmam que: Quando se fala de ética na pesquisa com crianças temos, também, de ter em atenção, que esta não é uma questão homogénea, nem plana. Ela está intrinsecamente implicada com questões como a idade das crianças, as suas experiências, backgrounds sócio- cultural, com as questões de gênero, com as questões da investigação, bem como com o contexto onde esta decorre e os métodos que nela são utilizados. Dornelles e Fernandes (2015) apontam que o modo como se faz pesquisas com crianças deve de ser refletido, desde como são feitas as perguntas à elas e como formulamos os problemas que serão investigados com elas. Para que isso ocorra é necessário investir em metodologias que nos permitam estar perto das crianças, assim, conseguimos dar mais visibilidade às crianças e às suas falas, nos levando muitas vezes a duvidar de nossas próprias verdades. A escola pesquisada localiza-se na periferia, em um bairro pobre de uma cidade, no interior do Estado de São Paulo. É uma instituição pública municipal que atende alunos do Infantil 1 e Infantil 2 e, também, o 1º, 2º, 3º, 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, sendo 1 (uma) turma de cada ano, estudando em período integral. No período da manhã, estudam com a professora titular da sala, e, no período da tarde, as crianças têm aulas de judô, de informática, de artes visuais, de meio ambiente e de orientação de estudo. Escolhemos essa escola pelo fato de a pesquisadora ter dado aulas de Educação Física em anos anteriores, logo, ela já conhecia o espaço escolar, além de toda a equipe ter sido muito acolhedora e parceira em relação à pesquisa. A escola tem uma infraestrutura pequena. Há 1 (uma) quadra pequena para as atividades lúdicas e que também serve de “pátio” no momento do intervalo. Em frente à quadra, há algumas mesas com bancos para as crianças fazerem as refeições do café da manhã e do almoço. Ao lado das mesas, há torneiras para lavar 44 as mãos e um bebedouro. Há, também, 4 (quatro) banheiros individuais para os meninos e para as meninas. A escola tem 8 (oito) salas de aula, a sala da diretora, da coordenação, a secretaria, 1 (uma) sala de informática e 1 (uma) sala de vídeo que também funciona como biblioteca. Os funcionários que ali trabalham são 3 (três) inspetores de alunos, 1 (uma) estagiária, 1 (um) coordenador, 1 (um) diretor e 8 (oito) professoras no seu corpo docente, além dos professores especialistas: 1 (uma) professora de Arte e 1 (uma) professora de Educação Física. Nossa pesquisa foi realizada com as crianças do 4º ano e 5º ano, totalizando 34 crianças do grupo etário de nove e dez anos de idade. As observações foram feitas durante um ano no horário de intervalo, mais conhecido como “recreio” e o horário de almoço das mesmas. Acreditamos e lemos em outras pesquisas feitas com crianças, que as interações e a produção de culturas das crianças ocorrem em muitos outros momentos e espaços da escola, não somente durante os intervalos ou horários de almoço. Porém, decidimos delimitar estes dois momentos (intervalo e horário de almoço) em nossa pesquisa, pelo fato de serem momentos em que as crianças ficam o mais livre possível e também por não haver tanta intervenção dos adultos quanto em outros espaços como: sala de aula, biblioteca, sala de informática, entre outros espaços. Durante as observações, não gostaríamos de ser vistos como um adulto típico, e nem como uma pessoa controladora, mas sim um “adulto atípico”, como explica Corsaro (2011, p. 64), que “não significa raro ou anormal, aplica-se a certa categoria de adultos, ou a certa disposição dos adultos em contextos apropriados” (MÜLLER; CARVALHO, 2009, p. 132). Mesmo sendo um pouco maior em tamanho físico que as crianças, procurávamos sempre estar na mesma altura que elas (ajoelhando-se) durante nossas conversas. Corsaro (2011) relata que os professores, os pais e os outros adultos raramente se sentam em áreas do intervalo3 e, quando se sentam, normalmente, é para dar broncas, chamar atenção, fazer perguntas ou resolver brigas. Demos início às observações e, neste primeiro dia, decidimos nos sentar durante todo o período do intervalo em uma área dominada pelas crianças, (uns 3 Quando escrevemos a palavra “intervalo” nessa dissertação, estamos nos referindo ao “recreio” das crianças. 45 bancos em que elas se sentam perto da quadra), pois, assim, elas perceberiam que éramos estranhos ou invasores. No momento em que me viram, algumas crianças disseram: Felipe:4 - Você foi nossa professora de Educação Física! Fátima: - A professora de Educação Física! (DIÁRIO DE CAMPO). Isso ocorreu, pois, durante todo o ano de 2017, dei aulas de Educação Física nessa escola e a maioria das crianças continuava estudando lá. Continuamos sentados perto de algumas crianças e logo vieram outras perguntas: - O que você veio fazer aqui? – perguntou Carmen. Respondi que fui conhecê-los e ver o que faziam durante o intervalo. E Carmen diz: - Nós brigamos e bagunçamos! (risos). Eu dei risada junto com ela (DIÁRIO DE CAMPO). Continuamos observando. Algumas crianças estavam brincando de futebol na quadra da escola. Muitos meninos e algumas poucas meninas. Durante o jogo, havia apenas crianças do 4º e 5º anos, pois as demais turmas (1º, 2º e 3º anos), são proibidas de jogar, pois “são muito pequenas”, segundo Isabel (DIÁRIO DE CAMPO). Não demorou muito e Isabel disse: - Oi, você não foi a nossa professora de Educação Física? Você vai dar pra aula gente de novo? Respondi que não, que iria visitá-los durante o intervalo. Isabel saiu correndo (DIÁRIO DE CAMPO). O intervalo acabou. O sinal bateu. Algumas crianças que estavam jogando bola descalças começaram a calçar seus sapatos, outras correm em direção à fila de sua sala, para esperar a professora chegar e outras continuam conversando em seus grupos. Felipe sai correndo em direção à sua fila e grita: - Tchau, professora. Você vai estar aqui no almoço? 4 Todos os nomes descritos nessa dissertação são fictícios. 46 Respondo gritando: “Não! Vou voltar amanhã de manhã, tá bom” Alice: - Tchau, professora, foi bom te ver. Respondo: Tchau, Alice, também foi muito bom te ver! Até mais. Antonio: - O prô, vem aqui várias vezes depois? Respondi: Venho, sim, Antonio (DIÁRIO DE CAMPO). Continuamos sentados no banco observando as crianças à espera de suas professoras nas filas. As crianças não paravam de brincar. Mesmo enfileiradas sempre arrumavam um jeito de interagir e se divertir durante o retorno à sala. As professoras foram chegando e levando-as para a sala. Pátio vazio, crianças em suas salas, as pombinhas logo se achegam no espaço para comer as migalhas de pães deixadas pelas crianças e os inspetores com pás, vassouras e panos para limpar as sujeiras no chão e nas mesas, pois horas depois as crianças voltariam ao mesmo lugar para almoçar. Nós continuamos sentados no banco, com nosso diário de campo, anotando as observações daquela manhã e pensando “isso vai ser uma aventura e tanto”. Já estávamos ansiosos para o próximo dia de observação. Nas próximas observações, percebi que algumas crianças vinham me abraçar logo que eu chegava e faziam, novamente, a pergunta: - Você vai dar aulas de Educação Física na escola? (DIÁRIO DE CAMPO). E eu respondia que não. Que iria observá-los em alguns momentos. Ser aceito com naturalidade no mundo infantil é desafiador, pois grande parte das crianças, quando veem adultos chegando perto delas, pensam: “vai brigar” ou “o que será que eu fiz?”, e isso faz com que muitas se escondam e não ajam naturalmente no meio dos adultos. Por isso, precisamos ir ganhando a confiança das crianças, brincando com elas, sentando-nos com elas. E, assim, entendemos o que Dornelles e Fernandes (2015, p. 76) querem dizer, quando escrevem que “somente ouvindo e escutando o que as crianças têm a nos dizer sobre o modo como se comunicam conosco é que possibilitará que se leve a cabo a pesquisa com crianças e não somente, a pesquisa sobre crianças”. Para Corsaro (2005), a entrada no campo também não foi um momento muito fácil e simples de se fazer. Em suas pesquisas etnográficas com crianças 47 pequenas se deparou com muitos desafios, já que os adultos são vistos como poderosos e controladores da vida das crianças. Pesquisando em uma escola na cidade de Berkeley - Califórnia, Corsaro foi definido como um adulto atípico em meio aos pequenos. Isso se deu graças à sua estratégia adotada para entrar no campo, que ele chama de “uma estratégia de entrada “reativa” (CORSARO, 2005, p. 448). Em sua primeira semana, Corsaro ficou nas áreas dominadas pelas crianças, pois ele havia percebido que os adultos pouco ou raramente estavam nessas áreas como: caixas de areia, casa de boneca, trepa-trepa, barras de escalada, entre outros. Então, ele fez diferente e ficou continuamente nessas áreas, esperando que alguma criança reagisse à presença dele. No início os resultados não foram muito positivos. Houve alguns sorrisos e olhares de espanto, e muitas crianças o ignoravam. Corsaro (2005) relata que foram dias difíceis para ele, e que muitas vezes pensavam em dizer alguma coisa, mas insistiu em sua estratégia e permaneceu calado. Certo dia, uma criança puxou assunto com ele, perguntando seu nome, quem ele era e o que estava fazendo alí na escola. Corsaro respondeu às perguntas e gradualmente foi aceito pelas crianças, “como um adulto diferente ou atípico – uma espécie de gente grande” (CORSARO, 2005, p. 451). Consequentemente, Corsaro também começou a ser convidado pelas crianças para participar de algumas atividades formais do seu cotidiano, como festas de aniversário. O pesquisador conta que em suas pesquisas nas escolas italianas, também ficou apreensivo com o momento da entrada no campo, pois como é americano, sua capacidade de conversação em italiano era limitada. Pesquisando em uma escola de Bolonha - Itália, ele descreve que havia cinco professoras (que apresentaram Corsaro às crianças) e 35 crianças, entre três e cinco anos de idade. Corsaro (2005) conta ainda que sua aceitação pelas crianças italianas foi bem mais fácil do que pelas crianças americanas, pois como seu italiano era limitado, as crianças o viam como uma “criança grande e boba”, como alguém que precisava ser cuidado por elas (pelas crianças pequenas). Corsaro (2005) chegou a ser mencionado pelas crianças com seus pais em casa. Os pais contavam para Corsaro que as crianças diziam que tinha um americano na escola delas que não conseguia falar com as professoras, mas com elas (as crianças) sim. 48 Retornando, certo dia fui levar meu marido ao posto de saúde que se localiza no mesmo bairro da escola. Consequentemente, encontrei a mãe de uma criança que participava da pesquisa e essa mãe me reconheceu, pois ela havia participado da reunião de pais em que apresentei a pesquisa e levei o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para assinarem. Ela me disse: - O Caio me contou que você está indo sempre na escola ver eles e que as vezes brinca com eles no intervalo. Ele está gostando muito (risos). Respondi com alegria: - Ah é? Que legal! Eu gosto muito de estar com eles. Manda um abraço para o Caio e diz que amanhã não irei, pois vou precisar cuidar do meu marido que está doente. Ela respondeu: - Pode deixar, mando sim. Tchau! Neste dia vi que minha relação com algumas crianças estava indo até o meio familiar delas. Isso me deixava contente, pois era sinal de que para elas era significativo o modo de como eu estava no meio delas. Às vezes eu encontrava algumas crianças nas ruas da cidade, pois a cidade é pequena, então acabávamos cruzando facilmente com as pessoas. Quando as crianças me viam, iam conversar comigo, perguntar o que eu estava fazendo alí, em determinado lugar, e eu atenciosamente as respondia. Muitas vezes também encontrava outras crianças na própria vila em que se localiza a escola pesquisada, pois minha sogra mora a uma quadra da escola e dois irmãos que estudam na escola moram ao lado da casa da minha sogra. Sempre que eu ia lá as crianças estavam brincando em frente à casa deles e acabávamos conversando e rindo um pouco. Era interessante encontrar as crianças em outros lugares que não fosse o ambiente escolar, pois conversávamos da mesma forma, como amigos, e isso me deixava cada dia mais confiante em estar com elas. A observação participante que Corsaro descreve nas escolas que pesquisou, nos faz entender que conhecer um grupo “de dentro” é um plano muito interessante, pois reduz a diferença entre observador e observado, permitindo ao observador viver as possibilidades que existem na cultura de determinado grupo. Deste modo, compreendemos que: 49 É o adulto que, por assim, dizer, se faz criança para melhor compreender o que é ser criança. Não é um retorno ao que o adulto foi um dia, mas uma forma de ele estabelecer um contato social diferente e, por meio dele, aprender como se aprende sempre através da interação (MÜLLER; CARVALHO, 2009, p. 128). Diante disso, é fundamental lembrar que esse contato social diferente estabelecido entre o adulto (observador) e criança (observado), não é um relacionamento materno ou paterno e sim, um fato cultural. Corsaro nos mostra ainda que o processo da entrada no campo exigem pré- requisitos para que se estabeleça um relacionamento. Ele diz que é necessário que o adulto deixe seu poder tradicional de adulto de lado e que entre no mundo do faz de conta das crianças, desde o agachar para falar com as crianças na altura delas, até o entrar em brincadeiras que para os adultos não fazem nexo nenhum. Estabelecendo assim, uma proximidade tanto física quanto simbólica. Segundo Oliveira (2013), não se pode resumir a etnografia como uma “técnica de coleta de dados”, mas ela deve ser compreendida intimamente entre a teoria e a prática, sendo um processo de produção do conhecimento antropológico em Educação. Assim, segundo as autoras Eckert e Rocha, A etnografia consiste em descrever práticas e saberes, de sujeitos e grupos sociais a partir de técnicas como observação e conversações, desenvolvidas no contexto de uma pesquisa. Interagindo-se com o Outro, olha-se, isto é, ordena-se o visível, organiza-se a experiência (ECKERT; ROCHA, 2003, p. 3). Deste modo, o método etnográfico não se reduz a uma técnica, pois pode se servir de várias técnicas de coleta de dados, próprias do método etnográfico: conversas, observações, entrevistas. A observação participante é a principal técnica em pesquisas etnográficas. Ela foi reconhecida como um método de coleta de dados desde a primeira etnografia publicada por Malinowski em 1922. Autores afirmam que a “pesquisa etnográfica envolve tipicamente um campo de trabalho prolongado no qual o investigador ganha acesso para um grupo social e leva a cabo observação intensiva em situações naturais por um período de meses ou anos” (GASKINS; MOLEIRO; CORSARO, 1992, p.15). Igualmente, Erickson (1986) descreve a primeira característica do trabalho de campo como "participação intensiva, a longo prazo em um campo fixo" (p. 121). E 50 Wolcott (1995) diz, ainda, que a observação participante envolve um cuidado intenso e atento, pois não é simplesmente observar o que nunca foi observado. Sendo assim, por meio da observação participante, é feita uma observação aberta e livre, que permite ao pesquisador estar em contato direto com diferentes comportamentos, atitudes e acontecimentos, além de poder participar como um membro do grupo pesquisado. Chegando para mais um dia de observação, notamos um barulho no corredor entre as salas. Chegamos mais perto para ver o que era, e as crianças do 5º ano estavam se organizando (sozinhos), com cartazes e frases do nome de suas chapas do grêmio estudantil escritas em cartolinas para apresentarem as suas propostas às outras crianças das turmas de 1º ao 4º anos. Ao chegar ainda mais perto deles, perguntamos: - Bom dia pessoal, tudo bem? O que vocês estão fazendo? Clara disse: - A gente “tá” se organizando pra apresentar nossa chapa do grêmio pra essa sala aqui da frente. - Que legal! Quando vocês entrarem na sala, eu posso entrar junto e ver a apresentação de vocês? Rafael respondeu: - Pode sim. Olha o que a gente fez pra apresentar. E Rafael começou a mostrar os cartazes, as fitas com o nome da chapa, e as folhas que imprimiu