UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES JOSÉ SOARES DAS CHAGAS A ARTE E O NIILISMO: ALBERT CAMUS E O ETHOS DO ABSURDO E DA REVOLTA PALMAS-TO 2018 JOSÉ SOARES DAS CHAGAS A ARTE E O NIILISMO: ALBERT CAMUS E O ETHOS DO ABSURDO E DA REVOLTA Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, no quadro do Doutorado interinstitucional - Dinter (UNESP- UFT), na Área de Concentração de Artes Cênicas e na Linha de Pesquisa de Estética e poéticas cênicas, como exigência parcial para obtenção do título de doutor em Artes. Orientador: Dr. Mário Fernando Bolognesi PALMAS-TO 2018 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP C433a Chagas, José Soares das, 1983- A arte e o niilismo : Albert Camus e o ethos do absurdo e da revolta / José Soares das Chagas. - São Paulo, 2018. 177 f. Orientador: Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Camus, Albert - 1913-1960. 2. Niilismo (Filosofia). 3. Ethos. 4. Absurdo (Filosofia). 5. Arte e filosofia. I. Bolognesi, Mario Fernando. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 193 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) JOSÉ SOARES DAS CHAGAS A ARTE E O NIILISMO: ALBERT CAMUS E O ETHOS DO ABSURDO E DA REVOLTA Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do título de doutor em artes no curso de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: ___________________________________________________ Dr. Mário Fernando Bolognesi UNESP - orientador _____________________________________________________ Dr. Anderson de Souza Zanetti Faculdades SESI de Educação __________________________________________________________ Dr. Alessandro Rodrigues Pimenta UFT __________________________________________________________ Dra. Karylleila dos Santos Andrade UFT __________________________________________________________ Dr. Paulo Sérgio Gomes Soares UFT Palmas, 18 de dezembro de 2018 DEDICATÓRIA A todos os meus professores e professoras de todas as etapas da minha formação, desde à infância até hoje, das 6 cidades onde vivi e aprendi muito: Croatá-CE, Tianguá-CE, Sobral-CE, Fortaleza-CE, São Paulo-SP e Palmas-TO. E a todos os meus alunos e alunas das cerca de 15 cidades onde ministrei aulas presencialmente, no ensino fundamental, médio e superior. Nas páginas que se seguem, há muito do que aprendi com vocês e boa parte da razão de me haver tornado professor e pesquisador. AGRADECIMENTOS Agradeço a minha namorada, Monise Busquets, por haver ficado presente durante a maior parte da produção desta tese e por ter se mostrado paciente e sempre disponível em tudo aquilo que foi necessário para a boa execução deste intento agora realizado. E também por haver dedicado tempo para me ajudar na pesquisa e para ler este texto. Agradeço ao meu orientador, Mário Bolognesi, por haver aceito a orientação desta tese e pelas boas reflexões, correções e contribuições com a ideia e o desenvolvimento deste trabalho. Com ele, não só escrevi esta tese, como também aprendi a ser um melhor orientador para os meus alunos e minhas alunas. Agradeço aos professores e professoras do meu colegiado de filosofia da UFT, meus companheiros e companheiras de trabalho, na pessoa do professor Eduardo Simões, pela compreensão em liberar minha saída para o estágio docente no Instituto de Artes da UNESP- SP e por permitirem que eu continuasse nas disciplinas que eu já ministrava no curso. Tudo isso sem dúvida foi de grande monta para esta pesquisa. Agradeço especificamente ao prof. João Paulo por haver me auxiliado na pesquisa relativa ao Nietzsche e por me presentear com o livro de sua autoria, que me serviu como um excelente GPS dentro de um território tão labiríntico como são os escritos nietzschianos. À professora Juliana Santana por haver assumido parte da disciplina de medieval em alguns semestres, propiciando-me mais tempo para o meu labor intelectual. E agradeço ao prof. Leon Farhi por haver me facilitado livros e ideias sobre o franco-argelino. Agradeço aos professores da UNESP e da UFT que compuseram este Doutorado Interinstitucional, na pessoa das coordenadoras Karylleila, Carminda e Kathya Godoy. O empenho delas e de toda a equipe de professores e funcionários propiciou o ambiente fértil de nosso trabalho. Agradeço à CAPES, pois o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Enfim, agradeço a todos os que torceram por mim e sempre se colocaram do meu lado de alguma forma. De modo especial sou grato aos meus pais, à dona Mirian Soares e ao senhor Pedro Chagas. Estes sempre me ensinaram a não desanimar e a ser forte: virtudes tão necessárias para que tudo isso se tornasse realidade. EPÍGRAFE “[...] as circunstâncias me ajudaram. Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o céu e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo do qual eu fazia minha divindade. [...] Em outras palavras, tornei-me um artista, se é verdade que não há arte sem recusa nem consentimento” (Albert Camus) “Deixando a profundidade de lado Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão, morando na filosofia [...] Eu quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno Viver a divina comédia humana onde nada é eterno” (Belchior) “Eu não estou interessado Em nenhuma teoria Nem nessas coisas do oriente Romances astrais A minha alucinação É suportar o dia-a-dia E meu delírio É a experiência Com coisas reais” (Belchior) ‘‘Mas então, disse Alice, se o mundo não tem absolutamente nenhum sentido, o que nos impede de inventar um?’’ (Lewis Carroll) RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar o niilismo que permeia as produções culturais e o pensamento contemporâneos, a partir dos conceitos de absurdo e revolta de Albert Camus (1913-1960), como ethos possível de uma vida que não se nega a si mesma e se faz semelhante à arte, a saber: criadora. Trata-se de buscar compreender a época das duas guerras mundiais (primeira metade do século XX), em que assassinatos e crueldades receberam estatuto de inocência e razoabilidade por parte da filosofia e da ciência. Neste cenário, a arte compartilha do espírito hodierno da revolta. Mas, ao mesmo tempo, serve de parâmetro de uma ação que busca a unidade na criação, sem cair na negação niilista do suicídio, do assassinato ou de regimes totalitários. Para esta análise, a metodologia hermenêutica empregada consiste numa imersão na obra ensaística, romanesca e dramatúrgica de Camus que busca, ao longo de seus textos, individuar e discutir a problemática niilista em relação com a arte, dentro das preocupações estéticas e poéticas, as quais constituem o horizonte reflexivo do autor. Também lançamos mão das reflexões de Nietzsche como obra de apoio para desenvolver o significado, a origem e a história do niilismo. A partir disso, dividimos a nossa tese em três capítulos: 1 – diagnóstico histórico do niilismo com base no pensamento nietzschiano e na apropriação que o franco-argelino fez do pensador alemão; 2 – a abordagem da relação entre o conceito de niilismo e absurdo e como este se torna um modelo de vida e de fazer artístico; 3 – a constatação da revolta como resposta ao niilismo e ao absurdo e os seus desdobramentos, éticos e estéticos de solidariedade, diálogo e criação. Assim, o nosso trabalho que é de natureza teórica, bibliográfica, de intertextualidade e analítica, mostra a arte como modelo de resistência e criação perante uma realidade cultural e socialmente conhecida como niilista. Palavras-chave: Arte. Niilismo. Camus. Absurdo. Revolta. ABSTRACT The has the objective of this work is to analyze the nihilism that permeates contemporary cultural production, from the concepts of absurdity and rebellion of Albert Camus (1913-1960), as possible ethos of a life that does not deny itself and makes it similar to art, namely: creative. It is a question of understanding the time of the two world wars (first half of the 20th century), when murders and cruelties were given innocent and reasonable status by philosophy and science. In this scenario, an art shared by the current spirit of revolt. However, at the same time, serves as a parameter of an action that seeks the production, without suicide, of suicide, murder or totalitarian regimes. For this analysis, the hermeneutic methodology employed consists of an immersion in the essays, romanesca and dramaturgica work of Camus that searches, throughout in their texts, to identify and discuss the nihilistic problematic in relation to art, within the aesthetic and poetic concerns, which constitute the reflective horizon of the author. We also use Nietzsche's reflections as a support to develop the meaning, an origin and a history of nihilism. From this, we divide our thesis into three chapters: 1 – historical diagnosis of nihilism on the basis of Nietzschean thought and the appropriation that the Franco-Algerian made of the German thinker; 2 – the approach of the relationship between the concept of nihilism and absurdity and how this becomes a model of life and artistic making; 3 – the realization of the revolt as a response to nihilism and absurdity and its unfolding, ethical and aesthetic of solidarity, dialogue and creation. Therefore, our effort, which is theoretical, bibliographical, of intertextuality and analytical, intends to reflect on art as a model of resistance and creation before a cultural reality and socially known as nihilistic. Key words: Art. Nihilism. Camus. Absurdity. Rebellion. SUMÁRIO Introdução................................................................................................................................10 1 Nietzsche como médico e psicólogo da cultura moderna: a negação absoluta...............13 1.1 A negação como método: a ação estética de destruição dos ídolos.......................................13 1.2 Diagnóstico do homem insano.............................................................................................20 1.3 A história de uma cultura doente.........................................................................................30 1.3.1 As origens da decadência moderna: Sócrates e o cristianismo.......................................31 1.3.1.1 O início da degenerescência cultural do ocidente..........................................................31 1.3.1.2 A universalização da degenerescência cultural: o cristianismo e a moral do servo e fraco............................................................................................................................38 1.3.2 O abalo sísmico do mundo verdadeiro.............................................................................48 1.4 Um césar romano com espírito de Cristo: o filósofo-artista!..............................................56 2 Do niilismo ao ethos e à estética absurdos........................................................................66 2.1 A concepção de absurdo em Camus e o niilismo.................................................................66 2.2 O suicídio e o ethos do absurdo...........................................................................................77 2.3 Modelos do homem absurdo................................................................................................95 2.3.1 Don Juan........................................................................................................................95 2.3.2 Ator.............................................................................................................................102 2.3.3 O conquistador.............................................................................................................107 2.4 Estética e poética absurdas................................................................................................114 3 O ethos da revolta e a arte como criação.......................................................................128 3.1 Do absurdo ao ethos da revolta..........................................................................................128 3.2 A revolta: solidariedade e diálogo.....................................................................................144 3.3 A revolta e a arte................................................................................................................156 Conclusão...............................................................................................................................165 Referências bibliográficas.....................................................................................................169 10 Introdução O nosso trabalho tem como objetivo apresentar e discutir a questão da arte no interior de um contexto axiológico denominado de niilista. Busca compreender a relação que há entre o fazer artístico e um mundo que quase se desfez duas vezes com guerras mundiais e que oprimiu em nome de grandes ideais por meio de ideologias totalitárias. Centramos nosso foco de análise na obra ensaística, dramatúrgica e romanesca do franco-argelino Albert Camus (1913-1960) procurando a partir dela abordar o espírito niilista da nossa cultura ocidental e como a arte se apresenta como paradigma de resistência e enfrentamento do que poderíamos denominar de enfermidade da nossa civilização (na esteira do Nietzsche) ou de Peste (na esteira do Camus). A obra de Albert Camus está dividida em três fases: 1- lírico; 2 – absurdo; e 3 – revolta. A fase lírica compreende basicamente a produção da década de trinta do século XX e possui uma tonalidade mais individualista e uma preocupação em torno da conquista da felicidade sensível. A natureza se apresenta como a grande fonte de plenitude e a sensualidade das praias e dos corpos bronzeados dos povos mediterrâneos como modelo de vida. Neste ciclo, concebe- se uma harmonia expressa sob a imagem de núpcias da natureza com ela mesma e dela com o homem. Na segunda fase, concebe-se que este enlace do homem com o mundo foi rompido, restando apenas o absurdo. E é com esta realidade que o pensamento e a vida terão de conviver num clima de estrangeiridade e numa sensação sisífica de uma vida maquinal, para a qual as certezas e convicções de tradição religiosa e filosófica não são suficientes. Na terceira fase, o absurdo deixa de ser uma simples experiência individual e torna-se compreensão do sentimento de injustiça que cada indivíduo vivencia perante a criação inteira e perante a sociedade autoritária e opressora em que se vive. Este sentimento transforma-se em revolta e, como tal, numa reivindicação da harmonia perdida sem o viés individualista (da primeira fase) e sem perder a lucidez da tragicidade da vida (da segunda fase). A revolta marcará o pensamento com o postulado da existência de uma comunidade natural a qual todos pertencemos e que possibilitaria axiologicamente a defesa da dignidade humana e dos direitos humanos em geral. O nosso trabalho, ao colocar a questão do niilismo, parte da ruptura da harmonia homem-mundo e foca nas ideias e imagens da segunda e terceira fase da obra de Camus. Trata- se de uma abordagem que procura a interdisciplinaridade entre a arte e a filosofia, dentro da 11 proposta daquilo que o nosso autor compreende pela relação entre essas áreas. Segundo Camus, não se pode pensar abstraindo totalmente da imagem, de maneira que escrever romances e peças não são meras ilustrações de uma filosofia, mas são a própria filosofia em movimento assumindo a carne, as paixões e a vida concreta no seu interior. O artista é um criador. O filósofo também é um criador. Ambos constroem ficções e imagens. Ambos produzem personagens que se articulam e se relacionam no interior do universo criado de maneira conceitual, afetiva ou onírica. De tal forma que se pode afirmar com tranquilidade que discutir a partir da filosofia de Camus, é trabalhar desde uma obra de arte. Assim, o nosso método de trabalho é de natureza teórica, bibliográfica, analítica e de intertextualidade. Procuramos mostrar como a arte serve de modelo de enfrentamento e de ação no interior de uma realidade niilista, tendo como fonte de pesquisa a opera camusiana. Outras obras também foram utilizadas, porém como instrumentos para auxiliar a nossa análise da obra camusiana e da questão levantada. Destas fontes de suporte, damos destaque ao Crepúsculo dos Ídolos, ao Anticristo, à Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal, de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Assim, dividimos a nossa tese em três capítulos. No primeiro, numa apropriação do Nietzsche a partir do pensamento de Camus, pintamos o quadro do niilismo, abordando o seu significado, origem e perspectivas. Recontamos a história do niilismo a partir do esquema aforístico do Crepúsculo dos Ídolos e situamos o tempo em que se encontravam Nietzsche e Camus, colocando-nos na perspectiva de um mundo em degenerescência moral, política e social. No segundo capítulo, tratamos do absurdo como uma resposta ao niilismo. Relacionamos este conceito com a realidade delineada no primeiro capítulo e mostramos como o absurdo se erige como um ethos para o qual a vida deve ser mantida e do qual a arte deve se alimentar. No terceiro capítulo, partimos da constatação de que o absurdo em si mesmo é contraditório. O absurdo se torna então ponto de partida de algo que ele traz em si mesmo, a saber, a revolta. Neste ponto, descobre-se que o indivíduo que enfrenta o niilismo deste mundo absurdo, compartilha de um mesmo valor que o faz solidário a todos os oprimidos. Para este ethos, a arte será um lugar privilegiado, uma vez que ela realiza o movimento da revolta ao recusar o mundo atual, sem renunciá-lo como a sua fonte de emoção e inspiração. Além disso, a arte nos convence da simetria de perspectivas e do diálogo como valor. 12 Com isso, pretendemos haver mostrado que o estético e o ético em Camus se confundem e que abordar a um remete sempre ao outro, de maneira que a superação do niilismo só pode ocorrer no interior dos próprios afetos que ele produz. Assim, a arte se constitui no modelo mais adequado do que chamamos aqui de ethos do absurdo e da rebeldia. Entendendo aqui ethos no sentido de modo de ser ou de motivações inspiradoras (VÁZQUEZ, 2008, pp. 22- 24; BOFF, 2014, pp. 40-41) em oposição ao sentido de hábito e costumes. De tal forma que se pode dizer que o modo de ser do homem absurdo e do homem revoltado é o do fazer artístico. 13 1 Nietzsche como médico e psicólogo da cultura: a negação absoluta Abordaremos neste capítulo uma análise da civilização ocidental a partir de seus aspectos axiológicos, ou seja, levando em consideração o caráter da cultura moderna, suas origens históricas e o espírito que a animou até os nossos dias. Este diagnóstico será secundado por meio das observações provocativas do alemão Nietzsche sob o enfoque do franco-argelino, Albert Camus. Como, para ambos pensadores, esta problemática se concentra na questão do niilismo, seguiremos nossa reflexão discutindo este núcleo temático. Questionar-nos-emos, num primeiro momento, sobre o significado do niilismo para a nossa cultura; faremos uma abordagem do nosso momento histórico partindo do aforismo 125 da Gaia Ciência; e seguiremos numa reflexão sobre as origens da nossa sociedade doente e nos perguntando quais seriam os possíveis desdobramentos deste espírito hodierno. 1.1 A negação como método: a ação estética de destruição dos ídolos A questão da cultura moderna caminha lado a lado com o niilismo. Melhor dizendo: os dois problemas se confundem. Com efeito, todas as instituições e valores de nossa civilização ocidental se sustentam sobre princípios e crenças construídos ao longo dos séculos com base na filosofia e no cristianismo. O homem e a mulher modernos não são assim outra coisa senão o resultado de séculos e milênios de construção de ânimos e corpos obedientes e dóceis, suscetíveis à autoridade dos grandes ideais e tendente a resignar-se com a miséria de sua situação em nome da esperança e da fé em um mundo de paz, sem dor e de igualdade entre todos perante seu único soberano. Percebe-se, como por meio de uma luz meridional, que a busca da paz não é senão um pretexto para negar o espírito forte, combativo e cheio de energia. São o cansaço da luta e a contemplação da própria fraqueza as grandes (des)motivações para se aceitar (e até pedir) para pôr freios e rédeas nos ânimos de guerra e nos espíritos endossadores dos conflitos como ambiente de afirmação de valor. A paz é a desculpa e o veneno para nivelar a todos, não por aquilo que é mais forte e pujante no homem, mas a partir daquilo que é mais baixo e torpe. E uma vez apequenado os espíritos e postos todos dentro do mesmo espectro vil e vergonhoso, sustenta-os com doses de esperança em um mundo e uma vida vindoura e com a confiança em teóricos, filósofos, profetas e sacerdotes dessa situação ideal almejada de tantos modos diferentes ao longo da história do mundo europeu e de suas (ex)colônias. 14 A história de um mundo que sempre defendeu a paz e a igualdade entre todos, porém que nunca deixou de declarar guerras e a escravizar as pessoas e os povos em nome dessa mesma paz. Nesse quadro de contradições e de conflitos camuflados sob signos de contratos, boa-fé e amor, há de se desvendar a face cruel, mórbida e doentia da nossa cultura, sobretudo precisando-lhe aquilo que ela mais quer esconder, a saber, seu caráter belicoso e eivado de crueldade e fraqueza. Para Albert Camus, o pensamento de Nietzsche assumiu uma tarefa de hermenêutica da realidade ocidental, tornando-se uma fonte de conhecimento certa sobre o quadro sociocultural de nosso mundo, malgrado a visão de crueldade e de supremacia ariana por meio do qual se liam os seus escritos nas primeiras décadas do século XX.1 Porém não se pode tirar de Nietzsche senão a crueldade baixa e medíocre que ele odiava com todas as suas forças, embora não se ponha no primeiro plano de sua obra, muito antes que ao profeta, ao clínico. O caráter provisório, metódico, estratégico, em uma palavra, de seu pensamento, não pode ser posto em dúvida. Nele o niilismo, por primeira vez, se faz conscientes. [...] Nietzsche não pensou nunca senão em função de um apocalipse futuro, não para elogia-lo, pois adivinhava o aspecto sórdido e calculador que esse apocalipse tomaria ao final, senão para evitá-lo e transformá-lo em renascimento. Reconheceu o niilismo e o examinou como um fato clínico. Se dizia o primeiro niilista cabal da Europa. Não por gosto, senão por disposição, e porque era demasiado grande para rechaçar a herança de sua época. Diagnosticou em si mesmo e nos outros a impossibilidade de crer e o desaparecimento do fundamento primitivo de toda sua fé, ou seja, a crença na vida (CAMUS, 2003, pp. 79-80).2 Sendo assim, os escritos de Nietzsche nos servem como uma antecipação, um diagnóstico do século do Camus e do nosso. Porém, não como uma profecia de um doente cansado da vida e do mundo, e sim de alguém que resolveu assumir em si mesmo e na cultura onde vive a doença do niilismo. Assumir não como um espírito resignado, gregário e fraco, mas como um ânimo de conhecimento das causas dessa peste que assola a todos. A atitude aqui é de não camuflar a guerra como se tratasse de episódios esporádicos e anormais. 1 Todas as traduções deste trabalho são de nossa autoria e, em relação às obras de Camus, as traduções utilizadas estão nas referências bibliográficas junto com as indicações dos textos originais para cotejamento. 2 “Pero no se puede sacar de Nietzsche sino la crueldad baja y mediocre que él odiaba con todas sus fuerzas, mientras no se ponga en el primer plano de su obra, mucho antes que al profeta, al clínico. El carácter provisional, metódico, estratégico, en una palabra, de su pensamiento, no puede ser puesto en duda. En él el nihilismo, por primera vez, se hace consciente. […] Nietzsche no pensó nunca sino en función de un apocalipsis futuro, no para ensalzarlo, pues adivinaba el aspecto sórdido y calculador que ese apocalipsis tomaría al final, sino para evitarlo y transfórmalo en renacimiento. Reconoció el nihilismo y lo examinó como un hecho clínico. Se decía el primer nihilista cabal de Europa. No por gusto, sino por disposición, y porque era demasiado grande para rechazar la herencia de su época. Diagnosticó en si mismo y en los otros la imposibilidad de creer y la desaparición del fundamento primitivo de toda su fe, es decir, la creencia en la vida”: CAMUS, 2003, pp. 79-80. 15 A postura nietzschiana está fora dos padrões acadêmicos vigentes ou do que se chama hoje de “politicamente correto”. É uma atitude altiva como a de quem encara o adversário no olho e não baixa a cabeça frente à sua petulância: o orgulho do que há de forte em si assume o lugar da humildade gregária; e o conhecimento das causas naturais e das forças vitais substitui a esperança no porvir. Para poder realizar esse diagnóstico, é necessário manter-se sereno, não buscando a paz, mas aprendendo a guerrear e ver a vida como ela é: conflito! Esse projeto de assunção do niilismo como realidade, a qual estamos umbilicalmente ligados, porém ao qual deveremos nos apartar para podermos amadurecer e crescer, Nietzsche esclarece em uma de suas obras, mostrando o niilismo como uma oportunidade de renascimento cultural. Conservar a serenidade em meio a uma causa sombria e justificável além de toda medida não constitui certamente uma arte que se possa desconsiderar. [...] Nada triunfa a menos que a petulância tenha sua participação. Um excedente de força prova a força – Uma transmutação de todos os valores – este ponto de interrogação tão negro, tão enorme, que lança sombras sobre aquele que o coloca – um tal destino numa tarefa nos força a cada instante a correr rumo ao sol como se para sacudir uma seriedade tornado demasiado opressiva. Para isso todo meio é bom, todo “acontecimento” é bem-vindo. Sobretudo a guerra. A guerra foi sempre a grande prudência de todos os espíritos que não são por demais concentrados, de todos os espíritos tornados demasiados profundos; existe o poder de curar mesmo no ferimento (NIETZSCHE, 2017, p. 11). E no prefácio do Crepúsculo dos Ídolos, mesmo lugar de onde sacamos a passagem anterior, Nietzsche informa o seu caráter de médico e psicólogo da cultura, pois pretende auscultar os ídolos construídos por interesses doentios, constatando o seu oco como se fosse um médico a observar os sinais e sintomas reveláveis depois de toques viscerais e pancadas de martelos, desvelando a podridão das entranhas doentias e exageradamente insufladas. Como psicólogo da modernidade pretende ter “ouvidos atrás dos ouvidos”, ou seja, perceber o não dito nas palavras, frases e discursos dos ideais morais, políticos e religiosos, evidenciando os mecanismos de sujeição e autossabotagem da própria vida ou das forças vitais. Como médico da alma ocidental, cabe-lhe a tarefa de provocar o seu paciente a perceber a ambivalência, alienação e obsessão dos afetos ligados aos valores ocidentais com os quais se alimenta diariamente há séculos. Enfim, o projeto nietzschiano é o da coincidência de certo profetismo com a ciência médica e psicológica, a saber: antecipar, por meio de um diagnóstico, os efeitos 16 da doença da qual padece a cultura moderna para poder do seu próprio veneno fabricar o remédio. Trata-se de pensar o porvir de uma peste da qual já padecemos. Outro meio de cura, em certos casos para mim preferível, consistiria em surpreender os ídolos... Há mais ídolos do que realidades no mundo; e o meu “olho maligno”... colocar aqui questões com o martelo e ouvir talvez como resposta esse famoso som oco que fala de entranhas insufladas – que arrebatamento para alguém que, atrás dos ouvidos, possui outros ouvidos ainda – para mim, velho psicólogo e apanhador de ratos, chega a fazer falar o que justamente desejaria permanecer mudo [...]. Este escrito [...] Quem sabe seja igualmente uma guerra nova? [...] é uma grande declaração de guerra; e, quanto a surpreender os segredos dos ídolos eternos que são aqui tocados pelo martelo como se faria um diapasão – não há, em última análise, ídolos mais antigos, mais persuasivos, mais inflados. Não há mais ocos também. O que não impede que sejam aqueles em que se crê mais; e não são, mesmo nos casos mais nobres, chamados de ídolos... (NIETZSCHE, 2017, pp 11-12. Grifos nossos). O diagnóstico nietzschiano desde o início é muito claro: a sociedade moderna é doente. Ela vive uma crise de suas instituições e valores de tal ordem que já não consegue mais responder a questão do para quê dos objetos e ações e também não oferecem mais segurança quanto à verdade das coisas e do mundo. Pois esse mundo ocidental vive uma decadência social, moral, religiosa e política no sentido de que há uma desagregação das partes que formam o tecido social, causando insubordinação no campo da política, desobediência às autoridades estabelecidas tradicionalmente e a dúvida e a descrença nos dogmas e guias espirituais. A dúvida se tornou uma epidemia e por todas as partes as pessoas sentem suas consciências serem atacadas e corroídas pela insatisfação cognitiva, moral e pela falta de fé nos velhos dogmas. Os fundamentos da civilização ocidental são abalados de maneira sísmica com um impacto estrutural que não deixa esperança na possibilidade de reconstituição das velhas bases. Tudo rui, tudo está prestes a desmoronar frente a essa nefasta doença ocidental, que ataca com golpes de morte todas as instituições e valores milenares da cultura ocidental e cristã. O clima de insatisfação e insegurança espiritual se expressam na crise de autoridade e na busca de secularizar os velhos ídolos, tornando-os livres de seus conteúdos sobrenaturais ou religiosos (e, portanto, afeitos ao espírito moderno) ou se apegando aos mesmos velhos ídolos e se trancando junto com eles dentro de uma redoma fundamentalista, que teria como função a de evitar que o ar pesado e contaminado pela dúvida corrosiva possa prejudicar os artefatos totêmicos e os pulmões religiosos de seus veneradores. 17 Como se pode perceber, a doença da cultura moderna significa que a realidade em que vivemos é constituída de ídolos que já não convencem mais peremptoriamente. A visão nietzschiana de seu tempo é a de que todos os grandes sistemas metafísicos, todos os grandes ideais morais, políticos e sociais não passam de estátuas ocas e incapazes de resistir as marteladas das dúvidas, ao ar pesado das descrenças corrosivas e aos abalos sísmicos da decadência moral que se traduz em dissolução dos antigos laços de obediência e sujeição. Esses velhos monumentos lógicos e ontológicos já não convencem nem mesmo por sua beleza, uma vez que ruíram frente às intempéries de nosso tempo. Diante desse quadro, o diagnóstico é de dissolução dos valores e instituições ocidentais por meio de uma doença que a tudo e a todos ataca, chamada por Nietzsche de niilismo. Se dizia [Nietzsche] o primeiro niilista cabal da Europa. Não por gosto, senão por disposição, e porque era demasiado grande para rechaçar a herança de sua época. Diagnosticou em si mesmo e nos outros a impossibilidade de crer e a desaparição do fundamento primitivo de toda a sua fé, ou seja, a crença na vida (CAMUS, 2003, p. 80).3 Ser o primeiro niilista cabal significa viver para além da dissimulação da destruição dos ídolos. É viver no deserto ou no ar rarefeito das altas montanhas, longe das seguranças metafísicas para aí afirmar a vida conflituosa e angustiante. Se a doença fere, conhecê-la em suas causas pode nos amadurecer para dela tirar vantagens para o viver sadio. Como Nietzsche (2017) dizia, citando um poeta antigo, “increscunt animi, virescit volnere virtus”, numa tradução livre: crescem os espíritos, floresce a virtude à medida que somos feridos. Gostaríamos de não adoecer, não sentir dor, não sofrer e, se possível, não morrer. Todavia, a verdade da vida é que adoecemos, sofremos e morremos. De maneira que não é uma atitude realista lidar com uma vida que não existe e deixar de viver a que nos é facultada viver. Ao contrário do que possa parecer, a postura aqui não é de resignação, pois não há consolo na espera de outra vida melhor em um futuro mundo verdadeiro; antes é de enfrentamento, é de aceitação de que a vida que temos para viver é esta e os objetivos e valores que trazemos não têm outro fundamento senão a potência própria para afirmar seus desejos e produzir criações, normas e verdades. 3 Se decía [Nietzsche] el primer nihilista cabal da Europa. No por gusto, sino por disposición, y porque era demasiado grande para rechazar la herencia de su época. Diagnosticó en sí mismo y en los otros la imposibilidad de creer y la desaparición del fundamento primitivo de toda su fe, es decir, la creencia en la vida (CAMUS, 2003, p. 80). 18 Se isso que dizemos do indivíduo serve para a ação afirmativa da vida, a fortiori também serve a nível social para a falta de sentido, angústia e decadência da cultura moderna marcada de morte pelo niilismo. Desejar que o mundo seja livre de todas as intempéries naturais, sociais e culturais; e, ao mesmo tempo, imaginá-lo livre de dor e sofrimento, é o mesmo que imaginar uma paz de cemitério, de total dormência ou dopada profundamente por substâncias que impedem o sentir e o sofrer. Tal orientação equivaleria a de um moralista retórico que louva uma humanidade que não existe e vilipendia a que existe, apontando tudo o que há e acontece na natureza e na sociedade como digno de nojo e aversão social. Ao contrário dessa postura, Camus enxerga em Nietzsche uma assunção da dúvida como um modo de enfrentar o nefasto sem lhe ser inferior em força e ferocidade, a saber: “[...] a negação metódica, a destruição de ídolos que dissimulam a morte de Deus” (CAMUS, 2003, p. 80).4 Não se trata de romper com um sistema para por outro no lugar. Se assim fosse, apenas teríamos aderido a uma dúvida metódica cartesiana renovada e adaptada aos novos tempos. A postura aqui é iconoclasta, de destruição dos ídolos e santuários filosóficos, científicos e morais, sabendo que em suas ruínas ainda permanecem fantasmas de esperança e ódio a assombrar e a insuflar os espíritos fracos. Assim, o trabalho teórico em Nietzsche é estético, pois abandona os velhos padrões e moldes axiológicos pretensamente de inspiração eterna e, ao mesmo tempo, põe no lugar o singular, o transitório e a pujante potência de afirmação da vida. Os novos valores de bem e mal e de todos os seus sucedâneos não buscam nenhum outro fundamento que não seja a saúde do espírito forte e amante da dor e do conflito. Assim, o método de negação nietzschiano pressupõe o ateísmo. Mas não só isso. Põe o ateísmo em crise e em tensão permanente, pois uma vez que se colocou por terra os ocos e velhos ídolos, não é útil e coerente fabricar outros ideais universais e a-históricos e pôr no lugar. A negação tem que ser absoluta, para que a afirmação da vida também o possa ser. Mesmo porque de nada adianta a afirmação de Deus para justificar os valores de bem e mal, se a sua condição de princípio primeiro e sumo fundamento cósmico-ontológico apenas complica mais o problema do sofrimento e não o resolve. 4 “[…] la negación metódica, la destrucción de ídolos que disimulan la muerte de Dios”: CAMUS, 2003, p. 80. 19 A afirmação da existência de um Deus nos moldes antropomórficos apenas aponta para uma fonte de origem de toda a dor e irracionalidade, apontando um culpado que sempre usa como álibi (contra as acusações de seus crimes) sua natureza de ser absconditus, inacessível e que fala por enigmas a uns poucos escolhidos. Enfim, o pressuposto teísta só cria mais ídolos a pedir sacrifício de carne, sangue e a proibir o vinho, a embriaguez e a assunção de um pensamento criador. Para que o mundo seja pensado como ele é, para que não seja assumida uma realidade imaginária ou novos ídolos, o ateísmo se faz método em Nietzsche, segundo Camus. Sabe-se que Nietzsche invejava publicamente a Sthendal sua fórmula: “a única desculpa de Deus é que não existe”. Ao estar privado da vontade divina, o mundo está privado igualmente de unidade e finalidade. Por isso não se pode julgar o mundo. Todo juízo de valor acerca dele leva finalmente à calúnia da vida. Se julgas então o que é por referência ao que deveria ser, reino dos céus, ideias eternas ou imperativo moral. Porém o que deveria ser não é; este mundo não pode ser julgado em nome de nada. “As vantagens dessa época: nada é certo, tudo está permitido”. Estas fórmulas, que repercutem em milhares de outras, suntuosas ou irônicas, bastam em todo caso para demonstrar que Nietzsche aceita toda a carga do niilismo e da rebelião (CAMUS, 2003, p. 81).5 Nietzsche com o seu olhar cirúrgico enxerga em si e no seu tempo a decadência da cultura moderna e expressa isso de maneira lúcida na afirmação de um ateísmo que não é apenas a sua descrença no Deus cristão, mas a constatação do espírito de uma época. O niilismo é o caráter de um tempo destruidor das velhas bases da tradição ocidental. Como a crença em uma vontade divina (a providência) não é mais forte no coração da cultura ocidental, o mundo perdeu o seu sentido de unidade ontológica e política e, por isso, está carente de uma finalidade que sustente um projeto civilizacional nos moldes eurocristãos. Assim, por toda parte se vê levantes contra a velha ordem. Na Rússia, nas décadas de 60 a 80 do século XIX d.C. em particular, o autor do Crepúsculo do Ídolos vê os levantes de grupos de jovens anarquistas e os denomina - na esteira de suas leituras de Pais e Filhos, de Turgueniêv - de niilistas. No entanto, o seu diagnóstico não 5 Se sabe que Nietzsche envidiaba en público a Sthendal su fórmula: “La única excusa de Dios es que no existe”. Al estar privado de la voluntad divina, el mundo está privado igualmente de unidad y finalidad. Por eso no se puede juzgar al mundo. Todo juicio de valor acerca de él lleva finalmente a la calumnia de la vida. Se juzgas entonces lo que es por referencia a lo que debería ser, reino del cielo, ideas eternas o imperativo moral. Pero lo que debería ser no es; este mundo no puede ser juzgado en nombre de nada. “Las ventajas de esta época: nada es cierto, nada es cierto, todo está permitido”. Estas fórmulas, que repercuten en millares de otras, suntuosas o irónicas, bastan en todo caso para demonstrar que Nietzsche acepta toda la carga del nihilismo y de la rebelión (CAMUS, 2003, p. 81). 20 se reduz a um aspecto político ou a um grupo específico de um ou de vários países. Sua análise filosófica vai à raiz do problema, constatando a causa da enfermidade, da qual o anarquismo, a democracia, o socialismo e o nacionalismo exacerbado são apenas sintomas. Para Nietzsche, toda a questão tem como núcleo a desvalorização dos valores negadores da vida, cujo centro é a moral cristã, Sócrates (o precursor cristão) e o ideal ascético do ateniense. Daí ser acertado, embora paradoxal, afirmar que as instituições, valores e modelos sociais e políticos ocidentais são filhos do cristianismo e de sua moral. O niilismo assim é filho do asseio da verdade trazida pelo espírito cristão e que levou a envenenar a si mesma, pois o que se vê em nosso tempo é que “Deus está morto”. Vejamos o alcance deste diagnóstico e depois as suas raízes ontológicas e morais no cristianismo e em seu precursor, Sócrates. 1.2 Diagnóstico do homem insano O niilismo apresentado pelo autor da Gaia Ciência não se restringe aos fenômenos sociais de contestação política e de revolução das instituições. Não se refere apenas aos jovens contestadores revolucionários russos retratados nos romances de Turgueniêv e Dostoiévski e que eram responsáveis por causar tumultos por meio de atividades incendiárias e terroristas em busca da queda do regime czarista. Tampouco se reduz a postura inescrupulosa e psicopata de figuras como o russo Písarev, citado por Camus como ápice do tipo de niilista destrutivo, manipulador, mentiroso e sem escrúpulos, cuja ação se baseava apenas na ausência de impedimentos morais válidos e na força de caráter (ou de falta): já não há mais que se explicar o assassinato, mata-se porque quer e pode. O niilismo diz respeito ao mais poderoso acontecimento cultural, para o qual todo o efeito destrutivo (como o dos jovens russos) é apenas consequência. Trata-se do abalo e destruição do fundamento axiológico sobre qual tudo o que o ocidente representa foi construído. A questão principal gira em torno da desvalorização dos valores metafísicos e morais do cristianismo ou do ideal ascético-socrático, por meio do qual se pôs as perguntas fundamentais da vida e lhes deu as respostas baseadas na vontade de verdade, cuja natureza é a de ser pura, transcendente e livre das aparências, paixões e conflitos de perspectivas. Com este ideal se respondeu milenarmente o para quê, o porquê da vida e dos acontecimentos e o como se deve viver. E também se destruiu aquilo que fazia oposição à verdade, ao que permanece e é eterno. 21 Assim como os sentidos só nos oferecem a multiplicidade das aparências, a vontade de verdade se converteu em ascese em relação às paixões, como meio de alcançar o bem-estar pessoal e social. Todos dispunham de um abrigo seguro, no qual poderiam se proteger da dúvida corrosiva sobre a verdade do mundo e de seu papel social, até que nesse mesmo movimento de asseio da verdade se produziu a ciência, o ceticismo filosófico e a necessidade de comprovação de causas naturais e imanentes, excluindo-se as famosas causas finais. Daí o homem moderno perde o seu chão e se vê diante de um abismo intransponível. É assaltado de estranhamento, de medo e de um vazio profundo, o que lhe causa inseguranças e incertezas invencíveis do que é certo ou errado, e de qual rumo pessoal deve se dar ou de qual orientação social e política deve dar ao mundo. A este evento de profunda crise espiritual da modernidade, Nietzsche denomina de “morte de Deus” e se constitui o fenômeno fundamental de nosso tempo, sem o qual não podemos entender a decadência moral e política em que vivemos e também a crise existencial por meio do qual as pessoas vivem e agem, como se tudo fosse sem sentido, como se tudo fosse em vão. Na Gaia Ciência, no aforismo 125, Nietzsche expressa metaforicamente, por meio da personagem do homem louco, a profunda crise do ideal ascético que se encaminha para o seu fim definitivo. [...] não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã ascendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? Gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou- os com o seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que 22 ascender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água nos poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmo nos tornarmos deuses, para ao menos nos parecermos dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!”. Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda é mais distante do que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram! – Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “o que são essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE, 2001, pp. 147-148). A passagem do homem louco condensa a ideia fundamental do niilismo, a saber: a crença na verdade universal e absoluta, capaz de legitimar e justificar uma resposta às questões essenciais sobre o sentido e construir uma sociabilidade sólida, faliu definitivamente. A partir de então teremos de nos acostumar com esse acosmismo ontológico, que serviu como horizonte axiológico constituidor de segurança afetiva, moral e religiosa. Com efeito, dizer que “Deus está morto” não é uma afirmação de cunho politeísta, no qual um Deus mais forte destrona e destrói o mais fraco e começa uma nova dinastia cósmica, acompanhada de novos valores a que os homens deveriam seguir. Se fosse assim, não haveria de se enfatizar o clima de desolação e de desesperança enfatizado no aforismo. Tudo se resolveria com um novo quadro de princípios e normas universais capazes de alentar e colorir a vida espiritual das pessoas. A questão é mais grave e mais profunda, pois nos remete a um processo de esvaziamento total de sentido metafísico da realidade, no sentido de um discurso que se pretenda válido universalmente, dando consolo espiritual e segurança moral às pessoas. O aforismo 125 é o diagnóstico cultural do ocidente, onde se apresenta o câncer que marcou de morte o ideal moderno de vontade de verdade, num processo inexorável. A busca 23 incansável da verdade, como antecipa o aforismo 123 da Gaia Ciência, começou como meio, no mundo antigo, para alcançar a virtude; e, pelo cristianismo, foi posteriormente levado a um caráter de importância elevadíssima, abaixo apenas da Revelação que pretendia coroar o que a ciência moderna visava: a verdade pura, que se impõe a todos como única e irresistível. Nada em contradição com um ideal que defende a crença num Deus único e uma cultura mais elevada do que as outras e que, exatamente por isso, deve-se impor a todas as outras. Porém, “Há algo novo na história, quando o conhecimento quer ser mais do que um meio” (NIETZSCHE, 2001, p. 146). Quando o asseio pela verdade ascende a todas as esferas da realidade e já não há mais espaços inabitados por sua perquirição, o conhecimento se faz fim e ethos e desse modo se autodestrói: morre com a sua própria espada e com o seu próprio veneno. Não é nem um pouco adequado pensar que a proposta terapêutico-niilista do Nietzsche seja a de aniquilar a ideia de Deus. O homem insano não conclama os outros a cometer um assassinato. Pelo contrário, ele anuncia o que já se sucedeu e que, não obstante a grandiosidade do fato, não foi ainda percebido pela sociedade de sua época. Daí ser considerado louco. Ora, as palavras do autor do Crepúsculo dos Ídolos foram construídas para não serem entendidas, porque nem todos têm um espírito forte o suficiente para compreendê-las. Nem todos têm um gosto refinado para poder apreciar as palavras de um espírito livre. “Todo espírito e gosto mais nobre, quando deseja comunicar-se, escolhe também os seus ouvintes” (NIETZSCHE, 2001, p. 284). E para isso cria meios e recursos linguísticos, capazes de criar uma barreira de entrada para os indesejados homens de gosto rude. “Todas as mais sutis leis de um estilo têm aí sua procedência: elas afastam, [...] proíbem a compreensão” (NIETZSCHE, 2001, p. 284). Todavia, quem escreve, a alguém se destina e no caso da literatura aqui em questão, a mensagem foi destinada a amigos, a íntimos, a ânimos intensos e apaixonados pela vida. Como nos chama atenção Nietzsche, “[...] no que toca aos “bons amigos” [...] é bom lhes conceder [...] uma margem onde possam dar livre curso à incompreensão: - assim temos ainda do que rir” (NIETZSCHE, 2005, p, 27, grifo nosso). Para Vilas Bôas (2017), o recurso do spielraum (margem de manobra, segundo sua tradução) nos conduz a perceber que o público ensejado pelo alemão ainda está por vir. 24 E quem seriam esses bons amigos e leitores, de alguma forma apresentados como filósofos? Se nos basearmos nas expectativas do próprio Nietzsche, eles não são, mas estariam por vir. Em vista do tom fortemente crítico das colocações do pensador sobre a cultura, a política, as instituições e os homens de seu tempo, não é de surpreender que para ele pareça “não apenas compreensível, mas justo” que nenhum dentre seus contemporâneos estivesse preparado para ler seus escritos (VILAS BÔAS, 2017, p.76). O aforismo da morte de Deus, portanto, não está voltado para um proselitismo ao avesso, ou seja, não visa convencer os crentes de que Deus não existe ou que exista um Deus e ele morreu. Tampouco procura debater com os teístas e os deístas, ironizando suas crenças e pressupostos. Apenas o que faz é referir-se a amigos, como Nietzsche deixa claro, no Além de Bem e Mal e na Gaia Ciência. E os seus amigos (parece que ele não tinha nenhum na época!) são os espíritos fortes, os espíritos criativos, espíritos de artistas, que não se deixam sucumbir nem pelo obscurantismo, nem pela sedução das teias aracnídeas dos sistemas frios de conceitos. Os íntimos são niilistas também, porém não porque promovem a assepsia das paixões e dos afetos alegres de triunfo e conquista; e sim porque, sendo atravessado pelo seu tempo, em que o céu foi limpo dos falsos conceitos e dos ídolos, vêem nesse evento uma oportunidade de criar novos valores, cuja natureza seja resultado de seu vigor espiritual e não de sua fraqueza. O asseio pela verdade por parte da nossa cultura cristã atingiu seu ápice com o conhecimento científico a que o sociólogo Marx Weber chama de “desencantamento do mundo” (REALE, 2005, p. 482). A nossa cultura ocidental chegou a um momento em que a magia foi trocada pela técnica e a fé no sobrenatural pela crença de que o “saber é poder” (BACON, 1997). De tal maneira que o homem moderno já não precisa mais recorrer a rituais e ações mágicas para influenciar os espíritos sobrenaturais e conseguir assim a sua intervenção potente no mundo natural; pois é muito mais eficaz recorrer à ciência e suas tecnologias. O desencantamento do mundo aqui se refere a um clima social intransponível de descrença em um mundo e uma natureza habitada por seres mágicos e influenciáveis mediante ritos e palavras específicas. Se uma pessoa adoece, ela pode até procurar um guru espiritual (padre, pastor, rezadeira, pai de santo etc.), porém não se dispensará um médico e uma farmácia. 25 Se uma peste assola a plantação, ela pode até buscar uma reza forte ou um benzedor, todavia não deixará de fazer uso dos conhecimentos da engenharia ambiental e da agronomia. Enfim, Deus está morto no sentido de que a sua função social pode ser melhor realizada por meios técnico-científicos. E se esse desencantamento se pode referir à ação sobre o mundo, a fortiori se pode aplicar a compreensão da moral também. Se uma pessoa age ou evita agir por conta de um mandamento moral religioso, a sua ética da convicção não lhe serve de pretexto cabal de sua responsabilidade, diante da sociedade, sobre os efeitos dos seus atos praticados. E, além do mais, há o direito que está fundado na ficção de um contrato social ou de uma constituição prevendo todos os mecanismos secularizados.6 Quer dizer: para resolver problemas de contencioso civil, empresarial ou criminal não será de muita utilidade recorrer às leis do antigo Israel presentes no Pentateuco. Preferível será fazer uso da ciência jurídica e das técnicas de aplicação às situações da vida para se defender contra lesões aos seus interesses ou para exigir ou fazer valer os seus direitos. Tudo isso ilustra como a ciência, que se divide em múltiplas áreas, assume todos os setores da vida humana e ventila para longe a visão religioso-mágica do mundo. “Deus está morto” não é uma afirmação de um embate contra os crentes. É antes uma constatação de um processo de racionalidade que trouxe para primeiro plano aquilo que outrora era apenas meio. Porém, a ciência como ápice desse movimento de busca do conhecimento, universal e válido, justifica-se por ser um saber que segue as leis da lógica e as normas da razão, secundada pela experimentação; e, por isso, rigorosa na constatação do seu saber sobre o mundo. Porém, é carente como fonte de sentido, como horizonte referencial para oferecer norte às indagações fundamentais para o ser humano. Nem sequer a pergunta sobre se este mundo descortinado e aprisionado por sua fria teia conceitual é digno de ser vivido ou não, é capaz de responder. 6 Para Foucault, a questão do contrato social representa uma sociedade penal ou um ambiente em que vige o poder punitivo a posteriori por meio do poder judiciário fundado em princípios como a anterioridade penal e a individualização da pena. Todo este contexto ganha forma sobretudo a partir das reformas do direito francês (1850/60) que incluem as circunstâncias atenuantes como mecanismos de personalização penal. “[...] a penalidade que se desenvolve no século XIX se propõe cada vez menos definir de modo abstrato e geral o que é nocivo à sociedade ou impedi-los e recomeçar. [...] A penalidade no século XIX, de maneira cada vez mais insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos” (FOUCAULT, 2002, pp. 84-85). 26 Um médico é capaz de conhecer com precisão a anatomia e o funcionamento do corpo humano, também o é de precisar quais as doenças podem impedir o bom funcionamento do corpo humano, também o é de individuar quais as doenças podem impedir o bom funcionamento desse organismo e pode inclusive lançar mão do mais eficiente procedimento técnico-cirúrgico para reaver a boa funcionalidade somática.7 Todavia, não é capaz de dizer se este singular organismo salvo em sua saúde8 vale a pena ser vivida. Sendo assim, para as questões da ordem do significado e agir humanos a ciência se mostra fria e indiferente. As suas questões são as que buscam as causas próximas, naturais ou eficientes, como definia Aristóteles (2006). As causas finais, o fundamento último ou a teleologia, âmbito de pesquisa central e de maior relevância no mundo antigo e medieval, é agora relegado ao interior de cada indivíduo, não podendo ser critério válido de verdade sobre o mundo ou mesmo sobre a natureza da própria verdade. Então se pode asseverar que há aí um espaço para a religião e que Deus não esteja tão morto como proclama o homem louco? Claro que não, pois o processo de racionalização do ocidente não deixa nenhum ambiente eterno descolonizado. Tudo está aprisionado por suas redes, sobrando apenas aquilo que é do íntimo, da interioridade de cada um; de maneira que os valores supremos e absolutos e o céu das ideias eternas se transferiram do objetivo para o subjetivo: para o interior de cada indivíduo. 7 A relação entre o normal e o anormal recebe um tratamento interessante no pensamento de Foucault, que concebe que a medicina recentemente descobriu que a linha entre esses polos é tênue. Com o avanço da fisiologia, compreendeu-se que não existem corpos anormais, pois os quadros clínicos patológicos se constituem como corpos que seguem mecanismos normais reagindo de maneira adaptativa segundo sua própria norma: “A medicina viu esfumar-se progressivamente a linha de separação entre os fatos patológicos e os normais: ou melhor ela aprendeu mais claramente que os quadros clínicos não eram uma coleção de fatos anormais, de “monstros” fisiológicos, mas sim constituídos em parte pelos mecanismos normais e as reações adaptativas de um organismo funcionando segundo sua norma (FOUCAULT, 1975, p. 12) 8 A doença mental entendida como uma essência ou como uma entidade natural classificável perdeu seu sentido com a descoberta da regressividade das perturbações mentais e dos fatores do quadro individual e existencial da moléstia. De maneira que se pode entender que “A doença não é uma essência contra a natureza, ela é a própria natureza, mas num processo invertido; a história natural da doença só tem que restabelecer o curso da história natural do organismo” (FOUCAULT, 1975, p. 18). No entanto, toda essa compreensão não alcança a causa eficiente deste fenômeno, já que a sua produção tem a ver com a constituição histórica. Em outras palavras, parafraseando Foucault (1975, p.59), não é a ciência (psicológica, médica) que pode explicar a doença, antes é a doença que explica a ciência. “Foi numa época relativamente recente que o ocidente concedeu a loucura um status de doença mental. Afirmou-se até demais que o louco era considerado até o advento de uma medicina positiva como um “possuído”. E todas as histórias da psiquiatria até então quiseram mostrar no louco da Idade Média e do renascimento um doente ignorado, preso no interior da rede rigorosa de significações religiosas e mágicas” (FOUCAULT, 1975, p. 52). 27 Daí que as religiões e os seus templos continuam existindo para aqueles que, angustiados e perdidos em meio às dúvidas corrosivas, não têm força para enfrentar e admitir que este céu cinzento e este frio polar é o destino da existência da vida humana. Estes espaços sagrados inclusive ganham força já que se tornam um refúgio para os espíritos doentes e desorientados. Lá se entoam hinos como o réquiem aeternam deo, louvam ao eterno e aos seus valores, quando não percebem que ele só vive dentro deles. Afinal, “O que são ainda essas igrejas, senão os mausoléus de Deus?” (NIETZSCHE, 2001, p. 148). A poética e belíssima passagem do aforismo 125 da Gaia Ciência, expressa com uma riqueza de imagens, signos e recursos estilísticos aquilo que é o acontecimento fundamental da cultura moderna.9 A própria figura do homem louco, que em plena manhã acende uma luz e se dirige ao local de concentração de pessoas revela o caráter angustiado de um homem que acaba de acordar de um sonho, que se transformou em um pesadelo de dor ou agonia; ou mesmo de uma pessoa, que atormentado em uma noite escura da alma se vê esvaziada de esperança de que a tenebrosa experiência de vazio de sentido não seja apenas mais uma noite a ser superada por um novo dia de luz pujante e esclarecedora. O dia surge, todavia, o sol não é capaz de iluminar o caminho da vida, guiando pelas estradas seguras e de norte certo. Daí a necessidade de fazer uso de uma lanterna para clarear a mente, na ausência de um farol divino, que já não guia mais com sua intensidade incontestável. Ao chegar agoniado no mercado, põe para fora por meio de gritos, a indagação que o oprimia e tirava a tranquilidade. “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!”. Imediatamente, o mercado prorrompe em risos e zombaria ante a tão peculiar pessoa em questão. Os comentários chistosos que se seguem partem de homens ateus, secularizados, muito preocupados com os negócios do mercado. Brincam como se não houvesse problema nenhum além dos prazeres imediatos e dos seus pequenos e reduzidos projetos de vida. “Ele (Deus) se perdeu?”. “Ele tem medo de nós?”. “Ele se mantém escondido?”. As reações jocosas mostram o quanto o homem moderno está longe de compreender o mal que padece; pois vive uma vida de gado voltada para o rebanho e para a satisfação de pequenos interesses e prazeres. O fato de não acreditar em Deus, não o faz um interlocutor 9 Seguiremos numa exegética do aforismo 125 e para uma clareza retomaremos passagens do texto de Nietzsche e as comentaremos dentro do seu aspecto metafórico. 28 capaz de entender que padece de uma mentalidade e vida atravessada pelas forças e influências culturais do Deus que diz não existir (e se tratar assim de assunto de loucos). Diante do clima de algazarra, o homem louco salta para o meio da aglomeração e com um olhar de convicção e gravidade, mira-os nos olhos, conseguindo com isso a atenção da audiência. Enceta uma enorme quantidade de questões que desvelam aspectos cada vez mais problemáticos, corrosivos e desesperadores do problema do niilismo, para o qual todos são responsáveis. “Nós o matamos – vocês e eu!”. E, agora, o que fazer para viver num mundo sem referências absolutas e universais, capazes de nos manter seguros e amparados? Como lidar com a ausência de uma autoridade que referencia a verdade sobre a vida e o mundo, sem poder apelar para o solo firme do ideal ascético, é o problema do qual ninguém se pode eximir, pois “Aquilo de mais poderoso e mais sagrado que o mundo tinha até então sangrou sob nossos punhais [...]” (NIETZSCHE, 2001, p. 147). Há indicação de uma crise axiológica de critérios de escalonamento de princípios. É como se a terra estivesse desligada do sol, e ficasse a vagar aleatoriamente fora de um sistema estelar, de maneira que já não se saberia nem de coisas muito elementares como “Para onde nos movemos? [...]. Há ainda um ‘acima’ e um ‘abaixo’?”. No lugar de um horizonte de sentido seguro só nos resta vagar nas incertezas e absurdos “[...] através de um nada infinito?” (NIETZSCHE, 2001, p. 148). A complexidade das questões aumenta de gravidade à medida que indicam que este evento não tem volta e só está no começo de uma situação nefasta que ainda nem sequer foi percebida adequadamente por todos. Se não há mais um intelecto divino, de onde se pode deduzir ou de onde se pode contemplar os valores supremos para orientar nossas vidas, então restaria nos tornarmos deuses para restabelecer toda a ordem cósmica do nada, como fizera outrora o velho ideal judaico-cristão? Acompanhamos o passo lendo a sucessão enorme de questões e começamos a nos cansar, fadigar com a quantidade de indagações sem respostas. Nietzsche age como um artista que faz uso de um recurso literário para pôr a mesma pergunta de muitas formas diferentes, enfatizando aspectos variados do mesmo problema do niilismo. Com isso, ele consegue nos fazer sentir em um labirinto, no qual quanto mais avançamos, mais nos perdemos e nos fadigamos com a frustração das tentativas de saídas. 29 Ele nos põe diante de uma obra aberta, cujos recursos materiais-linguísticos nos mergulham na perturbação da loucura da vida em um mundo absurdo. Somos levados não só a entender, como a ser afetados de maneira a nos envolver com a obra e completá-la com a nossa imersão corporal, no problema do qual fazemos parte. Desse modo, sentir (e não apenas entender racionalmente) o desconforto da descoberta de que o porto seguro de nossos valores e explicação do mundo já não existe mais e, por isso, já não podemos mais contar com ele para nos confortar e iluminar nosso caminho. Na verdade, uma vez que a crença em uma autoridade sobre-humana se esfacelou, as metas e objetivos deixaram de ser dados pelo hábito da crença, de maneira que não se sabe mesmo se há caminho, pois este pressupõe um lugar a ser alcançado. Porém, como não conseguimos viver sem metas, procuramos outras autoridades para pôr no lugar do velho ideal, resultando daí uma variedade de caminhos e horizontes equivalentes entre si na falta de um substrato ontológico suficiente para embasar os princípios e os valores. O silêncio às perguntas mostra como o homem se encontra só diante da responsabilidade de seus atos no mundo. Todavia ao mesmo tempo indica que este acontecimento não é algo que atinge apenas o indivíduo isoladamente, pois se estende a todas as áreas da cultura, atingindo as artes, a economia, a política e a religião. Diante de um fato tão fundamental e incompreendido, o homem louco lança a lanterna ao chão, num gesto de indignação e frustração por perceber que os homens de seu tempo, embora se autodeclarassem ateus, não eram capazes de compreender o espírito niilista de seu tempo. E conclui dizendo: “Eu venho cedo demais [...] não é ainda meu tempo” (NIETZSCHE, 2001, 148). Entende-se assim que o homem do aforismo 125 é julgado louco por ser extemporâneo. Ele representa aquele tipo de homem que Nietzsche costuma se referir em seus escritos como homem destacado, espírito livre ou mesmo filósofo-artista. Ou seja, como alguém com uma percepção da realidade mais refinada, que consegue enxergar mais longe e mais adequadamente o mundo do que os homens do mercado, perdidos em informações e preocupações e com interesses e prazeres apequenados de suas vidas de animal de rebanho. Camus considera que este olhar do filósofo-artista, criador nietzschiano, antecipa profeticamente os efeitos nefastos do niilismo, embora ao fazer isso dê ensejo para a má 30 interpretação que tornará a filosofia dele aquilo com que ele nunca concordaria, a saber, uma justificação filosófica de uma política como foi o nacional-socialismo alemão. Desse modo, a filosofia de Nietzsche consegue fazer um diagnóstico do niilismo da cultura moderna, desde suas raízes socrático-cristãs até a sua época, o que é de fundamental importância para entendermos o mundo absurdo em que mergulhamos. A questão que se coloca então é como chegamos a este estado doentio da cultura moderna e como Nietzsche antecipa a ordem de sistemas absurdos que se põem no lugar vago deixado pelo Deus morto. 1.3 A história de uma cultura doente: a decadência moderna A cultura moderna se moldou com base em um mundo considerado verdadeiro, cuja referência axiológica maior é Deus, como avalista ontológico de todos os ideais de nossa civilização ocidental. De maneira que suas raízes estão na inversão de direção das pesquisas sobre a natureza operada por Sócrates e Platão e aprofundada de maneira peremptória pelo cristianismo e sua moral da fraqueza e da humildade. Com os cristãos e seu pensamento distante dos ensinamentos e exemplos de Jesus, o vírus do niilismo se alastra como uma peste através de todo o tecido social; e se expressa em impossibilidades ainda maiores de conciliar a verdade do mundo inteligível com o mundo sensível da vida, de maneira que chega à impossibilidade da metafísica em Kant e na afirmação da ciência como único conhecimento válido e objetivo. Nietzsche sintetiza de maneira bem esquemática este processo histórico em seis proposições, das quais podemos dizer que as quatro primeiras representam a história do niilismo desde o seu germe grego até o cientificismo, e as duas últimas são o niilismo da época do autor do Crepúsculo dos Ídolos e o que se espera construir a partir disso. Ou seja, estas últimas indicam exatamente a época absurda abordada por Camus. No capítulo “Como o ‘mundo- verdade’ tornou-se enfim uma fábula (história de um erro)” do Crepúsculo dos Ídolos, encontramos as tais afirmações. As tais proposições são estas: 31 1-O mundo-verdade acessível ao sábio, ao religioso, ao virtuoso vive nele, ele mesmo é esse mundo [...]. 2-O mundo-verdade é inacessível no momento, porém, prometido ao sábio, ao religioso, ao virtuoso e ao pecador, que faz penitência [...]. 3-O mundo-verdade é inacessível, indemonstrável, que não se pode prometer, porém, mesmo supondo-se que seja imaginário, é um consolo e um imperativo [...]. 4-O mundo-verdade... inacessível? Pelo menos não alcançado em caso algum. Logo, desconhecido. Por isso nem consola, nem salva, nem obriga a nada; como pode obrigar a algo uma coisa desconhecida? [...]. 5-O mundo-verdade; uma ideia que não serve mais para nada, não obriga a nada; uma ideia que se tornou inútil e supérflua, por conseguinte, uma ideia refutada: suprimamo-la! [...]. 6-O mundo-verdade acabou abolido, que mundo nos ficou? O mundo das aparências? Mas não; com o mundo-verdade abolimos o mundo das aparências! [...]. (NIETZSCHE, 2017, pp. 37-38) Seguiremos com Camus este roteiro histórico ou esse laudo “médico-psicológico” do quadro de degenerescência vital da cultura moderna, em três etapas, dando destaque para a última, que contempla o niilismo do Nietzsche. 1.3.1 As origens da decadência moderna: Sócrates e o cristianismo 1.3.1.1 O início da degenerescência cultural do ocidente “O mundo-verdade acessível ao sábio, ao religioso, ao virtuoso vive nele, ele mesmo é esse mundo [...]” (NIETZSCHE, 2017, p. 37). Camus observa que com Sócrates e Platão, o homem de carne e osso passa gradativamente a ser substituído por um homem reflexo, despojado de sensibilidade. Na verdade, o mais adequado é dizer que ele se despe da influência das paixões para poder encontrar o mundo verdadeiro, que é aquilo que sempre equivale a si mesmo e, por isso, não pode estar sob os influxos do devir. A sede daquilo que permanece sem alterações substanciais, forjou a ideia de unidade, ser, identidade e se confundiu com o Bem, formando a ideia de uma 32 realidade suprassensível, cujo ápice tem status de fundamento e, ao mesmo tempo, de guia moral. Vendo somente aquilo que muda e não suportando esse aspecto trágico do existir, pressupuseram que isso é apenas aparência, ilusão: os nossos sentidos nos enganam. E como sobre esta afirmação encontramos infinitos casos de confirmação então se resolveu aceitar que a verdade está fora do mundo dos fenômenos, fazendo com que este fosse lançado à compreensão de mera aparência, ocasião de engano e lugar de erro e perdição moral. Por outro lado, fica assente que, se podemos ter uma epistème das coisas, supõe-se que haveria em nós um princípio análogo à verdade, por meio do qual podemos acessar essa verdade, transcendendo esse plano sensível. A razão, antes apenas logos (discurso, palavra, operação de separar os diferentes e juntar os semelhantes, somando e subtraindo, e levando a novas conclusões) passa a ser a instância de desvelamento da realidade. E não só isso. Passa também a ser considerada substancial, um existente em meio a outros existentes em um mundo, que só podemos supor divino e habitado por nós. “De onde se originavam [essas crenças filosóficas] então? Na Índia como na Grécia se incorreu no mesmo erro: “É necessário que tenhamos habitado um mundo superior” (NIETZSCHE, 2017, p.35). Porém quem viveu nesse mundo verdadeiro é o único que é capaz de divisar em meio ao caos dos sentidos e das emoções, aquilo que é em si mesmo sem divisão, incorruptível, sempre idêntico a si mesmo e eterno. O corpo, as paixões, os apetites e o devir, obviamente, não são dessa natureza. Porém Nietzsche coloniza em proveito do niilismo os valores que, tradicionalmente, foram considerados como freios do niilismo. Principalmente, a moral. A conduta moral, ilustrou-a Sócrates, ou tal como recomenda o cristianismo, é em si mesma um signo de decadência. Quer substituir ao homem de carne por um homem reflexo. Condena o universo das paixões e os gritos em nome de um mundo harmonioso completamente imaginário. Se o niilismo é a impotência para crer, sua sintonia mais grave não se encontra no ateísmo, senão na impotência para crer o que é, para ver o que se faz, para viver o que se oferece. Esta enfermidade está na base de todo idealismo. A moral não tem fé no mundo. A verdadeira moral para Nietzsche, não se separa da 33 lucidez. [...] A moral tradicional não é para ele senão um caso de imoralidade (CAMUS, 2003, pp. 81-82).10 A enfermidade cultural niilista nasce nessa atitude socrática paradigmática para o que vem depois de afirmar a verdade como sendo certa e contrária à ilusão. Quando, na verdade, é ela o engano e a mentira inventada para substituir a vida no seu devir e transformação constante por um mundo harmonioso, imutável, belo e racional. Sócrates procedeu como uma aranha e aprisionou a realidade em suas teias conceituais (Cf. NIETZSCHE, 2017, p. 34). Um pensador doente, cansado da vida e de toda a carga de emoções, desafios, desastres e dores contidos nela. Alguém que fez de sua enfermidade a sua filosofia, pois empenhou todos os seus esforços para convencer os atenienses de que a morte é libertadora e que viver é a doença. “Mesmo Sócrates disse ao morrer: “viver é estar a muito tempo enfermo: devo um galo a Esculápio libertador” (NIETZSCHE, 2017, p. 45). De fato, o pensamento entra em decadência ao assumir os pressupostos acalentadores de um homem cansado da vida como a luz pura da qual nunca poderemos nos afastar, sob pena de vivermos na aparência da caverna. Platão com sua caverna nos tenta convencer de que existe um mundo em que não há aparência e mudança, apenas muita luz e formas puras. Atribui ao filósofo o papel de protagonista dessa saga, cujo começo é o romper das correntes das aparências e ascender por meio da razão desde o nível da pistis das sombras e da dóxa dos simulacros, até o conhecimento epistêmico das coisas iluminadas e da nous da fonte de toda verdade. A metáfora empregada para dividir o conhecimento e o mundo em verdadeiro e ilusório poderia muito bem ser chamado de mito da razão em vez de mito da caverna, nessa perspectiva Nietzschiana. Assim, a história desde então transformou a morte em vida e a vida em ilusão e construiu a maior mentira já contada na humanidade, a saber, a própria ideia de verdade, pois “O mundo das aparências é o único real, o mundo-verdade foi acrescentado da mentira” (NIETZSCHE, 2017, p. 38). 10 Pero Nietzsche coloniza en provecho del nihilismo los valores que, tradicionalmente, fueran considerados como frenos del nihilismo. Principalmente, la moral. La conducta moral, la ilustró Sócrates, o tal como la recomienda el cristianismo, es en sí misma un signo de decadencia. Quiere sustituir al hombre de carne por un hombre reflejo. Condena el universo de las pasiones y los gritos en nombre de un mundo armonioso completamente imaginario. Si el nihilismo es la impotencia para creer, su sintonía más grave no se encuentra en el ateísmo, sino en la impotencia para creer lo que es, para ver lo que se hace, para vivir lo que se ofrece. Esta enfermedad está en la base de todo idealismo. La moral no tiene fe en el mundo. La verdadera moral para Nietzsche, no se separa de la lucidez. […] La moral tradicional no es para él sino un caso de inmoralidad (CAMUS, 2003, pp. 81-82). 34 Sócrates transformou a filosofia numa meditação acerca da morte.11 Nas vésperas de sua morte, fez um relato de sua carreira intelectual, concluindo que trabalhou a vida inteira se preparando para morrer. Falou de sua passagem pelos filósofos da natureza, lamentando não terem avançado além das propriedades das coisas sensíveis, embora tivessem o mérito de encontrar um elemento invariável. Anaxágoras ainda se aproximou do desvelamento da verdade, pois postulou a existência do nous, que parecia ser um princípio inteligente que governaria tudo. No entanto, no fim das contas essa arché também se confundia com os dados da própria natureza, não constituindo um mundo totalmente fora da caverna ainda. Foi nesse ponto de sua trajetória de pesquisa que resolveu assumir uma nova direção, ao dizer que se nada desse mundo permanece, e assim nos engana, é porque sem dúvida há um mundo de luz, harmonioso e onde reina a unidade e a substância imperecível. Sócrates e Platão com essa invenção doente do verdadeiro, em detrimento da única natureza da qual temos acesso, constrói a antropologia niilista do ocidente e produz uma moralidade ligada à decadência da Grécia. Até então, o homem era considerado um ser de mesma natureza do restante dos entes e sujeito a mesma ordem cósmica de todas as coisas que existem. Não havia a compreensão de uma instância suprassensível no ser humano, que fosse considerada o lugar de sede de sua identidade individual. Agora, a razão se substancializa e adquire esse status. A pergunta sobre quem é o homem tem uma nova e paradigmática resposta para a cultura ocidental. O homem é a sua alma. E ela é racional, imortal, simples e pertence a um mundo verdadeiro. Em nenhum outro momento anterior, a psiquê havia adquirido essa natureza e essa função. Na época homérica, por exemplo, a alma era apenas um “fantasma”, uma espécie de espectro de figura semelhante ao corpo de onde saiu e que não tinha consciência. Nos mistérios 11 “[...] eu cometeria um grande erro não me irritando contra a morte, se não possuísse a convicção de que depois dela vou encontrar-me, primeiro, ao lado de outros Deuses [sic], sábios e bons; e, segundo, junto a homens que já morreram e que valem mais do que os daqui. Mas, em realidade ficai sabendo que, se não me esforço por justificar a esperança de dirigir-me para junto de homens que são bons, em troca hei de envidar todo esforço possível para defender a esperança de ir encontrar, depois da morte, um lugar perto dos Deuses [sic], que são amos em tudo excelentes, e, se há coisa há que me dedico com todas as minhas energias, será essa! Assim, por conseguinte, não tenho razões para estar irritado. Mas, ao contrário, tenho a firme convicção de que depois da morte há qualquer coisa – qualquer coisa, de resto, que uma antiga tradição diz ser muito melhor para os bons do que para os maus” (PLATÃO, 1996, 63 b-c, p. 64). 35 órficos, era um demônio a expiar o seu carma em metempsicoses sucessivas, que o faziam se libertar dessa consciência individual e determinada. Para os filósofos da natureza, injustamente chamados de pré-socráticos, era um desdobramento do mesmo princípio que constitui todas as coisas. E em alguns casos, poderia ser inclusive composto, como no caso da composição atômica da realidade de Leucipo e Demócrito. Em Sócrates, a alma passou a ser a nossa capacidade racional e determinadora da ação moral (Cf. REALE, 1993, p. 258). Daí ser compreensível a atitude de Sócrates de se comportar como alguém, para quem viver é uma doença a qual a morte vai curar. Pois tendo a razão como algo substancial e espiritual, foi possível inclusive “provar” que ela é imortal, como de fato tenta a partir de alguns argumentos, cujo pressuposto é a natureza simples, ideal e verdadeira da alma. A essa concepção niilista do homem se segue uma nova areté. Em grego, virtude tem sentido de excelência, o que é estranho aos nossos ouvidos, pois sempre lidamos com assuntos de moralidade ligados à abstenção, à repressão das paixões e a valores como a humildade. O que nem sempre percebemos é que essa inversão ética é fruto da degeneração enferma produzida pela identificação do homem com uma realidade consciente, espiritual e desligada do regime de existência do corpo e dos corpos em geral, que compõem a natureza. Então se poderia falar da virtude de uma espada, como se poderia falar da virtude de um guerreiro, por exemplo. Ora, sendo a excelência da lâmina cortar e a do soldado proteger e matar em guerra, eles serão tão mais excelentes, à medida que cortarem, perfurarem e matarem. Desse modo, sendo o homem identificado ao seu corpo e à vida na polis, a sua areté identifica- se com a força, a coragem, a vida, a saúde e a beleza. Na verdade, o belo é o bom, é a excelência, como indica o adágio grego kalòs kaì agathós (o belo e o bom; ou traduzindo livremente: o bom é o belo). Com Sócrates, ao contrário, a alma é o divino em nós ou aquilo que não pertence à mesma natureza de tudo o mais que o circunda. Por esse motivo, a areté ou a nova moral vai identificar razão, virtude e felicidade. Realizar a sua própria excelência indicará uma atividade ligada ao conhecimento verdadeiro, à negação do porvir, deixando os antigos valores como algo secundário e até mesmo dispensável. Para Nietzsche, Sócrates desenvolve um pensamento desse tipo por não ser nobre, de compleição feia e doente. “Sócrates pertencia, por sua origem, 36 ao populacho. Sabe-se que era feio” (NIETZSCHE, 2017, p. 24). Não podendo exaltar a força e a saúde, produz uma idiossincrasia moral. As licenciosidades que confessa e a anarquia dos instintos não são os únicos indícios de decadência em Sócrates. Também constitui um indício a superfetação do lógico e essa malícia raquítica que o distingue. Não esqueçamos tampouco as alucinações auditivas que sob o nome demônio de Sócrates receberam uma interpretação religiosa. Tudo era nele exagerado, bufão, caricaturesco, tudo, ademais, pleno de segundas intenções, de subterrâneos. Quisera eu adivinhar de que idiossincrasia pôde nascer a equação socrática: razão = virtude = felicidade, a mais extravagante das equações e contrária, em particular, a todos os instintos dos antigos helenos (NIETZSCHE, 2017, p. 25). Ao identificar a razão com a felicidade, Sócrates coroa a concepção do homem feio, no sentido de alguém que põe a saúde e a força como bens secundários. Também estabelece uma tirania da razão, que agora deverá governar o corpo e reprimir os instintos de poder. Nesse novo quadro axiológico, a fraqueza e a baixeza assumem o primeiro plano e se tornam modelo de vida. A grande questão, no entanto, é como tal inversão de valores pode se efetuar no espírito guerreiro dos gregos. Para Nietzsche, são duas as razões mais fortes: o mérito do espírito dialético de Sócrates e a própria decadência da cultura grega. A dialética é uma espécie de técnica de raciocínio e debate, que põe na responsabilidade do interlocutor a própria consistência de suas afirmações. Sócrates praticava essa arte ao abordar pessoas das mais diferentes áreas de conhecimento, pondo-se como alguém a quem não se deve questionar, pois diz saber apenas que nada sabe. Com isso, assume falsamente a figura do inculto como modelo de saber, uma vez que, numa sucessão de questões, põe o seu oponente numa situação de descrédito e estupidez. “O dialético coloca seu antagonista na condição de provar que não é idiota [...] (NIETZSCHE, 2017, p. 27). Aquele que é interpelado é levado à fúria e se desconcerta ao discutir com alguém que, na realidade, não discute, não se expõe. Em alguns casos, os interlocutores, depois de feitos de néscios, sucumbem à figura fraca e cujo único papel foi o de proporcionar o espetáculo em que o enfermo vence a força e a pujança, por meio da ironia. “Era a ironia de Sócrates uma forma de rebelião ou de ressentimento popular?” (NIETZSCHE, 2017, p. 27). Trata-se sim de uma forma de ressentimento popular, no sentido de que o populacho não tem espírito suficientemente cultivado para operar intelectualmente a não ser por meio de 37 silogismos. Não tendo muito conhecimento sobre saberes específicos, resta lançar mão de um instrumento que é pura forma: a responsabilidade dos conteúdos é do adversário ou interlocutor. Sendo assim a dialética pode ser considerada um modo de vingança do mais baixo e grotesco da sociedade grega ao que havia de mais nobre e elevado. A questão intrigante, entretanto, é a de saber como os valores da fraqueza e da feiura puderam se apoderar do espírito helênico, nivelando-os a partir de uma nova areté. A resposta se encontra no fato de Sócrates não ser uma exceção. Ele já havia encontrado um ambiente decadente, enfermo e na anarquia dos instintos acreditou-se que o dialético ateniense havia encontrado o remédio. “E Sócrates se convenceu de que todos tinham necessidade dele, de seu remédio, de sua cura, de seu método pessoal de conservação de si mesmo” (NIETZSCHE, 2017, pp. 27-28). Diante de um povo educado na guerra, mas agora decadente e sem forças para atacar, ele os seduziu com uma nova forma de combater, a técnica do verme da humildade. “O verme se retrai quando é pisado. Isso indica sabedoria” (NIETZSCHE, 2017, p. 19). Vendo sua cultura decadente, os gregos pensaram que podiam vencê-la fazendo guerra àquilo onde repousa a manifestação da pujança da vida: os instintos. E, com isso, nivelaram a cultura a partir de baixo e abriram espaço para a moralidade cristã, que iria conduzir esse espírito de verme a todo ocidente. Dei a entender de que modo Sócrates fascina; parece um médico, um salvador. Será preciso mostrar o erro que sua crença na “razão a todo custo” continha? Enganam-se a si mesmos os moralistas e os filósofos ao imaginarem que vão sair da decadência fazendo- lhe guerra. Escapar dela é impossível, e o remédio que escolhem, o que consideram meio de salvação, é apenas outra manifestação de decadência; tão somente mudam sua forma de expressão, mas não a suprimem. O caso de Sócrates representa um erro; toda a moral de aperfeiçoamento, inclusive a moral cristã, foi um erro. Buscar a luz mais viva, a razão a todo preço, a vida clara, fria, prudente, consciente, despojada de instintos e em conflitos com eles, foi somente uma enfermidade, e de maneira alguma um retorno à virtude, à saúde, à felicidade. Ver-se obrigado a combater os instintos é a fórmula da decadência, enquanto que, na vida ascendente, felicidade e instintos são idênticos (NIETZSCHE, 2017, p. 29). Não há uma passagem histórica direta da Grécia para o ocidente no qual vivemos. O meio por meio do qual a decadência socrático-platônica se torna a nossa história comum e 38 moderna de niilismo se dá por meio do domínio exercido por dezenas de séculos pela religião cristã. Diríamos mais: a sua influência foi tão peremptória que não herdamos nada do mundo grego ou romano que não tenha sido profundamente formatado pelo espírito cristão. Até mesmo Sócrates nos veio sob uma ótica que o punha numa linha de precedência histórica à figura do Cristo. Justino já na antiguidade greco-romana proclamava a santidade de Sócrates (GILSON, 2001, p. 8) que, mesmo sem conhecer o Cristo (por viver muito tempo antes, obviamente), vislumbrou-o por meio de seu pensamento dialético. Confirmava essa teologia filosófica com as palavras do apóstolo Paulo, para quem os pagãos não eram desculpáveis por causa de suas perversões; pois, embora não tivessem conhecido os profetas e as Escrituras, puderam contemplar as leis naturais e as propriedades de Deus reveladas na natureza. Erasmo de Roterdã, seguindo essa mesma linha de raciocínio, dissera à época do renascimento: “São Sócrates, rogai por nós” (GILSON, 2001, P. 8). Do protagonista do niilismo grego, só sobrou uma figura que foi incorporada ao panteão dos servos modelares do Cristo. 1.3.1.2 A universalização da degenerescência cultural: o cristianismo e a moral do servo e fraco “O mundo-verdade é inacessível no momento, porém, prometido ao sábio, ao religioso, ao virtuoso e ao pecador, que faz penitência [...]” (NIETZSCHE, 2017, p. 37) A decadência operada pelo platonismo-socrático não foi tão profunda, quanto à direção espiritual e epistemológica dada pelo cristianismo. Com Platão e Sócrates, o mundo da verdade conferia à dialética status de via ascendente ao perfeito e inteligível, e à razão a participação na verdade. Por isso, o mundo das ideias puras ainda poderia ser concebido como algo acessível, já que a alma do homem é de mesma substância do verdadeiro e o sábio e virtuoso sabe como superar os dados sensíveis e acessá-lo. O pensamento cristão assumiu essa dualidade acrescentando o nível da decadência espiritual do homem. Desde essa concepção, o inteligível continuou como algo que relega o devir à ilusão e ao erro, só que agora com o diferencial de que a Razão não tem acesso mais a essa verdade, por carregar em si o pecado, uma degeneração espiritual, cuja realidade impede o homem de conhecer e querer o bem, por si mesmo. A verdade agora é uma promessa para todos os penitentes, humildes e obedientes à fé (os dogmas) do cristianismo. Todavia, deve-se fazer jus às origens do cristianismo, pois nela se encontra a fonte de entendimento da falsificação dos valores ascendentes, de afirmação da vida. 39 Segundo Nietzsche, são duas as raízes principais, a saber: a filiação judaica e a deturpação da personalidade e mensagem de Jesus. Sobre os judeus, deve-se enfatizar que Nietzsche os invectiva não apenas como um povo de caráter doente. Pelo contrário, os ataques mordazes se devem exatamente por serem um “[...] povo dotado de tenacíssima força de vida [...]” (NIETZSCHE, 2016, p. 29) capaz de enfrentar uma situação desfavorável com uma esperteza admirável, ao tomar intencionalmente os instintos de decadência como arma para dominar; ou seja, na fraqueza e nas suas causas “[...] adivinhou um poder com o qual se pode levar a melhor contra “o mundo” (NIETZSCHE, 2016, p. 29). E compreendendo a doença que os acometia, passaram a forjá-la e a disseminá-la para, enfraquecendo os espíritos, poder melhor estabelecer seu poder sobre os indivíduos. Os hebreus nem sempre tiveram um espírito decadente. Foi no seu esfacelamento político, que a classe sacerdotal encontrou a ocasião para ascender socialmente ao topo e, a partir disso, moldar essa sociedade à sua imagem e semelhança. E esse forjamento começa com a imagem do próprio Deus. Javé, a divindade da força, da vitória, da alegria e do orgulho de um povo, era invocado para lutar junto e também para agradecer ou pedir por uma boa safra, para proteção e fertilidade das pessoas e dos animais. Celebrar Javé era celebrar a sua história vitoriosa e ver a si mesmo numa manifestação de pujança e afirmação da vida. Nosso Deus é forte, então nós somos fortes; ele é vitorioso, então também o somos. A energia afirmativa da figura do Deus dos hebreus se apresentava inclusive nos outros nomes que essa divindade recebia. Elohim, que literalmente é Deuses, denota a ascendência dele sobre os outros deuses e, consequentemente, sobre os outros povos. Elshaday ou Deus todo-poderoso, exprime vigor, potência de uma divindade guerreira e da autocompreensão de um povo como combatente.12 E, tudo isso, perceba-se, não tem nada a ver com o espírito de 12 Na composição do pentateuco feita no pós-exílio, os exegetas enxergam quatro tradições de textos, que serviram de base para o escrito final: a Javista (J), assim conhecida por chamar Deus de Javé e está ligada sobretudo às figuras dos reis Davi e Salomão e ao reino do sul; a Elohista (E), que chama Deus de Elohim e dá destaque a figura de Moisés e ao reino do norte; a Sacerdotal (P) ligada à tradição do templo de Jerusalém e à imagem de um Deus transcendente e com poucos antropomorfismos; e a tradição deuteronômica (D), que dá ênfase as bênção e maldições e está vinculada ao período da reconstrução nacional (IV-III a.C).” Os biblistas começaram a dar rigorosa atenção à formação do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) quando reconheceram que no Livro do Gênesis havia dois nomes hebraicos diferentes atribuídos à Divindade, a saber, YHWH, o nome próprio do Deus de Israel (O Senhor), e Elohim traduzido simplesmente por Deus.” (BERGANT; KARRIS, 2001, p. 55). 40 uma casta sacerdotal,13 cujo caráter é de santidade, de ascese de apartamento do impuro, de rituais de purificação, de penitências e de jejuns. Com a dissolução do poder político, a partir das disputas internas e das invasões de povos mais fortes como os Assírios (VIII a.C.) e “sobretudo” os Babilônios (V a.C.), os hebreus sofreram uma viragem em sua autoestima. Onde está o nosso Deus general?, deviam se perguntar os valentes vencidos. Será se está de baixo de alguma pedra do templo? Será se foi levado junto com a Arca da Aliança? Porventura os Baalim ou Marduk feriram de morte a Javé? Os questionamentos em torno desse evento devem ter sido muitos e o clima de desolação abateu-se sobre o povo derrotado. Porém aí, em meio ao declínio, emerge a astúcia da classe sacerdotal. Do Deus afirmador da vida e dos instintos de ascensão criou um Deus da Justiça. E como o espírito dos hebreus se encontrava enfraquecido e desolado, não tiveram força para lutar contra esse veneno que lhes foi ministrado.14 Da ordem natural das coisas em seus mecanismos de causa e efeito forjaram uma Vontade de Deus, já que agora Javé é o Deus da Justiça. Postularam e ensinaram que há uma “ordem moral do mundo” responsável por conduzir ao castigo os que desobedecem às Leis e recompensa aos que lhe são obedientes. Negaram as causas naturais e no lugar delas colocaram um finalismo estranho ao universo. Tudo passa então a ser explicado não por suas causas naturais, mas por um pretenso telos espiritual. E a prova de que essa inversão da relação de causa e efeito é verdadeira e a moralização da natureza é sensata - para a casta sacerdotal e os filósofos (modernos, inclusive) - é o fato dos judeus haverem soçobrado, perdendo sua pátria para povos pagãos. Às angústias, desalentos e questionamentos do povo derrotado, foi oferecida uma doutrina, um novo Deus e um novo consolo. 13 Sobre a composição do Pentateuco, a teoria das quatro fontes assumiu o lugar de uma possível autoria do Moisés. Porém muito antes desses estudos que remontam a teologia e a exegese liberais do século XIX e XX, Spinoza (século XVII) já havia demonstrado filológica e historicamente a tese da impossibilidade de Moisés haver sido o autor do Pentateuco. “De nossa parte, concluímos que esse livro da lei de Deus que Moisés escreveu não era o Pentateuco mas um outro completamente diferente que o autor do Pentateuco inseriu a dado passo na sua obra, como se deduz [..] do que acabamos de dizer” (SPINOZA, 2008, p. 123). No nosso entender, a partir do método histórico-filológico do Spinoza, não só a tese de que Moisés foi o autor, como a tese das quatro fontes são imprecisas: “[...] não há propriamente um Pentateuco, como a tradição judaica defendia: cinco livros escritos por Moisés. O que há de fato é um (como resolvemos chamar!) Dodecateuco ou doze livros, resultado da compilação de um único historiador [...]. “Quem foi ele, não o posso dizer com absoluta certeza; suspeito, no entanto, que tenha sido Esdras, e há razões sérias para minha conjectura” (TTP, cap. VIII, p. 150; G, p. 126).” (CHAGAS, 2013, p. 151). 14 Sobre a história de Israel, temos como base Vasconcelos e Silva (2003). 41 Tudo se explica pelo pecado. Com efeito, os hebreus não devem acreditar que foram vencidos por erro de estratégia militar, por falta de condições geopolíticas favoráveis ou simplesmente por que o seu projeto expansionista esbarrou frente a um desejo de império mais forte do que o seu. Não para a teologia sacerdotal. Se foram vencidos, se sofrem é porque fizeram por merecer ao desobedecer às Leis do Deus Justo e foram de encontro à ordem por ele estabelecida. Se padecem, é por culpa, é porque pecaram. Agora, devem se resignar frente aos castigos e punições e voltar para o caminho reto se penitenciando e se tornando dócil às normas estabelecidas para a santidade. Com isso, a casta sacerdotal prospera frente à fragilização do ânimo dos indivíduos que se sentem não apenas derrotados, mas também culpados por tudo o que de desastroso aconteceu e, também, devedor de um Deus /Soberano exigente e punitivo. A engenhosidade e sagacidade do filósofo-teólogo-sacerdote judeu não se esgota com a criação de uma ordem moral do mundo para servir de alento e remédio a um povo doente e ferido de morte. Sua esperteza vai mais longe. Forjam um meio de desnaturalizar todos os aspectos da vida humana: criam as Escrituras Sagradas e a Revelação. Os relatos, narrativas de proezas e os poemas que contavam as histórias fantásticas de Deus e do seu povo, são apropriados, selecionados e costurados como se tratasse de uma história linear e de uma única imagem de Deus: o