UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JÚLIO DE MESQUITA FILHO‖ Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP RAFAEL CLARO DANIEL PEQUENA PRODUÇÃO DE CACHAÇA NO INTERIOR PAULISTA: A INFORMALIDADE EM QUESTÃO ARARAQUARA — S.P. 2016 RAFAEL CLARO DANIEL PEQUENA PRODUÇÃO DE CACHAÇA NO INTERIOR PAULISTA: A INFORMALIDADE EM QUESTÃO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras — UNESP/Araraquara, como requisito para Obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e movimento social Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Sapia de Campos Bolsa: CAPES ARARAQUARA — S.P. 2016 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Daniel, Rafael Claro PEQUENA PRODUÇÃO DE CACHAÇA NO INTERIOR PAULISTA: A INFORMALIDADE EM QUESTÃO / Rafael Claro Daniel — 2016 163 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Ricardo Luiz Sapia de Campos 1. Pequeno produtor. 2. Agricultura Familiar. 3. Informalidade. 4. Cachaça. 5. Habitus. I. Título. RAFAEL CLARO DANIEL PEQUENA PRODUÇÃO DE CACHAÇA NO INTERIOR PAULISTA: A INFORMALIDADE EM QUESTÃO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras — UNESP/Araraquara, como requisito para Obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e movimento social Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Sapia de Campos Bolsa: CAPES Data da defesa/ entrega:____/____/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Sapia de Campos Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ — UNESP/ Araraquara ______________________________________________________________________ Membro titular: Prof. Dr. Rodrigo Constante Martins Universidade Federal de São Carlos- UFSCar ______________________________________________________________________ Membro titular: Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ — UNESP/ Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ — UNESP Campus de Araraquara — SP- Faculdade de Ciências e Letras/ FCLar Aos meus avós, José Maria Claro e Maria Izabel Fernandes Claro. AGRADECIMENTOS Primeiramente e, em especial, aos meus avós José Maria Claro e Maria Izabel Fernandes Claro, sem os quais eu nada teria ou seria. Por todas as bênçãos, pela fé inabalável, amor sem limites, carinho e pelo apoio incondicional. Por terem sempre acreditado e por tanto terem sonhado e orado por mim. São vocês os melhores tesouros que um neto poderia ter e é por vocês que eu fiz, faço e continuarei fazendo tudo! À minha mãe, que sempre fez o possível e o impossível por seus filhos, guerreira, lutadora e que sempre acreditou em mim, confiando e apoiando todas as minhas decisões e escolhas. Por todo amor e atenção e, sobretudo, por me criar e permitir que eu me tornasse a pessoa e o profissional que me tornei: essa é a maior riqueza que herdei de ti. Ao meu pai, José Carlos Aparecido Daniel, que mesmo sem entender muito bem o sentido disso tudo sempre procurou acreditar e apoiar sem nunca questionar minhas escolhas. Ao meu irmão, Thiago Claro Daniel, que sempre me apoiou com seu carinho e abraços, comemorando as conquistas e não me deixando lamentar os erros. À minha amada Alice, minha cachaça e minha inspiração, por todo o apoio e por me aguentar nas crises e nos momentos de humor desagradável, suportando, mesmo diante de tantas dificuldades, minha impaciência e falta de sensibilidade, incentivando, acreditando e demonstrando seu orgulho por mim com elogios e palavras sempre sinceras e carinhosas. Aos meus filhos, Francisco e Elis, que na pureza de suas infâncias são todo o alicerce e a fonte de toda a força que um homem precisa para continuar! Às minhas tias Sonia Maria Claro e Izabel Aparecida Daniel, pelo apoio, incentivo e interesse. Ao meu orientador, Ricardo Luiz Sapia de Campo, que me deu a direção certa a seguir em momento no qual os caminhos me pareciam tão confusos e estranhos. Agradeço também ao nosso grupo de estudos Capitalismo Cognitivo, Ruralidade e Agricultura, à Andréia Roviero, Jéssica Aline Troiano e Lícia Nara Fagotti, pelos conselhos a auxílios com indicações de leituras. Ao amigo e mentor Landerson Batata, companheiro que cruzou meu caminho em alguma encruzilhada distante no tempo e sempre me acompanhou, me ensinado sobre a vida e sobre humildade. Foi de fundamental importância sempre tê-lo ao meu lado, por me fazer entender que meu lugar não é superior ao de ninguém e que essa vida sempre será um eterno aprendizado, seja na loucura das noites ou na sanidade das manhãs. Aos amigos Rafael Luis dos Santos, Fernando Almeida, Marco Aurélio Clemente, Denis Pallone, Luiz Otávio Wilmers Filho, Rafael Formenton Macedo e Victor Brigante, por me ouvirem falar sem parar nos bares e churrascos da vida, por beberem cachaça comigo e por me acompanharem nos alambiques sábados e domingos de manhã para comprar cachaça e tomar alguns tragos enquanto eu proseava com os artesãos. Aos amigos da República Bixo de Sete Cabeças, Edinho, Bruno, Bazza, Serjão, Topeira, Lucão, pelas saudáveis conversas muitas vezes regadas a cachaça e por todo o conhecimento que colhi estando junto a vocês. À Lívia Bocalon Pires de Moraes, à Daniela Rodrigues Alves de Lima, ao Gabriel Papa Ribeiro Esteves e ao Alexandre Aparecido dos Santos, pelas conversas e os conselhos. Aos professores Rodrigo Constante Martins e Renata Medeiros Paoliello pelas orientações na banca de qualificação e pela participação na defesa de mestrado, por todas as contribuições que me fizeram repensar a pesquisa e concluir essa dissertação Agradeço também à UNESP/FCLar e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa de mestrado, sem a qual não seria possível realizar essa pesquisa e esse curso. E por fim, aos próprios produtores de Cachaça de Alambique que venho conhecendo em minhas pesquisas, pelas histórias, pelas conversas e, sobretudo pela Cachaça, que antes de ser tema de uma pesquisa, é combustível para os caminhos da vida. “Nosso banco/Tá cotado No mercado/Exterior Então taxa/A cachaça A um preço/Assutador” (Chico Buarque, ―O Malandro‖, in A Ópera do Malandro) RESUMO O presente trabalho buscou compreender e debater a estrutura e o funcionamento informal da pequena e média produção de cachaça no interior do estado de São Paulo. Busquei entender e debater como o agente produtivo se caracteriza e se singulariza dentro do mercado de cachaça, compreendido este na sua dimensão social, de grandes singularidades e de competitividade discrepante. Foquei os produtores que não estão de acordo com a legislação vigente, e, portanto, aparecem como informais. Sustento a ideia de que a informalidade está relacionada ao habitus e as práticas dos produtores. A pesquisa desenvolvida se inseriu no debate sobre o perfil dos agentes produtores no contexto de uma reconfiguração do rural e pela transformação dos mercados e forma de produção de cachaça. O trabalho buscou entender e debater a informalidade como sendo uma forma de resistência alternativa às imposições burocráticas e à normatização das atividades. Palavras-chave: Pequeno produtor. Agricultura Familiar. Informalidade. Cachaça. Habitus. LISTA DE QUADROS Quadro 1 Classificação dos produtores de cachaça de alambique 50 Quadro 2 Exigências mínimas feitas para as instalações e equipamentos dos alambiques e engenhos produtores de cachaça e aguardente 84 Quadro 3 Alíquotas para os Tributos Federais nos Regimes de Lucro Real e Lucro Presumido 94 Quadro 4 Resposta dos produtores quando questionados se possuíam ou não registro no MAPA, quais eram estes registros e justificativas dadas 131 Quadro 5 Considerações dos produtores sobre os mercados regulamentados 136 LISTA DE TABELAS Tabela 1 TABELA DO SIMPLES NACIONAL: Alíquotas e Partilha do Simples Nacional — Indústria 92 Tabela 2 Distribuição de Classes 97 Tabela 3 Classe por capacidade do recipiente 97 LISTA DE FOTOS Foto 1 Moenda de cana-de-açúcar 52 Foto 2 Dornas de Fermentação 54 Foto 3 Alambique de Cobre 55 Foto 4 Coluna de destilação de uma grande destilaria 56 Foto 5 Barris utilizados para o envelhecimento 58 Foto 6 Barris utilizados para o envelhecimento 59 Foto 7 Cachaças engarrafadas e local de engarrafamento 60 Foto 8 Cachaças engarrafadas e local de engarrafamento 60 Foto 9 Sítio São Francisco – Cachaça Beija-Flor (Guarapiranga – SP) 155 Foto 10 Sítio São Francisco – Cachaça Beija-Flor (Guarapiranga – SP) 155 Foto 11 Casa da Cachaça (Brotas-SP) 155 Foto 12 Produtor da Cachaça Beija-Flor e Cachaça Vanalli, Sr. Luiz Antonio Vanalli (Guarapiranga – SP) 156 Foto 13 Produtor da Cachaça Beija-Flor e Cachaça Vanalli, Sr. Luiz Antonio Vanalli (Guarapiranga – SP) 156 Foto 14 Produtor da Cachaça Beija-Flor e Cachaça Vanalli, Sr. Luiz Antonio Vanalli (Guarapiranga – SP) 156 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Componentes básicos de uma moenda 51 Figura 2 Constituição esquemática de uma moenda 52 Figura 3 Esquema de um conjunto de alambique 56 Figura 4 Esquema de uma coluna de destilação 57 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AMPAQ Associação Mineira de Produtores de Cachaça de Qualidade APACERJ Associação dos Produtores e Amigos da Cachaça do Estado do Rio de Janeiro APAR Associação Pernambucana do Produtores de Aguardente de Cana e Rapadura APPCA Associação Paulista dos Produtores de Cachaça de Alambique APRODECANA Associação dos Produtores de Cana-de-Açúcar e Seus Derivados no Estado do Rio Grande do Sul BPF Boas Práticas de Fabricação CSLL Contribuição Social sobre o Lucro Líquido CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas CNPJ Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas COFINS Contribuição para Financiamento da Seguridade Social CPF Cadastro de Pessoas Físicas EPIs Equipamentos de Proteção Individual EPPs Empresas de Pequeno Porte IBTP Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário ICMS Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços IE Inscrição Estadual INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia IINPI Instituto Nacional de Propriedade Industrial INSS Imposto Nacional da Seguridade Social IPI Imposto sobre Produtos Industrializados IRPJ Imposto de Renda de Pessoas das Jurídicas MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MEs Microempresas MMA Ministério do Meio Ambiente MTE Ministério do Trabalho e Emprego NCM Nomenclatura Comum do Mercosul OCP Organismos de Certificação de Produtos OIT Organização Internacional do Trabalho PIS Programa de Integração Social PNCC Programa Nacional de Certificação da Cachaça RAC Requisitos de Avaliação da Conformidade RT Responsabilidade Técnica SEBRAE Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SFA Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento SINDBEBIDAS Sindicato das Indústrias de Cerveja e Bebidas em Geral do Estado de Minas Gerais SRFB Secretaria da Receita Federal do Brasil ST Substituição Tributária SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 15 1 INTRODUÇÃO E METODOLOGIA .............................................................................. 17 1.1 Introdução ao tema da pesquisa: breve histórico da agroindústria da cachaça .......... 17 1.2 Introdução ao problema da pesquisa .......................................................................... 21 1.3 Metodologia de pesquisa ........................................................................................... 23 2 OS PRODUTORES DE CACHAÇA ARTESANAL NO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO ............................................................................................................................ 30 2.1 Idade dos produtores, êxodo rural e a preocupação com a sucessão das atividades. . 31 2.2 A questão da escolaridade enquanto resultado de um paradigma.............................. 33 2.3 A propriedade rural e a forma de organização do trabalho ........................................ 36 3 A PRODUÇÃO DE CACHAÇA E O MERCADO DA CACHAÇA .............................. 49 3.1 Cachaça industrial vs. cachaça artesanal .................................................................... 49 3.2 A fabricação da cachaça............................................................................................. 49 3.3 Saber fazer e o conhecimento produtivo .................................................................... 60 3.4 As ―boas‖ e as ―más‖ práticas de fabricação ............................................................. 64 3.5 Os valores e os preços da cachaça ............................................................................. 67 3.6 O mercado de cachaça ............................................................................................... 70 4 LEGISLAÇÃO DA CACHAÇA: REGULAMENTAÇÃO DE PRODUTORES, CERTIFICAÇÃO DOS PRODUTOS E TRIBUTOS. ............................................................. 79 4.1 A regulamentação das atividades produtivas ............................................................. 79 4.2 A certificação da cachaça de qualidade. .................................................................... 86 4.3 Tributação da cachaça. ............................................................................................... 89 5 A INFORMALIDADE NA PRODUÇÃO DE CACHAÇA ARTESANAL. ................. 102 5.1 A informalidade e a teoria........................................................................................ 102 5.2 Os objetivos da informalidade ................................................................................. 108 5.3 A trajetória social dos produtores artesanais de cachaça ......................................... 112 5.3.1 Seu Felipe ......................................................................................................... 113 5.3.2 Seu Joaquim e seus três filhos .......................................................................... 115 5.3.3 Seu Zé ............................................................................................................... 117 5.3.4 Seu Walter ........................................................................................................ 118 5.3.5 Seu Tonico ........................................................................................................ 120 5.3.6 Seu Lucas .......................................................................................................... 121 5.3.7 Seu Jorge .......................................................................................................... 123 5.3.8 Seu Lucio .......................................................................................................... 125 5.4 A informalidade para os produtores ......................................................................... 128 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 140 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 144 Apêndice A — Fotografias ..................................................................................................... 152 Apêndice B — Questionário................................................................................................... 155 15 APRESENTAÇÃO A pesquisa aqui apresentada ocupou-se em investigar os possíveis motivos que levam ao alto percentual de informalidade entre produtores de cachaça artesanal no país. A investigação teve um lócus empírico específico — produtores concentrados em alguns municípios do interior do estado de São Paulo — e as considerações obtidas estão apresentadas nesta dissertação, organizada em cinco seções principais. Na seção 1, ―Introdução e Metodologia‖, apresento uma breve introdução histórica ao tema da cachaça e outra sobre o problema desenvolvido e investigado na pesquisa, assim como, a metodologia utilizada na elaboração na pesquisa, a relação teoria e pesquisa e o texto dissertativo. Na segunda seção, ―Os produtores de cachaça artesanal no interior do estado de São Paulo‖, apresento as principais características dos produtores entrevistados a partir do ponto de vista de algumas questões abordadas pela sociologia rural. Foi dado destaque a critérios tais como idade, escolaridade, extensão da propriedade, como se organiza o trabalho e se exercem ou não outra atividade além da produção de cachaça. Na terceira seção, ―A produção de cachaça e o mercado da cachaça‖, procurei demonstrar de que modo ocorre a produção da bebida, diferenciando as formas industriais das artesanais de produção, primeiro de uma maneira técnica e depois de modo qualitativo, relacionando os métodos produtivos à própria realidade dos produtores. Em seguida, procurei demonstrar questões relacionadas ao preço da bebida e como ele é fixado pelos produtores, explicitando as determinações utilizadas por eles na própria forma como se organiza o mercado, cuja descrição coloca em destaque o papel do consumidor nessa organização. Na quarta seção, ―Legislação da cachaça: regulamentação de produtores, certificação dos produtos e tributação‖, realizei uma explanação dos processos de legalização e certificação, apontando o que a legislação exige e quais os passos que um produtor deve seguir para legalizar seu negócio, demonstrando a complexidade desses processos. Em seguida, busquei simplificar qual a tributação estabelecida para bebidas alcoólicas, em especial a cachaça e a aguardente de cana-de-açúcar, e em quais regimes de tributos pode se inserir o pequeno e médio produtor. Mostrar a síntese do regime tributário permitiu compreender a complexidade do cálculo desses tributos, de que modo eles incidem sobre o preço final dos produtos interferindo no faturamento das empresas. A partir disso, foi possível 16 elaborar um esquema de possibilidades úteis para demonstrar de maneira objetiva os motivos materiais que levam ao alto percentual de informalidade existente entre os produtores de cachaça artesanal. Na quinta e última seção, ―A informalidade na produção de cachaça artesanal‖, busquei desenvolver um capítulo no qual relaciono teoria e pesquisa empírica, demonstrando de que modo a questão da informalidade é e foi tratada por outros estudiosos do tema, definindo melhor o agente estudado a partir deste referencial teórico. O objetivo é apresentar a pesquisa de campo, as trajetórias dos agentes estudados e a apresentação da entrevista qualitativa, tendo sempre em vista a questão da informalidade, de forma a defini-la a partir das características dos produtores, de suas diferenças e similaridades. 17 1 INTRODUÇÃO E METODOLOGIA 1.1 Introdução ao tema da pesquisa: breve histórico da agroindústria da cachaça A cachaça é o destilado mais consumido no Brasil. Entretanto, dos seus quase 1,4 bilhões de litros produzidos anualmente, apenas 400 milhões (30%) são de produção artesanal, sendo o restante de produção industrial (980 milhões de litros). Praticamente 98% dos produtores de cachaça no país são de pequeno e médio portes. Esses produtores geram algo em torno de 600 mil empregos diretos ou indiretos, porém, apenas 15% das 30.000 empresas produtoras (entre indústrias e alambiques) são registradas no MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), de forma que há algo em torno de 25.500 (85%) produtores de cachaça não legalizados no Brasil. A grande maioria dos produtores é representada por pequenos estabelecimentos, e esses pequenos produtores ou produtores artesanais são formados por empresas familiares, as quais, em muitas vezes, têm na produção de cachaça uma complementação de renda, principalmente na entressafra agrícola (SEBRAE, 2008). A importância histórica da cachaça está justamente relacionada ao início da colonização portuguesa no Brasil, quando o explorador Gonçalo Coelho, em 1502, trouxe algumas mudas de cana-de-açúcar para a colônia. A cana-de-açúcar é originária da Ásia e já havia sido cultivada pelos portugueses na Ilha da Madeira durante o reinado de Dom Henrique (1394-1460). É muito provável que o surgimento da cachaça no Brasil tenha se dado antes da institucionalização do regime das Capitanias Hereditárias. Há registros de que, em 1516, já havia significativa plantação de cana nas Sesmarias da Ilha de Itamaracá e do Canal de Santa Cruz, no litoral norte do Recife. O primeiro engenho que se tem registro no Brasil foi montado por Pedro Capico, na feitoria de Itamaracá. Foi encontrado documento na alfândega de Lisboa registrando a chegada, em 1526, de um carregamento de açúcar, oriundo de Itamaracá. Em 1532, chegaria ao Brasil a expedição de Martim Afonso de Souza, que fundou a vila de São Vicente, no litoral de São Paulo, e ali iniciou o plantio de cana e construção dos engenhos de Madre de Deus, do Governador e de São João, considerados marcos na colonização efetiva do país. A partir dessa época, começaram a se instalar os primeiros engenhos de açúcar no Brasil. Dessa forma, a cachaça teria surgido em algum engenho do litoral pernambucano, entre 1516 e 1526, ou de São Paulo, em 1532 (WEIMANN, 2009; MARTINS DA SILVA, 2006). 18 A produção de cachaça cresceu com a intensificação das viagens marítimas, decorrentes do comércio de açúcar e outras riquezas da nova terra e da crescente demanda por escravos africanos. O comércio de açúcar, entretanto, revelou-se mais rentável no nordeste brasileiro, o que fez com que os engenhos ao redor do Rio de Janeiro e do litoral paulista passassem a se dedicar mais à fabricação de cachaça. A produção da bebida logo originou um próspero comércio que desestabilizou o mercado português da bagaceira, bebida obtida a partir de destilados alcoólicos simples de bagaço de uva. Tal situação levou a um decreto régio, em 1635, proibindo o comércio da cachaça. Essa interdição transformou-se em taxação, resultando em seguidas rebeliões, como a Revolta da Cachaça, em 1660, em São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. Os impostos abusivos sobre a cachaça também contribuíram para a revolta que ocorreu em Vila Rica, liderada por Felipe dos Santos, contra a Coroa portuguesa que ordenou esquartejá-lo. O mercado interno ávido por cachaça surgiu no século XVIII com a descoberta do ouro em Minas Gerais. A bebida era utilizada como reforço à alimentação dos escravos. Isso levou a uma Ordem Régia, de 12 de junho de 1748, proibindo o funcionamento dos alambiques da Capitania de Minas por conflitarem com os interesses do Reino e prejudicarem o trabalho escravo nas minas de extração de ouro. Outros impostos referentes ao comércio e à fabricação da bebida surgiram nesse mesmo século, resultantes de um subsídio para reconstrução de Lisboa, que havia sido atingida por um terremoto em 1756, e do chamado ―subsidio literário‖ estabelecido no ano de 1773, em Portugal, para sustentar os ―professores régios‖. ―Esses antecedentes ajudaram a fazer da cachaça um símbolo de resistência à dominação da metrópole. Brindar com cachaça representava uma atitude política de luta contra a opressão portuguesa‖. Esse quadro somente começou a mudar com a vinda da Corte para o Brasil, em 1808, quando a cachaça se tornou um dos principais produtos de nossa economia (WEIMANN, 2009). Com o ciclo do café, a partir do século XIX até a década de 1930, a cachaça começou a sofrer uma baixa em sua importância econômica, passando também a ser discriminada a partir da Proclamação da República, em 1889, como símbolo de decadência do passado imperial. Entretanto, segundo Cavalcante (2011), em São Paulo, a expansão das fazendas de café acabou contribuindo para o incremento da produção de aguardente. Isso porque a vinda de tantos imigrantes acabou resultando em um amplo mercado consumidor de aguardente. 19 O status da cachaça como símbolo nacional seria recuperado em 1922 com o Movimento Modernista, ao lado do samba, do carnaval e da feijoada. A partir de então, a importância cultural da cachaça passou a ser divulgada pelo meio artístico. Na literatura, por exemplo, o poema ―Relicário‖, de Oswald de Andrade (1970), em 1924, trata do tema: No baile da corte Foi o conde d'Eu quem disse Pra Dona Benvinda Que farinha de Suruí Pinga de Parati Fumo de Baependi É comê bebê pitá e caí. Na música, surge um movimento de divulgação da cachaça a partir de 1935 com ―Camisa Listrada‖, dos irmãos Valença, canção eternizada na voz de Carmen Miranda, seguindo assim com várias outras produções até os dias atuais, como a clássica ―Marvada Pinga‖, de Inezita Barroso. A cachaça artesanal de qualidade passou a ser comercializada e ganhar o mercado em 1943, quando Anísio Santiago, fazendeiro de Salinas, no norte de Minas Gerais, começou a vender a Cachaça Havana. A marca tornar-se-ia, anos depois, uma das principais do país e sinônimo de cachaça artesanal de qualidade. Porém, a partir de 2001, a gigante francesa Pernod-Ricard, um conglomerado que atua no ramo de bebidas alcoólicas, proprietária da marca do rum Havana Club, ganhou uma ação na justiça requerendo o uso exclusivo do nome Havana. O pequeno produtor da região de Salinas, que comercializava a Cachaça Havana, foi obrigado a rotular sua cachaça com outro nome: a partir daí tornou-se Cachaça Anísio Santiago. Porém, a partir de 2010, o produtor conseguiu na justiça derrubar a decisão e voltou a usar o nome Havana, resultando no encarecimento do valor da Cachaça Anísio Santiago. Outro exemplo de cachaça artesanal de qualidade, que alcançou grande representatividade no comércio de bebida, é a Cachaça Maré Alta, fabricada entre os anos de 1960 e 2005. Essa cachaça era produzida por Dom João Maria de Orleans e Bragança, herdeiro direto da família imperial, neto da princesa Isabel, que aportou à cidade de Parati na década de 1960 e adquiriu uma gleba de terra para o fabrico desta cachaça. Depois de tantas perseguições da Corte, um descendente da família real entregou-se aos encantos da cachaça e 20 passou a produzir o produto na região histórica de Parati, onde chegou a ter por volta de 150 alambiques no século XVIII. 1 Por maior que seja o esforço de alguns autores (CASCUDO, 1986; CÂMARA, 2004; TRINDADE, 2006; WEIMANN, 2009) em personificar a cachaça como um agente ou sujeito responsável por transformações históricas e relações sociais, os verdadeiros responsáveis foram agentes e sujeitos humanos, os quais fizeram uso da cachaça durante suas ações (AVELAR, 2009). Segundo Avelar (2009; 2010), esses autores fizeram uso de um recurso narrativo que buscava elevar a cachaça à condição de sujeito dos processos históricos noticiados, o que resultou em um deslocamento de atributos do nível das relações entre os indivíduos, apresentando-os naturalmente como derivados da própria cachaça. Entretanto, segundo o autor, é importante compreender que ―objetos materiais só dispõem de propriedades imanentes de natureza físico-química: matéria-prima, peso, densidade, textura, sabor, opacidade, forma geométrica, etc.‖, e que, os sentidos e valores não advêm das coisas, ―mas da sociedade que os produz, armazena, faz circular e consumir‖ (2009, p. 3). Assim, defende que o objetivo de Luís da Câmara Cascudo (1986), por exemplo, autor do Prelúdio da Cachaça, primeiro livro que se dedicou a tratar da cachaça como tema de pesquisa, foi narrar a história da cachaça do ponto de vista da cultura popular sertaneja, vinculando-a à identidade nacional do Brasil. A cachaça fora um instrumento identitário [...], mas não porque o povo insistiu em ingeri-la para se impor diante do estrangeiro e suas bebidas. Não porque expressa autonomia do homem sertanejo que se orgulha de coisas típicas do seu cotidiano. A aguardente compõe a identidade nacional porque mediou um conjunto de acontecimentos históricos diferentes que variaram em cada região e tempo. Faz parte da identidade nacional não como agente histórico, mas como elemento que intermediou relações entre sujeitos e forneceu inteligibilidade à interação entre eles‖. (AVELAR, 2010, p. 18). Por outro lado, os autores contemporâneos (CÂMARA, 2004; TRINDADE, 2006; WEIMANN, 2009) procuram iconizar o produto, ou seja, torná-lo um objeto de consumo. Seus livros procuram formar consumidores exigentes, distintos, interessados em se distinguir socialmente como um especialista em cachaça, procuram tornar os leitores versados no destilado de cana, ensinando-lhes processos de fabricação, mostrando-lhes as regiões produtoras, a situação do produto na economia nacional e o modo de conhecer uma cachaça de qualidade, assim como a forma de se estabelecer padrões organolépticos e definir o valor 1 As informações foram retiradas do site: http://www.mapadacachaca.com.br. http://www.mapadacachaca.com.br/ 21 simbólico e econômico dessa ―nova‖ cachaça. Entende-se por ―nova‖ cachaça o novo significado simbólico do produto, quando este deixa de ser algo consumido somente por classes mais baixas para atingir um consumidor muito mais exigente. Aqui, entendemos que esse esforço por parte dos autores contemporâneos em tornar a cachaça, além de um símbolo da cultura nacional, um sujeito responsável pelos processos históricos, desconsidera as ações dos agentes sociais e das instituições, únicas responsáveis pelo desenvolvimento dos processos históricos em volta da cachaça, ainda que essa ênfase seja importante para ampliar o mercado do produto. Diante disso, compreendo que a agroindústria da cachaça ao longo dos séculos promoveu, desde o início da colonização, disputas provocadas pelas investidas dos colonizadores na produção, distribuição, troca e consumo da bebida, sendo que os responsáveis por essas disputas e conflitos foram justamente aqueles agentes presentes na produção dos engenhos (escravos e trabalhadores livres), nas redes de comércio locais e externos, nos canais de comunicação, etc. Esta é a principal razão pela qual empreendi esta pesquisa: compreender os sujeitos responsáveis pelas atividades produtivas — produtores de cachaça artesanal que se encontram na informalidade — e as instituições envolvidas na regulamentação desta, assim como a importância dos órgãos atuantes direta ou indiretamente junto aos sujeitos dos nossos estudos, como o SEBRAE e centros de pesquisas. No entanto, para se chegar a esta compreensão tomei como ponto de partida a perspectiva dos produtores. 1.2 Introdução ao problema da pesquisa A partir dos números expostos anteriormente, alguns questionamentos começaram a surgir. Dentre eles, o mais central nesta pesquisa seria o porquê de tantos produtores estarem na informalidade e não possuírem registro de suas atividades. As primeiras hipóteses elaboradas levavam em conta, por um lado, dificuldades estruturais apresentadas pelos produtores diante de questões tais como a alta burocratização a ser enfrentada no momento da regulamentação e, também, o alto custo deste processo, gastos com documentos, adaptações na estrutura dos engenhos e alambiques, entre outros, além da alta carga tributária que acompanha a produção e o comércio de bebidas alcoólicas. Por outro lado, seriam as práticas sociais dos produtores que apresentavam resistência à formalização das atividades produtivas, em especial contra a própria burocracia do Estado. Essas práticas, geralmente informais, seriam derivadas de um habitus transmitido ao longo das gerações. Esta última hipótese foi a 22 que exigiu maior dedicação para ser compreendida, já que demandou um contato pessoal com os produtores e não fora encontrada em nenhuma das referências bibliográficas consultadas. A questão que permeia toda questão da informalidade está intimamente relacionada aos problemas advindos da questão rural no Brasil. Os produtores de cachaça artesanal são caracterizados pela organização familiar das atividades produtivas e, portanto, sujeitos aos problemas encontrados nesse meio, como baixa escolaridade, evasão de jovens, dispersão de políticas públicas, dominação exercida por grandes proprietários de terra e frutos da chamada ―modernização conservadora‖. Além disso, o próprio mercado de cachaça é composto de uma série de características que determinam a posição dos agentes produtivos dentro dele, de forma que todos os produtores informais lidam com a própria estruturação do mercado. Este, por sua vez, sofre influência dos agentes produtivos que dele participam, sendo esses divididos em produtores industriais e artesanais regulamentados ou informais. Os produtores informais são os que atuam de maneira mais indireta, pois suas atividades produtivas e de comércio são cerceadas pelas determinações da legislação. Além disso, o estigma da cachaça constituído ao longo dos anos determina a forma pela qual os diferentes tipos de consumidores se movimentam dentro do mercado. Mesmo que tenha havido, principalmente nas últimas duas décadas, uma valorização simbólica positiva sobre a cachaça, em especial a cachaça artesanal, com o seu reconhecimento como produto legitimamente brasileiro, que por sua vez tem resultado na formação de consumidores cada vez mais refinados e exigentes, para a maioria da população, a cachaça continua sendo reconhecida como uma bebida popular consumida somente por classes com baixo poder aquisitivo. Por um lado, essas questões podem resultar em dificuldades para o pequeno produtor, que para expandir sua produção precisa passar por complexos e caros processos de regulamentação e de certificação e depois arcar com altíssimos tributos na manutenção do status adquirido, o que para as pequenas unidades familiares tem sido algo praticamente impossível. Por outro lado, a transformação pela qual passa, nos últimos anos, o estado de estigmatização acaba por resultar em consumidores de confiança, que reconhecem nas cachaças artesanais, mesmo de produções informais, grande qualidade e se tornam clientes e amigos dos produtores. 23 Esses diversos fatores garantem para as ciências sociais um campo de estudo interessante e vasto de informações que envolvem questões culturais, sociais, políticas e simbólicas na concepção dos sujeitos ali presentes. Assim, propus-me realizar um estudo de caso, direcionado a um conjunto de produtores específico, localizados em alguns municípios da Região Administrativa Central do estado de São Paulo, com exceção de um, pertencente à região de Campinas. Esse estado é reconhecido por sua grande participação na produção industrial de cachaça no país, mas é lugar também de mais de uma centena de pequenas unidades de produção. Este estudo, mesmo que não corresponda a uma compreensão absoluta do problema da informalidade presente na produção de cachaça no país, ao menos pretende dar um norte em relação ao problema e possibilitar a elaboração de futuros estudos com um lócus empírico mais amplo. 1.3 Metodologia de pesquisa O primeiro momento da pesquisa ocupou-se de um levantamento bibliográfico de temas relacionados à cachaça: sua história e etnologia, sua importância cultural na realidade do país; além disso, procurou dar conta do conhecimento das técnicas de produção e, sobretudo, o entendimento da legislação e da tributação do produto e dos processos de regulamentação e certificação. Com isso, o objetivo foi compreender, a partir dessas questões, o modus operandi da própria agroindústria do setor ao longo da história e o atual momento da cachaça. O foco principal foi compreender a extensa e complexa legislação do produto, os processos de regulamentação e a tributação vigente para a cachaça. Tendo em vista que um dos propósitos centrais do trabalho foi o de compreender porque a informalidade é um traço tão marcante nos produtores artesanais de cachaça, o entendimento das leis e desses processos era necessário para a abordagem dos produtores em campo. Foi também necessário transcrever essa legislação e esses processos para que haja ciência da tamanha complexidade e da quantidade de burocracia envoltos na regulamentação e na manutenção da cachaça formal. O segundo momento da pesquisa concentrou-se em trabalho de campo com produtores localizados em sete municípios do interior do estado de São Paulo, quais sejam, Taquaritinga, Dobrada, Araraquara, Ribeirão Bonito, Ibaté, São Carlos e Brotas. Seguindo o modelo de 24 Becker (1993), três estágios foram executados durante o trabalho de campo: seleção e definição de problemas e conceitos; controle sobre a frequência e a distribuição de fenômenos, de forma a conter e interpretar as variações que surgiram com a observação, as entrevistas e as conversas informais nos alambiques; posteriormente, ocorreu uma construção de modelos que se preocupam exclusivamente com a questão da informalidade produtiva; e, com o término da pesquisa de campo foi realizado o processo de escrita, pós-análise dos dados observados e coletados nas entrevistas (BECKER, 1993). O estado de São Paulo, onde está localizado o lócus da pesquisa, é aquele que mais produz cachaça no país, representando 46% da produção. E, mesmo que a maioria desta seja de produção industrial, existem inúmeros alambiques no estado. Entretanto, a maioria das referências encontradas sobre o tema cachaça quase nunca mencionam o estado de São Paulo como um grande produtor de cachaça artesanal ou de alambique, fato esse que se deve à alta produção industrial. ―Destaca-se a participação do Estado de São Paulo na produção nacional de cachaça, posicionando-se como líder no ranking no processo industrial, enquanto no artesanal, ocupa o segundo lugar, sendo superado apenas por Minas Gerais.‖ (VERDI, 2006, p. 96) Devido ao fato de a maioria dos produtores estarem na informalidade e, por isso, ―escondidos‖, não era possível localizá-los através de fontes online ou em bancos de dados. Assim, busquei ajuda junto aos pesquisadores do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Qualidade da Cachaça da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da UNESP, Campus de Araraquara2, os quais me disponibilizaram alguns contatos entre os que vinham participando nos últimos dez anos do Concurso e Encontro da Cadeia Produtiva da Cachaça, realizado pelo Centro. Outros foram localizados a partir de indicações dos próprios produtores. 2 ―O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Qualidade da Cachaça tem por objetivos unir pesquisadores, profissionais, estudiosos, técnicos, produtores de cachaça e entidades de apoio ao setor agroindustrial através de atividades conjuntas e planejadas visando: Desenvolvimento de Projetos; Formação de pesquisadores; Realização de cursos teóricos e práticos com vistas a uma melhor qualificação do setor; Estimular o desenvolvimento da qualidade de cachaça e de seu efetivo controle por parte dos produtores e órgãos oficiais dessa área; Estabelecer atividades de consultoria técnica específica a produtores de cachaça; Criação e manutenção de um banco de dados do setor de produção de cachaça; Divulgação constante e atualizada da produção técnica e científica da área.‖. Texto informado pelo website do Centro, disponível em: http://www2.fcfar.unesp.br/#!/unidade-auxiliar/alimentos-e-analise-ambiental/centro-de-pesquisa-e- desenvolvimento-da-qualidade-da-cachaca/centro/. Acesso: 04/05/2015 http://www2.fcfar.unesp.br/#!/unidade-auxiliar/alimentos-e-analise-ambiental/centro-de-pesquisa-e-desenvolvimento-da-qualidade-da-cachaca/centro/ http://www2.fcfar.unesp.br/#!/unidade-auxiliar/alimentos-e-analise-ambiental/centro-de-pesquisa-e-desenvolvimento-da-qualidade-da-cachaca/centro/ 25 Via website do MAPA3, que disponibiliza em sua página um arquivo com a lista completa de estabelecimentos produtores de bebidas industrializadas produzidas para o consumo humano registrados no Brasil no ano de 2014 4 , pude observar o número de estabelecimentos registrados em todo país que produz cachaça ou aguardente de cana-de- açúcar, assim como todos os outros tipos de bebidas alcoólicas. Foi elaborada outra lista a partir desta com os estabelecimentos (razão social) e os produtos (cachaça, aguardente e também alguns derivados — marcas) localizados somente no Estado de São Paulo, assim como seus respectivos municípios, e o número que obtive foi de 216 estabelecimentos entre indústrias e pequenos e médios produtores (alambiques), parte desses com um número reduzido de produtos registrados (de 1 a 5 produtos) outros às vezes com mais de 30 e ou até mesmo com mais de 100 produtos registrados5. Em pesquisa realizada na Faculdade de Farmácia por Ricardo Augusto Bonotto Barboza, com tese defendida em 2011 e intitulada Transferência de tecnologia e atividades de extensão universitária: análise do projeto de Capacitação de Pequenos Produtores de Cachaça do Estado de São Paulo, o autor disponibilizou alguns números. No projeto de capacitação estudado por Barboza, o trabalho foi realizado com 64, 84, 71, 98 e 115 produtores durante os anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, respectivamente, estando esses concentrados em dezenas de municípios que também participaram do projeto de capacitação. O estudo sugere que o número de produtores informais que se encontram na área rural do estado de São Paulo é bastante grande. Ainda assim, não é possível determinar número ou percentual exato, só o que posso afirmar é que com os oito produtores trabalhados nessa pesquisa, somente dois deles têm legalizados a produção e os produtos, até porque foram os únicos encontrados na lista do MAPA. Também é possível mencionar a identificação do registro de um terceiro, que se recusou a gravar entrevista e responder o questionário, mas que durante as conversas informais nos disse que vendia cachaça a granel para indústrias localizadas no município de Pirassununga, SP, o que explica o registro. Porém, não havia marca do produto, somente a identificação dos tipos de cachaça prata e cachaça ouro. 3 Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/vegetal/qualidade-seguranca-alimentos-bebidas/bebidas. Acesso: 15/05/2015 4 Até o presente momento, não havia disponível uma lista referente ao ano de 2015. 5 É importante dizer que mesmo com tantos produtos, cachaça e aguardente são somente alguns, o que mostra que esses estabelecimentos (geralmente, grandes destilarias) produzem uma infinidade de bebidas alcoólicas, as mais variadas possíveis: vodca, catuaba, conhaque, bebidas e coquetéis com sabores e adocicados, entre outros. http://www.agricultura.gov.br/vegetal/qualidade-seguranca-alimentos-bebidas/bebidas 26 Por outro lado, observei que alguns produtores que garantiram a legalização não se encontravam na lista do ministério referente ao ano de 2014. Podem ser dois os motivos: teria havido omissão por parte dos produtores, o que é bastante justificável, tendo em vista o receio que existe da fiscalização, a qual poderia resultar em multas, proibição das vendas e a interrupção das atividades produtivas; ou os produtores não fizeram renovação dos registros, o que resultou na inexistência dos dados deles na lista consultada. No caso de um produtor em especial, que afirmou que o produto fora registrado 40 anos atrás, é possível que ele não tenha conhecimento de que o produto precisa ser renovado a cada 10 anos ou simplesmente tenha ignorado essa questão por já ter um círculo de mercado confiável. Assim, a pesquisa foi realizada com o total de sete produtores de cachaça artesanal ou de alambique localizados na área rural dos municípios de Taquaritinga, Dobrada, Araraquara, Guarapiranga, Ibaté, São Carlos e Brotas, interior do estado de São Paulo. A priori, procurei dar preferências em visitar somente produtores informais e com uma produção que não excedesse os 10 mil litros anuais. Porém, a capacidade produtiva dos agentes acabou por exceder algumas vezes bem mais que o esperado, por isso esse critério deixou de ser utilizado. Os questionamentos relacionados às condições estruturais dos produtores foram abordados a partir de alguns temas pertinentes à sociologia rural, como idade, escolaridade, êxodo rural, sucessão das atividades, extensão da propriedade, pluriatividade e, principalmente, o debate sobre agricultura familiar, tendo como diálogo principal, neste último caso, autores como Ricardo Abramovay (2007, 1997), Maria José Carneiro (2006; 1999; 1998) e Wanderley (2009; 2004). Além disso, buscou-se compreender de que modo os produtores se relacionam com o mercado e com o significado da informalidade. Assim como Antônio Candido (1982, p. 20) busca compreender de que modo ocorre ―a obtenção dos modos de vida‖ dos agrupamentos caipiras que estudou, sendo esse ―um aspecto da vida social‖ dos indivíduos, o qual, além de um ―tema sociológico‖ é considerado um ―problema social‖, é assim que compreendo o alto percentual de informalidade presente nos produtores artesanais de cachaça em todo o país. Para compreender as possíveis motivações ou interesses pessoais dos produtores referentes à questão da informalidade — sendo essas as questões mais subjetivas que determinam as escolhas relacionadas à regulamentação ou não dos processos produtivos — e de que modo esses articulam as diferentes formas de capitais que possuem (econômico, cultural, social e simbólico), utilizo a sociologia relacional de Bourdieu (1983; 1996; 2001a; 27 2001b; 2003; 2004), trabalhando com os conceitos de habitus e de campo, de forma a esboçar o espaço social no qual esses produtores se inserem. Segundo Setton (2012, p. 64) o conceito de campo faz parte do corpo teórico da obra de Bourdieu, noção que traduz sua concepção social. ―Campo seria um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder‖. Para Bourdieu, ―a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias‖. Segundo Bourdieu, campos são espaços estruturados de posição cujas propriedades dependem da posição dos agentes nesses espaços (BOURDIEU, 1983, 2003). Campos são os espaços onde se manifestam as relações de poder, podendo ser estruturados em dois polos: os dominantes e os dominados (BOURDIEU, 1983). Para o autor, os campos são ainda caracterizados pela busca de uma afinidade específica, que seja ―capaz de favorecer investimentos igualmente absolutos por parte de todos que possuem as disposições (habitus) requeridas‖. Além disso, ―a lógica específica de um campo se institui em estado incorporado sob a forma de um habitus específico‖ (BOURDIEU, 2001a, p. 21). Habitus é uma noção que se liga, simultaneamente, à história dos campos e à história social dos sujeitos, é produto dos condicionamentos sociais e tende a reproduzir a lógica objetiva desses condicionamentos, uma espécie de máquina transformadora que faz com que os sujeitos reproduzam as condições sociais da sua própria produção, porém de maneiras relativamente imprevisíveis. Sendo produzido pela História, o habitus é um princípio de invenção que opera relativamente ao seu modo (BOURDIEU, 2003, p.140). Por operar relativamente ao seu modo, esse sistema de disposições adquiridas na relação com um determinado campo e aos espaços sociais que o constitui, o habitus, é algo duradouro (BOURDIEU, 2003). O que pode determinar as transformações duradouras do habitus são os ajustamentos incessantemente impostos pelas necessidades de adaptação a situações novas e imprevistas. Os ajustamentos ocorrem inclusive porque o próprio habitus define a percepção da situação — condição permissiva da realização do habitus — que o determina. Assim, o habitus possui capacidades de assimilação e de adaptação, realizando de modo ininterrupto esses ajustamentos ao mundo em que se encontra (BOURDIEU, 2003, p. 141-142). Sendo o habitus um gerador de práticas e representações distintas e distintivas (BOURDIEU, 2008), de ações, comportamentos e escolhas individuais, produtos de uma relação entre um habitus e as pressões e estímulos de uma conjuntura, Bourdieu (2004) chama 28 a atenção para a existência de interesses — motivações inerentes a todo indivíduo dotado de um habitus em um determinado campo — variáveis segundo o tempo e o lugar. Assim, há tantos interesses quanto campos, espaços sociais de jogo historicamente construídos, com suas instituições específicas e suas leis próprias de funcionamento (BOURDIEU, 2004, p. 126). Assim, permeado ao mercado de cachaça, encontra-se vinculado o campo do poder, que atua junto do campo burocrático ou através da burocracia (2008), ou seja, através da normatização das atividades e das práticas e da cobrança de tributos, mais especificamente através de instituições responsáveis pela execução e incentivo à legitimidade da normatização. Considerando a existência desse espaço, minha hipótese é de que existe um interesse comum a todos os produtores, sendo esse o capital econômico propriamente. O que se encontra em disputa, portanto, dentro desse espaço, é principalmente o direito de produzir e comercializar a cachaça ou mesmo a busca pelo capital econômico e simbólico — este último no caso da promoção da marca, principalmente para os produtores regulamentados. Para se conseguir isso de forma legítima, é necessário a regulamentação das atividades produtivas. Da perspectiva do Estado, o capital econômico adquirido pode ser legítimo ou não. Dessa forma, passando o interesse econômico pela necessidade de um reconhecimento legal por parte do Estado, observei que a diferença entre os interesses dos produtores industriais e dos artesanais, dos regulamentados e dos informais, está relacionada propriamente ao habitus desses agentes ou às práticas produzidas por habitus similares. Entendo, então, que essa diferença entre os interesses dos agentes produtivos se dê justamente pelos capitais e pelo habitus que estes possuem. São as estruturas constitutivas de um tipo particular de meio — que pode ser entendido como as condições materiais de existência características de uma condição de classe — que produzem determinado habitus — sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes ou, melhor dizendo, como principio gerador de práticas que podem ser objetivamente ―reguladas‖ e ―regulares‖, sem ser produto da obediência às regras e que são objetivamente adaptadas ao seu fim sem supor intenção consciente dos fins (BOURDIEU, 1983, p. 60-61). Entendo, então, que os produtores presentes no mercado de cachaça são originários de meios diferentes e, por isso possuem habitus diferenciados, conseguidos em espaços sociais (meios) diferenciados (ou adquiridos, ou modificados), e também por possuírem capitais diferenciados (economicamente e culturalmente), e isto faz com que os 29 produtores necessariamente acabem assumindo diferentes posturas em relação às regras normativas. E também utilizam estratégias diferenciadas para adquirir esse interesse comum a todos, o capital econômico, sendo essas estratégias geradas pelas práticas que os produtores (industriais e artesanais, informais ou não) utilizam. Práticas, por sua vez, são produzidas pelos habitus e determinadas pela antecipação implícita de suas consequências, isto é, ―pelas condições passadas da produção de seu princípio de produção de modo que elas tendem a produzir as estruturas objetivas das quais elas são o produto‖ (BOURDIEU, 1983, p. 61). A prática, em outras palavras, é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus — o que podemos entender como sendo produto de uma relação entre a trajetória e a posição ocupada pelo agente no campo (Op. cit., p. 63-65). Com o objetivo de apresentar de que maneira isso ocorre, procurei realizar uma descrição pormenorizada dos dados obtidos na pesquisa empírica através de entrevistas, das conversas informais e da observação, de forma a apresentar a trajetória social e individual de cada produtor estudado, estando esta limitada ao histórico relatado pelos produtores cachaça. Essa descrição possibilitou analisar e compreender quais foram as estratégias adotadas pelos produtores para que continuassem produzindo. Tendo em vista que para Bourdieu (apud MONTAGNER, 2007) ―toda trajetória individual deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus‖, é necessário, segundo Montagner (2007), situar os agentes sociais no seu grupo social para narrar e delinear a construção diacrônica da trajetória dos produtores dentro do espaço social considerado, que é o negócio ou o mercado de produção e comercialização de cachaça, não perdendo de vista que a informalidade está inserida dentro dessa estrutura. A atual conjuntura desta estrutura — o estado atual do negócio da cachaça — influencia significativamente as práticas dos produtores, atualiza seus habitus — mesmo os informais — de acordo com as situações, a ocasião e a conjuntura em si mesma. Feito isso, o intuito foi de compreender que a informalidade é algo que está além das explicações relacionadas à legislação e aos tributos, mas também uma estratégia que mobiliza práticas geralmente não reconhecidas pelo governo e são fundamentais para a reprodução de um status quo próprio desses produtores, algo que está muito bem relacionado com o fato de suas empresas serem também unidades produtivas familiares. Diante disso, ao apresentar as trajetórias o objetivo foi identificar quais são essas práticas. 30 2 OS PRODUTORES DE CACHAÇA ARTESANAL NO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO Os agentes produtivos que esta pesquisa estudou foram caracterizados, em primeiro momento, a partir da produção artesanal de cachaça informal e a pequena produção familiar. Diferenças fundamentais entre eles seriam encontradas no momento da pesquisa de campo, entretanto, as similaridades precisavam ser consideradas, primeiramente, para a delimitação do campo, já que as diferenças seriam observadas no desenrolar da pesquisa. Para traçar um perfil geral dos produtores, considerou-se a idade, escolaridade, êxodo rural, sucessão das atividades, extensão da propriedade, como se organiza o trabalho e se exerce ou não outra atividade, além da produção de cachaça. Levou-se também em consideração a quantidade de cachaça que cada um produz anualmente, o preço médio e tipo de cachaça, se faz envelhecimento do produto e onde este é comercializado. Entre as características similares dos produtores, observou-se a localidade rural, a produção em pequena quantidade, a informalidade total ou parcial das atividades produtivas e comerciais, uma relação com mercados limitados locais ou regionais, a organização familiar das atividades, contratação de mão-de-obra temporária durante o período da safra para o corte de cana e auxílio no engenho e a manutenção dos alambiques como espaços de sociabilidade, através de vendas no próprio local da produção. No desenvolvimento da pesquisa de campo, as seguintes diferenças entre os produtores foram identificadas: níveis de escolaridade variáveis, que influenciam ou não na forma como o produtor aborda o próprio negócio, destacando-se o perfil de produtor familiar sem grandes ambições de expandir as atividades, mas também um perfil empresarial dinâmico e bastante instruído, com grandes ambições e grande visão de mercado; quantidade produzida anualmente bastante variável entre os produtores, indo de 10 a 100 mil litros/ano; produtores que operam completamente na informalidade e outros que estão de acordo com a legislação, entretanto acabam comercializando o produto sem nota fiscal no próprio estabelecimento; círculos de mercados que vão desde o local até o internacional; a organização familiar das atividades foi encontrada exceto em um produtor, que trabalha sozinho, porém variam de acordo como a forma que o trabalho se organiza; o contrato de mão de obra temporária com registro em carteira é feito por um dos produtores, enquanto o restante faz contrato informal através de acordos ―de boca‖, excetuando um dos quais o trabalho é feito integralmente pela família do produtor. 31 2.1 Idade dos produtores, êxodo rural e a preocupação com a sucessão das atividades. A idade dos produtores pesquisados varia entre 47 e 69 anos, tendo por média uma idade de 58 anos entre eles. É notável que a idade geral dos produtores exceda os 40 anos, algo demonstrado em pesquisa realizada pelo SEBRAE em 2012, na qual a distribuição é relativamente uniforme entre os grupos de 35 a 45 anos, 45 a 55 anos e 55 a 65 anos, o que equivale a 66% do total de estabelecimentos rurais do país (SEBRAE, 2012). A característica nacional da idade avançada dos produtores rurais também é presente entre os agentes estudados e esta está relacionada à grande evasão de jovens que têm por destino as cidades. Segundo Camarano e Abramovay (1999, p. 11), a razão principal que resultou em um alto e rápido êxodo rural a partir dos anos 1970, foram os ―subsídios, os incentivos econômicos e o aparato institucional mobilizados para estimular a adoção de técnicas produtivas e culturas altamente poupadoras de mão-de-obra‖. É isso que também resultará na escassez de mão de obra, principalmente para o trabalho no corte da cana — um problema apontado por todos os produtores de cachaça —, assim como o envelhecimento da população e sua masculinização, visto que a evasão de moças é muito maior (CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999). O que geralmente ocorre é que os jovens têm abandonado o campo em busca de opções de estudo e emprego com salário fixo e a garantia de direitos trabalhistas. O êxodo dos jovens, por sua vez, resulta em uma sucessão familiar cada vez menor, o que já tem levantado questionamentos sobre um possível esvaziamento do rural no futuro. As pesquisas que analisam as motivações para que os jovens deixem o campo, apontam desde a baixa perspectiva de renda na agricultura camponesa, o trabalho laborioso, a falta de participação na gestão da economia familiar e a busca por melhor infraestrutura, serviços públicos e opções de lazer (REDIN; SILVEIRA, 2012; REDIN et. al. 2013). O que alguns dos produtores de cachaça lamentavam era o fato de não verem a continuidade da produção nos filhos, visto que alguns já haviam partido para a cidade para cursar faculdade em áreas aquém do rural. Outros tinham esperanças de que os genros continuassem a produção, pois as filhas já exerciam outras profissões, também na cidade. Por outro lado, destaca-se o caso de dois produtores em que os filhos, mesmo tendo cursado grau superior, estavam retornando e assumindo as atividades da família. 32 Cabe apontar o fato de que, conforme destacam Camarano e Abramovay (1999), nas regiões Sul e Sudeste a evasão vem diminuindo desde os anos 1990. Porém, isso não muda o fato de que os jovens continuam almejando as oportunidades de mudar de vida com as oportunidades proporcionadas pela cidade. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que a questão do êxodo rural está diretamente ligada à questão do acesso aos serviços básicos de cidadania. Assim, os autores lembram que isso ocorre porque os indicadores educacionais do meio rural brasileiro apontam grande precariedade e ―uma melhor qualidade da educação no meio rural poderia ampliar as chances de o campo ser um espaço que desperte nos jovens o interesse de aí realizar seus projetos de vida‖ (p. 20). Como isso ainda não ocorre, é possível que a busca por uma educação de qualidade acabe justificando a partida para as cidades. Em estudo realizado por Zago e Bordignon (2012) sobre questões relacionadas à ―agricultura familiar, suas transformações, os limites e os desafios para as novas gerações permanecerem na mesma profissão dos pais no meio rural‖, os autores irão assinalar o fato do jovem hoje ver-se confrontado com diversas realidades, estando estas relacionadas ao próprio meio rural e associadas às condições de trabalho e de identidade na profissão, como ao urbano e ―tudo o que ele representa em termos simbólicos, enquanto possibilidades de lazer, renda regular, entre outros benefícios que avaliam poder usufruir‖. A possibilidade de ingressar no ensino superior, então, se sustenta na ―perspectiva de melhorar suas chances no mercado de trabalho e condições de vida, pela ampliação do capital cultural‖ (p. 7). Os autores ainda lembram a questão midiática e o poder televisivo como produtores de aspirações e desejos que estão além das referências dos jovens sobre modos de viver: Na televisão predominam temas da vida urbana, e mesmo quando surgem os temas referentes ao meio rural, estes também são ―urbanizados‖. Outro aspecto é a própria imagem desses dois universos presentes na sociedade: ao campo é agregada a ideia de um lugar simples, singelo e harmônico, enquanto a cidade é concebida como um lugar de comunicação, conhecimento e luz. (ZAGO e BORDIGNON, 2012, p. 6). Assim, retomando o caso dos produtores citado logo acima, destaco que existem controvérsias quando se trata da cachaça. Vejo que isso pode estar relacionado ao fato de que, com um maior acúmulo de capital no caso daqueles jovens que retornaram e assumiram o negócio da família, os capitais adquiridos possam ter estimulado esses jovens a promover o negócio, que veem nos investimentos de capitais a possibilidade de promover o produto e alcançar maiores disputas no mercado. De qualquer modo, este fora o caso de dois produtores entrevistados e cabe ainda mencionar que, mesmo que estes ainda estejam transitando entre 33 práticas informais e legais, foi o incentivo dos filhos que motivou os pais a expandir a produção e buscar a regulamentação. Por outro lado, a questão relatada por parte de alguns produtores em relação a não sucessão das atividades produtivas ainda é bastante comum. De qualquer modo, a cachaça artesanal é um produto que adquiriu certa peculiaridade entre outros produtos fabricados no meio rural e justamente por isso que ela pode proporcionar nos filhos dos produtores um maior interesse em permanecer no meio rural, visto que essa atividade produtiva vem crescendo e sendo bastante valorizada nos últimos anos, como já fora apontado. 2.2 A questão da escolaridade enquanto resultado de um paradigma No que se refere à escolaridade dos produtores, observamos que o alto percentual de ensino fundamental incompleto, demonstrado pelo SEBRAE (2012), também se aplica aos produtores de cachaça, pois apenas três dos produtores cursaram ensino superior, enquanto o restante tenha apenas concluído o primeiro ou segundo grau do ensino fundamental. O que foi observado na pesquisa de campo é que o baixo grau de escolaridade se dá justamente onde há agricultura familiar. Isso estaria relacionado, de acordo com as considerações de Wanderley (2009), à forma conservadora como se deu o processo de modernização da agricultura no Brasil, que acabou por subordinar essa à indústria, algo que somente acabou sendo vantajoso aos grandes proprietários que puderam se beneficiar das políticas públicas de crédito agrícola e assim reforçarem ainda mais a concentração fundiária. Dessa forma, o processo de modernização da agricultura foi estabelecido por um progresso de escala da propriedade, ficando o pequeno produtor familiar excluído desse processo e a parte desse modelo de empresa rural que se formava a partir dos anos de 1960. Estando à margem, o pequeno produtor rural ficou limitado ao seu próprio trabalho em busca da sua própria subsistência, distanciado do mercado e sem condições estruturais para a própria escolarização (WANDERLEY, 2009, p. 36-37). Além do mais, como mostram estudos de autores como Sergio Leite (2002), Miguel Arroyo (2007), Arroyo, Caldart e Molina (2004), o campo sempre fora visto como o lugar do atraso, o que fez com que as politicas sociais e educacionais não fossem prioritárias para os que lá estavam. Assim, ―à população do campo foi negado o acesso aos avanços ocorridos nas 34 duas últimas décadas como o reconhecimento e a garantia do direito à educação básica‖ (JUNIOR; NETTO, 2011, p. 47). Segundo Janio Ribeiro dos Santos (2010), o primeiro modelo educacional ofertado no campo foi o da Educação Rural, o qual era adequado a modelos políticos que visavam o desenvolvimento econômico do campo, e tinha suas bases fundamentadas no interesse das elites dominantes. Dessa forma, a escola, tanto na cidade como no campo, desenvolveu uma educação que visou a atender principalmente a exigências políticas e econômicas, geralmente não contemplando as demandas humanas e sociais dos sujeitos da classe trabalhadora que nela estava. A expressão popular registrada por Leite (2002), de que ―gente da roça não carece de estudos‖, é bastante esclarecedora da visão ideológica defendida pelo acentuado elitismo que organizara um processo educacional instalado no país desde os jesuítas e mantido pela oligarquia agrária que sempre ditou as regras (LEITE, 2002 apud RIBEIRO DOS SANTOS, 2010). Além de visar à fixação do homem no campo e de manter a exploração de trabalhadores por meio do trabalho manual nas lavouras dos grandes latifundiários (RIBEIRO DOS SANTOS, 2010), essa forma de ensino visava também a privilegiar as demandas das cidades, já que esta era vista como ―local da civilização, da sociabilidade e da expressão política, cultural e educativa, um exemplo a ser seguido, e o campo como lugar do atraso, do tradicionalismo cultural, uma realidade que precisa ser superada‖ (Op. cit., p. 4). Assim, a política de Educação Rural também estava desvinculada dos propósitos da população campesina, e aqueles que estavam inseridos dentro de uma agricultura familiar, acabariam recebendo o mesmo ensino dado aos trabalhadores assalariados. Cabe mencionar que esse modelo de Educação Rural toma por base os princípios do paradigma do capitalismo agrário 6 (RIBEIRO DOS SANTOS, 2010), o qual entende o camponês como sinônimo do atraso que tende desaparecer com o desenvolvimento capitalista do campo para se transformar em agricultor familiar e agente importante e necessário que faz parte do agronegócio (FELÍCIO, 2006). É por isso que este último, sendo o modelo de desenvolvimento econômico predominante no campo, nunca concebeu a educação como uma política pública e sempre se contrapôs à com a nova concepção de educação defendida pelos 6 Ver Abramovay (2007). 35 movimentos sociais, a Educação no/do Campo. Esse modelo educacional, postulado nos princípios do paradigma da questão agrária, tem os camponeses como protagonistas do processo de construção política de educação para as áreas da reforma agrária (SOUZA, 2008; RIBEIRO DOS SANTOS, 2010). É preciso colocar que para este paradigma não existe uma diferenciação entre camponês e agricultor familiar, já que ambos possuem ―a família e o trabalho familiar por característica, pois, ao mesmo tempo em que a família é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo‖ (FELÍCIO, 2006, p. 28). Entretanto, esse paradigma entende que os dois precisam deixar de abominar o mercado e aprender a lidar com ele. Tendo agora por base os produtores com os quais trabalhei, aqueles que continuam radicados nas propriedades rurais, são agricultores familiares e possuem apenas o grau fundamental de escolaridade, possivelmente são frutos do modelo de Educação Rural, já que a idade dos produtores confirma isso. É possível que esse modelo tenha, por um lado, gerado nesses produtores uma aceitação ao modelo econômico que começava a ser imposto, não como algo que eles devem seguir, mas algo que eles não imaginam condição de mudar e lidam com ele da melhor maior possível. De qualquer modo, isso pode estar relacionado ao fato dos pequenos produtores estarem buscando estratégias para lidar com a pressão da modernização da agricultura. O problema nunca foi a falta de escolaridade, mas a percepção desta falta, pois o agente da inovação, aquele que traz a modernização para o campo como sendo para ele o mecanismo do progresso, está trazendo algo diferente do habitual para as populações lá presentes, um conhecimento às vezes inacessível aos pequenos produtores. Por esse motivo que os produtores que possuíam grau superior, a minoria, sendo eles também os que viveram a maior parte da vida em áreas urbanas, queixaram-se mais dos valores pagos em tributos do que com a burocracia presente na legislação, o que se fez contrário para o restante. Nesse sentido, mesmo que todos sejam informais — ou usem de práticas informais — e mesmo que todos possuam práticas similares no trato com a legislação e a reprodução das atividades produtivas, a diferença estrutural em cada alambique, propriamente, a segurança no lidar com o negócio que apresentaram e as características individuais, está necessariamente relacionada às formas e a quantidade de capitais que os produtores possuem. Isso ficará mais claro com a apresentação das trajetórias de cada produtor. 36 Assim, a escolaridade pode sim influenciar no modo que os produtores se relacionam com o mercado e com a legislação que regula a produção e comércio de cachaça. Mas isso se deve principalmente aos capitais que os produtores possuem e a forma que esses capitais foram adquiridos. Os produtores informais que nunca procuraram iniciar ou mesmo compreender os processos de regulamentação são justamente aqueles que possuem apenas o grau fundamental de ensino. Dessa forma, a educação superior, para os produtores que a possuem, acaba sendo uma forma de proporcionar outra perspectiva, de forma a empreender o negócio dentro das normas exigidas e dentro daquilo que o mercado espera. Ou, é possível considerar que os estudos tenham contribuído para que os produtores adquirissem mais do que Bourdieu (2001b) vai chamar de capital organizacional, o qual inclui dentro de si um capital de informação sobre o campo ou o mercado em questão e de capital tecnológico, que é a carteira de recursos científicos que proporciona um potencial investigativo ou de técnicas suscetíveis de serem implementadas na concepção e fabricação dos produtos, como procedimentos, aptidões, rotinas e conhecimentos únicos e coerentes (p. 239). Porém, isso não pode ser considerado regra, já que a questão dos altos tributos é determinante quando se trata de regulamentar ou não a produção. 2.3 A propriedade rural e a forma de organização do trabalho Em relação à extensão da propriedade, o que se observou é que somente dois dos produtores possuíam uma propriedade que excede os 10 alqueires, sendo essas de 36 e 80 alqueires paulistas7. Os outros produtores possuem uma propriedade que varia de 2,0 a 9,0 alqueires. É importante ressaltar que a extensão da propriedade não interfere na quantidade de cachaça produzida anualmente. Não interfere, pois a área utilizada para a produção de cachaça artesanal acaba sendo sempre a mesma, já que a quantidade produzida se repete a cada ano. Assim, mesmo produtores que possuem grandes propriedades mantém a mesma produção da bebida. Não é vantagem produzir muito para quem faz envelhecimento e pretende ter um produto de qualidade, além disso a quantidade precisa estar de acordo com a capacidade de armazenamento. Assim, dos oito produtores pesquisados todos possuem outra fonte de renda além da produção de cachaça. Cinco deles produz cana-de-açúcar paras as usinas da proximidade da 7 Um Alqueire Paulista equivale a 2,42 hectares ou 24.200 metros quadrados. 37 propriedade sendo que um recebe também aposentadoria e tem a cachaça somente como um complemento da renda. Destacamos outro produtor, que além de produzir cana-de-açúcar para a usina, também possui uma indústria de confecção de roupas. Apenas dois dos produtores cultivam outras culturas além da cana-de-açúcar, como o milho e o café, e um deles também possui uma agropecuária na cidade que é propriedade dele e de dois irmãos, assim como as demais terras que possuem. Este produtor também produz cerveja artesanal no alambique. Um dos produtores, além de produzir cana-de-açúcar para a usina possui uma loja no município, na qual além da própria cachaça, e somente ela, comercializa outros produtos fabricados de modo artesanal no estado de Minas Gerais, como vários tipos de queijos e doces, além de artesanatos decorativos assimilados a cultura rural e caipira. E somente um dos produtores, o que trabalha sozinho, é um motorista de ônibus e caminhão aposentado que produz cachaça como um complemento da renda e também por hobby ou paixão, já que esse era um sonho que tinha desde criança, quando via os familiares fabricarem aguardente. Exceto um dos produtores entrevistados, todos os outros podem ser considerados pluriativos, pois possuem outras atividades produtivas além das agrícolas, combinando estas com outras fontes de rendimento. A emergência da pluriatividade ocorre em situações em que os membros que compõem as famílias domiciliadas nos espaços rurais combinam a atividade agrícola com outras formas de ocupação em atividades não agrícolas. [...] Objetivamente, a pluriatividade refere-se a um fenômeno que pressupõe a combinação de duas ou mais atividades, sendo uma delas a agricultura (SCHNEIDER et. al. apud SCHNEIDER, 2006) Esse fenômeno, segundo Carneiro (1998), chama a atenção para a ―possibilidade de novas formas de organização da produção virem a se desenvolver no campo ou de antigas práticas assumirem novos significados‖ (p. 56). Isso também pode ser comprovado nos produtores de cachaça quando observamos as adaptações feitas no espaço dos alambiques para a recepção dos clientes. Alguns produtores, além da própria cachaça, comercializam também ancorotes de 2, 5 e 10 litros, tonéis de madeira pequenos que os consumidores compram para o armazenamento da cachaça em seus próprios domicílios. Além disso, também observei o comércio de outros produtos, como doces caseiros, em especial a rapadura de fabricação artesanal, outro derivado da cana-de-açúcar, e também de queijos fabricados por sítios vizinhos. Assim, como a dinâmica do trabalho agrícola não exige um tempo integral de trabalho, torna-se possível a realização de outras atividades que não sejam exclusivamente agrícolas para a geração de rendas (CARNEIRO, 2006). 38 Além do mais, a pluriatividade tende a acompanhar o processo de mercantilização ―que se associa aos processos de externalização da agricultura na medida em há uma crescente interação com os mercados para além daqueles associados aos produtos e serviços agropecuários‖ (SCHNEIDER et. al., 2006, p. 3-4). A partir disso, observamos que a cachaça artesanal produzida em propriedades rurais, tem sido fundamental para esses produtores no exercício de outras atividades além das agrícolas, e essas se dão principalmente através do comércio. Os produtores, portanto, além de produtores e envasadores de cachaça, são também comerciantes da própria cachaça e algumas vezes revendedores de outros produtos. Também foi observado que alguns produtores fabricam artesanatos, como caixas de madeira pirogravadas, as quais são utilizadas para embalar garrafas de cachaça. Esse trabalho geralmente é realizado pelas esposas e filhos dos produtores. Já no que se refere à organização do trabalho, existem formas múltiplas deste se organizar. Todos os produtores contratam mão de obra temporária para o corte da cana-de- açúcar e outros para auxiliar no engenho. De todos os produtores apenas um realiza o registro em carteira por trabalho temporário no corte da cana-de-açúcar durante o período da safra, que varia de 5 a 6 meses, conforme o ano. Com a exceção de um produtor, que trabalha sozinho, em todos os outros identifiquei o trabalho familiar. Para Ricardo Abramovay (1997), a agricultura familiar não pode ser necessariamente assimilada a uma ―agricultura de baixa renda‖, à ―pequena produção‖ ou simplesmente a uma ―agricultura de subsistência‖. Esta possui uma grande expressão produtiva e não pode ser parte de um tema que seja puramente ―social‖. Essas concepções referentes à agricultura familiar eram as que sustentavam a imagem de que o destino do campo seria ―fatalmente o esvaziamento social‖ (p. 73). Além disso, elas envolviam um julgamento prévio sobre o desempenho econômico dessas unidades, o que não era bom. Em última análise, aquilo que se pensa tipicamente como pequeno produtor é alguém que vive em condições muito precárias, que tem um acesso nulo ou muito limitado ao sistema de crédito, que conta com técnicas tradicionais e que não consegue se integrar aos mercados mais dinâmicos e competitivos. (ABRAMOVAY, 1997, p. 74) Abramovay (1997) argumenta em defesa da agricultura familiar, pois considera que o segmento familiar tem um uso do solo mais intenso do que o segmento patronal dos latifúndios. As lavouras são consideradas até cinco vezes mais importantes e a quantidade de produtos agropecuários supera o patronal em quinze produtos diferenciados, além de um 39 rendimento superior em mais da metade das atividades exercidas. Além disso, é característica do agricultor familiar a integração ao mercado, a capacidade de incorporar avanços tecnológicos e de responder às políticas governamentais (ABRAMOVAY, 2007). Assim, para este autor, mesmo nos países em que o peso da tradição latifundiária é tão forte como no Brasil, estando esta ao lado de milhões de unidades que podem ser consideradas pequenas e precárias, desenvolve-se um segmento familiar bastante dinâmico e ―capaz de integrar-se ao sistema de crédito, cujo comportamento econômico difere da famosa e tão estudada aversão ao risco [8], que adota a inovação tecnológica e integra-se a mercados competitivos‖ (ABRAMOVAY, 1997, p. 75). Entretanto, Abramovay destaca que esse dinamismo não dependia de características que fossem supostamente ―culturais‖ dos agricultores, mas sim de três fatores: a base material com que produzem (extensão da propriedade e a fertilidade da terra); da formação dos agricultores (o que para nós se destaca nos capitais culturais que estes possuem); e o ambiente socioeconômico em que atuam e, sobretudo, a existência neste ambiente de instituições que sejam características de uma economia moderna — ―acesso diversificado a mercados, ao crédito, à informação, à compra de insumos e aos meios materiais de exercício da cidadania (escola, saúde, assistência técnica, etc.)‖. Em relação aos produtores com os quais trabalhei, ficou claro que a dinâmica existência das famílias estava também relacionada a esses fatores. No caso da propriedade, destaquei que havia desde propriedades muito pequenas, até aquelas mais consideráveis. Porém, o uso da terra para a produção de cachaça artesanal não exige grandes extensões, como já dito, sendo os outros espaços geralmente utilizados para a lavoura canavieira, por exemplo, que é destinada para as usinas das proximidades. No caso da formação dos produtores, essa questão já fora discutida anteriormente, mas é importante destacar o caso dos filhos que adquiriram outros capitais culturais em cursos superiores e técnicos nas cidades e regressaram para a propriedade rural aplicando os novos conhecimentos em atividades já realizadas pela família ou, no caso de uma deles, que decidiu junto do pai produzir cachaça. Por fim, no caso das instituições modernas voltadas para o desenvolvimento moderno da agricultura familiar, vimos que o acesso a elas também dependeu de capitais e informações 8 A questão da aversão ao risco foi exposta por Michel Lipton (1968, apud ABRAMOVAY, 2007, p. 97), um pensador neoclássico fortemente influenciado por Chayanov. Segundo Lipton, o camponês tradicional vivia de forma a minimizar os riscos possíveis, de forma que existia uma especificidade no tipo de cálculo econômico realizado por este agente, quando comparado com empresas capitalistas. 40 que permitiam o conhecimento a respeito delas. Na maioria dos casos estudados, os produtores demonstraram não possuir tais informações, e declararam, principalmente em relação à produção de cachaça, estar abandonados pelo Estado, que nunca orientou a melhor maneira de se realizar as atividades ou mesmo em relação às exigências normativas e a burocracia presente nestas. A falta de apoio foi um problema que quase todos os produtores se queixaram. No rumo dessa discussão, Wanderley (2009) também reconhece que as unidades familiares de produção não são incompatíveis com o desenvolvimento agrícola, ou seja, ―são capazes de transformar seus processos de produção, no sentido de alcançar novos patamares tecnológicos que se traduzam em maior oferta de produtos, maior rentabilidade dos recursos produtivos aplicados e plena valorização do trabalho‖ (p. 36). Porém, é de conhecimento de todos que o processo de modernização da agricultura, por ter sido um projeto que se impôs ao conjunto de toda a sociedade com o argumento de ser o portador do progresso, acabou resultando na subordinação da agricultura à indústria e na constituição do chamado complexo agroindustrial. Além do mais, esse processo também foi fortemente caracterizado por sua associação a um progresso em larga escala, de forma que quem acabou se beneficiando dos recursos públicos disponíveis para o setor foram os grandes proprietários, o que resultou em uma maior concentração de terra e na reprodução de formas tradicionais de dominação e na ―expulsão da grande maioria dos trabalhadores não-proprietários de suas terras e na inviabilização das condições mínimas de reprodução de um campesinato em busca de um espaço de estabilidade‖ (p. 37). Esse processo então — que Wanderley entende como um elemento estruturante do mundo rural brasileiro — seria considerado pela autora como uma ―modernização sob o comando da terra‖, e determinaria o lugar social do campesinato e da agricultura familiar na sociedade brasileira ao longo de sua história. A empresa rural, portanto, tornou-se o único modelo proposto para toda a atividade agrícola, mas o desenvolvimento desta se tornou claramente dependente das políticas públicas implementadas que somente os grandes proprietários tinham acesso. Isso por sua vez resultou na impossibilidade do pequeno proprietário assumir uma condição empresarial, que acabou ficando excluído desse processo. A ―modernização conservadora‖, aqui em questão, mostrou- se então profundamente seletiva e excludente, de forma que, segundo Graziano da Silva (1996, p. 170 apud WANDERLEY, 2009), menos de 10% dos estabelecimentos agropecuários brasileiros foram integrados a essa moderna maneira de produzir. 41 Cabe dizer que, para Wanderley (2009), entre agricultores familiares e camponeses não existe nenhuma mutação radical que aponte para a necessidade de uma nova classe social ou um novo segmento de agricultores gerados pelo Estado ou pelo mercado. As categorias são, então, equivalentes e ―o adjetivo familiar visa somente reforçar as particularidades do funcionamento e da reprodução dessa forma social de produção, que decorrem da centralidade da família e da construção de seu patrimônio‖ (p. 41). O que esta autora vai defender em outro momento, é a hipótese de que não existiu uma passagem irreversível e absoluta da condição de camponês tradicional para a de agricultor familiar ―moderno‖, mas simultaneamente pontos de ruptura e elementos de continuidade entre as duas categorias. O agricultor familiar é um ator social do mundo moderno, mas que guarda em si adormecido o próprio camponês. E o que concede aos agricultores modernos a condição de atores sociais que são construtores de um projeto de sociedade, é justamente a dupla referência à continuidade e à ruptura (WANDERLEY, 2004, p. 47). Os agricultores familiares portam uma tradição, fundamentada na centralidade da família, nas formas de produzir e no próprio modo de vida, porém precisam adaptar-se ―às condições modernas de produzir e de viver em sociedade‖, já que estão inseridos no mercado moderno e recebem a influência de uma sociedade englobante. É nesse sentido que esses agentes possuem uma capacidade de resistir e de se adaptar aos novos contextos econômicos e sociais que surgem. O processo de mudanças profundas que esteve e continua em curso e afetam a forma de produzir e a vida social dos agricultores, também afetam diretamente a importância da própria lógica familiar. Porém, para Wanderley isso significa que a ―modernização‖ dessa agricultura não reproduz o modelo clássico da empresa capitalista, mas sim o próprio modelo familiar. Assim, mesmo que integrada ao mercado e respondendo às suas exigências, permanecer familiar não significa ser pouco eficaz, e isso demonstra que a lógica familiar, que possui origem na tradição camponesa, dificilmente será abolida. Ao contrário, ela inspira e orienta o agricultor nas novas decisões que precisa tomar nos novos contextos que agora está inserido (WANDERLEY, 2004, p. 48). Diante desse contexto, percebemos que a agricultura familiar está no centro de questões fundamentais que hoje estão postas em nível planetário e para a sociedade brasileira em particular. Entre elas, assumem especial relevo a preservação do patrimônio natural, a quantidade e a qualidade dos alimentos, as demandas de segurança alimentar, a adequação dos processos produtivos e a equidade das relações de trabalho. (WANDERLEY, 2009, p. 43-44) 42 Esses elementos e características apresentados por Wanderley estão geralmente presentes nos produtores de cachaça artesanal. A centralidade da família é fundamental na reprodução dessa forma social de produção. Os produtores portam uma forte tradição, aqui em especial relacionada à produção de cachaça, fortemente fundamentada nessa centralidade. Mesmo quando precursores na produção de cachaça algum parente (avô ou tio) no passado fabricou o produto. Assim, as formas de produzir e o modo de vida acabam sendo reproduzido nas gerações atuais e passado para as futuras, porém estas são geralmente adaptadas conforme a necessidade e as próprias demandas dos mercados em que se inserem. De qualquer modo, ainda cabe ressaltar as particularidades da ação do Estado como ator social no mundo rural. Este, por meio de políticas públicas, acaba interferindo diretamente nos processos de redistribuição de recursos produtivos e de bens sociais para os atores rurais, assim como no reconhecimento destes como sujeitos de direitos. Essa atuação, por sua vez, é o resultado das relações predominantes no interior do próprio Estado, que o definem como um campo de disputas entre forças sociais e políticas distintas, que defendem concepções igualmente distintas de desenvolvimento rural. É certamente essa dupla face do Estado que explica a superposição e, em muitos casos, as contradições nos modelos institucionais adotados e nas orientações das diversas políticas públicas. (WANDERLEY, 2009, p. 38) Sendo o Estado considerado um campo de disputas dentro do qual grupos com distintos posicionamentos sociais estão em relações, entende-se que os interesses desses grupos são também distintos e, como coloca o próprio Bourdieu (1983), existem os que dominam e os que são dominados. De acordo com o que foi aqui colocado, quem dominou ou sempre ditou as regras, tendo por garantias as políticas e os recursos públicos do Estado voltados para o desenvolvimento da agricultura, foram os grandes proprietários. Não é preciso muito esforço para compreender os motivos que hoje, principalmente, fazem com que as deliberações voltadas para a agricultura, ocorridas dentro do congresso acabem sempre favorecendo os latifundiários e a agricultura patronal representada pela chamada ―bancada ruralista‖, esta representante declarada do agronegócio no país. E como já apontamos, estes são os que defendem um ponto de vista no qual os agricultores familiares precisam ser incorporados ao mercado dentro de uma lógica empresarial9. 9 No livro O partido da terra: como os políticos conquistaram o território brasileiro, o jornalista Alceu Luiz Castilho (2012), pesquisando durante três anos quase 13 mil declarações de bens de políticos eleitos entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vai mapear precisamente os políticos donos de terra no Brasil, demonstrando 43 Porém, no que interessa para a pesquisa, compreendemos que além desses modelos institucionais que orientam as políticas e os recursos públicos quase totalmente para uma classe de produtores patronais, excluindo o pequeno produtor dos possíveis benefícios relacionados ao próprio desenvolvimento da agricultura ou à modernização desta, as dificuldades para o agricultor familiar se estabelecer como um empresário do rural, no caso exclusivo do produtor de cachaça, a questão da legislação e a influência da indústria de produção de bebidas destiladas, faz-se ainda mais marcante nas deliberações do Estado. Isso ficará um pouco mais claro com o desenvolver desse trabalho, entretanto, cabe adiantar que as questões são similares, mas estas acabam sendo agravadas, pois a legislação que regulamenta a cachaça beneficia muito as grandes destilarias de produção industrial e, além dos problemas enfrentados enquanto produtor familiar, é preciso enfrentar outros enquanto pequeno produtor de cachaça. É importante lembrar que essa discussão se insere dentro de um debate paradigmático, no qual os autores aqui citados são representam o chamado paradigma do capitalismo agrário (FELÍCIO, 2014). Os autores brasileiros que pensaram dentro dessa linha paradigmática, formulada por teóricos franceses como Mendras e Lamarche, inspirados nas teorias de Chayanov, entendiam que a questão agrária era algo conjuntural, de forma que o problema estaria no próprio camponês, que precisaria se tornar um agricultor familiar moderno e integrar-se ao mercado, contribuindo e participando da reprodução do capital. Assim, como pensava Veiga (1991), os agricultores familiares são aqueles que operam em mercados de produtos e fatores completamente desenvolvidos. Porém, citando Hespanhol (2000 apud FELÍCIO, 2014), Felício demonstra que havia um desencontro entre as concepções defendidas pelo referencial teórico e as constatações empíricas, pois de fato não houve a inserção do agricultor familiar no mercado como produtor moderno, tendo em vista que os agravantes como a exaustão dos solos, a baixa produtividade, os preços baixos dos produtos e as dificuldades de acesso ao crédito rural acabaram levando a uma descapitalização crescente das explorações familiares. Para esta pesquisa, isso também iria de encontro com a questão normativa, como vimos reiterando. As determinações impostas pela legislação, que exigem uma aplicação de quanto têm e como agem esses proprietários na sua ávida busca pelo poder. A obra procura detalhar também a ação da bancada ruralista e a batalha em cima do código florestal que ocorrera nos anos anteriores e ainda ocorre. 44 capitais econômicos às vezes em demasia para a produção e o comércio da cachaça, acabam mantendo os produtores ainda mais afastados desses mercados competitivos e que os autores aqui definem como modernos. Assim, essas questões dialogam e mostram-se mais sérias quando sustentadas nos dados aqui apresentados. Por outro lado, é pertinente a perspectiva de Carneiro (1999), já que esta aponta a necessidade de se compreender a família como unidade social, e não como unidade de produção simplesmente. Isso se deve ao fato de ser o núcleo familiar quem dá sentido e orienta as relações sociais. Ao mesmo tempo em que cria e reproduz valores socializados e inculcados nos indivíduos, a família também supõe um processo de individuação que pode negar, romper, modificar e, até mesmo recriar, valores num espaço de negociação e de tensões. Nesse sentido, o núcleo familiar não pode ser concebido como uma estrutura rígida e cristalizada — de indivíduos e valores — mas sim como uma estrutura flexível, plástica, que pode incorporar novos valores e criar novas percepções e práticas. Em suma, aceitar esta noção de família e reconhecer a idéia [sic] de dinâmica é fundamental para se evitar o risco de estabelecermos classificações rígidas, de base morfológica, que perdem justamente a capacidade de entender a inserção das unidades familiares na economia e na sociedade, captando a sua flexibilidade e vulnerabilidade. (CARNEIRO, 1999, p. 325) Porém, Carneiro vai ressaltar que essa dinâmica não pode ser entendida como um conjunto de condições de ordem econômica, cultural e política, as quais determinariam o espaço da agricultura familiar. Mas, o que importa, é reconhecer a dinâmica interna da própria organização social atribuída pela família, que permite a essa forma social certa autonomia na formulação de estratégias reprodutivas e na articulação com as condições internas. Isso ocorre, pois a unidade familiar de produção ―apresenta maior margem de negociação interna na elaboração de caminhos alternativos de reprodução social‖ (p. 325). Esses rearranjos que geralmente dialogam com a tradição não se limitam ao plano de relações que são empiricamente observáveis e, pensando numa questão mais metodológica, identificá-los necessita uma inserção mais intensa que identifique a própria lógica da reprodução social e as diferentes estratégias sociais implícitas. Para Carneiro (1999, p. 326), e isso é o que mais interessa pra esta pesquisa, o importante é ―dimensionar a capacidade específica das unidades familiares em implementar trajetórias sociais ascendentes ou descendentes‖, mas, principalmente, interessa compreender essas trajetórias. A dinâmica que descende da expansão de formas capitalistas de produção na agricultura inclui uma grande diversidade de trajetórias que supõe adaptação contraditória às 45 novas condições de produção. O processo de adaptação implica na formulação de novas estratégias para formas de produção já estabelecidas ou uma nova combinação dos mecanismos já existentes, que visa à manutenção seja da exploração agrícola, seja do patrimônio familiar, ou seja, da própria reprodução do grupo doméstico (CARNEIRO, 1999). A adaptação na perspectiva dessa pesquisa, também pode ser a combinação de práticas produtivas formais (novas) e informais (antigas). Os produtores de cachaça precisaram adequar-se (ou não) à legislação, que, como será demonstrado, muitas vezes são mais recentes do que o início das atividades produtivas. De qualquer modo, em termos conceituais, procuramos demonstrar também com o auxílio dos outros autores citados, que ―agricultor familiar‖ ou ―produção familiar‖ abrange uma gama variada de agricultores, desde aqueles que se orientam mais para a própria subsistência — a qual considero ser não simplesmente a produção para o consumo, mas para trocas comerciais que resultam numa renda necessária mínima para manter a qualidade de vida da família — até a monocultura tecnificada e orientada exclusivamente para as demandas do mercado (CARNEIRO, 1999). O que precisa definir, com o auxilio desta autora, é qual a melhor tipologia que podemos enquadrar o agente aqui em questão. Primeiramente, é preciso evitar pensar o agricultor como ―um profissional como outro qualquer‖, pois isso acabaria enquadrando-o em um padrão sustentado pelos mesmos parâmetros do trabalhador urbano. Por isso, é preciso levar em consideração ―os componentes culturais dos estilos de vida dos agricultores familiares que normalmente se associam a práticas econômicas diversificadas‖ (Op. cit., p. 331). Isto acaba gerando critérios de exclusão que ocorrem dentro das próprias políticas públicas de programas como o Pronaf, pois estes critérios são sustentados em um agricultor modelo que se firma em ideais de competitividade e produtividade, sendo que esses ideais nem sempre fazem parte da perspectiva dos agricultores. Assim, é preciso compreender que os agricultores familiares não constituem um grupo social homogêneo, não correspondendo a uma classe social, mas possuindo uma diversidade social que é produzida pelas diferentes situações e condições de produção a que estão submetidos, por exemplo, o tamanho da propriedade, o acesso a créditos, o capital cultural (valores, saberes, tradições) e social (rede de relações, número e sexo dos filhos) disponível, e a forma como se relacionam com o mercado (LAMARCHE, 1993 apud CARNEIRO, 1999). Essa heterogeneidade do grupo de agricultores familiares pôde ser observada nos produtores 46 entrevistados e essas condições também apresentadas demonstravam de que modo foram constituídas as trajetórias de cada produtor dentro do negócio da cachaça. Por isso Carneiro reitera que a situação da unidade de produção familiar não pode ficar restrita à dinâmica econômica. Existem questões relacionadas às esferas sociais que são também interdependent