2 3 MARINA CARVALHO PEREIRA TROPICAOS: AS CAPAS DE DISCOS DO TROPICALISMO Relatório final apresentado ao curso de Design da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como parte das exigências para a obtenção do título de Bacharel em Design com habilitação em Design Gráfico. Orientadora: Prof ª. Drª. Ana Beatriz Pereira de Andrade BAURU-SP 2019 4 ÍNDICE PARTE 1 ....................................................................................................... 6 PRÓLOGO: O Que é Tropicalismo? ............................................................. 7 1. TERRA EM TRANSE: Guerra Fria e a Disputa Geopolítica por Influência na América Latina. ......................................................................................... 10 2. THERE’S NO WAY LIKE THE AMERICAN WAY: Sociedade Americana no Pós-Segunda Guerra. ............................................................................... 17 3. MAKE LOVE NOT WAR: Movimentos Sociais e Contracultura. ............... 22 4. O TEMPO RODOU NUM INSTANTE: Brasil no Início da Década de 60. 30 5. UM POETA DESFOLHA A BANDEIRA: Cenário Musical Nacional na Primeira Metade da Década de 60. ............................................................... 42 6. A MANHÃ TROPICAL SE INICIA: O Movimento Tropicalista. .................. 47 7. UMA EXPLOSÃO COLORIDA: Design, Capas de Discos e Rogério Duarte. ........................................................................................................... 60 8. ANÁLISES. ................................................................................................ 70 8.1. CAETANO VELOSO (1968) - Caetano Veloso. ..................................... 72 8.2. GILBERTO GIL (1968) - Gilberto Gil. ..................................................... 76 8.3. TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENSIS (1968) - Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes e Rogério Duprat. ............ 81 8.4. GRANDE LIQUIDAÇÃO (1968) - Tom Zé. ............................................. 84 8.5. A BANDA TROPICALISTA DO DUPRAT (1968) - Rogério Duprat. ....... 87 8.6. OS MUTANTES (1968) - Os Mutantes. ................................................. 90 8.7. NARA LEÃO (1968) - Nara Leão. .......................................................... 94 8.8. GAL COSTA (1968) - Gal Costa. ........................................................... 97 5 8.9. GAL (1969) - Gal Costa. ......................................................................... 100 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS. ..................................................................... 103 PARTE 2 ....................................................................................................... 109 1. INTRODUÇÃO – PROPOSTA DE PROJETO GRÁFICO.......................... 110 2. FORMA E DIMENSÕES............................................................................ 111 3. IDENTIDADE VISUAL................................................................................ 114 3.1. Cores....................................................................................................... 114 3.2. Padrões................................................................................................... 124 3.3. Escolha Tipográfica................................................................................. 125 4. CAPA E LUVA............................................................................................ 134 5. MARGENS, GRID E COLUNAS................................................................ 139 6. ABERTURAS DE CAPÍTULOS.................................................................. 145 7. ÍNDICE E FOLHA DE ROSTO................................................................... 150 8. CAPÍTULO DAS ANÁLISES...................................................................... 154 9. IMPRESSÃO.............................................................................................. 158 10. CONCLUSÃO........................................................................................... 159 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 161 LISTA DE FIGURAS ..................................................................................... 164 6 7 PRÓLOGO: O Que é Tropicalismo? O termo “tropical” refere-se à porção do globo terrestre situada entre os trópicos. Os Trópicos de Capricórnio e de Câncer são duas linhas geográficas imaginárias que “seccionam” a Terra nas latitudes 23º 26’ sul e 23º 26’ norte, respectivamente. A Zona Intertropical apresenta, em média, temperaturas mais elevadas do que o restante do planeta, devido à maior incidência dos raios solares. O imagético associado ao que é tropical remete fortemente a uma representação idealizada dessa região, com foco em suas condições morfoclimáticas. Céus azuis límpidos, praias paradisíacas, flora e fauna exuberante: pássaros exóticos, florestas, coqueirais, folhas, frutas e flores. O sufixo “ismo” pode expressar uma pluralidade de conceitos: a ideia de doutrinas ou ideologias (ex.: marxismo, anarquismo); sistemas políticos e econômicos (ex.: liberalismo, comunismo); correntes artísticas ou literárias (ex.: modernismo, romantismo) e religião (ex.: catolicismo, calvinismo). O Tropicalismo, também conhecido como Tropicália, foi um movimento da música popular brasileira. Liderada pelos cantores e compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, que envolveu um extenso grupo formado por Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão, a banda Os Mutantes e o maestro Rogério Duprat. Uma análise da etimologia da palavra pode gerar a impressão de que este se tratou de um movimento que colocou em centro os elementos simbólicos tropicais, previamente mencionados. No entanto, essa análise não seria capaz de captar integralmente as nuances das propostas, musicais e estéticas, colocadas à frente pelo Movimento Tropicalista. O cerne do Movimento Tropicalista era tematizar a realidade de “um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, o Brasil, expondo suas complexidades e contradições por meio de uma visão contestadora e contracultural. Para isso, seus integrantes apropriavam-se de elementos tradicionais da cultura brasileira e vanguardas internacionais. Embora tenha se consolidado como movimento de fato apenas no âmbito da música popular, o Tropicalismo estabeleceu amplo diálogo com outras áreas da 8 produção cultural: o cinema, o teatro e as artes visuais. Por meio de suas capas de discos, teve uma notável interação com o Design Gráfico, trazendo para esse campo o mesmo nível de experimentalismo e inovação de seu catálogo musical. Os tropicalistas irromperam na cena nacional nos anos finais da década de 60, mais precisamente em 1967, um momento histórico explosivo, tanto no contexto no internacional quanto nacional. O envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã deu ímpeto a uma mobilização da juventude americana em oposição à guerra, que viria a ser conhecida como contracultura. No Brasil, a insatisfação com o regime militar que governava o país desde 1964, caminhava a passos largos para o seu momento mais autoritário, consolidado por meio do Ato Institucional nº5. “Tropicaos: as capas de discos do Tropicalismo” tem dois objetivos centrais. Em primeiro lugar, contextualizar historicamente o Movimento Tropicalista. Afinal, é a partir da compreensão dos aspectos políticos, sociais e culturais do período que se pode ter um entendimento integral do que representou o Tropicalismo dentro da cultura brasileira. Em segundo lugar, explorar a sua interação com o Design Gráfico, por meio das capas dos discos lançados por seus músicos, buscando diagnosticar, por meio de análises dessas capas, os componentes fundamentais da estética tropicalista. Os três primeiros capítulos deste livro dão foco aos eventos pertinentes no contexto internacional. É apresentada a definição do conflito que foi pano de fundo de quase 50 anos da história mundial contemporânea e que foi particularmente consequente na década de 60, a Guerra Fria, com enfoque em seus desdobramentos na América Latina. Em seguida, volta-se a atenção ao desenrolar dos anos entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 60 e o modo como estes foram experienciados pela sociedade estadunidense. Por fim, colocam- se em cena os movimentos sociais que emergiram nos Estados Unidos durante a década de 60, que tiveram grande impacto no cenário cultural da época e que influenciaram amplamente as formulações tropicalistas. No quarto capítulo, é levantada uma linha do tempo dos acontecimentos mais relevantes no Brasil desde 1960 até o Golpe de 1964. Essa sequência de fatos evidencia a amplificação de uma crise econômica, política e institucional, acentuada sob a polarização resultante da Guerra Fria. Essa situação teria desdobramentos 9 significantes dentro da cultura e, por extensão, música brasileira, sobretudo, nos anos pós-golpe. Os movimentos musicais em atividade nos anos iniciais do regime militar, precursores do Tropicalismo, são o assunto tratado no quinto capítulo. Uma vez que toda a conjuntura que antecipou o Movimento Tropicalista foi explicitada, o sexto capítulo responde em detalhes a pergunta enunciada no título deste prólogo “O que é Tropicalismo?”. Logo após, o sétimo capítulo se aprofunda em questões fundamentais para a compreensão das capas de discos do Tropicalismo: o Design Gráfico brasileiro no início dos anos 60, a capa de disco como mídia e a produção do Designer Rogério Duarte. Por fim, no oitavo capítulo, nove capas de discos tropicalistas são analisadas a fim de identificar o diálogo que o movimento estabeleceu com o Design Gráfico, a linguagem visual utilizada no processo e o estilo resultante disso. 10 1. TERRA EM TRANSE: Guerra Fria e a Disputa Geopolítica por Influência na América Latina. Guerra Fria é o termo pelo qual ficou conhecido o conflito geopolítico entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com início em 1945 e término em 1991. A expressão usada pela primeira vez por Winston Churchill - primeiro ministro inglês – [...] popularizou-se, sendo empregada para caracterizar o confronto político, econômico e militar entre as superpotências (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.14). As duas potências, que uma vez estiveram aliadas, integrando o bloco de países que derrotou a Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), emergiram no período pós-guerra como os principais poderes econômicos e bélicos globais. Tornaram-se rivais por consequência da oposição de seus sistemas políticos e econômicos. Do lado americano: o Capitalismo e do lado soviético: o Comunismo. Os EUA e países aliados (Canadá e países da Europa Ocidental) receberam a denominação de bloco ocidental ou capitalista. Em contraponto, a URSS e os estados socialistas na Europa Central e Oriental constituíram o Bloco Oriental ou Comunista. Cada um dos blocos possuía sua aliança militar, a saber: Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia. Embora as tensões entre as partes fossem contundentes e pronunciadas, nunca ocorreu uma guerra direta entre as potências e seus aliados. A possibilidade de um embate direto entre EUA e URSS trazia consigo o perigo inédito de uma guerra como nenhuma outra antes, que poderia aniquilar parte da população mundial, afinal ambos os lados possuíam armas nucleares. Gerações inteiras cresceram sob a sombra de batalhas nucleares mundiais as quais, era amplamente acreditado, poderiam acontecer em qualquer momento e devastar a humanidade. [...] Não foi o que aconteceu, mas por volta de 40 anos isso parecia uma possibilidade diária (HOBSBAWN, 1995, p.226, livre tradução). 11 Figura 1 - Pôster da defesa civil americana, de 1955, promovendo um curso para proteção contra o resíduo nuclear no caso de um bombardeio. Fonte: Civil Defense Museum 1 . A sombra projetada pela destruição mutuamente assegurada, de uma guerra nuclear, dissipava as tensões exacerbadas entre as duas potências, quando estas surgiam. Mas, ao longo dos anos, EUA e URSS interviram em conflitos que se desdobraram em outras partes do mundo. Atuaram proporcionando apoio financeiro e militar às facções ideologicamente alinhadas ao seu respectivo lado, dentro de guerras e disputas políticas externas, buscando, portanto, expandir suas esferas de influência. Este foi o caso, sobretudo, na América Latina e nos estados asiáticos e africanos que passavam por processos de descolonização. Exceto na Europa, a Guerra Fria não foi uma era na qual o embate foi esquecido. Dificilmente houve um ano entre 1948 e 1989 sem um conflito razoavelmente sério em algum lugar. Ainda assim, os conflitos eram controlados, ou abafados, pelo medo que eles pudessem provocar uma guerra aberta – ou seja, nuclear – entre as superpotências (HOBSBAWN, 1995, p.253, livre tradução). A América Latina, por sua proximidade geográfica com os Estados Unidos, tornou-se um dos territórios de maior interesse dentro da disputa por influência 1 Disponível em< http://www.civildefensemuseum.com/artgal/youcan.html>. Acesso em Janeiro de 2019. http://www.civildefensemuseum.com/artgal/youcan.html 12 geopolítica entre os EUA e a URSS. Foi em um país insular da América Central, localizado ao sul da Península da Flórida, onde se desenrolou o mais crítico dos episódios durante a Guerra Fria que levou as duas potências à beira da tão temida ofensiva nuclear. Figura 2 - Fidel Castro segura a mão do líder soviético Nikita Khrushchev, durante uma visita oficial em Moscou, em 1963. Fonte: BBC Brasil 2 . No início de 1959, em Cuba, a ditadura de Fulgêncio Batista, apoiada pelos Estados Unidos, foi derrubada por Fidel Castro e seus companheiros por meio de uma revolução armada que pretendia instituir um regime socialista. A Revolução Cubana surgiu como um movimento interno, de caráter nacionalista, que reagia contra a prevalente influência americana na ilha, mas, logo após chegarem ao poder, os líderes aproximaram-se da URSS por afinidade ideológica e com propósito de obter apoio militar para blindarem-se contra possíveis invasões americanas. As tensões diplomáticas entre EUA e URSS que haviam escalado significativamente no início da década de 60, chegando a um ponto crítico, culminaram no episódio que ficou conhecido como “A Crise dos Mísseis”, quando o governo americano descobriu bases soviéticas para o lançamento de mísseis balísticos em território cubano. Kennedy 3 deu um ultimato a Nikita Khrushchev (Primeiro Ministro soviético) para a retirada dos foguetes. Essa situação colocou o mundo bem perto de uma guerra nuclear, até que Khrushchev aceitasse as exigências do 2 Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38116465> Acesso em Janeiro de 2019. 3 John Fitzgerald Kennedy, o trigésimo quinto presidente americano, democrata, que governou de 1961, após ser eleito pela primeira vez, até o seu assassinato em novembro de 1963. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38116465 13 presidente norte-americano, em troca de um compromisso formal de absoluto respeito dos EUA pela soberania de Cuba (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.43). Figura 3 - Capa do jornal O Estado de São Paulo de 30 de outubro de 1962. Fonte: Blog Guerra e Armas 4 . A preocupação do governo dos Estados Unidos em assegurar seu controle sobre a América Latina antecedia o traumático evento da Crise dos Mísseis. Ela tinha origem no próprio sucesso da Revolução Cubana e na possibilidade identificada pelo Departamento de Estado americano que outras insurreições comunistas surgissem e se estabelecessem no comando de outros países no vasto continente latino-americano. Consequentemente, os EUA voltaram sua atenção para a América Latina com a missão de impedir que o Comunismo se alastrasse pelo continente. Surgiu a “Aliança para o Progresso”, programa proposto nos primeiros meses de governo do Presidente John Fitzgerald Kennedy, que assumiu o cargo em janeiro de 1961. Primeiro, eu proponho que as Repúblicas Americanas comecem um vasto e novo plano de dez anos para as Américas [...] e se tivermos sucesso, se o nosso esforço for corajoso o suficiente e determinado o suficiente, então o fim dessa década vai marcar o início de uma nova era na experiência americana. Os padrões de vida de toda família americana estarão na escalada, educação básica estará disponível a todos, a fome será uma experiência esquecida, a necessidade por massiva ajuda exterior terá passado, a maioria das nações terão entrado em um período de 4 Disponível em < https://guerraearmas.wordpress.com/2011/02/08/ecos-da-guerra-fria-cuba-e-a-crise-dos- misseis/> Acesso em Dezembro de 2018. https://guerraearmas.wordpress.com/2011/02/08/ecos-da-guerra-fria-cuba-e-a-crise-dos-misseis/ https://guerraearmas.wordpress.com/2011/02/08/ecos-da-guerra-fria-cuba-e-a-crise-dos-misseis/ 14 crescimento autossustentável e, embora, ainda haverá muito o que fazer, toda República Americana será a mestre de sua própria revolução e sua própria esperança e progresso [...] (John Kennedy, discursando aos membros do Congresso Americano e ao corpo diplomático das Repúblicas Latino-Americanas, em uma recepção na Casa Branca em 13 de março de 1961, livre tradução) 5 . O programa tinha como objetivo acelerar o desenvolvimento econômico e social do continente latino-americano, de modo a blindá-lo contra qualquer possível avanço comunista. Com o total apoio do Presidente Kennedy, algumas das melhores mentes em Washington delimitaram os expansivos termos da proposta [...] Kennedy anunciou o compromisso de 20 bilhões de dólares por um período de 10 anos (SMITH in LOWENTHAL, 1991, p.71-72, livre tradução). Figura 4 - O presidente americano John F. Kennedy, fala em uma coletiva de imprensa sobre a partida da delegação estadunidense para a conferência em Punta del Este, Uruguai, em agosto de 1961. Fonte: JFK Library 6 . 5 Disponível em< https://www.jfklibrary.org/Research/Research-Aids/JFK-Speeches/Latin-American-Diplomats- Washington-DC_19610313.aspx> Acesso em agosto de 2018. 6 Disponível em < https://www.jfklibrary.org/asset- viewer/archives/JFKWHP/1961/Month%2008/Day%2002/JFKWHP-1961-08-02-A?image_identifier=JFKWHP- KN-C18461> Acesso em setembro de 2018. https://www.jfklibrary.org/Research/Research-Aids/JFK-Speeches/Latin-American-Diplomats-Washington-DC_19610313.aspx https://www.jfklibrary.org/Research/Research-Aids/JFK-Speeches/Latin-American-Diplomats-Washington-DC_19610313.aspx https://www.jfklibrary.org/asset-viewer/archives/JFKWHP/1961/Month%2008/Day%2002/JFKWHP-1961-08-02-A?image_identifier=JFKWHP-KN-C18461 https://www.jfklibrary.org/asset-viewer/archives/JFKWHP/1961/Month%2008/Day%2002/JFKWHP-1961-08-02-A?image_identifier=JFKWHP-KN-C18461 https://www.jfklibrary.org/asset-viewer/archives/JFKWHP/1961/Month%2008/Day%2002/JFKWHP-1961-08-02-A?image_identifier=JFKWHP-KN-C18461 15 A aliança foi discutida e formalizada em uma conferência interamericana na cidade de Punta del Este, no Uruguai. Os compromissos determinados pela conferência resultaram em um documento: a “Carta de Punta del Este”. Os objetivos na carta centravam na manutenção de governos democráticos e do alcance de desenvolvimento econômico e social; metas específicas incluíam o crescimento sustentado em renda per capita, uma distribuição de renda mais equitativa, desenvolvimento acelerado na indústria e na agricultura, reforma agrária, melhoria da saúde e bem estar social, estabilização dos preços de exportação e estabilidade nos preços domésticos (ENCYCLOPEDIA BRITTANICA, livre tradução) 7 . Os compromissos da Aliança pelo Progresso formalizados na “Carta de Punta del Este” visavam um futuro próspero para os países latino-americanos e suas populações. No entanto, apesar do vigor com o qual essas propostas foram realizadas, o programa perdeu folego. O desenvolvimento socioeconômico da região constituiu-se em tarefa complexa, pois reformas tais quais as propostas pela aliança eram amplamente percebidas pelas elites na América Latina como uma ameaça ao seu poder (SMITH in LOWENTHAL, 1991, p.79, livre tradução). Era primordial aos Estados Unidos assegurar o apoio das elites locais. Liderar reformas que as desagradassem elites latino-americanas poderia proporcionar vantagem ao lado opositor desde a Guerra Fria. Portanto, não é de surpreender que a liderança em Washington recuasse quando chegou a hora de converter as delimitações do seu programa à prática de fato (SMITH in LOWENTHAL, 1991, p.79, livre tradução). Naquele momento o Brasil, maior país da América do Sul, passava por um período de intensa instabilidade econômica e política. O presidente João Goulart era tido por parte da classe política local como alguém que poderia facilitar uma tomada de poder por facções comunistas. Cogitava-se ser ele próprio um comunista. Uma figura decisiva partilhava desse ponto de vista: o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. Gordon comunicou suas preocupações, em uma reunião pessoal com Kennedy, de que João Goulart estaria caminhando para uma ditadura pessoal e populista (GASPARI, 2002, p.59). Kennedy, que uma vez fora contrário a 7 Disponível em < https://www.britannica.com/topic/Alliance-for-Progress#ref42046 > Acesso em agosto de 2018. https://www.britannica.com/topic/Alliance-for-Progress#ref42046 16 apoiar golpes militares na região, acatou a visão de Gordon e passou a considerar a opção militar. Kennedy decidiu reforçar a base militar da embaixada. A reunião com Gordon levou-o a temer uma derrocada, nada menos que a instalação de um regime comunista ao longo de 1963 [...]. Abandonara a política de hostilidade a golpes militares e estava pronto para reconhecer a junta que duas semanas antes derrubara o presidente do Peru (GASPARI, 1991, p.60). Figura 5: O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon. Fonte: Wikimedia Commons 8 A Crise dos Mísseis exacerbou para o governo americano a urgência do combate ao Comunismo na América Latina, o imperativo era certificarem-se de que esses países permaneceriam sob sua esfera de domínio, seja por qual fosse o meio necessário. Em abril de 1964, sob o clamor dos setores mais conservadores da sociedade e com o apoio logístico do governo americano, o Brasil sofreu um golpe militar que inauguraria uma ditadura de 21 anos, alterando para sempre os rumos da história. 8 Disponível em: Acesso em abril de 2019. 17 2. THERE’S NO WAY LIKE THE AMERICAN WAY: Sociedade Americana no Pós-Segunda Guerra. Nas décadas iniciais da Guerra Fria, os EUA adentraram um período de prosperidade econômica e liderança, consolidando posição como principal potência industrial e país líder do mundo capitalista. Dando continuidade à expansão econômica dos anos da Segunda Guerra Mundial que haviam sido unicamente bondosos para aquele país. Ele não havia sofrido dano, aumentou seu PIB em dois terços e terminou a guerra com quase dois terços da produção industrial do mundo (HOBSBAWN, 1995, p.250, livre tradução). A Europa Ocidental, enquanto recuperava-se da destruição causada no continente pela Segunda Guerra Mundial, dependeu fortemente de sua aliança com o governo americano para se reestabelecer. A ajuda americana veio sob a forma de um plano de resgate econômico, denominado “Plano Marshall” e por meio de uma aliança militar com a formação da OTAN. Foi de extremo benefício para os EUA, pois conquistaram o mercado de consumidores nesses países e impediram que a Europa Ocidental pudesse se aproximar do bloco comunista, garantindo hegemonia nesse território. Figura 6 - Cartaz da Alemanha Ocidental, de 1948. Lê-se “Estrada livre para o Plano Marshall”. Fonte: German History Docs 9 . 9 Disponível em Acesso em março de 2019. http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/sub_image.cfm?image_id=2532 18 O Plano Marshall e a recuperação europeia compreendiam uma das frentes sob a qual os Estados Unidos travaram seu combate ao Comunismo. A batalha ideológica também constituiu parte fundamental desse combate. Ela se deu, inclusive, em território americano. Foi instituído a nível governamental, por meio do Congresso Americano, em 1950, o “Comitê de Atividades Antiamericanas”. Sua principal atribuição era investigar a atuação de indivíduos suspeitos de atividades comunistas, considerados “inimigos” e “traidores” dos Estados Unidos. Promovendo uma verdadeira ação de “caça às bruxas” agiu, principalmente, no setor cultural do país (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.16). Figura 7 - O Senador Joseph McCarthy em uma audiência no Congresso Americano, em 1954. Fonte: Lobe Log 10 . Embora tenha sido efetivamente encerrado apenas em 1975, o auge das atividades do Comitê deu-se durante a direção do Senador Joseph Raymond McCarthy, que esteve na posição até 1954. O Macartismo, ou Macarthismo (em inglês McCarthyism), termo originalmente cunhado para descrever a patrulha anticomunista encabeçada pelo Senador, foi capaz até de sacrificar o ideal primordial da Constituição Americana: a liberdade de expressão, pela missão de combater os “detratores ideológicos vermelhos” que poderiam ameaçar a ordem vigente no país. 10 Disponível em < https://lobelog.com/mccarthyism-then-and-now/> Acesso em Fevereiro de 2019. https://lobelog.com/mccarthyism-then-and-now/ 19 Figura 8 - Capa de um quadrinho publicado em 1947 pela Sociedade Educacional Catequética em St. Paul, Minessota. Lê se “Esse é o amanhã? América sob o Comunismo”. Fonte: Open Society 11 . Figura 9 - Capa da revista American Legion publicada em 1951. Lê-se na manchete “As faculdades precisam contratar professores vermelhos? Pais podem livrar os campi de comunistas que se encobrem sob o manto da liberdade acadêmica”. Fonte: Open Society 12 . 11 Disponível em < http://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti- communist-propaganda.html> Acesso em fevereiro de 2019. http://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti-communist-propaganda.html http://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti-communist-propaganda.html 20 Embora o medo da ameaça comunista abalasse a sociedade americana, o país experienciava um período de prosperidade econômica que aflorou no pós- guerra. Um contraste imenso em relação à situação na qual a população americana se encontrava nos anos que seguiram a Crise de 1929, quando a economia nacional entrou em colapso. A renovada posição de estabilidade e liderança do bloco capitalista, que os Estados Unidos passaram a ocupar, estimulava em seu território um crescimento do consumo para que a economia continuasse a prosperar. Esse amplo incentivo ao consumo moldou o estilo de vida do cidadão médio americano de tal modo que este se tornou sinônimo à afluência material e ao consumismo. Com o país perto do pleno emprego e uma economia voltada para o apoio material aos seus aliados da Segunda Guerra Mundial, milhões de norte- americanos viram-se livres da condição de subsistência em que se encontravam na década de 30. [...] Restava aos fabricantes e às agências de publicidade encorajar os cidadãos a consumir cada vez mais, para que a economia interna do país não deixasse de crescer. [...] Esse estilo de vida consumista e material do homem médio norte-americano, fruto de uma propaganda intensiva através dos meios de comunicação de massa, acabou sintetizado em uma expressão: “AMERICAN WAY OF LIFE” (BRANDÃO E DUARTE, 1990, p.17-18). A partir da segunda metade da década de 1950, surge um movimento artístico, na Inglaterra e nos Estados Unidos, que passa a tematizar essas questões, cada vez mais presentes no dia-a-dia das sociedades ocidentais. Os mitos da vida cotidiana: consumismo, industrialização e da cultura de massa. Este movimento, a Arte Pop, viria a se consolidar no início da década de 60. Seus principais expoentes eram Richard Hamilton, no Reino Unido, e Andy Warhol e Roy Lichtenstein, nos EUA. A principal característica dessa tendência artística era incorporar às suas obras, linguagens de mídias de comunicação de massa como revistas, quadrinhos, televisão, propagandas, entre outros. Deixando-se contaminar pelo cotidiano: trouxe para o campo da arte elementos da cultura de massas, da sociedade de consumo, colocando em questão as transformações culturais de seu tempo (RODRIGUES in MELO, 2008, p.200). 12 Disponível em < http://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti- communist-propaganda.html> Acesso em fevereiro de 2019. http://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti-communist-propaganda.html http://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti-communist-propaganda.html 21 Os “mitos da vida cotidiana” que emergem na cultura de consumo, na mídia de massa e na euforia rodeando a tecnologia são ambivalentes. Eles expressam o otimismo geral da construção, mas também a síndrome geral da decadência; a fé no progresso, mas também o medo do desastre – eles representam ambos, sonhos e traumas, luxo e pobreza. A civilização passou a sentir o pesadelo de sua própria vulnerabilidade e destruição. A total disponibilidade de bens de consumo se transformou no problema de uma sociedade descartável na qual os desejos e destinos de indivíduos desaparecem na massa (OSTERWOLD, 2003, p.100). Figura 10 - Campbell Soup Cans, de Andy Warhol, 1962. Fonte: The Museum of Modern Art (MoMA) 13 . Figura 11 - Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing? de Richard Hamilton, 1956. Fonte: Wikipedia 14 13 Disponível em: < https://www.moma.org/collection/works/79809> Acesso em fevereiro de 2019. https://www.moma.org/collection/works/79809 22 3. MAKE LOVE NOT WAR: Movimentos Sociais e Contracultura. A situação de bem estar econômico e social, advinda dos anos de expansão econômica no pós-guerra, não era cotidiana para todos os cidadãos norte- americanos. Ainda estavam presentes, de forma contundente, os resquícios da chamada “Era Jim Crow”. Durante o final do Século XIX, leis institucionalizando a segregação racial (Jim Crow Laws) foram integradas à legislação estadual de alguns estados do Sul que tentaram na Guerra de Secessão (1861-1865) se separar da União para resistir à abolição da escravidão em seus territórios. As leis permaneceram até então, quando as tensões resultantes dessas desumanas legislações chegaram a um ponto de ruptura e surgiu uma oposição organizada que ganharia força no início da década de 60, tendo como principal liderança o pastor Martin Luther King. Figura 12 - Estudantes negros da Faculdade Agrícola e Técnica da Carolina do Norte participam de um “sit-in” em um balcão reservado apenas para clientes brancos, em Greensboro, Carolina do Norte, em 1960. Fonte: Bettmann / Getty Images. Reprodução: AARP 15 . 14 Disponível em: Acesso em março de 2019. 15 Disponível em < https://www.aarp.org/politics-society/history/info-2018/voices-civil-rights-fd.html> Acesso em Janeiro de 2019. https://www.aarp.org/politics-society/history/info-2018/voices-civil-rights-fd.html 23 Uma das principais táticas do movimento em prol dos direitos civis era a organização de atos coletivos de desobediência civil, onde a população negra violava as legislações segregacionistas e ocupava espaços públicos destinados apenas aos brancos, como restaurantes, assentos em transporte públicos e lojas, entre outros. Esses atos pacíficos, denominados “sit-ins”, muitas vezes eram recebidos com esmagadora violência do Estado e até da população civil que concordava com a existência dessas leis. Os seguidores da desobediência civil, como Luther King, acreditavam que o estado nunca enfrentaria deliberadamente o homem do ponto de vista moral ou intelectual. Ao contrário, o estado e os seus aparelhos repressores (polícia, exército, etc.) atacariam o corpo do indivíduo, usando sua grande capacidade de praticar a violência física, pois não possuíam, sequer, inteligência considerável ou honestidade. Portanto o único meio de lutar contra essa poderosa máquina de violência e repressão seria inventar e aplicar táticas inteiramente diferentes das cultuadas pelo Estado, ou seja, “a não violência” (BRANDÃO E DUARTE, 1990, p.37). A reação desproporcional e violenta com a qual esses ativistas negros foram retaliados sensibilizou cada vez mais o restante do país, o que resultou em grandes marchas e mobilizações públicas em apoio à causa. Em uma dessas inúmeras marchas, ocorrida no dia 28 de agosto de 1963, na capital Washington, Martin Luther King fez um icônico e histórico discurso, que sintetizou o espírito e os ideais do movimento dos direitos civis: [...] Existem aqueles que estão perguntando aos devotos dos direitos civis: “Quando vocês estarão satisfeitos?” Nós jamais poderemos estar satisfeitos enquanto o negro é vitima de horrores indescritíveis de brutalidade policial. Nós jamais poderemos estar satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não podem obter hospedagem nos motéis de estrada e nos hotéis da cidade. Nós jamais poderemos estar satisfeitos enquanto a mobilidade básica do negro é de um pequeno gueto a um maior. Nós jamais poderemos estar satisfeitos enquanto nossas crianças são despidas de sua individualidade e roubadas de sua dignidade por avisos dizendo “Para brancos apenas”. Nós jamais poderemos estar satisfeitos enquanto um negro no Mississipi não pode votar e um negro em Nova York acredita que ele não tem nada por que votar. Não, não, nós estamos satisfeitos. [...] Eu digo a vocês hoje, meus amigos, que apesar das dificuldades e frustrações do momento, eu ainda tenho um sonho. É um sonho com profundas raízes no sonho americano. Eu tenho um sonho que um dia essa nação vai se elevar e vivenciar o verdadeiro significado de sua crença – nós consideramos que essas verdades são autoevidentes: que todos os homens são criados iguais. Eu tenho um sonho de que um dia nas colinas vermelhas da Georgia os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos donos de escravos serão capazes de sentar juntos em uma mesa de fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia até o estado do Mississipi, um estado deserto, sufocando com o calor da injustiça e opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que os meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde eles não serão julgados pela cor de sua pele, mas sim pelo conteúdo de seu 24 caráter. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho hoje! (Martin Luther King, discursando à marcha em Washington por empregos e liberdade, em 28 de agosto de 1963, livre tradução 16 ). Figura 13 - Marcha em Washington por empregos e liberdade, em 28 de agosto de 1963. Martin Luther King ao centro. Fonte: Enciclopédia Britânica 17 . Figura 14 - Martin Luther King discursa durante a Marcha em Washington. Fonte: ABC News 18 . 16 Disponível em < http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/3170387.stm> acesso em 01/09/2018. 17 Disponível em acesso em Janeiro de 2019. 18 Disponível em < https://abcnews.go.com/US/things-make-dream-famous-speeches- history/story?id=20068795> acesso em março de 2019. http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/3170387.stm https://www.britannica.com/event/March-on-Washington/media/636444/9456 https://abcnews.go.com/US/things-make-dream-famous-speeches-history/story?id=20068795 https://abcnews.go.com/US/things-make-dream-famous-speeches-history/story?id=20068795 25 A intensa mobilização gerada pelo movimento teve sucesso, fazendo com que suas principais demandas fossem atendidas, pondo fim a uma longa e desumana era de segregação racial institucionalizada nos EUA. Em 1964, o presidente Lyndon Johnson assinou a “Lei dos Direitos Civis”, que proibia quaisquer políticas de segregação em estabelecimentos públicos e privados em todo o território do país e, no ano seguinte, em 1965 entrou em vigência “Lei dos Direitos de Votos” que instituía a igualdade do direito de voto a todos os cidadãos americanos, sem discriminação racial impedindo uma parte da população de exercer direitos no processo democrático. Embora ainda existissem inúmeros problemas e injustiças a serem enfrentadas pela comunidade negra americana, a vitória do movimento em prol dos direitos civis trouxe mudanças de proporções históricas para aquela população. Os primeiros passos em direção à cidadania plena, que foram conquistadas por um movimento organizado em torno de atos de desobediência civil e protestos não violentos, baseados na proposta de que o modo de se vencer os instrumentos de repressão do governo e sua rápida disposição a recorrer à violência, era por meio da resistência pacífica. O movimento permaneceu atuando até os últimos anos da década e o êxito de sua tática de não violência moldaria de modo definitivo os métodos e termos sobre os quais a contestação social se manifestaria daqui para frente, nos EUA e no restante do mundo ocidental. A influência do movimento dos direitos civis fez-se presente especialmente, pouco tempo depois, quando a juventude ocidental, sobretudo nos Estados Unidos e Europa e, em menores proporções, na América Latina, organizou sua indignação por meio de manifestações socioculturais em um fenômeno que ficou conhecido como Contracultura. Uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas instituições das sociedades do Ocidente (MACIEL apud PEREIRA, 1983, p.13). As manifestações culturais de juventude surgidas nos anos 60, que levam o nome de Contracultura tiveram sua gênese a partir da Guerra Fria e efeitos na organização das sociedades capitalistas ocidentais. Esses países, com destaque aos Estados Unidos, em virtude do sucesso de suas economias capitalistas e a 26 consequente demanda por coesão social, tornaram-se o que, o teórico inaugural da contracultura Theodore Roszak define como Tecnocracia: Forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional. É o ideal que geralmente as pessoas têm em mente quando falam de modernização, atualização, racionalização, planejamento. Com base em imperativos incontestáveis como a procura de eficiência, a segurança social, a coordenação em grande escala de homens e recursos, níveis cada vez maiores de opulência e manifestações crescentes de força humana coletiva, a tecnocracia age no sentido de eliminar as brechas e fissuras anacrônicas da sociedade ocidental (ROSZAK, 1972, p.19). A Tecnocracia trata-se, portanto, de uma lógica totalizante cuja principal função é manter o funcionamento eficiente dessas sociedades modernas e altamente produtivas. Era possível observar tal processo claramente no funcionamento da vida americana nos anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial. Não só o “American Way of Life” (estilo de vida americano) era indissociável da cultura do consumismo e da manutenção do capitalismo, como instituições rejeitavam e ativamente perseguiam discursos vistos como subversivos e ameaçadores ao sistema vigente, principalmente sob a sombra do medo do Comunismo, na dinâmica já consolidada de embate ideológico da Guerra Fria, como ocorreu durante o auge do Macartismo. Conforme a Guerra Fria se acirrava, intensificavam-se as bases que sustentariam a revolta da juventude americana contra a ordem estabelecida. No início da década de 60, o governo americano envolveu-se na Guerra do Vietnã, um conflito entre o Norte e o Sul do país, que encontravam-se divididos entre facções pró-comunistas e facções pró-americanas. Devido ao constante medo por parte do governo americano que caso um país em qualquer região se tornasse comunista, os outros ao redor o seguiriam, em um efeito dominó. Por isso após adentrarem ao conflito ampliaram o envolvimento de tropas americanas. O sentimento antiguerra acabou sendo, por fim, a faísca que inflamou a rejeição à ordem vigente. Em uma das demonstrações públicas mais memoráveis, o movimento jovem, em 21 de outubro de 1967, levou 100 mil pessoas à capital americana Washington protestar contra o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã. 27 Figura 15 - Protestantes em 21 de outubro de 1967. Lê-se no cartaz “Dê o fora do Vietnã”. Fonte: Wikimedia Commons 19 . O que distingue a Contracultura de outras manifestações de cunho político da história contemporânea é modo que sua principal arena de disputa foi o cenário cultural. Ao invés de buscar conquistas legislativas específicas dentro do jogo democrático, como faria uma movimentação civil típica, a contracultura tinha como objetivo questionar e valores e costumes da sociedade, buscando renovação radical nesse sentido. Segundo o que aponta Roszak esses jovens que protagonizavam a contracultura perceberam que as táticas convencionais de resistência política ocupam posição marginal [...]. Para além dessas questões imediatas, entretanto, jaz 19 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vietnam_War_protestors_at_the_March_on_the_Pentagon.jpg 28 a tarefa maior de alterar todo o contexto cultural em que tem lugar a política cotidiana (ROSZAK, 1972, p.20). Por essa razão, o movimento “hippie” foi a via pela qual a contracultura se consolidou e trouxe significativo impacto que moldaria a cultura ocidental por décadas a fio. Uma manifestação cultural que celebrava a paz e o amor, a confrontação com os valores moralistas das gerações mais velhas, a alteração da consciência por meio do consumo de substâncias lisérgicas. Contavam com código próprio de vestimenta e estilo musical. Na música, durante o final da década de 60, o movimento “hippie” foi particularmente afluente por meio do rock psicodélico. Figura 16 - Os Beatles, a mais importante banda de rock da década de 60, incorporaram a partir de 1967, a psicodelia ao seu catálogo musical, quando produziram sua obra de maior relevância, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Fonte: Rolling Stone 20 . Esse movimento teve expressão gráfica por meio de cartazes e capas de discos. Essas peças se notabilizaram por suas cores saturadas e uso de linhas curvas que simulavam a experiência alucinógena. As ornamentadas e quase ilegíveis tipografias usadas em muitos cartazes, assim como as sinuosas e rodopiantes linhas, já eram um código visual legível para aqueles que já eram doutrinados no uso de psicodélicos, mas também eram derivados de movimentos de Design da virada do século, entre eles a Art Noveau e a Secessão de Viena (THE MUSEUM OF MODERN ART, livre tradução). 20 Disponível em: Acesso em Janeiro de 2019. https://www.rollingstone.com/music/music-album-reviews/review-the-beatles-sgt-peppers-anniversary-editions-reveal-wonders-121092/ https://www.rollingstone.com/music/music-album-reviews/review-the-beatles-sgt-peppers-anniversary-editions-reveal-wonders-121092/ 29 Figura 17 - Capa do disco The Psychedelic Sounds of The 13th Floor Elevators, da banda The 13th Floor Elevators, 1967. Projeto gráfico de John Cleveland. Fonte: Wikipedia. 21 Figura 18 - Cartaz divulgando a apresentação das bandas The Yardbirds e The Doors em San Francisco, 1967. Projeto gráfico de Bonnie Maclean. Fonte: The Museum of Modern Art (MoMA). 22 Disponível em: Acesso em abril de 2019. 22 Disponível em: Acesso em abril de 2019. 30 4. O TEMPO RODOU NUM INSTANTE: Brasil no Início da Década de 60. No Brasil, os anos 60 foram uma década de intensa agitação e instabilidade política. As tensões locais do cenário político amplificadas como consequência do acirramento da rivalidade entre EUA e URSS levariam o país a alterar severamente os rumos de governança, dando início, em 1964, a uma era de autoritarismo que perduraria por até meados da década de 80. O país inaugurou a década sob os anos finais do governo de Juscelino Kubitschek, popularmente chamado “JK” (1956 - 1961). Até então o Brasil vivenciava uma breve e recente experiência democrática, iniciada em 1945 após o fim do período ditatorial conhecido como Estado Novo, liderado pelo populista Getúlio Vargas. Figura 19 - Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil de 1956 a 1961. Fonte: Wikimedia Commons 23 . Essa nova república se estruturava como um sistema presidencialista, com mandatos de cinco anos, onde o direito e a obrigação de votar eram conferidos aos brasileiros alfabetizados, maiores de 18 anos, de ambos os sexos (FAUSTO, 2014, p.221). Mesmo tratando-se de um período onde a nação era governada por 23 Disponível em: Acesso em Fevereiro de 2019. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Juscelino.jpg 31 representantes eleitos pelo voto popular, pode-se questionar a existência de uma cidadania plena para a maioria dos brasileiros. O país ainda era marcado por uma intensa desigualdade social. Kubitschek era o terceiro presidente na linha sucessória democrática, precedido apenas pelos mandatos de Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas. Foi eleito com a promessa de modernizar o Brasil, com o “Plano de Metas”, fazendo-o progredir “cinquenta anos em cinco”. Foi este, inclusive, o slogan de campanha que sintetizava a visão para o país. O apelo da proposta estava na promessa das superações dos problemas internos do país por meio dessa rápida modernização e avanço propostos, que trariam, em teoria, mais riqueza, mais empregos, fazendo que o Brasil superasse condição subdesenvolvida e proporcionaria uma experiência capitalista mais próxima à do primeiro mundo. O Governo JK promoveu uma ampla atividade do estado tanto no setor de infraestrutura como no incentivo direto à industrialização. Mas assumiu também abertamente a necessidade de atrair capitais estrangeiros, concedendo-lhes inclusive grandes facilidades. [...] Os resultados do Programa de Metas foram impressionantes, sobretudo no setor industrial. Entre 1956 e 1961, o valor da produção industrial, descontada da inflação, cresceu em 80%. [...] De 1957 a 1961, o PIB cresceu a uma taxa anual de 7%, correspondendo a uma taxa per capita de quase 4%. Se considerarmos toda a década de 1950, o crescimento do PIB brasileiro per capita foi aproximadamente três vezes maior do que o resto da América Latina (FAUSTO, 2014, p.236). Talvez a herança mais marcante do Governo JK, no imaginário popular nacional, como a síntese do projeto de modernização da infraestrutura do país, tenha sido a construção da nova capital, Brasília. As figuras centrais da idealização de Brasília, o arquiteto Oscar Niemeyer e o urbanista Lúcio Costa, profissionais de renome nas respectivas áreas, foram encarregados por JK com a responsabilidade de projetar uma cidade do futuro, símbolo da renovação nacional que era sua principal bandeira. A nova capital, localizada no planalto central, foi inaugurada em abril de 1960. As melhorias proporcionadas pelo “Plano de Metas”, o avanço da produção industrial e o crescimento da classe média, não vieram apenas com um saldo positivo, afinal essa política desenvolvimentista, dependeu muito de empréstimos no exterior para custear os investimentos estatais em infraestrutura do governo. Isso provocou o crescimento da dívida externa e uma violenta inflação interna (25% em 32 1960), disso resultando o aumento do custo de vida, com a consequente diminuição do poder de compra dos salários (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.31). Figura 20 - Inauguração de Brasília em 21 de abril de 1960. Fonte: O Globo (Acervo) 24 . Nesse contexto de crise econômica que passou a se construir no final do Governo JK, surgiu uma oposição conservadora e um terreno fértil para o surgimento de um populista com ares de “salvador da pátria”. Este seria o próximo Presidente do Brasil: Jânio Quadros. A campanha de Quadros centrou-se no seu apelo populista e exibicionista, no qual, caso eleito, seria responsável por varrer toda a corrupção da administração pública e restaurar a moral nacional. Cresceu de tal forma no cenário político nacional que foi consagrado com a maior votação já verificada até então em toda a história do Brasil (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.60) e foi o primeiro presidente a tomar posse em Brasília em 1961 encarnando as esperanças do futuro (FAUSTO, 2014, p.241). 24 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. https://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/jk-inaugura-brasilia-9385770 33 Figura 21 - Jânio Quadros, ao centro, segurando uma vassoura. Símbolo da sua campanha eleitoral. Fonte: História Hoje 25 . Apesar de toda a promessa e esperança de renovação identificada na figura de Jânio as atitudes em governo não foram efetivas em amenizar a instabilidade socioeconômica que se dava naquele momento. Pelo contrário, medidas iam no sentido de multiplicar as tensões daquele período. Jânio começou a governar de forma desconcertante. Ocupou-se de assuntos desproporcionais à importância do cargo que ocupava, como a proibição do lança-perfume, do biquíni e das brigas de galos. No plano das medidas mais sérias, combinou iniciativas simpáticas à esquerda com medidas simpáticas aos conservadores. De algum modo, desagradava ambos (FAUSTO, 2014, p.241). No campo econômico realizou tentativas de conter a crise financeira optando por um pacote ortodoxo de estabilização, envolvendo uma forte desvalorização cambial, contenção de gastos públicos e de expansão monetária (FAUSTO, 2014, p.242). Foram em suas ações relativas à política externa, nas quais Jânio encontrou a maior oposição da UDN, partido que integrava a base aliada de Jânio e que representava a maior força política conservadora do país na época. Frente às 25 Disponível em: . Acesso em fevereiro de 2019. http://historiahoje.com/corrupcao-a-vassourinha-de-janio-quadros/ 34 polarizações que se montavam no começo da década no conflito da Guerra Fria, Jânio tentou posicionar o Brasil em uma terceira via, não posicionado totalmente em favor de nenhum dos dois blocos do conflito. Uma das ações mais inusitadas ocorreu pouco depois da reunião interamericana em Punta del Este, Uruguai, onde foram formalizadas as proposições da “Aliança para o Progresso”. A delegação cubana, chefiada por Che Guevara, não assinou a Carta de Punta del Este. Ao retornar a Cuba, Guevara fez uma escala em Brasília, onde recebeu das mãos de Jânio uma significativa condecoração - a Ordem do Cruzeiro do Sul (FAUSTO, 2014, p.242). Figura 22 - Jânio Quadros condecora Che Guevara em 20 de agosto de 1961. Fonte: O Globo (acervo) 26 . Por consequência do modo como governava, Jânio acabou desgastando o apoio da base no Congresso, de modo que um dos partidos aliados mais importantes, a UDN (União Democrática Nacional), o abandonasse e passasse a 26 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. https://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/janio-da-eleicao-renuncia-9631249 35 integrar a oposição. Em agosto de 1961, poucos meses após ter assumido o comando da presidência, Jânio renunciou ao cargo. A renúncia não chegou a ser esclarecida. O próprio Jânio negou-se a dar uma versão clara dos fatos, aludindo sempre às “forças terríveis” que o levaram ao ato. A hipótese mais provável combina os dados de uma personalidade instável com um cálculo político equivocado. Segundo essa hipótese, Jânio esperava obter, com um lance teatral maior soma de poderes para governar, livrando-se até certo ponto do Congresso e dos partidos (FAUSTO, 2014, p.243). O homem que assumiria o poder na eventualidade da renúncia de Jânio era uma figura polarizadora dentro da política nacional: João Goulart. Na época, as eleições do presidente e do vice-presidente ocorriam em chapas separadas. Havendo, portanto, a possibilidade que se fossem eleitos um presidente e um vice advindos de partidos e correntes políticas distintas. Era o caso de Jânio Quadros e João Goulart. Figura 23 - João Goulart, presidente do Brasil de 1961 a 1964. Fonte: Wikimedia Commons 27 . Goulart, mais conhecido pelo seu apelido Jango, era um político oriundo do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que fora fundado por Getúlio Vargas após o fim do Estado Novo. A agenda de reformas populistas contrariava os interesses da elite nacional. Jango, que já havia sido eleito vice no mesmo ciclo eleitoral que JK e foi 27 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jango.jpg 36 reeleito em 1961, era rechaçado pelas alas mais conservadoras da política, pelas quais era visto como um suposto comunista. O cálculo de Jânio baseou-se na suposição de ele que obteria apoio popular por parte daqueles que haviam lhe concedido uma votação histórica no início daquele ano e que a base política conservadora também clamaria por seu retorno, temendo que Jango assumisse a presidência. Não foi o que aconteceu. Em agosto de 1961, com apenas sete meses, encerrou-se o controverso mandato de Jânio Quadros. Esta precoce renúncia levou o povo à descrença no sistema político brasileiro (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.60). Enquanto Jânio renunciava, Jango encontrava-se fora do país em uma visita à China. Uma eventualidade da qual os setores da política que mais se opunham a ele queriam aproveitar, para impedir que assumisse o cargo de presidente, que lhe pertencia legitimamente. A constituição não deixava dúvidas quanto à sucessão de Jânio; deveria assumir o vice-presidente João Goulart. Entretanto a posse ficou em suspenso, diante da iniciativa de setores militares que viam nele a encarnação da república sindicalista e a brecha por onde os comunistas chegariam ao poder. Por um acaso carregado de simbolismo, Jango encontrava-se ausente do país, em visita à China comunista (FAUSTO, 2014, p.243). Foi permitido o retorno de Jango ao Brasil com a concessão de que ele assumisse a presidência sob um novo sistema parlamentarista, na qual ele teria poderes limitados pelo Congresso. A solução destinada a apaziguar os receios daqueles que temiam sua presidência, o parlamentarismo, não teve longa duração. Em janeiro de 1963, cerca de 9,5 milhões de um total de 12,3 milhões de votantes responderam “não” ao parlamentarismo. Retornava assim o sistema presidencialista, com João Goulart na chefia do governo (FAUSTO, 2014, p.251). Embora a decisão pelo retorno do sistema presidencialista tenha se dado de forma expressiva, contando com aproximadamente 77% dos votantes, não foi um fator capaz de conter as instabilidades que se desenhavam com intensidade no período. Somada à crise política desencadeada após a renúncia de Jânio Quadros, a situação de crise econômica herdada dos finais do Governo JK só se recrudescera, lançando o país em uma dura recessão. 37 A inflação fora de 50% em 1962 para 75% no ano seguinte. Os primeiros meses de 1964 projetavam uma taxa anual de 140%, a maior do século. Pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra a economia registrara uma contração na renda per capita dos brasileiros. As greves duplicaram de 154 em 1962, para 302 em 1963. O governo gastava demais e arrecadava de menos, acumulando um déficit de 504 bilhões de Cruzeiros. (GASPARI, 2002, p.48). A devastadora situação econômica foi um estopim para que as tensões relativas à ampla desigualdade social do país começassem a efervescer cada fez mais, tanto no território rural quanto urbano. Os setores esquecidos do campo – verdadeiros órfãos da política populista – começam a se mobilizar (FAUSTO, 2014, p.244), sendo o mais importante deles o movimento das ligas camponesas. Outro setor da população intensificou sua mobilização: os estudantes, que através da UNE, radicalizaram suas propostas de transformação social e passaram a intervir diretamente no jogo político (FAUSTO, 2014, p.245). Figura 24 - O Povo Canta, disco gravado pelo Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE em 1961. Fonte: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) - FGV 28 . O projeto da UNE de empreender transformações sociais de fato, envolvia adotar a produção artística e cultural como instrumento de militância. Surgem, portanto, associados a UNE, os Centros Populares de Cultura ou os CPCs. 28 Disponível em Acesso em março de 2019. https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/Centro_Popular_de_Cultura 38 Colocando na ordem do dia a definição de estratégias para a construção de uma cultura “nacional, popular e democrática” de esquerda. Atraindo jovens intelectuais, os CPCs, organizados por todo o país, tratavam de desenvolver uma cultura engajada de atitude conscientizadora junto às classes populares. Com isso um novo tipo de artista, “revolucionário e consequente” ganhava forma (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.61). Fortalecido politicamente pelo plebiscito que reinstituiu integralmente os poderes de presidente, Jango colocou à frente a agenda central de seu governo, uma série de medidas, que ficaram conhecidas como as “reformas de base”. Figura 25 - Jango discursa a favor das reformas de base em comício na Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Fonte: Pragmatismo Político 29 . 13 de março de 1964: Comício das Reformas (ou da Central do Brasil) no Rio de Janeiro, em frente ao prédio do ministério da Guerra, com a presença de cerca de 150 mil pessoas. João Goulart discursa proclamando a necessidade de mudar a constituição do Brasil e de implementar as reformas de base e assina nesse sentido dois decretos: o de encampação das refinarias de petróleo particulares e o chamado decreto da Supra - Superintendência de Política Agrária, considerado o primeiro passo na efetivação da reforma agrária. [...] Esse comício seria o primeiro de uma série planejada tendo em vista mobilizar a população das maiores cidades do Brasil para as reformas. 29 Disponível Acesso em março de 2019. https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/04/o-discurso-historico-de-jango-comicio-da-central.html https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/04/o-discurso-historico-de-jango-comicio-da-central.html 39 15 de março de 1964: João Goulart envia uma mensagem no Congresso solicitando apoio às reformas de base (D’ ARAUJO, SOARES e CASTRO, 1994, p.27-28). As reformas de base abordavam uma série de questões que demandavam reestruturação para que uma porção maior da população brasileira pudesse ter uma experiência de cidadania plena. Os pontos principais eram a reforma política que estenderia aos analfabetos e aos militares de baixa patente, o direito ao voto. Além disso, uma série de outras reformas socioeconômicas, que intensificariam a intervenção do estado na economia do país, com o objetivo de amenizar desigualdades. A mais polarizadora era a proposta da reforma agrária que buscava estender a posse de terra para milhões de trabalhadores e apaziguar os conflitos no campo. As mudanças que seriam trazidas por essas reformas de base desafiavam o status quo e, portanto as classes dominantes eram vigorosamente contrárias a sua implementação. As reformas de base não se destinavam a implantar uma sociedade socialista. Eram uma tentativa de modernizar o capitalismo e reduzir as profundas desigualdades sociais dos pais a partir da ação do estado. Isso porém implicava uma grande mudança, à qual as classes dominantes opuseram forte resistência (FAUSTO, 2014, p.245). Se já havia uma ferrenha oposição a Jango entre os setores mais conservadores da sociedade, se agravou após o anúncio das reformas de base. A acusação de que ele era um comunista, embora hiperbólica, tomou força, não apenas entre militares, mas também entre certos setores da sociedade civil, assustados com a possibilidade de a esquerda tomar o poder no país. Igreja, empresários e classe média (D’ ARAUJO, SOARES e CASTRO, 1994, p.14). Principalmente em meio ao contexto internacional da Guerra Fria e a paranoia em relação à iminente ameaça comunista que vinha aliada. Ocorreram diversas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, onde os setores da sociedade civil que se opunham a Jango rechaçaram as reformas de base. A primeira e maior ocorreu no dia 19 de março de 1964 em São Paulo, que contou com a adesão de 300 mil pessoas. 40 Figura 26 - Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Fonte: Revista Religacion 30 . Jango passara a ser também pessoa de interesse do governo americano que, nesse momento, já estava disposto a proporcionar apoio logístico e financeiro a golpes de estado na América do Sul e Central, de modo a assegurar hegemonia na região. No dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício da Central, o presidente Lyndon Johnson autorizara a formação de uma força naval para intervir na crise brasileira, caso isso viesse a parecer necessário (GASPARI, 2002, p.61). Internamente se colocaram em prática as articulações para que Jango fosse deposto. Em 1º de abril de 1964 é dado o golpe militar, que daria início a uma ditadura de 21 anos. Longe de ser um mero hiato na luta popular pelo poder político, o golpe militar de 1964 deu início a um prolongado período de governo autoritário [...] valores sociais e culturais arcaicos e reacionários ganharam ascendência. Demonstrações públicas iniciais de apoio aos militares sugeriam uma reafirmação do patriotismo raso, do catolicismo tradicional, de valores familiares patriarcais e de um vigoroso anticomunismo (DUNN, 2009, p.64). 30 Disponível em . Acesso em fevereiro de 2019. http://revista.religacion.com/assets/11_torres_duas_marchas.pdf 41 Figura 27 - Tanques ocupam o Palácio das Laranjeiras, como parte da ação nacional do Golpe, em 31 de março de 1964. Fonte: Toda matéria 31 . 31 Disponível em < https://www.todamateria.com.br/golpe-militar-de-1964/> Acesso em fevereiro de 2019 https://www.todamateria.com.br/golpe-militar-de-1964/ 42 5. UM POETA DESFOLHA A BANDEIRA: Cenário Musical Nacional na Primeira Metade da Década de 60. Os anos inaugurais do regime militar trouxeram uma série de medidas autoritárias. O poder executivo, agora sobre comando do General Humberto Castelo Branco passou a governar por meio dos chamados Atos Institucionais, dispositivos legislativos que se sobrepunham à constituição vigente, ampliando os poderes do governo militar e legitimando as ações de cerceamento das liberdades democráticas. Com publicação do primeiro Ato Institucional em 9 de abril de 1964 os militares se concederam uma série de poderes excepcionais. Entre outras proposições delimitadas, a partir do AI -1 iniciou-se a repressão dos opositores ao governo, por meio de prisões e torturas. Mas o sistema ainda não era inteiramente fechado. Existia a possibilidade de se utilizar do recurso do habeas corpus perante os tribunais e a imprensa se mantinha relativamente livre (FAUSTO, 2014, p.258). Os setores da população mais mirados pela perseguição do regime foram aqueles que cuja mobilização teve destaque nos anos do governo Jango. Nas áreas urbanas, os sindicatos e a União Nacional dos Estudantes (UNE), e nas áreas rurais, as ligas camponesas. A repressão desencadeada pelo governo militar incluiu a dissolução de diversas organizações de esquerda (UNE, CGT, PUA, etc.). As greves foram consideradas ilegais e cerca de 425 sindicatos colocados sob intervenção (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.63). Do mesmo modo que ocorreu com a imprensa, durante os primeiros anos de governo militar houve relativa liberdade artística (DUNN, 2009, p.64). Com os meios institucionais de militância, como sindicatos e a própria União Nacional dos Estudantes sendo dissolvidos e caindo para ilegalidade, a cultura passaria a ser uma importante via de contestação ao regime militar, para alguns se tornando um instrumento de militância. O projeto de uma produção cultural engajada sujeita ao propósito de transformação social e política, não surgiu como consequência do golpe. Ele teve sua gênese durante os conturbados anos do governo Jango, nos centros populares 43 de cultura da, agora clandestina, UNE. Para muitos, esse projeto tornou-se ainda mais urgente frente ao regime de exceção iniciado em abril de 1964. Figura 28 - Depredação e incêndio do prédio da UNE no Flamengo, Rio de Janeiro, na madrugada de 1º de abril de 1964. Fonte: Memorial da Democracia 32 . Os rumos da música popular, talvez a mais importante faceta da cultura nacional, foram alterados por essa dinâmica. Desde meados dos anos 1950, a “Bossa Nova” foi a corrente musical predominante no país. É na primeira metade da década de 60 que alguns notáveis integrantes da Bossa Nova como Carlos Lyra, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, entre outros, passam a aproximar-se dos CPCs da UNE e passam tematizar em canções os problemas experienciados pelas camadas mais desavantajadas da sociedade brasileira. Esses músicos desenvolveram novas tendências baseadas em tradições musicais do Brasil rural, especialmente do Nordeste, devido à constante preocupação com a injustiça social, a pobreza e autenticidade cultural (DUNN, 2009, p.77). A corrente musical inaugurada por esses músicos viria a ser conhecida como “nacionalista participante” ou “canção de protesto”. 32 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. http://memorialdademocracia.com.br/card/golpe-militar-depoe-governo-constitucional 44 Surgiu analogamente à tendência nacionalista participante uma outra ramificação da Bossa Nova. Esse segundo grupo, contando com intérpretes, como Elis Regina, Jair Rodrigues e Wilson Simonal desenvolveu uma Bossa Nova mais jazzística (DUNN, 2009, p.77). Figura 29 - Os cantores Elis Regina e Jair Rodrigues, comandavam na TV Record o programa O Fino da Bossa onde recebiam outros músicos associados à MPB. Fonte: O Globo 33 . As duas correntes, unidas, formavam uma “segunda geração da Bossa Nova”. Eram um grupo que em seu escopo temático e de musicalidades agregadas demonstrava-se bem heterogêneo. A música desse grupo veio a ser chamada, até o final da década de “Música Popular Brasileira” ou MPB. Os artistas da MPB, apesar dessa heterogeneidade descrita, tinham uma missão em comum: defender as tradições musicais brasileiras dos efeitos da música popular importada, em especial o rock’n’roll (DUNN, 2009, p.77). A oposição à influência da música pop estrangeira sobre a nacional era, para esses músicos, antes de tudo, um gesto anti-imperialista. Eles consideravam os roqueiros brasileiros imitadores patéticos e equivocados, sob a insidiosa influência da hegemonia cultural norte-americana (DUNN, 2009, p.79). Esse posicionamento anti-imperialista e as temáticas de protesto abordadas pela MPB causaram grande impacto junto a um determinado setor da sociedade: os estudantes universitários, tendo em vista a situação política em que vivíamos 33 Disponível em < https://oglobo.globo.com/cultura/veja-imagens-da-carreira-de-jair-rodrigues-12419917>. Acesso em fevereiro de 2019 https://oglobo.globo.com/cultura/veja-imagens-da-carreira-de-jair-rodrigues-12419917 45 (RODRIGUES, 2007, p.26). As escolhas musicais denotavam mais do que meras preferências para esse público, eram um posicionamento político de resistência. A Jovem Guarda, o outro movimento musical de destaque no início da segunda metade da década de 60, era amplamente influenciado pelo rock’n’roll. Tanto, que o ritmo musical da Jovem Guarda era conhecido como “Iê Iê Iê”. Uma referência ao refrão da música She Loves You, dos Beatles (She Loves You, Yeah Yeah Yeah). Figura 30 - Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos. Principais integrantes da Jovem Guarda. Fonte: Gaúcha ZH 34 . Muito embora encontrassem resistência por parte dos seus contemporâneos emepebistas, o grupo da Jovem Guarda, liderado por Roberto Carlos, obteve enorme sucesso comercial. A Jovem Guarda era um fenômeno popular que atraía um número enorme de fãs entre a classe baixa e a classe média urbanas. A imagem de uma rebeldia jovem, porém apolítica, projetada pela Jovem Guarda se tornou extremamente útil para gravadoras e outros fabricantes de itens de consumo que buscaram se beneficiar do crescente mercado da “cultura jovem” (DUNN, 2009, p.80-81). Esse mercado da cultura jovem foi, conjuntamente à incorporação das guitarras e da apropriação dos ritmos do rock internacional, a grande novidade 34 Disponível em < https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2017/05/50-anos-da-jovem- guarda-e-tema-de-documentario-em-cartaz-na-capital-9800458.html> Acesso em fevereiro de 2019 https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2017/05/50-anos-da-jovem-guarda-e-tema-de-documentario-em-cartaz-na-capital-9800458.html https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2017/05/50-anos-da-jovem-guarda-e-tema-de-documentario-em-cartaz-na-capital-9800458.html 46 trazida pela Jovem Guarda. O movimento pode ser considerado fruto de uma bem montada operação de marketing segmentado. Tudo ali era calculado para gerar vendas (MELO, 2008, p.47). A dicotomia entre Jovem Guarda e MPB, por um breve momento, ocupou o debate cultural nacional. Essa disputa encontrava lastro, inclusive, nas emissoras de TV que davam programas aos dois grupos para que batalhassem por audiência. Frente ao sucesso comercial da Jovem Guarda, os músicos da MPB se organizaram para demonstrar seu compromisso em proteger a música nacional da influência do rock e das guitarras. Em 1967, grandes nomes da MPB como Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo, MPB-4, Zé Keti, Geraldo Vandré, entre outros, unificando sobre a alcunha de “Frente Única da Música Popular Brasileira” realizaram a “Marcha contra a Guitarra Elétrica”. Figura 31 - Marcha contra a Guitarra Elétrica. Fonte: Revista Fórum 35 . O evento serviu como um exemplo notável de como os termos da resistência política tinham sido transferidos para a luta cultural. Mas o gesto anti-imperialista imbuído de ideais elevados também eclipsou motivações mais rasas e comerciais, relativas à concorrência no mercado do entretenimento televisionado (DUNN, 2009, p.82). 35 Disponível em < https://www.revistaforum.com.br/os-50-anos-da-marcha-contra-guitarra-eletrica/> Acesso em fevereiro de 2019. https://www.revistaforum.com.br/os-50-anos-da-marcha-contra-guitarra-eletrica/ 47 6. A MANHÃ TROPICAL SE INICIA: O Movimento Tropicalista. Nesse contexto de divisão, um grupo de jovens músicos baianos, tendo como seus principais representantes Caetano Veloso e Gilberto Gil, proporia um novo rumo para a música. Um deles, Gil, participara da “Marcha Contra a Guitarra Elétrica”, a pedido de sua amiga Elis Regina, mas sua obra musical iria na contramão do sentimento de rejeição ao rock e suas sonoridades. Figura 32 - Caetano Veloso e Gilberto Gil. Fonte: Universo Retrô 36 . Por um lado identificavam-se com os artistas da MPB e apreciavam sua qualidade musical. Porém viam a reação negativa exacerbada que eles tinham em relação ao rock, às guitarras elétricas e à própria Jovem Guarda, como equivocada. Caetano Veloso, principalmente, percebia o valor da Jovem Guarda como um fenômeno pop. Enquanto muitos artistas da MPB consideravam a Jovem Guarda como uma aberração, uma suspensão da memória popular e uma traição à cultura nacional. Caetano a percebia como uma expressão da modernidade urbana, apesar de não apresentar a sofisticação musical e poética da MPB. Os jovens artistas podiam absorver e transformar o rock, da mesma forma 36 Disponível em< https://universoretro.com.br/50-anos-da-prisao-e-o-exilio-de-caetano-veloso-e-gilberto-gil/> Acesso em Janeiro de 2019 https://universoretro.com.br/50-anos-da-prisao-e-o-exilio-de-caetano-veloso-e-gilberto-gil/ 48 como os inventores da Bossa Nova se apropriaram criativamente do jazz (DUNN, 2009, p.82). O novo grupo começa a articular uma proposição de uma nova sonoridade. Essa nova sonoridade não envolvia um novo estilo ou gênero em si, mas uma fusão entre os ritmos mais variados, inclusive aqueles que naquele momento eram posicionados como oponentes. Residia aí a inovação desses músicos, que viriam a ser conhecidos como Tropicalistas. A colagem de ritmos, ideias e conceitos que eram plurais e contraditórios em uma musicalidade única. Desconfiando dos mitos nacionalistas e do discurso militante do populismo, percebendo os impasses do processo cultural brasileiro e recebendo informações dos movimentos culturais e políticos da juventude que explodiram nos EUA e na Europa – os hippies, o cinema de Goddard, os Beatles, a canção de Bob Dylan – esse grupo passa a desempenhar um papel fundamental não só para a música popular, mas também para toda a produção cultural da época (HOLLANDA, 2000, p.61). O nome do grupo surgiu a partir da canção-manifesto de Caetano Veloso, Tropicália. O surgimento do nome do movimento sugere o nível do intercâmbio dialógico de ideias entre várias esferas artísticas (DUNN, 2009, p.24). A música ganhou o nome após a sugestão do fotógrafo Luís Carlos Barreto, que tinha visto a obra Tropicália do artista plástico Hélio Oiticica, e percebido uma convergência conceitual e imagética entre a obra e a música. Exibida pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em abril de 1967, a Tropicália de Hélio Oiticica consistia em um ambiente formado por duas tendas, que o autor chamava de penetráveis. Areia e brita espalhadas pelo chão, araras e vasos, com plantas criavam um cenário tropical. Depois de atravessar uma espécie de labirinto, já dentro da tenda principal, quase às escuras, o público encontrava um aparelho de televisão devidamente ligado. Como o próprio Oiticica observou, um ano mais tarde, Tropicália era uma “tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional” (CALADO, 2000, p.163). A obra de Oiticica, na tentativa de impor de uma imagem obviamente brasileira, expõe as contradições da realidade nacional, entre o primitivo (areias, plantas, araras) e o moderno (a televisão ligada no final do labirinto). Um dos penetráveis dentro da obra exibia a frase “A Pureza é um Mito”. Contextualizando essa frase em relação ao resto da obra, pode-se concluir que Oiticica fazia uma observação sobre como a pureza não existe em um nível identitário, e, portanto a busca por pureza dentro da arte é algo em vão. Oiticica resgata o conceito da antropofagia de Oswald de Andrade, originário do modernismo brasileiro. 49 Figura 33 - Tropicália, Hélio Oiticica, de 1968. Fonte: Museo Reina Sofia 37 . Em um ensaio de 1968, intitulado Tropicália, Oiticica discorreu sobre a necessidade de retomar a antropofagia como processo dentro da arte e da produção cultural. “Para a criação de uma cultura verdadeiramente brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia de nossa terra” (OITICICA apud CALADO, 2000, p.163). 37 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. https://www.museoreinasofia.es/en/collection/artwork/tropicalia-penetraveis-pn2-pureza-e-um-mito-pn3-imagetico-tropicalia-penetrable https://www.museoreinasofia.es/en/collection/artwork/tropicalia-penetraveis-pn2-pureza-e-um-mito-pn3-imagetico-tropicalia-penetrable 50 Figura 34 - Antropofagia, Tarsila do Amaral, de 1929. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural 38 . A antropofagia, conforme idealizada no Manifesto Antropofágico de 1928, por Oswald de Andrade, servia como uma importante alegoria para o projeto anticolonialista de absorver de forma crítica e seletiva, tecnologias e produtos culturais do exterior (DUNN, 2009, p.36). Para que se forjasse uma identidade cultural no Brasil, as culturas colonizadoras não deveriam ser nem rejeitadas, nem imitadas, mas sim “devoradas”. O “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade propunha a figura de um índio desafiador e agressivo, que resiste violentamente às incursões coloniais. Para Oswald, não existia uma “essência” nacional, mas apenas um processo de apropriação dinâmica e repleta de conflitos, ou de “deglutição de várias culturas” (DUNN, 2009, p.35). Encontra-se, precisamente, nesse resgate da antropofagia, a relação entre a obra de Oiticica e a produção musical do grupo baiano, que passou a ser chamado de Tropicalista quando ganhou destaque no cenário nacional. Caetano Veloso explicou, sobre a relação entre Tropicalismo e Antropofagia, em seu livro Verdade Tropical, que a ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos "comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva (VELOSO, 1997, p.172). As argumentações dos tropicalistas rodeavam o tema da importação / encontro cultural dentro da música, eles buscavam quebrar a ortodoxia que havia se construído nos anos anteriores, que sugeria que ritmos tradicionalmente brasileiros e guitarras elétricas (como um símbolo do rock) não deveriam se misturar. 38 Disponível em < http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1634/antropofagia>. Acesso em fevereiro de 2019. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1634/antropofagia 51 Frente ao clima de polarizações ideológicas que a discussão sobre o tema do encontro cultural chegara – oscilando entre a ênfase nas raízes nacionais e na importação cultural – a ideia de devoração foi apresentada como forma de relativização dessas posições. (FAVARETTO, 2000, p.56). Figura 35 - Atrás, da esquerda para a direita: Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e Gal Costa. À frente, os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista. Fonte: Arte Ref 39 . O grupo tropicalista, formado pelos músicos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, os paulistas da banda Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Baptista) e o maestro Rogério Duprat, ganhou destaque nacional após as apresentações de Gil e Veloso no III Festival da Música Popular Brasileira, em 1967. Caetano Veloso apresentou sua canção Alegria, Alegria, acompanhado do grupo de rock argentino Beat Boys e Gilberto Gil, apresentou sua canção Domingo 39 Disponível em < https://arteref.com/movimentos/a-tropicalia-e-12-curiosidades-que-voce-precisa- conhecer/>. Acesso em fevereiro 2019 https://arteref.com/movimentos/a-tropicalia-e-12-curiosidades-que-voce-precisa-conhecer/ https://arteref.com/movimentos/a-tropicalia-e-12-curiosidades-que-voce-precisa-conhecer/ 52 no Parque, acompanhado dos Mutantes. Eles receberam os prêmios de quarto e segundo lugar no festival, respectivamente. Figura 36 - Gilberto Gil e Os Mutantes performam a canção Domingo no Parque no III Festival de Música Brasileira na TV Record. Fonte: Folha de São Paulo. 40 Os festivais de música haviam se tornado uma importante faceta da cena cultural na segunda metade da década de 60. Eram eventos televisivos de grande audiência dominados pelos músicos da MPB e por seu público universitário, que traziam a experiência para a dimensão da vida política, sendo o consumo, envolvimento e participação desses eventos uma afirmação, um posicionamento que extrapolava o entretenimento musical. No clima tenso do Brasil pós-golpe, os festivais televisionados se tornaram o meio mais importante para que os músicos da MPB promovessem sua música e, em alguns casos, registrassem alguma forma de protesto. Para que a plateia que assistia ao vivo aos eventos e que era formada, em grande parte, por estudantes de classe média e profissionais urbanos, os festivais também proporcionavam a oportunidade de expressar preferências, muitas vezes com matizes políticos. O público dos festivais geralmente se opunha à Jovem Guarda e à utilização de instrumentos elétricos. Os festivais eram percebidos como um meio para a promoção da 40 Disponível em Acesso em fevereiro de 2019. 53 “autêntica” música brasileira mediada pelas massas e eram também extremamente lucrativos para as estações de televisão (DUNN, 2009, p.83). Figura 37 - Na imagem à esquerda, Edu Lobo, Marilia Medalha e Capinam. À direita, Chico Buarque e MPB-4. Respectivamente, os premiados com o 1º e 3º lugar do festival de música brasileira, por suas performances de Ponteio e Roda Viva. Fonte: Folha de São Paulo 41 . Em Verdade Tropical, Caetano Veloso, ao descrever a dinâmica da politização dos festivais, faz uma observação crítica sobre esse enfoque exclusivo nas questões pertinentes à política, dentro dos festivais, por parte dos músicos participantes e do público, enquanto o aspecto comercial e midiático existente era propositalmente ignorado. Mas em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais ou menos consciente, de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional, de justiça social e de avanço na modernização. As questões de mercado muitas vezes as únicas decisivas, não pareciam igualmente nobres para entrar nas discussões acaloradas. [...] Com todas as tolices que esse quadro comportava, vivia-se um período excepcionalmente estimulante para os compositores, cantores e músicos. E um ponto central era genuíno: o reconhecimento da força da música popular entre nós. (VELOSO, 1997, p. 121). A crítica de Caetano encapsula uma das grandes diferenciações dos músicos tropicalistas em relação ao cenário da MPB e dos festivais de música é que eles não negavam o aspecto mercadológico que envolvia a indústria musical. Para eles o fato que o músico aliava sucesso profissional com o posicionamento político público e a defesa de seus ideais, não era necessariamente algo que deveria ser escondido ou ignorado, mas sim uma das contradições inerentes à carreira. 41 Disponível em: Acesso em fevereiro de 2019. https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/10/21/ha-50-anos-festival-da-tv-record-reuniu-roberto-carlos-gil-caetano-e-chico-e-deu-novo-rumo-a-mpb/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/10/21/ha-50-anos-festival-da-tv-record-reuniu-roberto-carlos-gil-caetano-e-chico-e-deu-novo-rumo-a-mpb/ 54 Duas tensões básicas, frequentemente convergentes, orientaram a obra dos produtores culturais latino-americanos engajados com a comunicação de massa: entre a racionalidade do mercado e o comportamento político e entre a experimentação formal e o apelo às massas. As motivações profissionais e políticas, é claro, nem sempre são mutualmente exclusivas. Muitos dos artistas [...] pensavam simultaneamente em progresso na carreira, ativismo político e inovação formal. Os músicos tropicalistas foram únicos, contudo, ao explicitar as tendências conflitantes da participação voltada aos interesses cívicos, do sucesso profissional e do experimento estético em um mercado emergente para a música pop. Essa tensão foi fundamental também para a abordagem estética da música popular brasileira promovida pelos tropicalistas (DUNN, 2009, p.58). Talvez a facilidade que os tropicalistas tinham de explicitar essas tendências conflitantes, ligadas às questões de mercado, esteja relacionada à afinidade que eles tinham com o pop em um nível discursivo. A apropriação do pop busca, de um lado, quebrar as barreiras entre “alta cultura” e “baixa cultura”. Na Tropicália, passamos a não ter uma hegemonia da cultura culta. Nem de nenhuma outra: se há hegemonia, é a da diversidade. As culturas populares e eruditas são ingredientes em confronto e diálogo (RODRIGUES in MELO, 2008, p.201). De outro lado, facilita o reconhecimento das questões mercadológicas, que são uma parte inerente dentro da sociedade de consumo. Quando realizaram sua estreia no festival de 1967, os músicos tropicalistas e suas experimentações musicais, que naquele momento estavam materializadas nas duas apresentações, geraram polêmica e controvérsia dentro do meio artístico. Figura 38 - Os Mutantes acompanham Gilberto Gil na música Domingo no Parque, no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Fonte: Folha de São Paulo (acervo) 42 . 42 Disponível em Acesso em Fevereiro de 2019. https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2016/11/14/ha-50-anos-folha-destacou-chegada-dos-mutantes%E2%80%A8%E2%80%A8/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2016/11/14/ha-50-anos-folha-destacou-chegada-dos-mutantes%E2%80%A8%E2%80%A8/ 55 Em primeiro lugar, pelo simples fato de terem incorporado guitarras às canções, o que simbolizaria, para grande parte dos emepebistas, uma capitulação ao imperialismo americano. Em segundo lugar, pelo próprio caráter experimental das canções. A esquerda nacionalista não tinha interesse pelo experimentalismo e sim pelo estabelecimento de uma linguagem adequada à conscientização do público [...] Havia agressividade, quando não desprezo contra as tendências experimentalistas (FAVARETTO, 2000, p.29). Mas mesmo com todos esses fatores em jogo, a plateia, inicialmente hostil e tendendo às vaias, foi conquistada por Gil e Caetano, assim como o júri que deu às músicas o segundo e quarto lugar no festival, respectivamente. A divisão maniqueísta entre a MPB e a Jovem Guarda parecia ter perdido sua urgência e relevância. Havia espaço para a inovação em termos de formato musical e de conteúdo lírico (DUNN, 2009, p.88). Figura 39 - Caetano Veloso e os Beat Boys interpretam Alegria, Alegria que ficou em 4º lugar no festival. Fonte: Folha de São Paulo (Acervo) 43 . 43 Disponível em < https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/10/21/ha-50-anos-festival-da-tv-record- reuniu-roberto-carlos-gil-caetano-e-chico-e-deu-novo-rumo-a-mpb/>.Acesso em fevereiro de 2019. https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/10/21/ha-50-anos-festival-da-tv-record-reuniu-roberto-carlos-gil-caetano-e-chico-e-deu-novo-rumo-a-mpb/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/10/21/ha-50-anos-festival-da-tv-record-reuniu-roberto-carlos-gil-caetano-e-chico-e-deu-novo-rumo-a-mpb/ 56 No que diz respeito ao conteúdo lírico, os tropicalistas traziam um ponto de vista inovador e singular. Ao mesmo tempo, que não tematizavam as injustiças sociais e a desigualdade no Brasil pós-golpe como nas canções de protesto, não necessariamente apresentavam um conteúdo apolítico. A Tropicália trabalhou a política e a estética num mesmo plano, mostrando as contradições da nossa modernização subdesenvolvida a partir de uma outra forma de arte (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.71). Traziam a tona questões que tinham sido até então ignoradas na produção musical nacional, mas que começavam a ganhar importância com os movimentos de contracultura ao redor do mundo. Em nível discursivo, os tropicalistas propunham ampla crítica à modernidade brasileira, que contestava construções dominantes da cultura nacional. Em vez de exaltar o povo como agente de uma transformação revolucionária, as músicas tendiam a se concentrar nos desejos e frustrações de pessoas comuns que viviam nas cidades. Em última instância, os tropicalistas dariam ímpeto a atitudes, estilos e discursos da contracultura emergente no que se referia a raça, sexo, sexualidade e liberdade pessoal (DUNN, 2009, p.20). Esse procedimento contracultural na Tropicália permeava todos os aspectos da expressão do movimento, não apenas o conteúdo lírico e da musicalidade. Na verdade, os tropicalistas prosperavam em integrar e engrandecer as canções por meio de apresentações públicas, atitudes performáticas no palco, vestimentas e estética singular. A canção tropicalista também se singulariza por integrar em sua forma e apresentação recursos não musicais – basicamente a mise en scène e efeitos eletrônicos (microfone, alta-fidelidade, diversidade de canais de gravação, sonoridades estranhas) que ampliavam as possibilidades do arranjo, vocalização e apresentação. Caetano, por exemplo, no lançamento do disco Tropicália, travestiu-se, aparecendo de boá cor-de-rosa; para defender É Proibido Proibir, usou roupas de plástico colorido, colares de macumba, enquanto um hippie americano promovia um happening emitindo urros e sons desconexos. Também no programa Divino Maravilhoso da TV Tupi, aconteciam coisas estranhas, que assustavam o público: organizavam-se ceias na beira do palco enquanto Gil cantava Ora pro Nobis, Caetano apontava um revolver para a plateia enquanto cantava música de natal, e até mesmo um velório chegou a ser organizado, com o descerramento de uma placa com o epitáfio “Aqui jaz o Tropicalismo” – o que, aliás, mais que um lance de humor e auto ironia, indiciava lucidez quanto aos limites do movimento como manifestação de vanguarda (FAVARETTO, 2000, p.34). 57 Figura 40 - Programa Divino Maravilhoso. Fonte: Filmow - Terra 44 . A atitude rebelde e anárquica nas performances tropicalistas era um modo de se opor e chocar àqueles que compartilhavam dos valores conservadores e retrógrados do regime militar, mas também era uma oposição à ortodoxia dos artistas da esquerda nacionalista. As preocupações com o corpo, o erotismo, a subversão de valores e comportamentos apareciam como demonstração da insatisfação com um momento onde a permanência do regime de restrição promovia a inquietação, a dúvida e a crise da intelectualidade (HOLLANDA, 2000, p.70). Um dos pontos de destaque da Tropicália como um esforço coletivo foi o lançamento do disco-manifesto do grupo em julho de 1968, Tropicália ou Panis et Circensis, contando com todos os músicos tropicalistas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes e Rogério Duprat e até a participação da musa da Bossa Nova, Nara Leão e algumas letras dos poetas Torquato Neto e Capinam. Suma tropicalista, este disco integra e atualiza o projeto estético e o exercício de linguagem tropicalista. Os diversos procedimentos e efeitos da mistura aí comparecem – carnavalização, festa, alegoria do Brasil, crítica da musicalidade brasileira, crítica social, cafonice – compondo um ritual de devoração (FAVARETTO, 2000, p.57). 44 Disponível em < https://filmow.com/programa-divino-maravilhoso-t119247/> Acesso em fevereiro de 2019. https://filmow.com/programa-divino-maravilhoso-t119247/ 58 O ano de 1968, no qual a Tropicália consolidava-se como movimento, trouxe muita agitação política. A contestação dos movimentos de contracultura acendeu a chama da rebelião estudantil. Tendo como epicentro a França, a agitação estudantil espalhou-se por várias universidades e ruas dos centros urbanos do mundo (BRANDÃO e DUARTE, 1990, p.54). No Brasil, a crescente insatisfação com o autoritarismo do Regime Militar resultaria em uma grande onda de protestos. O maior deles foi a “Passeata dos 100 mil”, em 26 de junho, no Rio de Janeiro. O estopim para a passeata foi o assassinato do estudante secundarista Edson Luís, por parte das forças do governo. A passeata foi organizada pelo movimento estudantil e contou com a presença de artistas, intelectuais e grande adesão popular. Figura 41 - Passeata dos 100 mil em 26 de junho de 1968. Fonte: Estudo Prático - Terra 45 . O claro sentimento antiditadura presente nesses protestos que ocorreram em 1968, fariam com que o governo recorresse a medidas ainda mais totalitárias para barrar a resistência que encontrava. O governo reagiu aos protestos civis e à incipiente resistência armada com o “Ato Institucional Número 5” (AI-5), que proibiu a oposição política, expurgou e fechou temporariamente o Congresso, suspendeu o habeas corpus, submeteu a imprensa à censura e pôs fim aos movimentos de protesto. Dessa forma a oposição ao regime só poderia ser expressa por meio de movimentos isolados de resistência armada que acabavam sendo rapidamente liquidados (DUNN, 2009, p.18-19). 45 Disponível em: < https://www.estudopratico.com.br/passeata-dos-cem-mil/>. Acesso em março de 2019. https://www.estudopratico.com.br/passeata-dos-cem-mil/ 59 O Ato Institucional Número 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968, veio para recrudescer a perseguição aos opositores públicos da ditadura ou qualquer um considerado subversivo. Um dos diversos setores da sociedade atingidos foram os artistas e músicos. Na véspera de natal em 1968, uma apresentação no programa tropicalista da TV Tupi, Divino Maravilhoso, na qual Caetano cantava a música Boas Festas de Assis Valente com um revólver apontado para a própria cabeça, mostrou-se inaceitável para os agentes da censura do governo. Aproveitando a atmosfera fraterna de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira, em seu happening semanal pela TV Tupi [...] Uma cena tão forte poderia provocar bem mais do que as cartas indignadas de espectadores e autoridades de cidades interioranas, que continuavam chegando à emissora (CALADO, 2000, p.251). No dia 27 de dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram retirados de seus apartamentos em São Paulo e levados para um quartel no Rio de Janeiro, onde ficariam confinados até 19 de fevereiro de 1969. Pouco tempo depois, partiriam para o exílio, onde ficariam até 1972, o que colocaria fim a Tropicália como um esforço organizado. Figura 42 - Gilberto Gil e Caetano Veloso, durante seu exílio na Europa, que durou de 1969 a 1972. Fonte: Folha de São Paulo ( Acervo) 46 .