UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNESP DANILO RIBEIRO PAZIANI O ENSINO COLETIVO DE CONTRABAIXO ACÚSTICO: A VIVÊNCIA DE PROCESSOS CRIATIVOS COM ALUNOS DO PROJETO GURI/ RIBEIRÃO PRETO E A IDEIA DE EXPERIÊNCIA DE JORGE LARROSA São Paulo – SP 2017 DANILO RIBEIRO PAZIANI O ENSINO COLETIVO DE CONTRABAIXO ACÚSTICO: A VIVÊNCIA DE PROCESSOS CRIATIVOS COM ALUNOS DO PROJETO GURI/ RIBEIRÃO PRETO E A IDEIA DE EXPERIÊNCIA DE JORGE LARROSA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes – IA, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Campus de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Música. Orientadora: Profª Livre-Docente Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. São Paulo – SP 2017 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P348e Paziani, Danilo Ribeiro, 1981- O ensino coletivo de contrabaixo acústico : a vivência de processos criativos com alunos do Projeto Guri/ Ribeirão Preto e a ideia de experiência de Jorge Larrosa / Danilo Ribeiro Paziani. - São Paulo, 2017. 141 p.: il., color. Orientadora: Profª Drª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Contrabaixo. 2. Música – Instrução e estudo. 3. Criatividade (Educação). 4. Experiência. I. Fonterrada, Marisa Trench de Oliveira. II. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. III. Título. CDD 787.41 Nome: PAZIANI, Danilo Ribeiro Título: O Ensino Coletivo de Contrabaixo Acústico: A Vivência de Processos Criativos com Alunos do Projeto Guri/ Ribeirão Preto e a Ideia de Experiência de Jorge Larrosa Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Federal de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre em música. Aprovado em: Banca Examinadora Prof. Dr _________________________ Instituição _________________________ Julgamento ______________________ Assinatura _________________________ Prof. Dr _________________________ Instituição _________________________ Julgamento ______________________ Assinatura _________________________ Prof. Dr _________________________ Instituição _________________________ Julgamento _______________________ Assinatura _________________________ DEDICATÓRIA Dedico a Meus pais, Nelson e Rosangela Em especial, à minha querida amiga Juliana, por todos os anos de amor e carinho. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, por todo o carinho, por apoiarem as minhas escolhas e por acreditarem nelas. À minha querida Juliana, pelos anos que aprendi ao seu lado, lições de amor e de amizade. A meu querido irmão, pelo companheirismo e por ser uma fonte de inspiração em relação à vida acadêmica. À minha tia Roseli, pelos anos de carinho e auxílio na minha trajetória musical. À amiga e “irmã” Camila Santana, pelos anos de convivência e carinho. Ao amigo Cleiton Frazon, por ser um grande amigo - irmão. Ao amigo Luiz Frazon, pelos anos de amizade e por contribuir por meio de sua sensibilidade poética, com a presente pesquisa. Ao amigo Lucas Galon, pela leitura e pontuais sugestões para esta dissertação. Aos vários amigos, Mariana Galon, Pedro Dutra de Oliveira, Sara Cesca, Suzana Stefanini, Eliton Almeida, João Flávio de Almeida, Tanise Galon e Aruan Henri, que, de forma direta ou indireta, contribuíram para a realização deste trabalho. Aos amigos Vitor Zafer pela disponibilidade em receber os alunos no estúdio de gravação e Fabíola Rosa, pelo auxílio fundamental no trabalho de revisão da pesquisa. Aos amigos do GEPEM (Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Musical), em especial a Prof.ª Leila Vertamatti, Prof. Fábio Miguel, Rodrigo Assad e Samuel Pontes pela generosidade e auxílio à pesquisa. Aos profissionais e educadores do Projeto Guri Polo de Ribeirão Preto e Batatais, por compartilharem saberes e partilharem dos sabores e dissabores da prática docente. Em especial, gostaria de agradecer a Ladson Bruno Mendes - Supervisor Educacional de Cordas Friccionadas da Regional Ribeirão Preto, pela amizade e apoio incondicional à pesquisa e ao amigo e educador José Matsumoto, pela parceria durante a elaboração final desta dissertação. Aos queridos tios, Antonio Santana e Elza Merchan pelo carinho e pela hospedagem nos períodos que necessitei permanecer por mais tempo na cidade de São Paulo. Aos queridos amigos que fiz no Instituto de Artes durante o cumprimento das disciplinas, em especial, Shirlei Escobar Tudissaki, Luciane Morais e Marcio Guedes Correa. A todos profissionais da secretaria do Programa de Pós Graduação, em especial à Ângela Lunardi, Fábio Akio e Neusa de Souza. Obrigado pela disponibilidade, gentileza e prontidão com que sempre me trataram. Ao Prof. Carlos Kater, pela disponibilidade em participar da banca de qualificação e defesa, e por seus preciosos conselhos para condução desta dissertação. À Prof.ª Sonia Ray e Prof. Gerson Frutuoso, por terem, gentilmente, concedido entrevistas importantíssimas ao presente trabalho. À querida Prof.ª Sonia Regina Albano de Lima, pela gentileza e paciência com que me auxiliou na presente pesquisa. Ao grande Prof. Tibô Delor, pela abertura e sensibilidade com que nos apresentou o contrabaixo acústico, nos anos em que esteve conosco na cidade Ribeirão Preto. Inspiração para a realização do 3º capítulo da presente pesquisa. À querida Prof.ª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, por todas as lições de sabedoria, nas aulas de educação musical, orientações, nos muitos e-mails trocados de revisões desta dissertação, mas, principalmente, no exemplo de amor à licenciatura. Sinto que aprendi e cresci, muitas vezes, por meio do seu profundo silêncio, obrigado. RESUMO Paziani, Danilo Ribeiro. O Ensino Coletivo de Contrabaixo Acústico: a Vivência de Processos Criativos com Alunos do Projeto Guri/Ribeirão Preto e a Ideia de Experiência de Jorge Larrosa. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, São Paulo – SP, 2017. Na presente pesquisa procura-se refletir a respeito da renovação de práticas pedagógicas no campo do ensino coletivo de contrabaixo acústico, comtemplando, porém, os outros membros da família das cordas friccionadas. Levantam-se as práticas coletivas de ensino de cordas no Brasil, apresenta-se o lócus em que a pesquisa foi desenvolvida, o Polo do Projeto Guri em Ribeirão Preto e mostra-se de que modo as práticas criativas foram introduzidas aos alunos do instrumento. O objetivo geral da pesquisa é incentivar a participação dos estudantes em posturas criativas e mostrar a relação entre esses procedimentos e o aprendizado do instrumento. Os objetivos específicos estão ligados à abertura, à escuta e prática de músicas populares e a sonoridades contemporâneas, na procura de ampliação de repertório dos estudantes. Em relação aos aspectos metodológicos, adota-se a abordagem qualitativa na modalidade “observação participante”. A pesquisa se fundamenta, em Keith Swanwick e John Paynter, educadores musicais, e na ideia de experiência do filósofo da educação, Jorge Larrosa. Os resultados alcançados materializaram-se na vivência, pelos estudantes, de três processos inventivos que os próprios participantes consideraram de suma importância no seu processo de aprendizagem. Palavras Chave: 1. Contrabaixo. 2. Música – Instrução e estudo. 3. Criatividade (Educação). 4. Experiência. ABSTRACT Paziani, Danilo Ribeiro. The Collective Teaching of Acoustic Double Bass: The Experience of Creative Processes with Guri/ Ribeirão Preto Project Students and Jorge Larrosa's Idea of Experience. Master Dissertation. Institute of Arts from the University of São Paulo State (UNESP), “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2017. In the present research we try to reflect on the renewal of pedagogical practices in the field of collective teaching of acoustic bass, contemplating, however, the other members of the family of the frictioned strings. The collective practices of string teaching are raised in Brazil, the locus in which the research was developed, the Guri Project Pole in Ribeirão Preto and the way in which the creative practices were introduced to the students of the instrument. The overall objective of the research is to encourage student participation in creative positions and to show the relationship between these procedures and the learning of the instrument. The specific objectives are related to the open listening and practice of popular songs and contemporary sonorities, in the search of amplification of the repertoire of the students. Regarding the methodological aspects, the qualitative approach is adopted in the participant observation modality. The research is based, in Keith Swanwick and John Paynter, musical educators and in the idea of experience of the philosopher of the education, Jorge Larrosa. The results obtained were materialized in the students' experience of three inventive processes that the participants themselves considered of paramount importance in their learning process. Keywords: 1. Double bass. 2. Music - Instruction and study. 3. Creativity (Education). 4. Experience. LISTA DE FIGURAS  FIG 1 Nicólo Moneta tocando seu Octobass. p. 30  FIG 2 Arco Modelo Francês. p. 32  FIG 3 Arco Modelo Alemão. p. 32  FIG 4 faixada da localização do Projeto Guri em Ribeirão Preto. p. 73  FIG 5 Os alunos e os sonhos. p. 107  FIG 6 Frase musical proposta por aluno. p. 112  FIG 7 Parte da peça que representa a mudança de caráter. p. 113  FIG 8 Desenvolvimento melódico e rítmico da peça. p. 113  FIG 9 Retomada do caráter inicial. p. 114  FIG 10 O Acorde final da peça. p. 115  FIG 11 Os alunos e o professor, ao centro. p. 115 LISTA DE QUADROS  QUADRO 1 Atribuições de alunos, pais e professores no Método Suzuki. p. 39  QUADRO 2 As formações musicais e números de integrantes no Núcleo de Gestão e Formação (NEOJIBA). p. 63  QUADRO 3 Quadro cronológico dos espaços de ensino coletivo de cordas friccionadas abordados pelo presente trabalho e a importância de cada um na perspectiva histórica do modelo no Brasil.. p. 69  QUADRO 4 Conteúdos pedagógicos do curso de Cordas friccionadas. p. 80  QUADRO 5 Grade horária do Polo de Ribeirão Preto às 3as e 5as. p. 88 SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................................... 15 1 O Contrabaixo no tempo ................................................................................................ 29 1.1 A importância do uso das TEs e a sua utilização na classe de ensino coletivo do Instituto Baccarelli ................................................................................................................ 33 1.2 A metodologia Suzuki e a sua influência no ensino coletivo de cordas no Brasil..... 36 1.2.1 Breve biografia ................................................................................................... 36 1.2.2 Principais características da proposta metodológica de Suzuki ......................... 37 1.2.3 A metodologia Suzuki no Brasil e a sua influência no ensino coletivo de cordas 39 1.3 Alberto Jaffé e o seu pioneirismo na prática do ensino coletivo no Brasil ................ 41 1.3.1 Jaffé e a “Orquestra de Cordas” no SESC/SP .................................................... 43 1.3.2 Considerações acerca do período pós Jaffé no SESC; os trabalhos de Ayrton Pinto, Samuel Kerr e a configuração nos dias atuais ........................................................ 46 1.3.3 Samuel Kerr ........................................................................................................ 47 1.3.4 A criação do Centro Experimental de música, e o SESC Consolação nos dias atuais 51 1.3.5 O ensino coletivo no SESC Vila Mariana .......................................................... 52 1.4 Outras Iniciativas de Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas no Brasil. ................ 54 1.4.1 Trabalhos acadêmicos resultantes da prática de ensino coletivo – José Leonel Gonçalves Dias e João Mauricio Galindo ......................................................................... 54 1.4.2 Goiânia e o ensino coletivo de instrumento........................................................ 57 1.4.3 O Ensino Coletivo na Bahia – A experiência do NEOJIBA .............................. 60 1.5 Reflexões do painel apresentado acerca do ensino coletivo no Brasil....................... 65 2 O Projeto Guri ................................................................................................................. 70 2.1 Projeto Guri: uma síntese de sua história, organização, missão, valores e diretrizes educacionais .......................................................................................................................... 70 2.1.1 Regional de Ribeirão Preto – características gerais............................................ 73 2.2 A prática coletiva de música como proposta educacional e os referenciais teóricos norteadores do Projeto Guri .................................................................................................. 74 2.2.1 Os três eixos no processo de ensino e aprendizagem e a organização do programa de ensino das Cordas Friccionadas ................................................................... 76 2.2.2 Os objetivos gerais dos cursos e a organização do programa de ensino das Cordas Friccionadas (Violino, Viola, Violoncelo e Contrabaixo) .................................... 77 2.2.3 A organização do programa de ensino do curso de Cordas Friccionadas .......... 79 2.3 O Educador Musical, suas atribuições, organização das aulas, perfil dos alunos – a rotina pedagógica da turma de Contrabaixo Acústico do Projeto Guri/ Ribeirão Preto ....... 85 2.3.1 O Educador Musical e suas atribuições .............................................................. 85 2.3.2 A Organização das aulas..................................................................................... 85 2.3.3 A formação instrumental, perfil e dinâmica dos alunos de Contrabaixo Acústico do Polo Regional de Ribeirão Preto. ................................................................................. 87 2.3.4 Breve relato da rotina pedagógica com os alunos de Contrabaixo Acústico – Polo Ribeirão Preto ........................................................................................................... 89 3 A experiência segundo Jorge Larrosa e a experiência da arte/música ....................... 93 3.1 Ressonâncias cine-musicais – uma introdução experimental .................................... 93 3.1.1 Larrosa: o saber de experiência e seus “adversários” ......................................... 95 3.1.2 “O sujeito da experiência” e as relações com o ensinar, o aprender e o tocar ... 99 3.2 O saber de Experiência e processos criativos .......................................................... 102 4 Práticas criativas em classe de Contrabaixo Acústico ............................................... 106 4.1 Fragmentos da entrevista com os alunos e as relações das práticas criativas com Paynter, Swanwick e Larrosa. ............................................................................................. 115 5 Conclusão ....................................................................................................................... 121 6 Bibliografia .................................................................................................................... 126 7 Apêndice ......................................................................................................................... 130 8 Anexos ............................................................................................................................ 144 EPÍGRAFE Vida e morte foram minhas, e fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões fechavam o mundo. (LISPECTOR, 1964, p. 15) 15 Introdução ...“eu quero o silêncio das línguas cansadas”... (Zé Rodrix e Tavito) Antes de iniciar propriamente as reflexões a que esse trabalho se propõe realizar, convido o leitor a conhecer brevemente os caminhos que me conduziram à música e seus desdobramentos, minha história como instrumentista e educador de contrabaixo acústico. Acredito que essa pequena biografia traga elementos relevantes para que se entenda o trajeto humano por trás da investigação. Iniciei efetivamente meus estudos musicais aos 15 anos, com o contrabaixo elétrico. Antes, tive algumas incursões rápidas pelo violão e canto, porém, não houve tempo necessário para construir vínculos com a prática musical. Nunca existiu dentro da minha família uma tradição artística, o que provavelmente dificultava o estabelecimento de laços mais duradouros com a prática da música. O prazer com os sons vinha da escuta dos vinis na vitrola aos domingos, que se misturava à reunião de família, ao cheiro de café da manhã, às vitórias de Ayrton Senna, a todo um ambiente no qual os estímulos sonoros chegavam por meio de uma recepção difusa, ligada à afetividade familiar. Aos 17 anos, iniciei o estudo do contrabaixo acústico, e é nesse determinado período que a música começou a fincar suas raízes dentro de mim. A descoberta do instrumento veio junto a novos laços de amizades, que trouxeram à minha vida não apenas a aproximação da música “clássica” e música popular urbana (Jazz e Bossa Nova), mas uma abertura para as artes em geral (principalmente, a paixão pelo cinema), e uma relação mais profunda com a prática religiosa. No ano de 2003, aos 22 anos entrei com alguns desses mesmos amigos no curso de música da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto e, em 2005, na Orquestra Sinfônica da cidade (OSRP). Na graduação, entrei no curso de Licenciatura, porém, no ano de 2006 com a chegada do professor de instrumento Thibault Delor 1 mudei para o Bacharelado e me concentrei completamente nos estudos do contrabaixo acústico. Foi assim até o ano de 2009, quando, após 7 anos de graduação, me tornei Bacharel com habilitação em instrumento. 1 Contrabaixista nascido em METZ (França) iniciou seus estudos no contrabaixo acústico com André Marillier em 1983 e formou-se no Conservatório Superior de Música de Paris (1989). Em 1999 mudou-se para o Brasil e mantém intensa atividade pedagógica e artística. 16 No ano de 2010, ingressei no Projeto Guri na cidade de Jaboticabal. Foi a partir da entrada efetiva no dito “mercado de trabalho”, que o relacionamento com a música, com o instrumento, começou a adquirir novos contornos e perspectivas. Após seis meses dentro do Projeto, surgiu a oportunidade de lecionar no polo da cidade de Ribeirão Preto, somente para alunos de contrabaixo acústico. Por meio das chamadas capacitações promovidas pelo Projeto Guri para a difusão de seu Projeto Político Pedagógico (PPP), entrei em contato com escritos do educador musical inglês Keith Swanwick, autor que, nesse dado período, tornou-se a principal referência pedagógica musical do Projeto. Nos dias atuais, com certo distanciamento crítico, percebo que caminhava lentamente em direção ao campo da educação musical, buscando estreitar aos poucos as fronteiras existentes entre o dito ensino tradicional de instrumento (conhecido por sua ênfase nos aspectos técnicos do fazer musical), e a abertura que circunda o território da música, quando a pensamos pela ótica da educação. Assim, o tempo que passei dentro do Projeto Guri ao lado de amigos que já tinham se enveredado para o caminho da educação, foi um período de aprendizado, de amadurecimento e busca de uma visão educacional que estivesse sintonizada com mudanças internas que ocorreram comigo, após o término da graduação. Nesses anos dentro do Projeto, pude perceber como o ensino de instrumento em grupo impõe uma dinâmica de trabalho distinta do ensino tutorial. Descobri a importância da interação ativa do professor em sala, na procura de oferecer um bom modelo instrumental, e como esse procedimento colabora na construção de um rico ambiente artístico, a partir da apreensão dos elementos mais rudimentares da técnica instrumental por parte dos alunos (melodia = professor; acompanhamento = alunos). Com a prática coletiva de música, aprendi que era possível fazer uso da polifonia desde as primeiras aulas, e que o contrabaixo acústico, por suas generosas dimensões, poderia ser utilizado como instrumento de percussão. Aprendi, também, que os alunos poderiam compor e improvisar desde os primeiros contatos com o instrumento, atividades que imaginava ser exclusividade dos estudantes de composição e de instrumentistas tecnicamente já consolidados. Essas mudanças e descobertas em torno do campo pedagógico impulsionaram o desejo de aprofundar o estudo acerca da prática coletiva de música, principalmente a possibilidade que o modelo oferece de repensar procedimentos e conteúdos ligados ao ensino de instrumento. Decorrente de todas essas transformações, no ano de 2015 ingressei no mestrado 17 no Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA/UNESP), sob a orientação da Prof. (a) Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. O ponto central deste trabalho parte de uma interrogação que vem me acompanhando durante os anos de envolvimento com a prática de instrumento, como aluno e professor; seria possível oferecer um ensino de instrumento musical que proporcionasse ao educando bases sólidas técnicas e artísticas, porém, ao mesmo tempo, promovesse uma abertura ao campo sensível da arte? A pergunta surge de uma visão empírica acerca da formação de instrumentistas, que, geralmente centrados apenas nos aspectos técnicos do fazer musical, não se atentam às relações simbólicas e afetivas que a música constrói com outras expressões artísticas. Mas, talvez o mais importante, seja o que estaria subjacente a essa visão geral em relação aos tipos de saberes compartilhados por professores e alunos de instrumento, que seria a questão de como relacionamos (se é que relacionamos) a experiência da música, com os afetos, com os sentidos que nos movem a vivenciar a experiência da arte. Segundo o autor espanhol Jorge Larrosa Bondía: Na formação humanística, como na experiência estética, a relação com a matéria de estudo é de tal natureza que, nela, alguém se volta para si mesmo, alguém é levado para si mesmo. E isso não é feito por imitação, mas por algo assim como por ressonância. Porque se alguém lê ou escuta ou olha com o coração aberto, aquilo que lê, escuta ou olha ressoa nele; ressoa no silêncio que é ele, e assim o silêncio penetrado pela forma se faz fecundo. E, assim, alguém vai sendo levado à sua própria forma (LARROSA, 1998, p. 52). Portanto, “a relação com a matéria de estudo”, em nosso caso, o ensino e aprendizagem de instrumento musical, seria muito mais do que apenas a aquisição de habilidades, seria um caminho de entendimento de si mesmo, que construímos em “ressonância” com o instrumento e com o mundo a nossa volta, desde que nossos sentidos estejam verdadeiramente abertos. E estar aberto, para o autor, seria conectar o que escutamos, o que olhamos, diria também, o que tocamos em nosso instrumento, com o nosso “silêncio”, com nossa subjetividade, com o que nos toca e nos faz calar. A prática coletiva de música e a sua intrínseca dimensão social (interativa), têm me oferecido algumas pistas de um possível caminho para a edificação de um ambiente educativo propício para o florescimento de estudantes de música abertos à experiência da arte, seja no próprio campo da música em geral, quanto em outras linguagens artísticas, como a literatura e o cinema por exemplo. Essas “pistas” podem estar no conteúdo pedagógico e nos tipos de vivências que o educador musical proporciona aos seus alunos. Adianto que esses vestígios 18 podem passar pela quebra das rotinas clássicas de estudo (escalas, arpejos), e estar ligados a outro tipo de experiência com a música, na qual não se sabe aonde se irá chegar, na qual reside uma dose de mistério, na qual a imaginação e a fantasia são colocadas em primeiro plano; a criatividade. A partir do que foi dito, no presente trabalho, visa-se pensar acerca do ensino de música, com ênfase na educação do instrumento por meio da prática coletiva; entretanto, buscar-se-á uma visão mais alargada do que aquela que, costumeiramente, o músico tece com o seu instrumento musical, e a relação e perspectiva que se constroem com a vida, “vida”, aqui entendida como condição humana, em sua finitude – vida e morte – e em sentimentos que nos acompanham, como tristeza e alegria, dor e prazer, violência e afeto. Nos dias atuais, acredita-se na necessidade daqueles que lidam com a educação musical (independentemente da especificidade da área de atuação) de inserir a música num contexto que abarque a sua relação com outras linguagens artísticas, com questões políticas e sociais locais e globais, enfim, com os problemas do homem no mundo. Não se quer dizer que seja necessário interromper os tradicionais ensinos de solfejo rítmico e melódico ou aspectos técnicos de determinado instrumento para se conseguir essa abertura. Entretanto, acredita-se na necessidade de trazer para o campo da música algo que, parece, vem sendo “esquecido” por parte dos professores e daqueles que lidam direta ou indiretamente com o universo da arte, o que poderíamos chamar de dimensão humana, que é a capacidade da experiência do ensino da arte de tocar os sentimentos humanos, de nos conduzir a memórias afetivas, de nos colocar diante dos limites da vida, da efemeridade do tempo. Sabe-se que a música e as artes, que um dia foram sinônimo de emoção, contemplação, reflexão, vêm, paulatinamente, perdendo esse papel na vida das pessoas. Esse é um tema fundamental para a presente pesquisa, a questão da possibilidade e dever do ensino de trazer, junto aos saberes específicos da área, essa ideia de contemplação, portanto, de colocar a manifestação da arte no mesmo plano da complexidade da condição humana. Num trecho da apresentação da versão brasileira do livro Introdução à Sociologia da Música de Theodor W. Adorno, o professor Flo Menezes escreve assim: Em vez disso, ouve-se o tempo todo, porque não se suporta o silêncio, como se ele existisse. Ouve-se o tempo todo, porém não se ouve nada. Em gesto a um só tempo onipotente e impotente, a escuta de entretenimento, cujo revestimento preenche das salas de espera dos consultórios médicos ao fundo sonoro dos supermercados, para não falarmos das danceterias, assemelha-se às constantes e interruptas visitas à internet, no afã de amplo conhecimento que destitui toda substancialidade, porque 19 justamente não se dá conta que apenas a duração vivida age contra o problemático fracionamento das coisas e do conhecimento (MENEZES, 2011, pp. 23 e 24). Nesse instante, ressalta-se que a utilização da passagem se relaciona com uma crítica à forma pela qual o homem na contemporaneidade tem colocado a sua atenção diante dos estímulos que chegam aos seus sentidos 2 . Não se quer aqui fazer uma defesa da crítica adorniana aos ouvintes do século XX e suas tipologias, às quais, até mesmo o Prof. Flo Menezes coloca ressalvas em relação a algumas classificações como: “ouvinte emocional” e “ouvinte do ressentimento”, entretanto, a reflexão sugere aproximações, por exemplo, ao que Adorno denomina de “ouvinte de entretenimento”. Um exemplo desse ouvinte seria aquele que liga o rádio, e, automaticamente, se põe a trabalhar. A proximidade com a posição de Adorno se dá mais no âmbito do movimento da escuta, da perda de uma audição como ato de interrupção dos gestos do cotidiano, e não na relação direta com o tipo de repertório. E, como bem coloca o professor Flo Menezes, essa forma não está ligada apenas à escuta, mas a um modo de operar os sentidos, que promove o “fracionamento”, a fragmentação, que dificulta o afloramento de insights, da curiosidade, do querer mais em torno do percebido, que apenas é possível se houver tempo para estabelecer conexões com a memória, com o afeto, com “a duração vivida”. Acerca, ainda, desse ouvido “surdo”, o autor Murray Schafer escreve: Para os insensíveis, o conceito de ruído não é válido. Alguém que dorme como uma pedra não ouve nada. A máquina é indiferente ao ruído porque não tem ouvidos. Explorando essa indiferença, a música de fundo foi inventada para homens sem ouvidos (SCHAFER, 1986, p. 57). A questão do estar atento e ter “tempo” para perceber os sons que nos passam no cotidiano, na própria aula de música, tempo, inclusive, para a interrupção da rotina típica do estudo de instrumento, também são pontos importantes a serem tocados pelo trabalho. Acredita-se que a valoração da arte venha por meio de um envolvimento pelo qual os estímulos sonoros, visuais, olfativos, táteis e gustativos, venham a estabelecer uma relação afetiva com os indivíduos. Em uma sociedade baseada na velocidade, no consumo e descarte de objetos, na música de consultórios médicos e de supermercados, como promover vínculos e sentidos para as experiências com a arte? Seja na apreciação, no fazer, ou na reflexão da arte? Nessa perspectiva, o autor espanhol escreve: (...) A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio. (...) Quer estar permanentemente 2 Referente aos cinco sentidos da percepção humana: audição, visão, olfato, paladar e tato. 20 excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito de estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência (LARROSA, 2014, p.22). Destaca-se nas duas citações a utilização da palavra “silêncio” 3 , entendido como possível interrupção, como intervalo dos sons habitualmente sentidos, dos fones de ouvido, dos alto falantes de automóveis, ou dos barulhos rotineiros das cidades. Assim, nos trechos citados, fica evidente a dificuldade, nos dias de hoje, do desfrute do tempo e da escuta, de forma direcionada, atenta, contemplativa, ações nas quais, geralmente, a vida e a arte imprimem suas marcas, suas ocorrências, sua experiência. Num texto impactante - uma das principais referências deste trabalho - chamado Notas sobre a experiência e o saber de experiência, Jorge Larrosa escreve assim: A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça (ibidem, p. 18). Para o autor, a aprendizagem vem dessa lida direta com o mundo. Assim, é a partir do vivido que moldamos nossa personalidade e as relações que construímos com os objetos e os saberes da humanidade. Sem tempo para estabelecer conexões com a memória, com sensações, com a infância (história de vida), “o que nos passa” não nos atravessa, não suscita impressões, não nos move, não nos transforma. Nesse cenário, a arte na vida das pessoas é nada mais que um passatempo, uma diversão, puro entretenimento. Portanto, como as expressões artísticas se voltaram em parte para o entretenimento raso, cujo interesse maior são os números (audiência e lucro), faz-se necessário que o ensino seja um espaço de abertura, que não ignore as expressões provenientes da cultura de massa, porém, que também seja um ambiente de ampliação de repertório dos alunos e, principalmente, que busque a ideia de encantar e estimular ocorrências de experiência. Sabe-se que, no campo da educação musical, não é algo novo essa visão mais abrangente das ligações que a arte tece com os aspectos cognitivos, afetivos e culturais dos alunos. Porém, no ensino de instrumento musical, pode-se dizer que em grande parte dos espaços educacionais (escolas de música, conservatórios, projetos sociais) ainda prevalecem as bases do ensino convencional voltadas integralmente para o desenvolvimento de 3 Nota referente à impossibilidade do silêncio absoluto, como bem aponta Flo. Acerca dessa questão, o educador e compositor canadense Murray Schafer também afirma: “Pensava-se no silêncio mais em termos figurativos do que físicos, pois um mundo fisicamente silencioso era, naquele tempo, tão altamente improvável como é hoje” (SCHAFER, 1986, p. 117). 21 habilidades e o acúmulo de aspectos técnicos específicos do instrumento. Como já dito anteriormente, não se quer dizer que o desenvolvimento técnico musical dos alunos não seja algo extremamente relevante; escrever isso seria negligenciar a história e os saberes provenientes da relação homem - instrumento musical 4 , mais ainda, seria negar aos alunos a beleza e riqueza sonora edificada durante séculos. O que se pretende questionar no presente trabalho é a possibilidade de o ensino e a aprendizagem serem mais do que apenas a execução de estudos retirados de métodos específicos, mais do que o estudo incessante de peças e concertos do cânone instrumental. Acerca de certa “petrificação” no campo da música erudita, o autor Cristopher Small escreve: O músico de orquestra, parece, acostumou-se à experiência de tocar esse pequeno repertório de obras repetidamente – embora o crítico estadunidense Henry Pleasants acredite que ele estará – ou se tornará – atrofiado emocional e imaginativamente (SMALL, 1987, p. 10). Curiosamente o trecho traz a palavra “experiência”, porém aqui ligada a um aspecto restritivo do repertório a que se submete o músico de orquestra, que segundo o crítico, pode conduzir o instrumentista a uma espécie de embotamento e um enfraquecimento de sua capacidade inventiva. Percebe-se, que experiência está relacionada à maneira como respondemos ao que nos acontece e ao tipo de abertura que se tem diante das manifestações humanas. A citação sugere que o “músico de orquestra”, esse indivíduo, de modo geral, fechado nas práticas e procedimentos do ensino tradicional de instrumento, acaba por limitar a amplitude de sua experiência com a arte e com a sua própria individualidade, já que se recusa (ou nem chega a pensar que essa experiência seja importante), a experimentar vivências outras, que não sejam aquelas ligadas ao ensino tutorial e ao universo orquestral. A partir desses aspectos restritivos ligados ao ensino de instrumento, principalmente o das chamadas cordas friccionadas 5 , buscar-se-á, neste trabalho, repensar procedimentos e conteúdos pedagógicos no espaço diferenciado que a prática coletiva de música, aparentemente, proporciona a educadores e educandos. Nos anos de trabalho com o ensino em grupo de instrumento (contrabaixo acústico), tenho observado certo desconforto por parte dos educadores musicais em lidar com as dificuldades de obter os mesmos resultados técnicos, em geral, conquistados no ensino individual. Possivelmente, essas dificuldades encontradas neste processo educativo se 4 Essa passagem se aplica a toda relação entre homem e instrumento, porém, aqui se quer ressaltar aspectos particulares da cultura do ensino e aprendizado dos instrumentos de orquestra. 5 “Cordas friccionadas” é um termo utilizado para classificar o grupo de instrumentos identificados pela sonoridade construída por meio da fricção do arco nas cordas. 22 relacionem, principalmente, à formação tutorial do próprio educador e ao contexto estrutural do projeto no qual está inserido. Assim, o profissional se vê na condição de ensinar em conformidade com um modelo diferente daquele pelo qual vivenciou suas próprias experiências musicais, com procedimentos, conteúdos e objetivos que faziam pleno sentido à dinâmica do ensino individual. Segundo o educador inglês Keith Swanwick: O trabalho em grupo é uma excelente forma de enriquecer e ampliar o ensino de um instrumento. Não estou defendendo a exclusividade do ensino em grupo, e muito menos denegrindo as aulas individuais. Simplesmente quero chamar a atenção para alguns benefícios em potencial do ensino em grupo enquanto uma estratégia valiosa no ensino de instrumentos. Para começar, fazer música em grupo nos dá infinitas possibilidades para aumentar nosso leque de experiências, incluindo aí o julgamento crítico da execução dos outros e a sensação de se apresentar em público. A música não é somente executada em um contexto social, mas é também aprendida e compreendida no mesmo contexto. A aprendizagem em música envolve imitação e comparação com outras pessoas. Somos fortemente motivados ao observar os outros, e tendemos a “competir” com nossos colegas, o que tem um efeito mais direto do que quando instruídos apenas por aquelas pessoas as quais chamamos "professores" (SWANWICK, 1994, p. 3). Desse modo, nos aproximamos do problema da presente pesquisa, ao qual agregamos outros questionamentos, que se julgam pertinentes. Por sua configuração diferenciada, a prática coletiva de instrumento não seria um espaço propicio para a utilização de conteúdos pedagógicos distintos do ensino tutorial? Não seria um ambiente educativo ideal para alargar os campos de saberes da aprendizagem do instrumento por meio de vivências que explorassem outros aspectos do fazer musical? Nessa perspectiva, o presente trabalho propõe refletir acerca da possibilidade do uso de recursos pedagógicos, em que a capacidade inventiva dos alunos seja instigada e valorizada dentro da sala de aula; refere-se aqui à composição musical, que engloba, também, processos criativos como os do arranjo e da improvisação. Assim, o objetivo da pesquisa não é medir nem avaliar a capacidade inventiva dos alunos, ou dar ênfase nos resultados (produtos) desses alunos submetidos às práticas criativas, mas, sim, construir um pensamento que consubstancie a ideia do uso pedagógico da criatividade como um caminho para que os estudantes possam experimentar outras formas de se relacionar com a música, e, ao mesmo tempo, relatar e analisar processos criativos (composição) vivenciados com alunos de contrabaixo do Projeto Guri. Afirma-se aqui, que, embora os resultados artísticos construídos por meio das atividades de composição sejam levados em conta, entretanto, não serão o foco do trabalho, que se concentra no processo criativo dos alunos e suas visões acerca desse tipo de intervenção dentro da aula de instrumento musical. Assim, segundo CAVALIERI; SWANWICK, 2002: As composições feitas em sala de aula variam muito em duração e complexidade de acordo com a sua natureza, propósito e contexto; podem ser desde pequenas “falas” 23 improvisadas até projetos mais elaborados que podem levar várias aulas para serem concluídos. Mas desde que os alunos estejam engajados com o propósito de articular e comunicar seu pensamento em formas sonoras, organizando padrões e novas estruturas dentro de um período de tempo, o produto resultante deve ser considerado como uma composição – independente de julgamentos de valor. Essas expressões são expressões legítimas de sua vida intelectual e afetiva (CAVALIERI; SWANWICK, 2002, p. 11). Dentre os objetivos específicos da pesquisa se encontram, por exemplo, a questão do trabalho com o repertório ligado à música popular urbana, a do uso do corpo 6 e a da utilização de procedimentos criativos, como a improvisação, que, um dia, já fez parte do universo dos compositores e instrumentistas conectados à música de concerto, mas que, nos dias atuais, é quase exclusividade dos músicos pertencentes ao campo da música popular. Acredita-se que a abertura não traz apenas benefícios ligados à habilidade musical, mas faz parte de algo maior, que se relaciona com o reconhecimento e a absorção de diferentes práticas e ambientes musicais, que conduzem a uma postura de respeito à diversidade e ampliação da recepção estética. Em relação ao aspecto metodológico, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, a ser adotada considerando-se seu potencial de compreender como os indivíduos ou grupos percebem aquilo que vivenciam e como interpretam suas experiências (cf. BOGDAN; BIKLEN, 1994), o que permite dar voz e protagonismo aos principais envolvidos em um fenômeno estudado. Segundo Minayo, O verbo principal da análise qualitativa é compreender. Compreender é exercer a capacidade de colocar-se no lugar do outro, tendo em vista que, como seres humanos, temos condições de exercitar esse entendimento. Para compreender, é preciso levar em conta a singularidade do indivíduo, porque sua subjetividade é uma manifestação do viver total. Mas também é preciso saber que a experiência e a vivência de uma pessoa ocorrem no âmbito da história coletiva e são contextualizadas e envolvidas pela cultura do grupo em que ela se insere (MINAYO, 2012, p. 623). Portanto, busca-se compreender como ocorreram as interações e posicionamentos dos alunos diante da prática com a criação musical (composição, arranjo e improvisação) que foram realizadas no Projeto Guri da cidade de Ribeirão Preto. Acredita-se que o Projeto Guri, por trabalhar com a prática coletiva de música, seja um espaço ideal para o desenvolvimento de conteúdos pedagógicos distintos do ensino tutorial. Desse modo, o espaço e o modelo (coletivo) de ensino proporcionado pelo Projeto está sintonizado com o problema de pesquisa, 6 “Corpo” aqui entendido tanto como o próprio corpo do aluno, como o “corpo” do instrumento, que pode ser muitas vezes utilizado de forma percussiva ampliando a gama de sons e sensações do aprendiz. 24 que é colocar em foco o ensino de instrumento na coletividade, e mostrar como o modelo pode contribuir com novos paradigmas pedagógicos e, no caso da presente pesquisa, o trabalho com a criatividade. As atividades de criação foram realizadas com alunos de 15 a 18 anos, pertencentes a denominada Turma C, classe que abriga os estudantes que já têm consolidada a técnica básica no instrumento, pois, geralmente, estão há pelo menos 1 ano no Projeto Guri. Utiliza-se a estratégia da observação participante, por se acreditar que o pesquisador está inserido numa determinada realidade social, e que sua participação é benéfica para a pesquisa, já que ambos, apesar das diferenças de posição e estágio na prática educativa, estão em constante aprendizagem em relação aos conteúdos pedagógicos partilhados. Nessa perspectiva, pode-se dizer que educador e aluno estão numa mesma trama, em que estão em jogo a subjetividade dos sujeitos, as relações que estas constroem com o outro, em um fluxo contínuo de aprendizado (BRANDÃO; STRECK, 2006). Numa pesquisa como esta, que envolve o estímulo à criatividade, num ambiente onde eminentemente se tem a figura do professor como ordenador dos conteúdos pedagógicos, é importante que o pesquisador participe e inspire; entretanto, é essencial, também, que estimule a autonomia dos estudantes, caso contrário, sua atitude poderia ser uma contradição e negação da ação criativa. Desse modo: A pesquisa participante deve ser considerada como um repertório múltiplo e diferenciado de experiências de criação coletiva de conhecimentos destinados a superar a oposição sujeito/objetos no interior de processos que geram saberes e na sequência das ações que aspiram gerar transformações a partir também desses conhecimentos. Experiências que sonham substituir o antigo monótono eixo pesquisador/pesquisado, conhecedor/conhecido, cientista/cientificado, pela aventura perigosa, mas historicamente urgente e inevitável, da criação de redes, teias e tramas formadas por diferentes categorias entre iguais/diferentes sabedores solidários do que de fato importa saber. Uma múltipla teia de e entre pessoas que, ao invés de estabelecer hierarquias de acordo com padrões consagrados de ideias preconcebidas sobre o conhecimento e seu valor, as envolva em um mesmo amplo exercício de construir saberes a partir da ideia tão simples e tão esquecida de que qualquer ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, uma fonte original e insubstituível de saber (BRANDÃO; STRECK, 2006, pp. 12 e 13). O trabalho utilizou como instrumento de coleta de dados o diário de campo e uma entrevista semiestruturada, que procurou captar as impressões dos alunos acerca dos vários aspectos das vivências com as práticas criativas. No que toca à fundamentação teórica, utilizam-se como fonte central os escritos do filósofo da educação Jorge Larrosa, principalmente, o seu importante ensaio Notas sobre a experiência e o saber de experiência, que se encontra no livro Tremores: escritos sobre 25 experiência publicado no Brasil, no ano de 2014. Outros autores estão articulados às ideias de Larrosa, como o Prof. João Francisco Duarte Junior (2001) e educadores ligados ao campo da educação musical que, no decorrer da dissertação, ajudam a fundamentar a pesquisa. Um desses autores é o pesquisador inglês Keith Swanwick (2002, 2003, 2014) por sua busca para aproximar a aprendizagem instrumental de recursos pedagógicos mais abrangentes como a apreciação e a composição musical. A partir da intersecção da performance com essas outras formas de experiência musical, o autor procura afastar a ideia da prática instrumental como a única forma legítima de realização musical (cf. CAVALIERI; SWANWICK, 2002). Dessa maneira, a performance se insere num campo mais amplo, e se torna mais um elemento no ensino e aprendizagem, que constrói a percepção e compreensão das estruturas musicais (temas, frases, formas maiores), e as relações metafóricas que estas tecem com a própria vida. Swanwick, por meio da articulação da composição, apreciação e performance, pode nos ajudar a pensar na possibilidade, talvez utópica, de proporcionar um ensino que promova equilíbrio entre os aspectos técnicos, e a compreensão mais ampla do fazer artístico. Outro autor importante e inspirador para a presente pesquisa é o educador inglês John Paynter (1992), considerado como membro da chamada segunda geração de educadores musicais, assim denominado, “pelo renovado interesse pelo “som” como matéria prima da música”, e das reflexões em torno da criação musical (FONTERRADA, 2008, p. 121). Tendo como referência seu livro “Sonido y Estructura” (1992), Paynter traz para a pesquisa reflexões e exemplos pedagógicos, como projetos e ideias capazes de auxiliar na construção de estruturas musicais, em trabalhos de composição em sala de aula. Ainda que o autor não tenha se dedicado, especificamente, ao ensino de instrumento, mas, pelo contrário, muitas vezes tenha criticado as cristalizações no que tange ao tipo de repertório e a procedimentos metodológicos, no presente trabalho, o pesquisador busca se aproximar de seu texto, e se propõe a “transportar” tais procedimentos pedagógicos para a prática coletiva de música (Contrabaixo Acústico), no Projeto Guri. Busca-se, com a pesquisa desses autores, observar as abordagens e reflexões a respeito do tema, no intuito de oferecer suporte teórico especifico do campo no qual o presente trabalho está situado, e apoio prático pedagógico para as atividades criativas vivenciadas com os alunos do Projeto Guri, na Unidade de Ribeirão Preto. Sendo assim, a presente pesquisa se justifica a partir de dois olhares acerca do contexto histórico atual e sua relação com aspectos ligados ao potencial inventivo humano. O 26 primeiro é a importância de oferecer um espaço educacional que permita aos alunos desenvolver certa versatilidade num mundo cada vez mais dinâmico e que exige, muitas vezes, prontidão e flexibilidade, seja na vida cotidiana, seja no campo profissional. Segundo ALENCAR; FLEITH, 2003: Em anos recentes, a criatividade tem sido apontada como habilidade de sobrevivência para as próximas décadas, em função da incerteza do futuro, das características do atual momento histórico, marcado por profundas, intensas e rápidas mudanças, das novas necessidades e dos problemas que surgem a cada momento, demandando soluções criativas. Com o ritmo acelerado das mudanças, as informações têm se tornado obsoletas em um tempo muito curto, tornando impossível antecipar o tipo de conhecimento que será necessário nos anos vindouros e gerando uma maior necessidade de ampliar a capacidade de pensar e criar (ALENCAR; FLEITH, 2003, p. 8). Ambivalentemente, esse mundo que nos cobra estarmos prontos para mudanças ininterruptas, pode nos impedir de estabelecermos vínculos mais profundos com a arte, pois, como se verá, essa aceleração da informação apenas colabora em impedir a possibilidade da experiência. Assim, buscar-se-á observar os olhares (ações e opiniões) dos alunos para esse tipo de conteúdo pedagógico, e refletir acerca de possíveis intersecções entre essas vivências com a invenção musical e a ideia de “experiência”, tal como entendido pelo autor espanhol Jorge Larrosa Bondía. Em resumo, nesta apresentação de trabalho foram trazidas algumas questões presentes na contemporaneidade, que têm dificultado uma relação mais profunda e contemplativa com a experiência da arte, e de como este contexto-histórico afeta o modo como se apreende e se ensina música. No primeiro capítulo, disserta-se acerca do contrabaixo acústico e de suas particularidades históricas (medidas físicas imprecisas, dois tipos de arcos, entre outras) e como estas características parecem oferecer flexibilidade e “leveza” para que se realizem amplas reflexões a respeito de práticas pedagógicas. Neste mesmo capítulo, realiza-se um panorama histórico do ensino coletivo de cordas friccionadas no Brasil. Em um primeiro momento, aborda-se o trabalho realizado no Instituto Baccarelli (até o início de 2017) pelo Prof. Alexandre Rosa, por meio da prática coletiva de contrabaixo acústico. No decorrer do capítulo discorre-se acerca de professores e espaços educativos importantes para a implementação do modelo no Brasil como a influência da metodologia Suzuki, o pioneirismo do Prof. Alberto Jaffé no Projeto Espiral e, posteriormente, no SESC, a proposta criativa experienciada pelo Prof. Samuel Kerr, também nas instalações do SESC Consolação, além de abordar dissertações que se tornaram referenciais da temática dentro da academia (Dias e 27 Galindo) e regiões que conquistaram notoriedade com o modelo de ensino coletivo de cordas, como Goiânia (Cruvinel – ENECIM) e Bahia (NEOJIBA). No segundo capítulo, apresenta-se o locus da pesquisa, com a pretensão de situar o leitor acerca da Associação Amigos do Projeto Guri (AAPG), seus objetivos como Organização Social, e trazer uma síntese de sua história, traços gerais de seu Projeto Político- Pedagógico (PPP), bem como as características do Polo da cidade de Ribeirão Preto. Busca- se, também, informar dados a respeito dos alunos envolvidos na pesquisa e suas características (idade, estágio do estudo instrumental), para que se entenda melhor como se apresentam os sujeitos da investigação. Além disso, discorre-se acerca da proposta educacional do Projeto, de seus referenciais teóricos norteadores, de seus princípios, de como é organizado o curso de cordas friccionadas, das atribuições do educador musical e como se configura a rotina pedagógica da classe de contrabaixo do Polo de Ribeirão Preto. No terceiro capítulo, analisa-se a ideia de “experiência” tal como entendida pelo filósofo da educação Jorge Larrosa (2014) e suas possíveis conexões com elementos da prática instrumental, tanto no que toca ao ensino e à aprendizagem, quanto à performance. Por meio da apreensão da profunda análise do termo realizada pelo autor espanhol, busca-se, também, traçar um paralelo entre as características intrínsecas à palavra – experiência – e a passagem por uma ação criativa, atributos como: imprevisibilidade, não controle e não programação; assim, procura-se construir um pensamento que consubstancie a relevância na prática educativa de “quebras” da rotina convencional do estudo instrumental, como mecanismo de estímulo à abertura e a novas percepções do fazer musical. No quarto e último capítulo, relatam-se três intervenções caracterizadas pela presença de práticas criativas, vivenciadas com os alunos do Projeto Guri/Ribeirão Preto: as duas primeiras, experienciadas no segundo semestre de 2016, e a terceira, ocorrida no primeiro semestre de 2017. Após o relato do processo destas atividades, realiza-se um cruzamento entre as impressões (entrevista) dos estudantes a respeito das atividades de criação e as ideias pedagógicas dos principais referenciais da presente pesquisa, John Paynter, Keith Swanwick e Jorge Larrosa. Na Conclusão, faz-se uma síntese da trajetória da pesquisa, das relações entre as atividades vividas com os alunos e as ideias dos autores que deram suporte teórico ao trabalho. Por fim, espera-se que este estudo possa contribuir para que se instalem mais e mais 28 atitudes pedagógicas renovadoras no que se refere ao ensino de instrumento, e que as práticas criativas possam encontrar seu espaço nas práticas de ensino e aprendizado de instrumentos. 29 1 O Contrabaixo no tempo A pesquisa não se centra em particularidades técnicas ou questões de repertório de determinado instrumento, como em um trabalho típico do campo da performance. Entretanto, por mais que esta pesquisa tenha seu foco em refletir a respeito de processos criativos dentro do ensino coletivo não se pode ignorar que tais processos foram pensados, vivenciados, por meio da relação do presente autor e dos alunos do Projeto Guri com este atípico instrumento, o contrabaixo. Acredita-se que não seja mera coincidência a relação entre este específico objeto musical e a reflexão a respeito da utilização de práticas criativas no ensino de um representante da família das cordas friccionadas (arco), “família” historicamente bastante resistente a novas ideias no campo pedagógico. É acerca dessa confluência criatividade – contrabaixo, que se situa o centro deste capítulo. Numa rápida revisão histórica, pode-se saber que, durante o século XVI, houve uma mudança na configuração dos instrumentos de cordas de arco. Com o surgimento e estabelecimento do violino, a antiga família das violas da gamba 7 perdeu seu espaço para a potente engenharia do violino e dos membros de sua família. Segundo o contrabaixista e historiador Paul Brun (2000, p. 13): “Desde o seu início no século XVI, estes instrumentos (violinos) foram construídos para soar com força e intensidade, em contraste deliberado com o som suave e menos assertivo das violas” 8 . Desse modo, o violino se tornou o protótipo de modelo para as outras “vozes” instrumentais (média e graves), respectivamente, viola, violoncelo e contrabaixo. Portanto, estes instrumentos acompanharam as mudanças estruturais da engenharia utilizada na construção do violino e se adaptaram às demandas da nova configuração orquestral, embora, segundo Brun, a viola e o violoncelo tenham passado por alterações em menor grau, comparadas às históricas modificações ocorridas com o contrabaixo (ibidem, p.13). As diferenças de medidas entre o modelo ideal – violino – e seu representante grave – contrabaixo – imprimiram à este último uma história particular no que tange a várias de suas características e práticas, tais como: o tamanho, o formato, o tipo de arco, a afinação e, até mesmo, uma atuação distinta dos outros membros da família em relação aos universos da música (clássico e popular). 7 Instrumento muito utilizado nos séculos XV e XVI, as violas da gamba constituíam uma família, com violas baixo, tenor, contralto e soprano. As violas da gamba, normalmente, têm seis cordas, apesar dos instrumentos do século XVI terem, à época, cinco e quatro cordas. Eram instrumentos construídos com baixa tensão e com cordas de tripa de animais, portanto, tinham uma sonoridade mais suave e doce, em comparação aos instrumentos da família do violino. https://pt.wikipedia.org/wiki/Viola_de_gamba 8 From their inception in the 16th century, these instruments were built to sound Strong and loud, in deliberate contrast to the more reedy and less assertive sound of the viols. (BRUN, 2000, p. 13) https://pt.wikipedia.org/wiki/Viola_de_gamba 30 Nas questões de definição de medida, formato e afinação, o contrabaixo passou por várias transformações, na busca de se adaptar às demandas sonoras e técnicas necessárias à exequibilidade instrumental. Segundo Negreiros (2003, p. 10), “até meados do século XIX, o contrabaixo foi construído livremente, em várias formas e tamanhos”. Em relação ao formato, o gigante Octobass 9 é um exemplo emblemático da liberdade e indefinições do ponto de vista de medidas, a que se chegou a projetar o instrumento mais grave das cordas de arco. FIGURA 1: Nicólo Moneta tocando seu Octobass. (Fonte: BRUN, 2000) 9 Segundo Paul Brun, o “octobass” foi construído por Jean Baptiste Vuillaume, e se constituía de um contrabaixo de proporções gigantescas, construído para participar, em 1849, de uma exposição de produtos industriais que acontecia ciclicamente (a cada 5 anos) em Paris (BRUN, 2000, p. 177). 31 Ainda em relação ao formato do instrumento, nos dias atuais, mesmo com maior padronização, pode-se encontrar dois modelos de contrabaixo, definidos pela forma de seus ombros: ombros recortados (formato “pera”) e ombros quadrados (formato “violino”) 10 . A respeito da afinação o instrumento passou por várias disposições, tanto que, na França, até o início do século XIX, era comum a afinação em quintas, como nos demais membros da família. Entretanto, em razão da necessidade de ajustes às dificuldades técnicas da demanda orquestral, posteriormente estabeleceu-se a afinação em quartas. Segundo Brun, foi após as dificuldades técnicas encontradas na execução da obra de Beethoven que se iniciou um movimento de reformulação da afinação do contrabaixo na França, no início do século XIX. O autor relata que, com a afinação em quintas, muitas vezes era necessário deixar mais lento, por exemplo, o scherzo da Quinta Sinfonia de Beethoven, para que os contrabaixistas conseguissem executar a parte. Portanto, a afinação em quintas impunha muito mais deslocamentos à mão esquerda (mudança de posição), promovendo, assim, maior complexidade na execução de trechos rápidos (BRUN, 2000, p. 135). Todas estas históricas indefinições promoveram o que Paul Brun denomina de “Controvérsia Genealógica”: as discussões em torno da origem do contrabaixo. O fato de o instrumento ter nascido no momento em que a família do violino suplantou a das violas da gamba, somado a sua particular irregularidade e falta de padronização, são circunstâncias que o conduziram a ser reconhecido como um instrumento híbrido. Nessa perspectiva, parte dos estudiosos consideram o contrabaixo e o violoncelo como instrumentos derivados da família das violas da gamba, e, outros, como Brun, os julgam derivados da família do violino (ibidem, p. 20). Talvez a maior peculiaridade do contrabaixo, fruto de sua defasagem diante dos outros instrumentos da família (violino, viola e violoncelo), seja a questão do uso de dois modelos de arco, no caso, o arco francês e o arco alemão, denominados assim pela proliferação destas técnicas nos respectivos países. 10 Entende-se historicamente que os contrabaixos de ombros recortados trazem consigo esta característica dos instrumentos graves da família das violas da gamba, e o de ombros quadrados, são instrumentos que caminharam em direção ao formato da família dos violinos. 32 FIGURA 2: Arco Modelo Francês (Fonte: NEGREIROS, 2003, p. 13). FIGURA 3: Arco Modelo Alemão (Fonte: ibidem, p.13). Não se tem interesse no presente trabalho, de especificar as características de cada arco, mas sim mostrar como o instrumento é marcado historicamente por singularidades na sua formação, e que estas características parecem traçar uma identidade distinta da dos outros instrumentos de arco. O que se quer refletir aqui, é que, aparentemente, essa falta de padronização se confunde com a flexibilidade conquistada pelo instrumento, não apenas no que toca a sua estrutura física e técnica, mas à maneira como o instrumento se inseriu em diferentes contextos musicais, na música orquestral, e em várias manifestações de música popular urbana, principalmente, no jazz. A partir desse ponto de vista, acredita-se, no presente trabalho, que não é mera coincidência a confluência de trabalhos artísticos e acadêmicos que, de alguma forma, envolvem a questão da criatividade e o contrabaixo. No que tange ao campo artístico, não se pode deixar de citar o representativo e histórico trabalho do sexteto francês “L´Orchestre de Contrabass”. Fundado em 1981 pelo contrabaixista Cristian Gentet, o grupo desenvolve de forma inovadora um trabalho com diferentes influências musicais, e traz questões acerca da criatividade por meio de suas composições, não apenas no estudo e exploração de técnicas estendidas, mas na utilização de uma concepção cênica de sons, gestos e do próprio objeto - contrabaixo. O grupo tem 7 discos lançados 11 . Diferentemente dos outros instrumentos da família, não é incomum encontrar o contrabaixo em formações peculiares, tal como 11 Por meio destes dois links pode-se ter uma ideia do trabalho desenvolvido pela “L´Orchestre de Contrebasses”: https://www.youtube.com/watch?v=kvPZkFN73Z8&list=RDkvPZkFN73Z8#t=9 https://www.youtube.com/watch?v=lb78bKgSN-M&list=RDkvPZkFN73Z8&index=5 https://www.youtube.com/watch?v=kvPZkFN73Z8&list=RDkvPZkFN73Z8#t=9 https://www.youtube.com/watch?v=lb78bKgSN-M&list=RDkvPZkFN73Z8&index=5 33 contrabaixo e voz, ou até mesmo em diálogos com outras linguagens artísticas, como a dança e o teatro. Em relação a trabalhos acadêmicos, pode-se citar a Dissertação de Mestrado do contrabaixista e professor Alexandre Rosa 12 , intitulada: Técnicas estendidas na performance e no ensino do contrabaixo no Brasil (2012), na qual, além de desenvolver uma pesquisa do uso de TE 13 em composições brasileiras, utilizou o recurso como ferramenta pedagógica, tanto como forma de aproximar os alunos da linguagem da música contemporânea quanto como possibilidade de incentivá-los a construírem composições e arranjos por meio da exploração desses sons, provenientes do uso de Técnicas Estendidas – TE. A presente pesquisa não tem como foco central abordar tecnicamente o estudo do contrabaixo, seja por meio das técnicas estendidas (apesar da utilização destes recursos em vivências com os alunos), seja por qualquer outro procedimento metodológico de desenvolvimento técnico instrumental. No trabalho, visa-se a refletir a respeito da possibilidade do uso de práticas que envolvem a invenção dentro do ensino coletivo de instrumento, e entende-se que o contrabaixo, por suas características históricas, pode impulsionar educadores e estudantes a trilhar novos caminhos no campo pedagógico. Essa abertura pode oferecer aos estudantes uma visão mais larga do campo da música e dos múltiplos significados da experiência da arte do que habitualmente ocorre. 1.1 A importância do uso das TEs e a sua utilização na classe de ensino coletivo do Instituto Baccarelli Diante do fato da presente pesquisa lidar com o ensino de contrabaixo aliado às práticas criativas, torna-se importante aproximar-se da Dissertação de Mestrado realizada pelo 12 “Alexandre Rosa é Doutor em música-performance pelo IA-UNESP onde também realizou seu mestrado. Sua graduação em música-instrumento foi pela ECA-USP. Foi primeiro contrabaixo solista da Orquestra Sinfônica de Santo André e membro da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Fundador da Orquestra de câmara Engenho Barroco tem atuado com esta e em grupos de câmara com música barroca e contemporânea. Suas pesquisas sobre técnicas estendidas resultaram no CD BASS XXI (2013) e na publicação, pela Editora UNESP do livro Técnicas Estendidas do Contrabaixo no Brasil- Revisão de Literatura, Performance e Ensino (2014). Como professor de contrabaixo, no Instituto Baccarelli, 2007 a 2017, pôde fazer a aplicação destas técnicas na iniciação ao instrumento. Atualmente é músico da OSESP. Desde 2016 iniciou colaborações com companhias de balé e teatro. É professor substituto de contrabaixo no IA-UNESP”. http://lattes.cnpq.br/0429610307569707 13 A sigla TE, refere-se ao trabalho com Técnicas Estendidas. Em seu livro “Técnicas estendidas do contrabaixo no Brasil”, o Prof. Alexandre Rosa afirma que existem duas visões correntemente aceitas em relação a definição do termo “Técnica estendida”, que são: “elementos inovadores ou elementos tradicionais em contextos diferenciados”. Todavia, o pesquisador comenta que há conflitos até mesmo em congressos e seminários de música a respeito da definição do conceito de técnica estendida e aponta “a necessidade de discussões mais aprofundadas sobre o tema” (ROSA, 2014, p. 14). http://lattes.cnpq.br/0429610307569707 34 professor Alexandre Rosa, que resultou no livro: Técnicas estendidas do contrabaixo no Brasil: Revisão de literatura, performance e ensino, publicado no ano de 2014. Trata-se de um estudo que trafega tanto pela área da performance, quanto pela prática do ensino do instrumento. O trabalho de Rosa centra-se nos benefícios que pode trazer a prática das TE na preparação de performances e a sua utilização no campo pedagógico, como forma de obter vantagens no processo de ensino e aprendizagem do instrumento. A experiência pedagógica da pesquisa foi vivenciada com os alunos de contrabaixo do Instituto Baccarelli 14 . No campo interpretativo (performance), o autor analisa algumas peças ao longo dos períodos da história da música, a escrita de TE e a sua importância na evolução idiomática e técnica do contrabaixo. Comentando acerca da peça Trenody do compositor polonês Krzysztof Penderecki, Rosa escreve: No período após Trenody houve uma fase de grande experimentação em que o compositor passava a ter meios de se expressar que iam além dos instrumentos tradicionais, e a continuidade destes dependia em grande extensão daquilo que eles tinham a oferecer ao compositor no sentido de despertar seu interesse e provocar sua fantasia. Se considerássemos que ao longo da história do contrabaixo acústico, com raras exceções, este instrumento não havia despertado o “interesse e a fantasia” dos compositores, poderíamos deduzir que esse seria um momento ainda mais delicado, no qual o instrumento poderia cair no esquecimento e ficar para sempre relegado a um papel subalterno dentro da composição, com graves consequências para a evolução técnica e musical (ROSA, 2014, p. 23). Rosa também realiza uma análise de TE presentes em cinco peças e propõe diversos procedimentos para a interpretação dessas obras. Inclusive, uma dessas peças, o Adagio (2001) para quarteto de contrabaixos de João Pedro Oliveira (n. 1959), foi trabalhada, junto à pesquisa, com os alunos de nível médio e avançado do Instituto Baccarelli. Assim, no campo do ensino, Rosa trabalha com as TE para os iniciantes de contrabaixo, como possibilidade de estimular a invenção, a experimentação e o contato lúdico com o instrumento, e, para os alunos intermediários e avançados, como forma de prepará-los para a apreciação e interpretação da música contemporânea. No que se refere ao estudo com os iniciantes no instrumento, o autor escreve: 14 “O Instituto Baccarelli é uma associação civil, sem fins lucrativos, que tem por missão oferecer formação musical e artística de excelência, proporcionando desenvolvimento pessoal e criando a oportunidade de profissionalização, com foco em crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. Localizado na comunidade de Heliópolis em São Paulo, conta com mais de 1300 crianças e jovens a partir de 7anos. O Instituto Baccarelli oferece à comunidade uma estrutura de ponta e professores altamente qualificados, aulas de teoria e técnica, da musicalização à especialização em um instrumento, além de prática em orquestras, corais e grupos de câmara”. (ibidem, p. 36) 35 Nesse momento, quando eles já têm um entendimento mínimo do contrabaixo, mas não têm a desenvoltura motora e auditiva necessárias para tocarem as notas afinadas, é que as TE podem ser de grande valia para o desenvolvimento motor e cognitivo musical dos alunos. Por meio delas pode-se trabalhar a audição, a pulsação, posturas corporais, explorar sonoridades, dinâmicas, texturas e abrir o leque de possibilidades de aprendizado para o iniciante (ROSA, 2014, p. 84). Rosa articula e respalda seu trabalho em autores como: Swanwick (1986), Hardgreaves (2010) e Ausubel (1980), no que toca aos benefícios do ensino coletivo, e à relevância do trabalho com a exploração sonora nessa fase inicial, a partir da ideia de que as experimentações preparam os alunos não apenas para o entendimento futuro de especificidades técnicas do instrumento, como os auxiliam a se ambientarem às características da música contemporânea, para o estudo posterior nos estágios intermediário e avançado. Assim: Livres de parâmetros como afinação, sonoridade e uniformidade de articulações, os iniciantes são incentivados a experimentar e dirigidos a conhecer o instrumento. Posteriormente nos níveis médio e avançado, quartetos para contrabaixo dos compositores Bertram Turetzky (Kinderspiel) e João Pedro Oliveira (Adágio) levam os alunos a vivenciar a performance da música do nosso tempo (ibidem, p. 86). Essa trajetória pedagógica de alunos iniciantes e intermediários – avançados refletem a dinâmica de ensino no Instituto Baccarelli, que, segundo Rosa, acontece coletivamente com os estudantes iniciantes e individual com os que cursam os níveis intermediário ou avançado, à medida que os alunos desenvolvem, segundo o professor, “as capacidades de autodisciplina, coordenação e concentração que esta prática deve despertar” (ROSA, 2014, p. 83). No que toca à questão da utilização das TE como impulso para o trabalho composicional com os alunos iniciantes, ponto de convergência entre a dissertação de Rosa e a presente pesquisa, o autor escreve: Outro aspecto relevante é o fato de que além de serem usadas como procedimentos metodológicos para o ensino de instrumento e da teoria musical elementar, estas técnicas são importantes como exploração do fenômeno sonoro, dos timbres e da criação musical, sempre a partir do universo sonoro do aluno. Este contexto tem proporcionado desenvoltura na performance dos alunos (ROSA, 2014, p. 86). Dessa forma, o autor trabalha com uma coleção de TE catalogadas pelo contrabaixista e pesquisador francês Jean Pierre Robert 15 que servem, como já descrito, para antecipar o estudo de elementos técnicos por meio da exploração sonora lúdica, e, também, como fonte de 15 Jean-Pierre Robert é um contrabaixista e pesquisador francês, que desenvolveu um importante trabalho relacionado a novos modos de execução do contrabaixo. Escreveu um tratado denominado Modes of Playing the Double Bass (1995), com o subtítulo A Dictionary of Sounds, em que tece acerca da grafia e descrição de Técnicas Estendidas usadas no contrabaixo, na segunda metade do século XX (ROSA, 2014, p. 29). 36 inspiração para a prática da composição. Por exemplo: “Som da porta (vertical movement with pressure): girar verticalmente a crina com muita pressão em cima da corda. Eficiente para alinhar o arco de maneira reta no ponto de contato com a corda” (ROSA, 2014, p. 89). Decorrente do processo de aprendizagem das TE, foram realizadas três composições pelos próprios alunos: Se essa rua fosse nossa, Música dos números e Samba de Deus, às quais, o autor relata e analisa detalhadamente o processo de criação de cada uma das peças. Conclui-se que a pesquisa do Prof. Alexandre Rosa é uma importante referência para o presente trabalho e para estudos a respeito de práticas criativas no universo das cordas de arco, como já dito, tão avesso a novos olhares no que tange à pedagogia de ensino. Apresenta certo pioneirismo do contrabaixo em relação a tais práticas educativas, e transita de forma muito interessante entre a performance e a educação musical, duas áreas convergentes, todavia, de maneira geral, campos que não dialogam entre si, e que acabam perdendo um possível trafego de informações e vivências valiosas para ambas as práticas. 1.2 A metodologia Suzuki e a sua influência no ensino coletivo de cordas no Brasil 1.2.1 Breve biografia Schinichi Suzuki (1898 – 1998) nasceu em Nagoya (Japão) e, desde a infância, pôde ter um contato direto com a experiência musical por meio do principal instrumento pelo qual o seu trabalho foi futuramente reconhecido, o violino. Filho do dono de uma fábrica de violinos no Japão, Suzuki teve a oportunidade de muito cedo ser encantado pelo universo da música. Após estudar anos como autodidata, Suzuki foi instruir-se na Alemanha e pôde aperfeiçoar sua técnica instrumental com Karl Klinger, o famoso violinista do quarteto Klinger (FONTERRADA, 2008, p. 166). De volta ao Japão, no ano de 1931, Suzuki começou o seu trabalho como professor, lecionando para uma criança de quatro anos de idade. A partir deste desafio, pois, àquela época, não se tinha o costume de iniciar o estudo formal no instrumento com tão pouca idade, Suzuki concluiu que, assim como todas as crianças aprendem sua língua materna, elas poderiam, também, por meio de um ambiente favorável e estimulador, desenvolver seu talento para a música, desde a mais tenra idade. Dessa forma, teve início o que ficou conhecido como movimento Educação do Talento: Suzuki propõe que a música faça parte do meio da criança desde pequena, como ocorre com a língua materna, assim, ela a aprenderá naturalmente; segundo ele, todo 37 ser humano tem, potencialmente, o mesmo talento para falar e fazer música. Mas para que esse potencial se desenvolva, é preciso que a criança seja exposta a um meio favorável desde muito cedo. A música tem que ser parte importante desse meio e os agentes da musicalização do bebê serão seus próprios pais (FONTERRADA, 2008, p. 167). A Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) teve um profundo impacto no desenrolar histórico da proposta metodológica de Suzuki. O Japão, provavelmente, carregue consigo o fato mais marcante e simbólico da Segunda Guerra, as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Somado a isso, Suzuki, no plano da vida pessoal, por causa da guerra, teve que ficar por um longo período (mais de 10 anos) separado de sua esposa, perdeu um irmão, além de a fábrica de violinos ter sido bombardeada. Portanto, a metodologia Suzuki está indissociavelmente ligada, não apenas a certas características da cultura japonesa, mas a um contexto histórico em que a música e o estudo instrumental, deveriam cumprir um importante papel na formação dos valores humanos, de respeito e amor à vida. A essência da Educação do talento é a formação integral do ser humano, seguindo uma visão de certo modo distinta daquela que ainda predomina na educação musical instrumental no ocidente, isto é, uma visão de ensino baseada no modelo conservatorial, orientada para a formação de instrumentistas “virtuosos” (ILARI, 2012, p. 188). Após a guerra, Suzuki mudou-se para a cidade de Matsumoto, onde criou a Escola de Música de Matsumoto, que, mais tarde, se tornaria o Instituto Suzuki de Educação do Talento. Por seus notáveis resultados com as crianças, logo o trabalho de Suzuki repercutiu internacionalmente, e, em 1959, recebeu, pela primeira vez, a visita de importantes músicos do Ocidente, como, por exemplo, o violinista americano John Kendall e o violoncelista Pablo Casals. Deste período, até a sua morte, aos 99 anos de idade, no ano de 1998, Suzuki conseguiu difundir sua proposta nos Estados Unidos e em vários outros países, inclusive no Brasil, que, desde os anos 70, até os dias atuais, tem-se firmado, o que pode ser atestado por sua forte presença do trabalho com a metodologia do mestre japonês. Na perspectiva do campo da Educação Musical, o professor Shinichi Suzuki faz parte da primeira geração de educadores musicais do século XX, autores de propostas pedagógicas que ficaram conhecidas como Métodos Ativos de Educação Musical, por sua natureza prática no ensino da música. 1.2.2 Principais características da proposta metodológica de Suzuki A filosofia da “Educação do Talento” de Suzuki está para além do instante da aula individual de instrumento. Suzuki busca que a aprendizagem permeie a vida diária, portanto, é 38 importante que, no seio familiar, se escute as peças que irão ser tocadas, se criem hábitos de estudo e aprendizado do repertório; tudo isso constrói um ambiente propicio para o desenvolvimento musical e humano dos alunos. A proposta de Suzuki baseia-se na ideia de que o ser humano aprende a falar antes do aprendizado da escrita; assim, a partir de um ambiente artificialmente construído de hábitos entre alunos e pais, constrói-se um espaço cultural/musical análogo ao do aprendizado da língua, espontaneamente aprendida no seio da família e/ou do grupo social. A proposta Suzuki é baseada na premissa de que é possível aprender música, da mesma maneira que se aprende a língua vernácula. Por esta razão, entende-se que o ambiente em que o aluno está inserido é o principal fator que o levará à aprendizagem, da mesma forma que um recém nascido aprende a língua falada pelas pessoas à sua volta e não outro idioma. Nesta concepção, do mesmo modo que ocorre na aquisição da linguagem verbal, pode-se dizer que a melhor forma de se criar uma “habilidade musical” é a inserção do sujeito em um meio no qual esta linguagem esteja fortemente presente (PONTES, 2017, pp. 17-18). Desse modo, na pedagogia Suzuki, é fundamental que os alunos memorizem as peças, como forma de incorporar as melodias e naturalizar os aspectos técnicos adquiridos no contato inicial com o instrumento. Por conta da influência do Zen-Budismo e da própria cultura japonesa, não só a memória é importante, mas a repetição, também, é uma das bases fundamentais na proposta de Suzuki. A repetição, na metodologia, não é entendida como um acúmulo de habilidades para um fim, para um produto, como historicamente é reconhecida no dito ensino tradicional, mas é encarada como um fim em si mesma. Dessa maneira, Suzuki propõe que a repetição do estudo instrumental seja uma espécie de extensão do reiterativo cotidiano humano, aproximando a prática instrumental das “repetições” culturais familiares. Portanto, a família tem uma importância central na metodologia Suzuki. É na relação com a mãe e o pai que é construído o ambiente propício ao florescimento musical dos alunos. Assim, as mães, na filosofia Suzuki, iniciam as aulas de instrumento antes de seus filhos, para que, no momento em que eles ingressarem, efetivamente, nas aulas de instrumento, elas (mães) possam auxiliá-los pedagogicamente, no estudo diário em casa. Alguns itens expostos no quadro abaixo apresentam as atribuições dos papeis dos pais, alunos e professores na metodologia Suzuki: 39 Papel do aluno Papel dos pais Papel do professor Aprender a se concentrar Estar presente nas aulas e anotar as lições Conhecer a metodologia Suzuki Aprender a seguir instruções Criar um ambiente positivo em casa Saber como trabalhar com o aluno Aprender a estudar Ser um bom modelo Ser um bom modelo Escutar todos os dias Garantir a prática diária, seguindo as instruções do professor Dar lições claras e ser organizado Assistir a outros alunos Ser agradável e criativo Aprender a trabalhar em grupo Quadro 1: Atribuições de alunos, pais e professores no Método Suzuki (Fonte: Site do Centro Suzuki Campinas, disponível em: http://suzukicampinas.com.br/metodo-suzuki/; Acessado em: 04/05/2017). Uma estratégia realizada pelos professores é a prática da recapitulação do repertório aprendido, de modo que crianças de distintos estágios técnico-musicais participem deste momento. Este procedimento pedagógico ajuda a estabelecer o sentido de grupo entre os alunos e a experiência de viver numa comunidade musical, que partilha, não apenas os mesmos conteúdos técnico-musicais, mas de procedimentos de socialização, grandemente impregnados de valores humanos. A prática em grupo é importante na metodologia, todavia, não substitui as aulas individuais, mas se agrega a elas como procedimento rotineiro; o ensino tutorial é o modelo das aulas na prática Suzuki. Alunos Suzuki ganham atenção na mídia por causa dos concertos em grandes grupos frequentemente apresentados, dando a falsa impressão de que este é o modo em que eles são treinados. Ao contrário de que alguns acreditam, a base do programa é na realidade a chamada aula individual. Este pode ser o modo mais apropriado de aula particular, uma vez que outros alunos, pais e professores são também estimulados a comparecer” (BARBER, 1991, p. 8). 1.2.3 A metodologia Suzuki no Brasil e a sua influência no ensino coletivo de cordas Segundo LUZ (2004) e PENNA (1998) in ILARI (2012), a primeira aparição do trabalho com o método Suzuki no Brasil, remonta à década de 1970, por meio de Luise 40 Gassenmayer, conhecida como Irmã Wilfried, na cidade de Santa Maria, RS. Violinista austríaca, nascida em 1921, Gassenmayer, por volta de 1973, entrou em contato com a filosofia de ensino Suzuki, e, no ano seguinte, iniciou o trabalho com a metodologia para uma turma de 10 crianças, na própria cidade de Santa Maria. Outros professores, como Marco Antônio Penna e Efraim Flores, deram continuidade a este trabalho com a metodologia no sul do País. Nos anos 80, existiam vários professores 16 espalhados pelo Brasil, que utilizavam a metodologia Suzuki. Segundo CAREY (1996) in ILARI (2012), em 1996, existiam mais de 15 cidades no sul do país, que ofereciam o ensino instrumental com bases na filosofia Suzuki. Um nome importante no estado de São Paulo é a professora Shinobu Saito 17 , que, nos dias atuais, ainda promove um importante trabalho de formação para músicos interessados no ensino de instrumento com base nessa filosofia de ensino. Saito, até há poucos anos, era a única professora no Brasil com autorização da SAA (Associação Suzuki das Américas – sigla em inglês), para ministrar estes cursos de formação na metodologia Suzuki, e pode-se dizer, que a maior parte dos professores que trabalham com essa abordagem, atualmente, no Brasil, de alguma forma, passaram pelos cursos da Prof.ª Saito. Ainda segundo ILARI (2012): Apesar de o violino ser o instrumento mais difundido, em 1996 já havia, em algumas cidades brasileiras, professores Suzuki de outros instrumentos como o violoncelo, a viola, a flauta doce, o piano, a flauta transversal e o violão. Sem esquecer que as ideias de Suzuki também foram difundidas em diversos estados do Brasil. De lá para cá, é praticamente impossível calcular o número exato de alunos e professores Suzuki espalhados pelo país (ILARI, 2012, p. 192). Além da metodologia Suzuki ter se espalhado pelo País, sua rede de influência não remete apenas aos trabalhos que lidam diretamente com essa abordagem propriamente dita, mas se conecta, indiretamente, a outras abordagens metodológicas de ensino, principalmente, aquelas que trabalham com o ensino coletivo de música. Apesar da proposta de Suzuki não ter como fundamento o ensino coletivo, o incentivo à prática em grupo dentro da pedagogia, 16 Segundo VIEIRA (2004) in ILARI (2012), estes são os principais professores que trabalhavam com a metodologia Suzuki na década de 80 no Brasil: Hildegard Martins, Bianca Bianchi e Edna Savytzky em Curitiba, José Carlos Lima e Carlos Souza em Porto Alegre, Carlos Alberto Vieira em Florianópolis, Shinobu Saito em Campinas, Regina Grossi em Londrina, Ligia Froehner e Consuelo Froehner em São Bento do Sul, Marco Antonio Penna e Efraim Flores em Santa Maria, entre outros. 17 Shinobu Saito é Doutora em música (performance em violino), formada pela Universidade de Iowa. Trabalha desde 1981 com o Método Suzuki. Em junho de 2006 obteve o “Teacher Trainer Certificate” da Associação Suzuki das Américas (SAA), tornando-se a primeira professora no Brasil qualificada para formar professores no Método Suzuki. Desde então, tem preparado professores Suzuki em todo o Brasil. http://suzukicampinas.com.br/shinobu-saito (Último acesso em 04/05/2017). http://suzukicampinas.com.br/shinobu-saito 41 somado à meticulosidade do método, no que toca à escolha das peças e a sua relação com o desenvolvimento técnico-musical dos alunos, influenciaram diferentes propostas metodológicas no Brasil e no mundo. Outra característica importante da abordagem de Suzuki é o papel da coletividade no desenvolvimento das habilidades e da motivação do aluno. Para que as crianças se mantenham motivadas, é importante que elas tenham oportunidades não apenas de assistir a outras crianças tocando, mas também de tocar com outros alunos (ILARI, 2012, p. 202). Desse modo, dificilmente não se encontram “ecos” do trabalho de Suzuki em outras propostas metodológicas, seja nos apontamentos dos benefícios pedagógicos da prática coletiva, seja no conteúdo musical propriamente dito (peças); por exemplo, a famosa canção folclórica inglesa: Twinkle, Twinkle, Little Star 18 (Brilha, Brilha, Estrelinha), entre outras peças. No Brasil, as propostas de JAFFÉ, e, posteriormente, de Dias (1993), Oliveira (1998) e Galindo (2000), que ganharam notoriedade em pesquisas e na prática do ensino coletivo, comprovam a amplitude da influência do trabalho de Suzuki, no ensino coletivo de instrumentos musicais, no Brasil. Por fim, nos dias atuais, Suzuki continua sendo uma importante fonte de estudos e pesquisas acerca da utilização de sua filosofia na contemporaneidade. Um exemplo recente desta afirmação é a Dissertação (referência bibliográfica do presente trabalho) defendida pelo pesquisador Samuel C. Pontes em Junho de 2017, intitulada Diversas lentes de Leitura do Método Suzuki: diálogos e outras experiências literárias, sob a orientação da Prof.ª. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. 1.3 Alberto Jaffé e o seu pioneirismo na prática do ensino coletivo no Brasil O trabalho com o ensino coletivo de cordas friccionadas no Brasil tem como precursor, o violinista, professor e maestro, Alberto Jaffé. Ele atuou como solista, tanto no Brasil, quanto em orquestras no exterior, em países como Alemanha, Israel e Estados Unidos. De 1982 a 1985, Jaffé foi diretor adjunto do Departamento de Música do National Academy of Arts em Champaign, Illinois, onde também trabalhou como professor de violino, viola e música de câmara (YING, 2007, p. 22). No ano de 1975, Jaffé foi convidado pelo SESI (Serviço Social da Indústria) para implantar um projeto de ensino de cordas de arco na cidade de Fortaleza (CE). Assim, ao lado 18 Melodia folclórica inglesa de ninar. O texto é do início do século XIX, da poetisa inglesa Jane Taylor (1783 – 1824). https://en.wikipedia.org/wiki/Twinkle,_Twinkle,_Little_Star. Acessado em 05/05/2017 https://en.wikipedia.org/wiki/Twinkle,_Twinkle,_Little_Star 42 de sua esposa e pianista, Daisy de Luca, Jaffé deu início ao que se chamou “Orquestra de Cordas do SESI”. O objetivo do projeto era oferecer o ensino de instrumentos de cordas para o maior número possível de estudantes, pois, à época, era reduzido o número de instrumentistas capacitados para preencherem vagas em orquestras; assim, Jaffé acreditou que a metodologia de ensino em grupo poderia ser um meio eficaz de qualificar instrumentistas para o ingresso em instituições pelo país. Nessa perspectiva, Silva (2010) escreve: A década de 70 pode ser considerada, no panorama brasileiro, como um período em que um dos maiores problemas das orquestras concentrava-se na falta de músicos para as vagas existentes. Em 1975, só em São Paulo, surgiram quatro novas orquestras. A exemplo do que ocorria em São Paulo, havia também em Recife, Porto Alegre e no Rio de Janeiro grande necessidade de músicos para o setor das cordas (SILVA, 2010, p. 1063). Segundo Souza (2016) 19 , Jaffé acreditava que, por conta da baixa remuneração, havia pouco interesse da classe média brasileira no incentivo ao estudo destes instrumentos musicais. Com o projeto de ensino de cordas do SESI, Jaffé considerou que os filhos das classes trabalhadoras, poderiam desenvolver em longo prazo uma carreira profissional como instrumentistas, além de usufruir de todos os benefícios sociais e culturais que o ensino de cordas poderia proporcionar a esses jovens (SOUZA, 2016, p. 26). Importante ressaltar, como bem aponta SOUZA (2016), as semelhanças entre o modo como se configurou este tipo de prática de ensino na Inglaterra (país tido como precursor desta proposta de ensino) e como se no Brasil, nesse período. Em ambos os países, os projetos deram-se pelo estabeleceu incentivo industrial, na Inglaterra, pela Mechanic´s Intitutes 20 , no Brasil, pelo SESI (Serviço Social da Indústria). Desse modo, aparentemente, parece existir, no seio da ideia de ensino coletivo de cordas friccionadas, um caráter fabril, no que toca à possibilidade de, a “toque de caixa”, fomentar ouvintes e profissionais da dita música de concerto. Antes de assumir o projeto “Orquestra de Cordas”, Jaffé teve oportunidade, não apenas, de participar, nos Estados Unidos, de congressos cuja temática era a prática coletiva 19 SOUZA, J. R. O ensino coletivo de cordas friccionadas produzido no SESC-Consolação, comparado com propostas de ensino coletivo realizadas no Reino Unido e nos EUA: Trajetória histórica, diferenças e similaridades pedagógicas e socioculturais. São Paulo, UNESP/IA, 2016. 20 Segundo SOUZA (2016), os Mechanics´ Institutes foram instituições criadas no início do século XIX no Reino Unido, para darem suporte educacional e cultural aos jovens e adultos trabalhadores das indústrias nos países da União, respectivamente, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. 43 de música 21 , assim como, de lecionar, nesse país, utilizando esta metodologia de ensino. Diferentemente da proposta de Suzuki (apesar da influência no trabalho de Jaffé), na qual a prática coletiva é mais um suporte para a construção de um sentido de comunidade musical, a metodologia de Jaffé é baseada na coletividade, na atividade simultânea entre os naipes das cordas friccionadas – violino, viola, violoncelo e contrabaixo; Esta maneira de lecionar, conhecida hoje como ensino heterogêneo de instrumento musical, é possível, segundo Jaffé, por conta do que denominou como “elementos chaves” da técnica instrumental, que são a similaridade da afinação nas cordas Lá, Re e Sol e a utilização do arco pelos quatro instrumentos. Após 2 (dois) anos em Fortaleza, e a repercussão positiva de seu trabalho na capital cearense, Jaffé foi convidado pelo Instituto Nacional de Música (INM), órgão responsável pela política cultural da FUNARTE 22 na área de música, a implantar outros centros de ensino coletivo de cordas, em outras capitais do país. Este empreendimento ficou conhecido como “Projeto Espiral”, e contou com núcleos em Brasília, Fortaleza, Recife, Belém, Natal e Florianópolis. O Projeto Espiral perdurou durante os anos de 1978 e 1979, mesmo com o afastamento de Jaffé, por conta de outro convite, neste caso, para a implantação de um núcleo de ensino coletivo de cordas no SESC/SP. O Projeto Espiral foi retomado em 1984, e permaneceu até 1989, sob a coordenação de outros professores. 1.3.1 Jaffé e a “Orquestra de Cordas” no SESC/SP No ano de 1978, Jaffé iniciou o trabalho no SESC (Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo) na cidade de São Paulo, também denominado de “Orquestra de Cordas”. A orquestra se instalou no Centro Cultural e Desportivo “Carlos de Souza Nazareth”, posteriormente, chamado de “SESC Vila Nova” e, por último “SESC Consolação” (SOUZA, p. 28). 21 Apesar de a prática de ensino em grupo de cordas friccionadas remontarem ao século XIX, o termo “ensino coletivo”, já consolidado nos dias atuais, demorou para se tornar uma classificação recorrente para caracterizar este modelo de ensino. Nos Estados Unidos, era conhecido como “String Class” e, nos anos 70, Jaffé o chamava “Orquestra de Cordas”. Todavia, o trabalho desse violinista/professor trazia as características do que hoje se chama “Ensino coletivo de instrumento”. No caso de Jaffé, ensino coletivo heterogêneo de cordas friccionadas. 22 “A Funarte (Fundação Nacional de Arte), órgão vinculado ao então Ministério da Educação e Cultura (MEC), foi criada em 1976 para ser o braço executivo do governo na área cultural. A estrutura da Funarte foi extinta em 1990 pelo presidente Fernando Collor de Mello, retornando algum tempo depois como o nome de IBAC (Instituto Brasileiro de Arte e Cultura). O governo seguinte restituiu o nome original à instituição, mas mantendo somente uma percentagem reduzida de pessoal e programas” (LEME, 1999, p. 50). 44 Dentro da mesma perspectiva do ensino heterogêneo de música, o projeto no SESC não se aplicava a uma determinada faixa etária, assim, crianças, jovens e adultos podiam participar das classes. Dessa forma, ainda segundo SOUZA (2016): Verifica-se, portanto, que de certa maneira, Alberto Jaffé procurava com o seu trabalho, sedimentar em nosso país uma tradição musical envolvendo o ensino de instrumentos de cordas friccionadas, algo que até aquele período ainda não havia acontecido (SOUZA, 2016, p. 33). A ideia de Jaffé era oferecer à comunidade, a oportunidade de se aproximar do universo orquestral, de sua prática, da escuta e do entendimento dos códigos que envolvem a música e os instrumentos de cordas friccionadas, tais como afinação, história, estilo, e outros. Dessa maneira, Jaffé acreditava na possibilidade de, por meio de uma comprometida prática coletiva de instrumento, estimular o surgimento, não apenas, de novos instrumentistas, como, também, de ouvintes preparados para apreciar às múltiplas nuances inerentes à experiência sonora da música clássica. Interessante pensar que, pelo ângulo do objetivo e da dinâmica da prática coletiva, a metodologia de Jaffé difere da pedagogia Suzuki. Na filosofia Suzuki, a aula individual é a base do programa de ensino e a prática coletiva é, basicamente, um meio para alcançar um sentido de comunidade entre os alunos. Na metodologia de Jaffé, a prática na coletividade é o centro de sua proposta, pois um dos seus principais interesses era a capacitação de estudantes para serem especificamente músicos de orquestra. Por outro lado, existe uma importante convergência na maneira de ambos crerem no potencial humano para o estudo instrumental e não aceitarem à ideia de talento inato. Na questão do trabalho pedagógico propriamente dito com a “Orquestra de Cordas”, o professor e maestro João Mauricio Galindo, todavia, à época, aluno da primeira turma da orquestra, descreve desta forma a dinâmica da aula: [...] ele tinha um método muito bem feito, aula por aula, ele sabia o que fazer. No início eu achei que aquilo não ia dar certo, mas ele tinha uma capacidade de obter a concentração do pessoal que era impressionante. Era o jeito dele aliado ao método. Tínhamos também a ajuda da esposa Daisy de Luca. Eram três aulas por semana, muito intensas, como se estivéssemos fazendo ginástica em uma academia por duas horas; era um processo muito ativo. Uma das críticas que se fazia ao curso dele era que se não aprendia teoria. No entanto, ele ensinava teoria. À medida que surgia um problema prático parta ser resolvido ele ensinava, ele começava com questões musicais importantes desde o começo; mal sabíamos tocar uma escala e ele já falava o que era um final de frase, ponto culminante de uma frase e noção de tensão e repouso. Ele dizia que não era necessário esperar o aluno ter téc