UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara GIOVANNA LOPES SOUZA DIREITO OU PRIVILÉGIO: representações dos direitos humanos por cooperados da Cooperativa Sol Nascente de Araraquara Araraquara, 2024 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara GIOVANNA LOPES SOUZA DIREITO OU PRIVILÉGIO: representações dos direitos humanos por cooperados da Cooperativa Sol Nascente de Araraquara Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/Unesp como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social. Orientadora: Profa. Dra. Ana Cláudia Niedhardt Capella Araraquara, 2024 S729d Souza, Giovanna Lopes Direito ou privilégio : representações dos direitos humanos por cooperados da Cooperativa Sol Nascente de Araraquara / Giovanna Lopes Souza. -- Araraquara, 2024 101 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Ana Cláudia Niedhardt Capella 1. Direitos Humanos. 2. Cidadania. 3. Sistema penitenciário. 4. Representação social. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. GIOVANNA LOPES SOUZA DIREITO OU PRIVILÉGIO: representações dos direitos humanos por cooperados da Cooperativa Sol Nascente de Araraquara Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/Unesp como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social. Orientadora: Profa. Dra. Ana Cláudia Niedhardt Capella Data da defesa: 12/05/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Ana Cláudia Niedhardt Capella UNESP – Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara ______________________________________ Prof. Dr. Carla Gandini Giani Martelli UNESP – Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara ______________________________________ Prof. Dr. Jacqueline Sinhoretto UFSCAR - Centro de Educação e Ciências Humanas – Campus de São Carlos AGRADECIMENTOS A minha orientadora, Ana Cláudia Capella, por ter me guiado nesse caminho com tanto afeto, rigor e paciência. Por ter me acolhido enquanto sua orientanda e por cada reunião em que me incentivou a seguir com esse trabalho, apesar da insegurança que me invadiu por tantas vezes. Sua ternura e compromisso foram decisivas neste processo. A Universidade Estadual Paulista, que construiu um mundo dentro e fora de mim. Por toda sua importância para o Brasil e para a minha formação individual, a UNESP é um dos bens comuns mais preciosos na minha história. Obrigada por tanto, sempre, UNESP. A Cooperativa Sol Nascente, por tudo. Pela contribuição imensurável que esse coletivo oferece para Araraquara e para a vida de cada cooperado. Por terem me permitido, com tanta abertura, escutar suas histórias e ideias. Em nome de Edgar e Mooslin, presidência da Sol Nascente, minha imensa gratidão pelo acolhimento que vocês tiveram comigo e com esta pesquisa. Vocês são um farol para um mundo mais solidário. Aos mestres, com especial carinho e gratidão, Carla Martelli e Marcelo Santos, que tanto me ensinaram no exame de Qualificação. As contribuições generosas, cuidadosas e rigorosas que vocês compartilharam comigo foram fundamentais para que esse trabalho fosse concluído. Aos meus pais, o motivo de tudo. Por terem, desde sempre, colocado a minha educação como prioridade, enquanto sustentaram essa decisão com todo amor e disposição do mundo. Meu pai e minha mãe, minhas inspirações e razões de ser, sou inteiramente feita de vocês. Ter nascido deste núcleo é minha maior sorte e meu maior orgulho. É tudo por vocês. Ao meu irmão, Yago, meu primeiro amigo. Por todas as longas conversas que você me ouviu com paciência e interesse, me acolhendo em momentos difíceis e me fazendo rir por qualquer motivo - sua especialidade. Por ter o coração mais bonito que eu conheço, hermano, sou grata por estar dentro dele. Ao Luís Antônio Rodrigues, meu companheiro de graduação e pós-graduação, parceiro de todas as etapas que trilhamos juntos nesse programa. Por todo acolhimento, auxílio e amizade, Luís, você foi um alento nesse processo. A Mariana Lombardi, minha irmã, meu coração inteiro. Meu descanso e minha força, obrigada por existir na minha vida com tanto carinho, companheirismo e amor. Por toda lucidez, paciência e coragem que você me oferece e me inspira. Mari, minha luz, você é meu livro preferido. Não existe maravilha no mundo maior do que poder contar com você e com o seu vocabulário. A Paula Cardoso, minha irmã de jornada há tantos anos, meu primeiro contato com as Ciências Sociais, minha guia. Sua amizade é o melhor longa-metragem da minha vida. Seu carinho, que por tantas vezes me confortou nesse e em tantos processos, é meu melhor chão. Paula, minha bússola, nenhum processo vale a pena sem você perto de mim. Obrigada por tanta generosidade e sabedoria. Manolo, meu avesso, minha ternura, obrigada por ter colocado a minha cabeça e consciência no lugar sempre que eu me perdi nesse caminho. Você é a melhor música já produzida no Brasil. Obrigada por apostar no nosso vínculo e por cada conversa que me fez ser melhor. Sem você, nada tem ritmo nem melodia. Aos meus camaradas do Partido Comunista do Brasil, por me ensinarem tanto e me permitirem sonhar um mundo melhor todos os dias - sabendo que ele é só possível ao lado de vocês. Em nome de Mauro Bianco, Angélica Ribeiro, Carlos Flório e Felipe Berlim, obrigada por serem meu amparo, minha força e meu lembrete de que vale mais a disposição. Guilherme Bianco, meu parceiro de tantas e de todas, obrigada por me mostrar há tantos anos que só a luta muda a vida. Sua amizade, incentivo, paciência e compreensão foram fundamentais para que esse trabalho fosse concluído. Obrigada por ter colocado a Cooperativa Sol Nascente na minha história e por fazer parte dela, todos os dias, sem perder a ternura. Ao João Túbero, por ter feito parte de toda história deste trabalho com tanto amparo e companheirismo. Quatro minutos se passaram e ninguém viu O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil Talvez o mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo Que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol Ou o que vende chocolate de farol em farol Talvez o cara que defende o pobre no tribunal Ou o que procura vida nova na condicional Alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela Ou o da família real de negro, como eu sou O príncipe guerreiro que defende o gol (Racionais MC’s. Capítulo 4, versículo 3) RESUMO O movimento contrário aos direitos humanos para presos, sintetizado no lema “direitos humanos é privilégio de bandido”, exerce influência política e social tanto na efetivação de políticas públicas quanto na representação social desses direitos. Tendo em vista a baixa participação em pesquisas sobre percepção de direitos humanos por parte de presos e egressos do sistema penitenciário, propõe-se a compreender qual a representação social que estes têm acerca desses direitos e se há impacto do movimento contrário aos direitos humanos em suas opiniões. Para tanto, foram entrevistados membros da cooperativa Sol Nascente de Araraquara que são egressos do sistema penitenciário. Com o emprego da revisão bibliográfica que consiste nos estudos de Teresa Caldeira, Nancy Cardia, Paulo Mesquita Neto, Paulo Sérgio Pinheiro, Sérgio Adorno, Fernando Salla, Rosana Pinheiro-Machado, Lucia Mury Scalco e Esther Solano, bem como a metodologia para a análise das entrevistas, que se refere à Análise de Conteúdo, desenvolvida por Laurence Bardin, e a Teoria das Representações Sociais, elaborada por Serge Moscovici, foi possível concluir que a questão da cidadania para presos e egressos é uma problemática que está diretamente relacionada à histórica desigualdade econômica e social no Brasil. Dessa forma, a representação dos direitos humanos apreendida trata-se majoritariamente de uma associação com os direitos civis, que de acordo com a bibliografia e dados mencionados, são deficitários no país. Além disso, notou-se que a influência do movimento contrário a esses direitos no ideário dos egressos entrevistados é mínima. Por fim, ressalta-se o papel ressocializador da Cooperativa Sol Nascente enquanto um locus de promoção da cidadania. Palavras-chave: Direitos Humanos; Cidadania; Sistema penitenciário; Representação social. ABSTRACT The movement against human rights for prisoners, summarized in the motto “human rights are the privilege of criminals”, exerts political and social influence both in the implementation of public policies and in the social representation of these rights. In view of the low participation in research on the perception of human rights by prisoners and ex- prisoners, it is proposed to understand what social representation they have regarding these rights and whether there is an impact of the movement against human rights on their opinions. To this end, members of the Cooperativa Sol Nascente of Araraquara who were ex- prisoners from the penitentiary system were interviewed. Using a bibliographic review consisting of studies by Teresa Caldeira, Nancy Cardia, Paulo Mesquita Neto, Paulo Sérgio Pinheiro, Sérgio Adorno, Fernando Salla, Rosana Pinheiro-Machado, Lucia Mury Scalco and Esther Solano, as well as the methodology for the analysis from the interviews, which refers to Content Analysis, developed by Laurence Bardin, and the Theory of Social Representations, developed by Serge Moscovici, it was possible to conclude that the issue of citizenship for prisoners and ex-prisoners is a problem that is directly related to historical inequality economic and social in Brazil. Thus, the representation of human rights perceived is mostly an association with civil rights, which, according to the bibliography and data mentioned, are deficient in the country. Furthermore, it was noted that the influence of the movement against these rights on the ideas of the interviewed graduates is minimal. Finally, the resocializing role of Cooperativa Sol Nascente is highlighted as a locus for promoting citizenship. Keywords: Human Rights; Citizenship; Prison; Social representation. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAEF Centrais de Atenção ao Egresso e Família CEP Comitê de Ética em Pesquisa CONADA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CPNDH Coordenadoria do Programa nacional de Direitos Humanos DEPEN Departamento Penitenciário Nacional DEASC Departamento de Assuntos de Cidadania DUDH Declaração Universal de Direitos Humano INFOPEN Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias NEV-USP Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo ONG Organização Não Governamental ONU Organização das Nações Unidas PEDH Programa Estadual de Direitos Humanos PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos PRN Partido da Reconstrução Nacional PSDB Partido da Social Democracia Brasileira SAP Secretaria de Administração Penitenciária SENAPPEN Secretaria Nacional de Políticas Penais SNDH Secretaria Nacional de Direitos Humanos SUSP Sistema Único de Segurança Pública UFPE Universidade Federal de Pernambuco SUMÁRIO 1 Introdução ............................................................................................................................. 9 2 Direitos Humanos e Cidadania no Brasil ......................................................................... 19 2.1 Cidadania no Brasil ...................................................................................................... 19 2.2 A nova concepção de direitos humanos ...................................................................... 21 2.3 A positivação dos direitos humanos no Estado brasileiro ........................................ 24 2.4 O Programa Nacional de Direitos Humanos e o Programa Estadual de Direitos Humanos em São Paulo ..................................................................................................... 25 3 Crise na segurança pública e percepção social dos direitos humanos ........................... 31 3.1 Crise na segurança pública e no sistema penitenciário brasileiro ........................... 31 3.2 Percepção social dos direitos humanos e radicalização do movimento anti-direitos humanos .............................................................................................................................. 39 4 Entrevistas com cooperados da Cooperativa Sol Nascente: exposição e análise dos dados obtidos .......................................................................................................................... 48 4.1 O universo da pesquisa ................................................................................................ 48 4.2 Inserção no campo da Cooperativa Sol Nascente ...................................................... 49 4.3 Coleta de dados ............................................................................................................. 50 4.4 Apresentando os dados ................................................................................................ 51 4.4.1 Caracterização dos entrevistados ............................................................................ 51 4.4.2 Dados da livre-associação ......................................................................................... 53 4.4.3 Percepção sobre direitos humanos .......................................................................... 55 4.4.4 Análise dos dados ...................................................................................................... 60 5 Considerações Finais .......................................................................................................... 64 Referências Bibliográficas ..................................................................................................... 67 Apêndice A – Instrumentos de Pesquisa .............................................................................. 69 Apêndice B – Dados da livre associação e das entrevistas ................................................. 71 Anexo A – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa ............................. 92 Anexo B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .................................................. 97 9 1 Introdução O movimento de defesa dos direitos humanos no Brasil, que é conhecido por um trabalho destacado dentro dos muros das prisões desde a Ditadura Militar, é histórica e sociologicamente definido de acordo com os valores culturais e morais que são mobilizados diante de cada conjuntura política específica, cada unidade da federação e, sobretudo, conforme quais são os grupos que estão privados de liberdade ou impedidos de exercer sua cidadania plena. Em pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos, a pedido da ONU mulheres 1 , entre 20 de dezembro de 2022 e 31 de janeiro de 2023, demonstra-se que é majoritário no país o posicionamento que defende que "quem mais se beneficia com os direitos humanos são os bandidos". Apesar da redução de 5 pontos percentuais em relação à pesquisa anterior, esse grupo ainda representa 27% do total dos entrevistados, restando 21% defendendo que toda a sociedade brasileira se beneficia desses direitos, 15% apoiando que são os mais ricos, 14% que são os mais pobres, 9% as ONGs, 8% as vítimas de crimes, 4% os policiais, 1% defendendo que ninguém se beneficia dos direitos humanos e 2% que não souberam responder. Ao passo que tornou-se hegemônico no Brasil a acusação de que os bandidos são beneficiários de direitos exclusivos, por vezes nomeados enquanto “privilégios”, não é possível verificar essa afirmativa na realidade das prisões brasileiras. De acordo com os dados do 14º Ciclo de Levantamento de Informações Penitenciárias 2 , divulgados pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), no primeiro semestre de 2023 o Brasil contava com 834.874 pessoas privadas de liberdade, sendo 644.784 em celas físicas e 190.080 em prisão domiciliar. Em relação aos custodiados em penitenciárias, o estado de São Paulo concentra 30,36% dessa população, sendo 195.787 pessoas privadas de liberdade no estado - representando um déficit de 43.736 das vagas ofertadas, que são de 152.051 distribuídas em 180 estabelecimentos prisionais. Ressalta-se que, do total de presos em São Paulo, apenas 38.609 exercem seu direito ao trabalho dentro das prisões e 33.439 estão em ensino formal. Os presos que estão simultaneamente trabalhando e estudando são apenas 3.510. 1 ONU Mulheres Brasil. Relatório Executivo. Percepção social sobre direitos humanos e sobre mulheres defensoras de direitos humanos. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2024-01/ONU- Mulheres_Relato%CC%81rio-Executivo-Ipsos-2023_FINAL.pdf Acesso em: 10 de abril. 2024. 2 BRASIL. Comunicação Social da SENAPPEN. SENAPPEN lança Levantamento de Informações Penitenciárias referentes ao primeiro semestre de 2023. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt- br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro- semestre-de-2023 Acesso em 10 de abril. 2024. https://brasil.un.org/sites/default/files/2024-01/ONU-Mulheres_Relato%CC%81rio-Executivo-Ipsos-2023_FINAL.pdf https://brasil.un.org/sites/default/files/2024-01/ONU-Mulheres_Relato%CC%81rio-Executivo-Ipsos-2023_FINAL.pdf https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023 https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023 https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023 10 Os dados apresentados acima descrevem um cenário de superlotação do sistema penitenciário paulista, somado a pouca utilização de instrumentos de ressocialização e progressão de pena. Ademais, de acordo com relatório 3 produzido pela Defensoria Pública de São Paulo entre 2020 e 2022, 74% das unidades visitadas não ofereciam colchões para os presos, 68% das penitenciárias contavam com celas que não tinham lâmpadas para a iluminação e grande parte das unidades estavam infestadas por insetos e outras pragas. O déficit de vagas, as más condições sanitárias e um cenário restrito de acesso aos direitos humanos não descrevem um cenário de privilégios usufruídos pelas pessoas privadas de liberdade, pelo contrário, demonstram uma conjuntura em que um dos principais objetivos do sistema de justiça criminal, que é a ressocialização dos criminosos, encontra-se severamente inviabilizado. Em relação aos egressos do sistema penitenciário, os dados demonstram que o cenário para a ressocialização de presos ainda é precário no país. De acordo com a pesquisa “Reincidência Criminal no Brasil” 4 produzido pelo Grupo de Análise e Pesquisas Econômicas (GAPPE), uma parceria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a média de reincidência criminal no Brasil é de 38,9% após 5 anos de liberdade e, em São Paulo, de 46%. Em relação ao acesso à educação e trabalho, de acordo com dados divulgados pelo Tribunal de Contas de Estado de São Paulo 5 , entre 2008 e 2018, após o cumprimento de pena, somente 0,2% dos egressos conseguiram se recolocar no mercado de trabalho, 7% participaram de cursos profissionalizantes, 10% estavam no Programa de Educação para o Trabalho e Cidadania e 10% foram inseridos na Educação Formal. Ressalta-se, também, que de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), em 2020 as inscrições no programa Centrais de Atenção ao Egresso e Família (Caef) foi de 3%, representando uma queda de 11% em relação ao ano anterior 6 . 3 G1 São Paulo. 81% dos presídios do estado de SP estão superlotados, aponta Defensoria. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/04/01/81percent-dos-presidios-do-estado-de-sp-estao- superlotados-aponta-defensoria.ghtml Acesso em 11 de abril. 2024. 4 BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Depen divulga relatório prévio de estudo inédito sobre reincidência criminal no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/depen- divulga-relatorio-previo-de-estudo-inedito-sobre-reincidencia-criminal-no-brasil Acesso em 11 de abril. 2024. 5 Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Em 10 anos, cresce em 87% déficit de vagas em presídios. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/6524-10-anos-cresce-87-deficit-vagas-presidios Acesso em 10 de abril. 2024. 6 RAMOS, Beatriz. 45% dos egressos do sistema penal em SP relatam dificuldades para ter acesso a trabalho. Disponível em: https://ponte.org/45-dos-egressos-do-sistema-penal-em-sp-relatam-dificuldades-para- ter-acesso-a-trabalho/ Acesso em 10 de abril. 2024. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/04/01/81percent-dos-presidios-do-estado-de-sp-estao-superlotados-aponta-defensoria.ghtml https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/04/01/81percent-dos-presidios-do-estado-de-sp-estao-superlotados-aponta-defensoria.ghtml https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/depen-divulga-relatorio-previo-de-estudo-inedito-sobre-reincidencia-criminal-no-brasil https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/depen-divulga-relatorio-previo-de-estudo-inedito-sobre-reincidencia-criminal-no-brasil https://www.tce.sp.gov.br/6524-10-anos-cresce-87-deficit-vagas-presidios https://ponte.org/45-dos-egressos-do-sistema-penal-em-sp-relatam-dificuldades-para-ter-acesso-a-trabalho/ https://ponte.org/45-dos-egressos-do-sistema-penal-em-sp-relatam-dificuldades-para-ter-acesso-a-trabalho/ 11 Apesar da associação dos direitos humanos, no âmbito da segurança pública, com ideias distorcidas e negativas ser fruto de uma disputa política e cultural histórica, sobretudo no estado de São Paulo - o que será abordado nesta pesquisa, é importante ressaltar, em primeiro lugar, que essa discussão é subjacente da apreensão histórica e social da cidadania no Brasil. Na obra “Cidadania no Brasil: o longo caminho” (2001), José de Murilo de Carvalho demonstra que o desenvolvimento da cidadania brasileira foi deficitário desde a colonização portuguesa, e que essa discussão encontrou protagonismo apenas no início da Terceira República, especificamente no processo da Constituinte que resultou na Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”. Carvalho demonstra em sua obra que “dos direitos que compõem a cidadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos de seu conhecimento, extensão e garantias.” (CARVALHO, 2021, p. 163) e que essa conjuntura é resultado de um desenvolvimento idiossincrático da cidadania no país, inverso ao modelo europeu descrito por Thomas Marshall na obra “Cidadania, Classe Social e Status” (1967). Na tripartição clássica dos direitos que constitui um cidadão pleno, Marshall descreve que no processo inglês, primeiro vieram os direitos civis, e com base nas liberdades subjacentes destes, foram reivindicados os direitos de participação política, e assim que os direitos políticos foram conquistados, o povo eleito introduziu os direitos sociais no governo do país. Essa sequência de conquistas, que de acordo com o autor é lógica, e não cronológica, se deveu fundamentalmente à educação popular que construiu a consciência crítica da população inglesa. A sequência histórica descrita por Marshall não se repetiu no Brasil. De acordo com Carvalho, nas terras brasileiras essa pirâmide foi invertida, constituindo uma parcela das dificuldades do Brasil com o tema da cidadania. O autor descreve que no país foram introduzidos primeiro os direitos sociais ao longo do governo de Getúlio Vargas, período em que os direitos políticos e civis estavam suprimidos. Após a ditadura do Estado Novo (1937- 1945), foram incorporados os direitos políticos que, por décadas, foram instrumentalizados pela Ditadura Militar (1964-1985) e, por fim, após a Constituição de 1988, foram institucionalizados os direitos civis, que ainda nos dias atuais, são inacessíveis em um país gravemente marcado pela desigualdade econômica, social e racial. Segundo Carvalho (2021, p. 167), é possível dividir os cidadãos brasileiros em três classes em relação à garantia dos direitos civis: i) os cidadãos de primeira classe, chamados pelo autor de "privilegiados" e "doutores", que são caracterizados por forte poder financeiro e prestígio social, sendo invariavelmente brancos, ricos, com formação universitária, que 12 ostentam vínculos políticos importantes; ii) os "cidadãos simples", grupo majoritário no país, composto pela massa da classe trabalhadora, identificados por não terem noções exatas sobre seus direitos e escassez de recursos para acessar a justiça; iii) por fim, existem os chamados "elementos", colocados por Carvalho enquanto cidadãos de terceira classe. Estes representam a população marginal das grandes cidades, alocados em subempregos, com pouco ou nenhum acesso à educação, e que Na prática, ignoram seus direitos civis ou os têm sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia. Não se sentem protegidos pela sociedade e pelas leis. Receiam o contato com agentes da lei, pois a experiência lhes ensinou que ele quase sempre resulta em prejuízo próprio. Alguns optam abertamente pelo desafio à lei e pela criminalidade. (CARVALHO, 1991, p. 169) É, portanto, a respeito dessa última categoria de cidadãos que se insere a discussão deste trabalho. A experiência prática e discursiva da negação de direitos para os ditos “elementos” é resultado tanto do movimento contrário aos direitos humanos para presos e egressos, quanto de uma diversidade de violências, desigualdades e preconceitos sociais e de classe experimentados no Brasil. Na obra “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo” (2000), de autoria da professora Teresa Caldeira, é exposto que “a experiência da violência é uma experiência de violação de direitos individuais ou civis, e portanto afeta a qualidade da cidadania brasileira.” (p. 343), sendo também, um dos entraves mais graves para o desenvolvimento pleno da democracia no Brasil. Diante desse cenário, o trabalho em questão busca analisar, a partir de uma pesquisa bibliográfica e de entrevistas realizadas com egressos do sistema penitenciário que atualmente são membros da Cooperativa Sol Nascente no município de Araraquara, as representações sociais sobre os direitos humanos incorporadas por este grupo e como essas representações se colocam frente à disputa política e discursiva a respeito do papel dos direitos humanos. Com isso, este trabalho pretende compreender qual a experiência e representação dos direitos humanos desses egressos e avaliar se o movimento contrário a esses direitos exerce influência na sua opinião política sobre essa temática, à despeito de suas vivências no sistema penitenciário. Além disso, pretende-se contribuir para Cooperativa Sol Nascente enquanto um registro histórico e análise sociológica realizada em diálogo com os cooperados. Para tanto, o levantamento bibliográfico realizado para a descrição do processo histórico do movimento pelos direitos humanos no Brasil e em São Paulo, no século XX e início do século XXI, deu-se com auxílio dos autores Teresa Caldeira, Nancy Cardia, Paulo 13 Mesquita Neto, Paulo Sérgio Pinheiro, Sérgio Adorno e Fernando Salla. Tendo em vista que também interessa a essa pesquisa elucidar a conjuntura atual, quando a partir de 2018 foi percebido um recrudescimento popular e político em relação à temática dos direitos humanos e do sistema penitenciário, a análise desse cenário é tecida histórica e sociologicamente através dos estudos de Rosana Pinheiro-Machado, Lucia Mury Scalco, Esther Solano e Jairo Nicolau, que demonstram a radicalização acerca desse tema através de estudos de caso. A escolha por entrevistar os egressos do sistema penitenciário justifica-se porque os sujeitos desta pesquisa são atores sociais relevantes para o país, e poucas vezes estão incluídos em pesquisas de opinião nas quais são mencionados. A relevância desses atores se dá por algumas razões: i) pela quantidade expressiva e crescente de pessoas privadas de liberdade no Brasil; ii) por estes serem protagonistas das políticas penitenciárias e, portanto, testemunhas insubstituíveis para relatá-las e contribuir na avaliação e construção de políticas públicas; iii) por permearem o debate público e político frequentemente enquanto objetos em detrimento de sujeitos de discursos. Com isso, analisar quais representações sociais articulam a compreensão dos direitos humanos para esse grupo constitui uma tarefa importante para apreender seu grau de compreensão sobre a cidadania, os direitos humanos e como isso repercute a experiência vivida no sistema penitenciário. Em que pese a forma que essa temática tomou nos últimos seis anos no debate político e popular, faz-se também relevante compreender se esse cenário influenciou a opinião e percepção dessas pessoas sobre os direitos dos quais são sujeitos. A auto-representação e possibilidade de articulação desta população-alvo pode influenciar no debate das políticas que são desenvolvidas ou negligenciadas em torno dos direitos humanos para presos e egressos. De acordo com Schneider, Ingram e Deleon 7 , os processos políticos decisórios são baseados e perpetrados a partir dos valores dos formuladores de políticas, em decisões que são rápidas, emocionais e, muitas vezes, simplistas. Caso um grupo não tenha condições de impor suas demandas e desafiar os pressupostos que há sobre eles, é difícil que haja mudanças nas políticas formuladas. To challenge policies based on this understanding, groups have to challenge fundamental public assumptions, reinforced by government policy, regarding what constitutes normal and deviant behavior. Yet, many such groups have no obvious way in which to mobilize to pursue their collective interests. 8 7 Policy Concepts in 1000 Words: the Social Construction of Target Populations. Disponível em: https://paulcairney.wordpress.com/2016/01/08/policy-concepts-in-1000-words-the-social-construction-of-target- populations/ Acesso em: 20 de nov. de 2023. 8 Ibidem, n.p. 14 Sendo assim, compreender qual a auto-imagem desse grupo social é relevante para interpretar seu nível de conhecimento sobre os direitos que compõem a cidadania e qual o grau de coesão de pensamento desse coletivo, ponderando o quanto isso se relaciona com o amplo movimento de direitos humanos em São Paulo e com as políticas públicas específicas tanto para pessoas encarceradas quanto para egressos do sistema penitenciário. Dessa forma, serão realizadas entrevistas com os membros da Cooperativa Sol Nascente, esta que se define como uma iniciativa de egressos do sistema prisional de Araraquara. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho fez com que buscássemos no modelo de cooperativismo, presente na Economia Solidária, o caminho para oferecermos serviços no ramo da sustentabilidade para a comunidade araraquarense 9 e que atua na área de hortas urbanas, compostagem, educação ambiental e jardinagem. A Cooperativa, que foi fundada em 2020 através do auxílio da Prefeitura Municipal de Araraquara, teve sua sede inaugurada em 2023 e atualmente conta com 47 cooperados. A escolha da Cooperativa Sol Nascente se deu, sobretudo, por dois fatores: i) há uma diversidade de idade, gênero e histórias de vida concentrada neste coletivo que propiciam uma seleção de entrevistados mais representativa em relação à sociedade brasileira e ii) há também uma facilidade maior de acesso e contato com as pessoas da Cooperativa pela centralidade da sua organização. As entrevistas com os cooperados foram realizadas de forma semiestruturada, a partir de uma técnica de coleta de dados qualitativa cujo foco são as crenças e percepções demonstradas ao longo das respostas dadas às perguntas, isto é, nessa qualidade de entrevistas, há tanto uma estrutura de tópicos quanto uma flexibilidade para a apreensão dos resultados. Optou-se por entrevistas individuais e não grupais pela pretensão de conhecer com profundidade a realidade singular vivida por cada entrevistado, sem influência externa de outras realidades ou comparação entre os entrevistados. Assim, a partir do roteiro base 10 foram investigados diferentes pontos de vista sobre a experiência do cárcere através das respostas ofertadas. A metodologia empregada para análise das entrevistas foi a Análise de Conteúdo, desenvolvida por Laurence Bardin (1979). As origens do uso desse método remontam aos Estados Unidos da América no século XX, especificamente sua segunda metade, quando as 9 Cooperativa Sol Nascente. “Quem somos?” @cooperativasolnascente. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CuCsfR4OMiM/?igshid=M2FleXhrNTNyOGZm Acesso em: 03 de nov. 2023. 10 Apêndice A. https://www.instagram.com/p/CuCsfR4OMiM/?igshid=M2FleXhrNTNyOGZm 15 regras da análise de conteúdo são sistematizadas a fim de construir uma avaliação objetiva das simbologias políticas contidas nos artigos, cartas, discursos e publicidades através de uma perspectiva crítica. Entretanto, a objetividade e pragmatismo da análise de conteúdo perdem força quando empregadas em estudos clínicos ao longo do tempo, tornando possível que o método se utilize de inferências. Assim, o objeto deste método é a linguagem, sendo um “conjunto de procedimentos sistemáticos e objetivos para descrever e organizar o conteúdo das mensagens, permitindo a inferência de conhecimentos relativos às condições de sua produção e recepção” (MAIA, 2020, p. 37) Com isso, o método em questão sugere três passos para a análise das entrevistas: a) pré-análise, que diz respeito à organização do material e transcrição, na íntegra, dos dados obtidos através das entrevistas realizadas; b) a pré organização temática e exploração do material, quando as respostas são agrupadas e categorizadas a partir dos paradigmas teóricos da pesquisa; c) tratamento dos resultados, quando há o retorno ao referencial teórico para, através da inferência, construir uma síntese sobre o estudo realizado. Diante disso, entende-se que o método da Análise de Conteúdo é eficiente para a compreensão que se pretendeu alcançar ao fim deste estudo, porque permite que as entrevistas sejam analisadas e classificadas, de forma rigorosa, a partir dos paradigmas sociais que foram explorados ao longo do trabalho. Isto é, as respostas que foram obtidas para os questionamentos da entrevista foram tratadas tendo em vista quais representações sociais sobre os direitos humanos elas articulam, e a partir da etapa de agrupamento dos dados objetivos, será possível verificar essas representações são comuns aos entrevistados ou não, e se provém de condições de produção semelhantes. A partir da exploração e organização dos dados, será possível compreender, por repetição ou semelhança, qual a auto imagem desse grupo social em relação aos direitos humanos, aos discursos públicos dos quais são objetos, e qual influência exercida pela disputa discursiva protagonizada pelo movimento contrário aos direitos humanos, no ideário dos entrevistados. As representações sociais que são paradigmáticas na análise do conteúdo são uma categoria chave para a organização e análise das entevistas. Neste estudo, as representações sociais são mobilizadas a partir do trabalho desenvolvido por Serge Moscovici (1978), que compreende o sujeito enquanto construtor da realidade social e que nela também é construído, isto é, na medida que as representações sociais formam a realidade, também movem indivíduos e coletividades a depender de como essas são operadas e articuladas. Sendo assim, de acordo com Santos (2005), falar em representações sociais é referir-se ao conhecimento produzido no senso comum que é compartilhado e articulado, sendo ideias que 16 tornam-se verdadeiras teorias leigas sobre objetos sociais. Assim, a teoria das representações sociais procura compreender o processo de produção e impacto deste conhecimento na realidade. Como afirma Abric (1994, p. 13), "isto permite definir a representação social como uma visão funcional do mundo, que permite ao indivíduo ou grupo dar um sentido a suas condutas e compreender a realidade através de seu próprio sistema de referência, logo, adaptar-se e definir seu lugar nessa realidade". (p. 25) (SANTOS, 2005, p. 23) É importante ressaltar que a representação social de um grupo acerca de um tema remete à classe social em que ele está inserido, tendo em vista que decorre da quantidade de informações que este tem acerca de um assunto. Sendo assim, comparar o conhecimento científico com a representação social de um grupo sobre um tema permite inferir o quanto e como algum tópico foi apreendido por este coletivo. É desta forma que esse estudo analisou as representações sociais dos egressos do sistema penitenciário sobre os direitos humanos, buscando entender o grau de informações que esses sujeitos possuem sobre o que é institucionalizado sobre esses direitos e inferir, a partir do que é dito, com qual discurso social as representações presentes se relacionam. Em suma, a escolha pela metodologia da Análise de Conteúdo para analisar representações sociais decorre de que, tendo em vista que esse método é substanciado na linguagem e permite inferências a partir de dados sistematizados, trabalhar com as representações sociais, que também articulam a realidade através da linguagem, permite fundamentar as inferências realizadas à luz da bibliografia empregada neste estudo. Faz-se fundamental afirmar que as informações das entrevistas são confidenciais e não há identificação dos voluntários entrevistados, sendo assegurado o sigilo da sua participação. Isto posto, foi entregue ao entrevistado um Termo de Consentimento 11 para anuência do voluntário, e neste documento consta tanto o propósito deste estudo quanto as questões éticas envolvidas nas entrevistas, deixando o entrevistado livre para deixar a participação a qualquer momento sob proteção do sigilo do início ao fim. Adiante, o segundo capítulo deste trabalho se debruçará em analisar o processo histórico de desenvolvimento da cidadania no Brasil, bem como dos direitos humanos, também do ponto de vista histórico, político e social. O primeiro tópico deste capítulo empenha-se em demonstrar, a partir da análise do professor José Murilo de Carvalho, o déficit do desenvolvimento dos direitos civis na formação cidadã do país e como esse processo desdobrou-se na percepção de que esses direitos são de usufruto exclusivo para os 11 Apêndice B. 17 detentores de poder econômico no Brasil, em uma dinâmica de privilégio. Tendo em vista que os direitos humanos são alvo dessa percepção e objeto deste trabalho, na sequência, desdobra-se o histórico de positivação dos mesmos no país. A fim de demarcar o escopo temporal deste estudo, a análise é iniciada abordando a Conferência de Viena de 1993, discutindo qual foi o seu papel para a articulação de uma nova concepção de direitos humanos no direito internacional e qual foi sua repercussão nos países integrantes da Conferência. A Conferência de Viena faz-se relevante por ser o evento que demarca os direitos humanos, afirmados na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), enquanto aspecto relevante para a entrada no sistema internacional, bem como orientou que os Estados participantes da Conferência, da qual o Brasil foi relator, construíssem políticas nacionais de afirmação desses direitos. Com isso, o trabalho volta-se para o Brasil de modo a analisar o contexto político e social dos direitos humanos no período da Ditadura Militar, e posteriormente, fazendo-se enquanto um desdobramento da Constituinte e da Conferência de Viena, será analisado o Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), promulgado em 1996, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), bem como seus desdobramentos, sendo o PNDH-II, o PNDH-III e o Programa Estadual de Direitos Humanos, este implementado no estado de São Paulo, em 1997, pelo governador Mário Covas (PSDB). O terceiro capítulo deste trabalho trata da crise da segurança pública e do sistema penitenciário no Brasil, especialmente no estado de São Paulo, e quais são os reflexos dessa conjuntura na percepção social dos direitos humanos. Tratar da crise no sistema penitenciário refere-se ao exponencial aumento dos presos no país, sobretudo a partir do século XX, e seu subsequente déficit de vagas, más condições das prisões, do tratamento penitenciário e do processo de execução penal, refletindo em graves violações dos direitos humanos. A partir do desenho deste cenário, este capítulo encerra-se com foco no período recente da história brasileira, datando do início da campanha presidencial do ex presidente Jair Bolsonaro, quando é notório em seus discursos públicos e peças publicitárias, a capitalização do movimento contrário aos direitos humanos enquanto mote aglutinador da sua base de eleitores. Dessa forma, o último tópico deste capítulo pretende compreender o processo histórico subjacente do movimento contemporâneo anti-direitos humanos, bem como qual sua amplitude na formação da opinião pública sobre esses direitos. O quarto capítulo deste trabalho é dedicado às entrevistas com os egressos que são membros da Cooperativa Sol Nascente. Este capítulo se debruça tanto ao processo de realização das entrevistas com os cooperados quanto na análise dos resultados obtidos. Os 18 primeiros tópicos deste capítulo referem-se ao universo da pesquisa e o processo de inserção no campo. Na sequência, e de acordo com o método empregado, a exposição dos dados segue a ordem do roteiro das entrevistas, sendo: i) perfil sociocultural; ii) livre associação e iii) percepção sobre os direitos humanos. Por fim, os dados são analisados no último tópico do capítulo. Ressalta-se que as entrevistas com os cooperados foram uma bússola para este trabalho. Oferecer a possibilidade de egressos do sistema penitenciário, que poucas vezes estão incluídos em pesquisas de opinião, serem sujeitos dessa pesquisa foi fundamental para ampliar a atestar a compreensão sobre cidadania e direitos humanos que é tecida a partir dos autores empregados na bibliografia desta pesquisa. Acredita-se, dessa forma, que o resultado do confronto entre relatos de experiências vividas no sistema penitenciário com discursos do senso comum, muitas vezes carregados de preconceitos, pode contribuir para o debate sobre a segurança pública e os direitos humanos no estado de São Paulo. 19 2 Direitos Humanos e Cidadania no Brasil 2.1 Cidadania no Brasil Na obra “Cidadania no Brasil: o longo caminho” de José de Murilo de Carvalho, é demonstrado como “O fenômeno da cidadania é complexo e historicamente definido” (CARVALHO, p.13, 2021), remontando do período da Colônia à Terceira República, as diversas problemáticas por trás da formação do povo brasileiro e o desenvolvimento da cidadania no país. Nesta obra, o autor defende que as marcas deixadas pela colonização portuguesa no país, como o analfabetismo, a cultura escravocrata, economia monocultora e latifundiária, ditaram severamente a consciência sobre cidadania que se desenvolveu no Brasil. De acordo com Carvalho, ressaltam-se três pontos do período colonial que são pertinentes para essa discussão: i) o extermínio de milhares de povos indígenas pelos colonizadores; ii) o caráter monocultor, latifundiário e exportador de base escravista da colonização; iii) o descaso português pela institucionalização da educação primária no Brasil. Em relação ao último tópico, é afirmado pelo autor que o direito à educação é um pré- requisito para a conquista dos outros direitos. De acordo com o mesmo, a cidadania se desenvolveu mais rápido nos países que, à exemplo da Inglaterra, introduziram a educação popular - tendo em vista que esta permitiu com que as pessoas tomassem conhecimento sobre seus direitos e passassem a reivindicá-los. Haja vista que Portugal nunca permitiu com que Universidades fossem construídas em suas colônias, o ensino básico no Brasil é deficitário desde sua fundação. Analisando o processo histórico da conquista de direitos, Carvalho demonstra as diferenças do movimento brasileiro com o desenvolvimento clássico europeu de formação cidadã. Antes, e de acordo com a tradição marshalliana de tripartição dos poderes, faz-se necessária a diferenciação entre os direitos que compõem um cidadão pleno: os direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles ligados à liberdade, à igualdade perante à lei e a propriedade - sendo os direitos fundamentais à vida. Estes estão relacionados com a liberdade de expressão, a garantia de ir e vir, a liberdade de organização, o direito a um processo legal, ao trabalho. Em suma, tratam-se das liberdades individuais. Os direitos políticos são, em resumo, o direito de participação no governo da sociedade. São direitos que se desdobram na possibilidade de votar e ser votado, na organização de movimentos políticos, na possibilidade de expressão e crítica à gestão social. 20 Se pode haver direitos civis sem direitos políticos, o contrário não é viável. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente, mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos. Os direitos políticos têm como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a ideia de autogoverno. (CARVALHO, 2021, p. 14) Os direitos sociais, todavia, são fundamentados na ideia de justiça social e orientados para a garantia do bem-estar de todos a partir da redução das desigualdades. Trata-se do direito ao cuidado com a saúde, ao acesso à educação, à aposentadoria, ao trabalho. Ressalta- se que esses direitos são diretamente associados à gestão política de uma sociedade, que pode garantir ou não, a partir de decisões ideológicas e orçamentárias, quais destes direitos serão assegurados para a população. Em suma, Carvalho (2000) expõe que “Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva.” (p. 14) Como mencionado na introdução deste trabalho, a inversão da pirâmide da conquista de direitos no Brasil é colocada enquanto um fator fundamental para o modelo de cidadania resultante no país - sobretudo, uma pirâmide em que os direitos sociais figuram enquanto base, com o subdesenvolvimento dos direitos civis. Apesar do protagonismo que a palavra cidadania tomou no início da Terceira República, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o estado de coisas do usufruto dos direitos que compõem um cidadão pleno ainda faz-se preocupante no país. Apesar do fim da Ditadura Militar, reitera-se que "A liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente à resolução de problemas sociais." (CARVALHO, 2021, p. 13) Com isso, são apontadas, sobretudo, duas problemáticas contemporâneas em relação à cidadania no país: a questão dos direitos sociais e dos direitos civis. Os direitos sociais, que tem como pedra de toque a repartição da riqueza coletiva, sofrem de expressiva concentração de renda, resultando em uma dinâmica profundamente desigual na economia do Brasil. Os direitos civis, por outro lado, seguem hipertrofiados no sentido de sua extensão, conhecimento e garantias. Apesar de seu restabelecimento após a abertura democrática, sobretudo no sentido do acesso à justiça, segurança pública e integridade física, a falta de garantia desses direitos é expressiva no país. O Judiciário também não cumpre seu papel. O acesso à justiça é limitado a pequena parcela da população. A maioria ou desconhece seus direitos, ou, se os conhece, não tem condições de os fazer valer. Os poucos que dão queixa à polícia têm que enfrentar depois os custos e a demora do processo judicial. Os custos dos serviços 21 de um bom advogado estão além da capacidade da grande maioria da população. Apesar de ser dever constitucional do Estado prestar assistência jurídica gratuita aos pobres, os defensores públicos são em número insuficiente para atender à demanda. Uma vez instaurado o processo, há o problema da demora. Os tribunais estão sempre sobrecarregados de processos, tanto nas varas cíveis como nas criminais. (CARVALHO, 2021, p. 167) A dinâmica falha da garantia do acesso à justiça desdobra-se, portanto, em forte descrença popular em sua eficácia social, resultando na percepção de que esses direitos são funcionais apenas para quem tem poder aquisitivo, seja para o conhecimento dos mesmos, para a contratação de uma advogado ou mesmo para a obtenção de um tratamento digno. Dessa forma, entende-se que para os pobres, a justiça existe apenas enquanto locus de punição. A análise de Carvalho ilumina, portanto, que o usufruto de direitos civis no Brasil, por razão de profunda desigualdade econômica, é inserido dentro de uma dinâmica de privilégios. Tendo em vista que os mesmos não são garantidos para a maior parte da população de forma plena, os mesmos podem ser considerados como uma exclusividade das classes que tem poder econômico o suficiente para acessá-los, demonstrando, por fim, mais um sintoma do processo histórico exíguo de desenvolvimento da cidadania no país. 2.2 A nova concepção de direitos humanos Tendo em vista que os direitos humanos, sobretudo no que se refere aos direitos individuais, são deficitários no país e, com isso, principais protagonistas na dinâmica de privilégios mencionada acima, desdobrar-se-á o histórico de positivação dos mesmos no Brasil, partindo de sua fundamentação e desdobramentos. A partir deste tópico, pretende-se demonstrar quais foram os caminhos tomados pelo país e pelo estado de São Paulo para a institucionalização desses direitos e quais foram seus resultados. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948, a gramática dos direitos humanos passa a ser organizada dentro dos pilares da universalidade e da indivisibilidade: universalidade porque compreende que toda pessoa é sujeito de direito e intrinsecamente dotada de dignidade; indivisibilidade porque passa a ser compreendido que todos os direitos pautados separadamente até então (direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos) devem ser conjugados sob os valores da liberdade e da igualdade. Ressalta-se que os direitos mencionados também passaram a ser considerados interdependentes, tendo em vista que são 22 complementares. Alicerçados nessa nova linguagem dos direitos humanos, inicia-se o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos através do fomento e da adoção de diferentes instrumentos e pactos internacionais de proteção. De acordo com Piovesan (2005) até 2003 o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 149 Estados-partes, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 146 Estados-partes, a Convenção contra a Tortura contava com 132 Estados-partes, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher contava com 170 Estados-partes, e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes. O elevado número de Estados-partes desses tratados simboliza o grau de consenso internacional a respeito de temas centrais voltados aos direitos humanos. (p. 45) Em prisma histórico resgatado pela autora, pelo fato da DUDH ter sido enunciada tendo em vista os horrores cometidos pelo nazismo, subjacentes de um ideário racista e de discriminação, a primeira fase de salvaguarda dos direitos humanos iniciava-se a partir da tônica da proteção geral baseada na igualdade formal. Ou seja, considerando que as atrocidades vistas na Segunda Guerra Mundial foram cometidas em nome de ideias supremacistas as quais demarcavam as diferenças dos grupos sociais de forma negativa, a fase inicial de proteção aos direitos humanos foi fortemente pautada pela defesa da igualdade. Destaca-se que a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio data também de 1948 e condena ideologias organizadas ao redor da intolerância, objetivadas na destruição do "outro" em razão de suas características particulares. Entretanto, tornou-se latente a necessidade de qualificar os grupos sociais a partir de suas especificidades, tendo em vista que olhar os indivíduos de forma genérica e abstrata não compõem ações de equidade na prática. Isto é, certas vulnerabilidades e experiências sociais devem ser observadas a partir do lugar peculiar que ocupam na sociedade para então serem tratadas. Sendo assim, esse segundo momento de proteção dos direitos humanos é marcado pela pluralidade e “...isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção.” (PIOVESAN, 2005, p. 46) Dessa forma, ao olhar para populações marginalizadas, de composição cultural e étnico-racial diferentes entre si, mulheres, crianças, idosos, deficientes e demais grupos, é estabelecido o direito à diferença e ao tratamento direcionado às demandas carregadas por cada população. A Conferência de Viena foi de crucial importância para reafirmar a concepção de que os direitos humanos são universais, indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes. Isto é, 23 os direitos humanos não deveriam mais ser pensados dentro de uma ótica de repartição das esferas da vida social (econômica, política, cultural, etc), mas a partir dos princípios mencionados acima que são aspectos de uma totalidade - indivisível e irredutível - que é a pessoa humana enquanto sujeito central. Há, portanto, uma reconciliação dos direitos de primeira e segunda geração na esfera internacional. Subjacente dessa perspectiva, a Conferência argumentou pela relação necessária entre os direitos humanos, a democracia e o desenvolvimento, interpretada como uma conquista pelos países em desenvolvimento. Destaca-se, entretanto, que a falta de desenvolvimento não poderia ser invocada como uma justificativa para a violação ou limitação de outros direitos humanos reconhecidos internacionalmente. Portanto, da Conferência resultaram dois documentos, a Agenda 21 da Conferência do Rio de Janeiro para o meio ambiente e desenvolvimento, e a Declaração e Programa de Ação, a partir do qual foi elaborado o Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996. Com isso, no Programa de Ação recomendou-se a) a coordenação entre todas as agências e órgãos da ONU em apoio aos direitos humanos; b) a avaliação pelas organizações e instituições financeiras e de promoção ao desenvolvimento, regionais e internacionais, do impacto de suas políticas sobre o gozo dos direitos humanos; c) a alocação de maiores recursos financeiros e administrativos ao Centro para os Direitos Humanos das Nações Unidas; d) o reforço à assistência técnica internacional para os direitos humanos; e) o reforço ao sistema de monitoramento internacional de todos os direitos; f) a consideração prioritária pela Assembléia Geral da questão do estabelecimento de um Alto- Comissário para os Direitos Humanos; g) a criação de um programa abrangente, nas Nações Unidas, para auxiliar os Estados, a seu pedido, na implementação de projetos nacionais com impacto direto na observância dos direitos humanos e na manutenção do Estado de Direito. (ALVES, 1994, p.176) Diante dos referidos instrumentos de observação internacional sobre a situação de respeito e violação aos direitos humanos nos países que compuseram a Conferência, constrói- se um paradigma que limita a soberania estatal dentro do território do país acerca de temas que foram alçados e acordados como preocupações internacionais. A criação institucional de órgãos supranacionais de fiscalização e responsabilização significa que a atenção com os direitos humanos extrapola os domínios reservados dos Estados. Sendo assim, omitir ou tentar acobertar situações de violação explícita aos direitos humanos não seria mais uma possibilidade para os países envolvidos nos Pactos, o que configura uma clara ruptura da Nova República brasileira em relação ao período da Ditadura Militar em termos de transparência e democratização. 24 2.3 A positivação dos direitos humanos no Estado brasileiro O marco da positivação efetiva dos direitos humanos no Brasil refere-se à promulgação da Constituição Federal de 1988, quando os direitos declarados impõem-se sobre o signo da universalidade, da inclusão e da igualdade. A Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, carrega este marco transformador que só é compreendido tendo em vista o significado da ruptura com os anos de contínuas violações aos direitos humanos e à cidadania praticados pelos militares durante a ditadura. Agora, para a construção de uma Nova República moderna e democrática, os direitos fundamentais traduzem a preocupação com os temas sociais que permearam os anos noventa. Sendo assim, além da salvaguarda da universalidade na aplicação dos direitos, a nova Constituição os garante desde a perspectiva do reconhecimento do particular dentro do universal, isto é, alinhada à concepção mundial de tratamento aos direitos humanos, a Constituição Cidadã em seu texto reconhece as pessoas enquanto seres concretos, certificando portanto, as especificidades dos grupos sociais (mulheres, crianças, afro-descendentes, indígenas, deficientes, etc.) Com isso, os artigos constitucionais reconhecem a dignidade da pessoa humana como princípio da República Federativa do Brasil, garante o princípio da igualdade e da não descriminação, reconhece a prevalência dos direitos humanos como princípio das relações internacionais e especifica os sujeitos de direito. (Natalino, Marco Antonio Carvalho et al, 2009) Sendo assim, a partir da promulgação da Constituição, o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 é marcado tanto pela atuação legislativa no sentido de promoção dos direitos humanos no Brasil, quanto pela compreensão destes direitos enquanto uma política externa, tendo em vista a reconstrução da imagem do Brasil perante ao sistema internacional. Ao datar do governo de Fernando Collor de Mello (PRN), empossado em 1990, o Brasil intensifica o processo de adesão a pactos e acordos internacionais pautados na defesa de direitos humanos e no combate de violações à cidadania. Nessa gestão foi desenvolvido o “Programa de Combate à Violência contra Crianças e Adolescentes”, criado o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescnete (CONADA) e, através do Ministério da Justiça, também foi criado o Departamento de Assuntos de Cidadania (DEASC), posteriormente transformado na Secretaria da Cidadania. Em 1991, é promulgada a adesão à Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, em 1992 o país adere aos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos 25 Econômicos, Sociais e Culturais, e incorpora-se também à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica). Nesse movimento em que a adesão do Brasil às políticas de direitos humanos parte da política externa, reconhecendo e aderindo às normas internacionais, o país passa a ser alvo de observações e análises através de Organizações Não Governamentais, Observatórios Internacionais e organizações de defesa dos Direitos Humanos, como a própria ONU, que passam a divulgar casos de violência e violações nas quais o Estado é protagonista, construindo um ambiente de pressão ao Estado brasileiro para que este alterasse suas diretrizes também nas práticas internas do país. Ressalta-se que na primeira metade da década de 1990, através desse movimento de observação e denúncia, o Brasil tomou conhecimento de eventos dramáticos envolvendo a ação autoritária das forças de segurança pública no país: o massacre do Carandiru em 1992, a chacina da Candelária e a chacina do Vigário Geral em 1993, o massacre de Corumbiara em 1995 e o massacre de Eldorado dos Carajás em 1996. Esses acontecimentos contribuíram profundamente tanto para o crescimento da sensação de impunidade e insegurança da população, que cobrava respostas do Estado, quanto para o fortalecimento dos movimentos de denúncia de violações aos direitos humanos e pressão para que o Brasil efetuasse as diretrizes contidas nos tratados aos quais aderiu. Como fruto do Programa de Ação da Conferência de Viena e do contexto de construção da Nova República no Brasil, a partir de julho de 1993 o Ministério da Justiça, à pedido de Organizações Não Governamentais (ONGs) em Viena, inicia a convocação de uma série de reuniões com mais de trinta entidades de defesa dos Direitos Humanos, Ministros, Parlamentares e representantes das polícias a fim de construir um Programa Nacional de Combate à Violência no seminário de comemoração dos 45 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 2.4 O Programa Nacional de Direitos Humanos e o Programa Estadual de Direitos Humanos em São Paulo O referido Programa Nacional de Combate à Violência tratava da criação de medidas focadas na promoção dos direitos civis a partir da construção de políticas de cidadania e direitos humanos voltadas à violência institucional e ao sistema penitenciário. Apesar deste projeto não ter encontrado êxito e suas medidas não foram remetidas pelo congresso, o Plano Nacional de Combate a Violência engendrou um contexto para que programas do mesmo gênero fossem estudados e apresentados. Por conseguinte, no dia de independência em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso anuncia que seria elaborado um Programa 26 Nacional de Direitos Humanos, enunciando que "chegou a hora de mostrarmos, na prática, num plano nacional, como vamos lutar para acabar com a impunidade, como vamos lutar para realmente fazer com que os direitos humanos sejam respeitados". A partir disso, o Ministério da Justiça cria a Coordenadora do Plano Nacional de Direitos Humanos (CPNDH), sob a direção de José Gregori. Constrói-se também a parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) com a finalidade de oferecer assessoria para a elaboração do Plano, e a partir dessa parceria iniciam-se os encontros e seminários que visavam a elaboração de um pré-projeto para o PNDH. Dessa forma, a partir da parceria estabelecida com o NEV-USP, os trabalhos de elaboração do PNDH contaram com uma análise da bibliografia nacional e internacional na área de direitos humanos somada a encontros, entrevistas e seminários com organizações de direitos humanos. Assim, no dia 07 de dezembro de 1995, foi apresentado ao Ministério da Justiça o Pré-Projeto do PNDH que incluía um levantamento da legislação brasileira e das políticas governamentais na área dos direitos humanos, um diagnóstico dos problemas ainda existentes no país nessa área e uma série de propostas de ações governamentais de curto, médio e longo prazo que, na sua maioria, refletem um amplo consenso entre as entidades brasileiras e estrangeiras atuando no Brasil sobre as medidas que são necessárias para proteção e promoção dos direitos humanos no país. (MESQUITA NETO, n/p, 1997) Enviado para a 52 a Reunião da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, e discutido na Comissão de Direitos Humanos na Câmara de deputados, o projeto é finalizado e lançado no dia 13 de maio de 1996 de forma a sintetizar o Pré-Projeto de acordo com o que havia sido debatido com as entidades de direitos humanos. A referida síntese tratou de eliminar trechos que ofereciam uma análise sobre a legislação e políticas governamentais brasileiras, bem como o levantamento de problemas relativos aos direitos humanos no país. Assim, o PNDH foi lançado com seu texto focando nas propostas e medidas para a melhoria da situação dos direitos humanos no Brasil. Entretanto, reitera-se que o foco sobre a consolidação dos direitos civis enquanto etapa crucial para a consolidação da democracia esteve presente tanto no pré-projeto quanto no Programa final, ambos dando destaque para o direito à vida, à segurança pessoal e o fim da impunidade dos responsáveis por violações dos direitos humanos. Com isso, a relação do pré-projeto do PNDH com a versão final é caracterizada por ser 27 praticamente igual ao conjunto de propostas do pré-projeto, com duas diferenças significativas. A primeira diz respeito à inclusão no PNDH da proposta, importante para a implementação do programa, de "Criar um Cadastro Federal de Inadimplentes Sociais, que relacione os estados e municípios que não cumpram obrigações mínimas de proteção e promoção dos direitos humanos, com vistas a evitar o repasse de recursos, subsídios ou favorecimentos a esses inadimplentes". A segunda diz respeito à exclusão do PNDH da proposta de "submeter ao Congresso Nacional a proposta de reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos". (MESQUITA NETO, n/p, 1997) Alinhado com a concepção de direitos humanos exposta e acordada em Viena, o Programa Nacional organiza suas propostas no sentido de garantir sua universalidade dentro das especificidades presentes na sociedade brasileira. Assim, além das seções que articulam sobre a “Proteção do direito à vida”, “Luta contra a impunidade”, “Proteção do Direito à Liberdade”, no tópico “Proteção do direito a tratamento igualitário perante a lei” o programa reúne partes próprias que versam sobre: crianças e adolescentes, mulheres, população negra, sociedade indígenas, estrangeiros, refugiados e migrantes brasileiros, terceira idade e pessoas portadores de deficiência. Depreende-se, portanto, que a concepção de justiça que embasa a formulação do PNDH trata também de combinar redistribuição e reconhecimento através de ações afirmativas voltadas a grupos específicos. Mencionando as ferramentas do Direito Brasileiro que visam a igualdade, Piovesan (2005) afirma que a Constituição Federal de 1988 dispõe de mecanismos que demarcam a busca pela igualdade material, além da igualdade formal. Sobre isso, a autora enfatiza que “o Programa Nacional de Direitos Humanos, que faz expressa alusão às políticas compensatórias, prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor de grupos socialmente vulneráveis.” (PIOVESAN, 2005, p. 50) Com isso, o PNDH significou um amadurecimento e protagonismo das políticas de direitos humanos no Brasil. Do texto completo do programa, depreende-se que os referidos direitos são compreendidos como o caminho para a consolidação democrática, que são de responsabilidade do Estado e executáveis através de políticas públicas. A promulgação do Programa logo resultou na criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SNDH), que dentro da estrutura do Ministério da Justiça, coordenou e monitorou o programa, bem como estabeleceu-se como um espaço permanente de parceria e troca com a sociedade civil. Diante disso, interpreta-se que o programa representa mais do que o conjunto de 228 propostas de ação governamental para proteger e promover os direitos humanos no Brasil: é um quadro de referência para a concretização das garantias do Estado de direito e para a ação em parceria do Estado e da sociedade civil; é a afirmação de uma nova concepção de direitos humanos, como um conjunto de direitos, universais e indissociáveis, que não apenas estão definidos em constituições e leis nacionais, mas também correspondem a 28 obrigações assumidas em tratados internacionais ratificados pelo Congresso Nacional. Os direitos humanos, segundo tal concepção, são direitos definidos em tratados internacionais que os Estados estão obrigados a garantir não apenas nas suas relações com outras Nações, mas também nas relações com a sociedade e com os indivíduos e coletividades dentro do seu próprio território. (MESQUITA NETO, P; PINHEIRO, P. S, 1997, p. 120) Essas inovações que subsidiam a definição de direitos humanos trabalhada no PNDH e nas políticas públicas elaboradas a partir do programa podem ser observadas ao longo de seu escopo e pelas ações políticas subsequentes a sua promulgação. Há uma força simbólica deste plano de construção normativa e institucional de uma cultura e prática de direitos humanos no país, tornando-os parâmetros de avaliação de desempenho dos órgãos governamentais. O que, para a política carcerária vigente no país, significou um esforço pela sua alteração em diversos termos, que apesar de não ter sido traduzido em melhorias significativas para a condição das prisões e para o desencarceramento, inaugurou uma gramática pautada por maior transparência do sistema, estando sujeito à críticas de organizações nacionais e internacionais, alicerçadas em critérios de juízo alinhados com a universalidade dos direitos humanos. O segundo Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-2, foi implementado em 2002 também com ampla aprovação política e nacional. Este, que articula tava 518 propostas de ação, avançava em relação ao primeiro programa, oferecendo maior ênfase aos direitos sociais O PNDH II incorpora ações específicas no campo da garantia do direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à moradia, a um meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer, assim como propostas voltadas para a educação e sensibilização de toda a sociedade brasileira com vistas à construção e consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos. Atendendo a anseios da sociedade civil, foram estabelecidas novas formas de acompanhamento e monitoramento das ações contempladas no Programa Nacional, baseadas na relação estratégica entre a implementação do programa e a elaboração dos orçamentos em nível federal, estadual e municipal. (BRASIL, 2002, p. 3) Sendo assim, esta segunda versão que encerra o governo de Fernando Henrique Cardoso, de acordo com o mesmo, traz novidades sobre questões que até pouco tempo atrás eram consideradas tabus ou não recebiam a devida atenção, como a dos direitos dos homossexuais, a situação dos ciganos, a prática da tortura, a questão da violência intrafamiliar, a necessidade de fortalecermos o combate ao trabalho infantil e ao trabalho forçado e a luta pela inclusão das pessoas portadoras de deficiência. (BRASIL, 2002, p. 5) De acordo com análise feita por Sérgio Adorno em “História e desvenstura: O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos”, sobre o PNDH-2 afirma-se que “pela primeira vez, o Estado brasileiro reconhece a existência do racismo e aponta iniciativas visando promover políticas 29 compensatórias com o propósito de eliminar a discriminação racial e promover a igualdade de oportunidades” (ADORNO, 2010, p. 12), sendo assim, pode-se dizer que há uma linha contínua de ampliação de direitos nos Programas Nacionais de acordo com a concepção de direitos humanos afirmada em Viena. O mesmo ocorreu com o PNDH-3, aprovado no final do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2009. Este programa buscou ampliar os direitos detalhados nos programas anteriores: organizado em 6 eixos que estão subdivididos em 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 ações programáticos, o terceiro PNDH se debruçou no fortalecimento das instituições democráticas, na democratização do acesso aos direitos sobretudo em contextos de desigualdade social, no combate à violência, na educação para os direitos humanos, no direito à memória e a verdade. Todavia, forçoso é reconhecer que o PNDH‑3 introduziu várias inovações, como respostas às crescentes demandas da sociedade civil. Entre elas, algumas provocaram ruidosa polêmica, como a proposta de criação da Comissão Nacional de Verdade, a descriminalização do aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, o direito de adoção por casais homoafetivos, a interdição à ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União, o “controle da mídia” e a adoção de mecanismos de mediação judicial nos conflitos urbanos e rurais (ADORNO, 2010, p. 13) Foi no terceiro PNDH que a disputa moral acerca da significação de direitos humanos ganhou palco no país. Protagonizada por canais de televisão que defendiam que o novo programa colocaria a liberdade de imprensa em risco, por grupos religiosos, sobretudo católicos e evangélicos, divulgando que os tópicos referentes ao casamento homoafetivo e a legalização do aborto atentavam contra a liberdade religiosa e por ruralistas e militares, contrários ao processo de demarcação de terras indígenas proposto no programa e a instalação da Comissão da Verdade para a apuração dos crimes que aconteceram durante a Ditadura Militar. (TEIXEIRA & BARBOSA, 2022, p. 96) A crise na percepção social dos direitos humanos e a disputa em torno do significado dos mesmos, à despeito de tratados e conferências, reacendeu no país. Mesmo com definições fixas no direito internacional e nacional, na vida política e social não há coesão acerca dos fundamentos desses direitos. Em que pese este cenário, a instabilidade da conjuntura política que se seguiu a partir do fim do segundo mandato do governo Lula, os direitos humanos tornaram-se um lugar de enunciação onde forças ideológicas aglutinaram-se para disputar a orientação das políticas públicas do Estado brasileiro. 30 No mais, a conjuntura pré‑eleitoral cumpriu seu papel, tornando o espaço político mais sensível e mais inclinado ao confronto do que à negociação. Assim, também ressuscitou o lado conservador da sociedade brasileira, em matéria de hábitos e costumes, suas tradicionais dificuldades de aceitar diferenças, de conviver com novos padrões de relacionamento, menos hierarquizados, menos sujeitos a regras fixas e rígidas. (ADORNO, 2010, p. 86) Com isso, o próximo capítulo se dedicará a compreender os caminhos subsequentes da gramática nacional dos direitos humanos. Quais foram os movimentos que ascenderam politicamente em resposta às duas primeiras décadas da Nova República, o estado de coisas na segurança pública nacional e, sobretudo, no estado de São Paulo, e como isso repercutiu na opinião dos brasileiros acerca dos direitos humanos. 31 3 Crise na segurança pública e percepção social dos direitos humanos 3.1 Crise na segurança pública e no sistema penitenciário brasileiro Através do estudo “Brasil atrás das grades” realizado pela Humans Right Watch em 1988, foi relatado que ao longo da última década o crescimento da superlotação do sistema penitenciário coincidia com vários anos de flagrantes abusos nas prisões, sendo exemplo desses: as violações protagonizadas por policiais a agentes penitenciários, como a violenta vistoria de presos e visitantes, a tortura endêmica, as más condições ligadas à infraestrutura, como a ausência de auxílio médico e vigilância epidemiológica, a falta de supervisão pelas secretarias de segurança, a abundância de armas presentes nos presídios, a falta de atividades para os detentos, a ausência de classificação dos presos, a convivência direta entre presos primários e reincidentes e a falta de treinamento e remuneração de agentes carcerários. Também foram descritas questões ligadas ao sistema jurídico, como a detenção frequentemente se dar antes do julgamento, a impunidade dos erros e violências cometidas pelas polícias e a excessiva quantidade de detentos em delegacias. Ressalta-se, a partir disso, que algumas das crueldades mais extremas das quais os detentos brasileiros são vítimas não podem de forma alguma ser atribuídas à falta de recursos públicos (HRW, 1998). Presentes no país desde 1970, as organizações que denunciavam as prisões e torturas ilegais praticadas pela Ditadura Militar passaram por uma mudança de qualidade no debate político após a redemocratização, tendo em vista que a mudança de conjuntura deu a transparência possível para observar e denunciar que a parcela pobre, marginalizada e não- branca da população era alvo constante de violações dos direitos fundamentais garantidos na Constituição de 1988. De acordo com dados expostos por Túlio Khan 312 , a partir de informações compiladas pelo estatístico Doran Borges, em São Paulo no ano de 1991 a população preta e parda representaria apenas 27,8% da população total, todavia seriam 46,3% dos mortos em confronto com a polícia e 44,8% dos presos no sistema carcerário. Já no Rio de Janeiro, esse grupo étnico-racial correspondia a cerca de 40% da população, entretanto representavam 70,2% dos mortos pelas polícias e 58,6% da população prisional. Percebe-se, 12 KAHN, Túlio. Discriminação racial e segurança pública: a questão do racismo institucional. 2017. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Tulio_Kahn3/publication/316550938_Discriminacao_racial_na_seguranca _publica_racismo_institucional/links/590347ceaca272116d2f9cbf/Discriminacao-racial-na-seguranca-publica- racismo-institucional.pdf. Acesso em: junho, 2021. 32 em ambos os casos, uma representação desproporcional entre os grupos étnico-raciais nas estatísticas de letalidade policial e na população encarcerada. Ao contrário do que indicavam as medidas do Programa Nacional de Direitos Humanos as quais visavam o desencarceramento - como a utilização de penas alternativas e aplicação dos regimes aberto e semiaberto -, observa-se nos últimos cinco anos da década de 1990 o crescimento de 41% no índice de encarceramento no país, quando taxa de presos por 100 mil habitantes saltou de 95,4 para 134,9 no período de 1995 a 2000. Desde então, do ano 2002 à 2022, o número de presos no Brasil aumentou em 257%, totalizando 834.874 pessoas encarceradas para um total de 569.2 mil vagas 13 . O crescimento vertiginoso da população carcerária brasileira e a crise de superlotação no sistema penitenciário é notório desde 2002, quando milhares de pessoas permaneceram sendo aprisionadas sem que a quantidade de vagas nas prisões acompanhasse esse crescimento, construindo uma correlação em que as vagas ofertadas são próximas a metade em relação ao total de presos. Acerca dos instrumentos que visavam a subtração da quantidade de presos, sublinha- se que em 1998, através da Lei n° 9.714 houve uma ampliação nas penas restritivas de direitos que substituem as penas de prisão, somando aos mecanismos de prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fins de semana, a possibilidade de prestação pecuniária e a perda de bens e valores. Em números, percebe-se a pouca aplicação das penas alternativas à pena de prisão quando em 1995, dos 148.800 mil presos, apenas cerca de 2 mil cumpriam tais penas, representando 1,4% do total. Esse quadro se agrava em 1997, quando do total de 170.600 mil presos, apenas 1.364 cumpriam penas alternativas, representando 0,8% do total. Duas décadas depois, em estudo 14 realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) em 2015, foi demonstrado que apenas 20% dos processos concluídos com condenação no país se traduzem em penas alternativas - no estado de São Paulo, esse número cai para 12%. De acordo com Fernando Salla Apesar desse esforço, as penas alternativas são pouco utilizadas no Brasil. São apontados como motivos de seu uso ainda restrito a inexistência de condições adequadas de monitoramento do cumprimento dessas penas, sobretudo as penas de prestação de serviço à comunidade, o conservadorismo do poder judiciário no Brasil, as pressões da opinião pública em favor de punições legais mais severas. (2003, p. 430) 13 FOLHA DE S. PAULO. Com 832 mil presos, Brasil tem maior população carcerária de sua história. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao- carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml Acesso em: 20 de out. 2023. 14 UOL. No Brasil, 20% recebem pena alternativa; na Europa, proporção é inversa. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/12/02/cerca-de-20-sao-condenados-a-penas- alternativas-diz-pesquisa-do-ipea.htm Acesso em: 20 de out. 2023. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/12/02/cerca-de-20-sao-condenados-a-penas-alternativas-diz-pesquisa-do-ipea.htm https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/12/02/cerca-de-20-sao-condenados-a-penas-alternativas-diz-pesquisa-do-ipea.htm 33 Tendo em vista que a utilização de penas alternativas não encontrou consenso entre os três poderes e seguiu sendo pouco aplicada, uma saída empregada para a atenuação do déficit de vagas e a melhoria nas condições penitenciárias foi a política de expansão e interiorização dos presídios, seguindo também o movimento de transferências das pessoas que estavam detidas em delegacias. A interiorização do sistema prisional paulista é o maior exemplo nacional desse projeto: são 180 presídios espalhados pelo estado que atualmente conta com 195.787 mil presos - destes, 718 cumprem pena em carceragens de delegacias - e somam-se 152.051 mil vagas nos presídios, o que representa um déficit de 43.736 mil vagas. Diversos fatores colaboraram para o crescimento do número de presos e a persistência em altos números de déficit de vagas no país, Silvestre e Melo (2017) ressaltam a influência da promulgação da Lei de Crimes Hediondos em 1990, e a inclusão do tráfico de drogas na lista de crimes hediondos. A referida lei é responsável pela limitação da progressão de regime, e consequentemente, o aumento do tempo de cumprimento da pena em regime fechado, dificultando a conquista da liberdade condicional. Além disso, os pesquisadores mencionam que “os crimes patrimoniais, em sua maioria roubos e furtos, levam para o cárcere, em boa parte das vezes, pessoas cujos objetos subtraídos valem muito menos do que o custo mobilizado para mantê-las atrás das grades.” (SILVESTRE & Melo, 2017, n.p). Em análise realizada por Sérgio Adorno em “O sistema penitenciário no Brasil: problemas e desafios” (1991) é enfatizada a presença de uma fragmentação no sistema de justiça criminal que romperia com o continuum polícia-justiça-prisão transformado-o em seu inverso, em um movimento descontínuo e fragmentado no qual as diferentes instâncias que compõem o sistema, sejam as agências policiais, tribunais ou prisões, responsabilizam uns aos outros pelo fracasso do controle da criminalidade e pela superpopulação do sistema penitenciário. Com isso, Adorno salienta que a questão penitenciária é melhor percebida enquanto uma questão política. Isto é, não há solução para os problemas do sistema de justiça criminal através da inserção de novos procedimentos técnicos sem que anteriormente haja um esforço para que seja possível compreender e quantificar o problema. A aferição de um diagnóstico sobre a questão penitenciária exige, de saída, um sistema integrado de estatísticas judiciais – problema que o autor relata nos anos 1980, e que persiste atualmente como um obstáculo para ações, pesquisas e políticas públicas direcionadas e assertivas. Apesar do movimento de democratização das instituições brasileiras e da adaptação dos instrumentos legais à gramática dos direitos humanos, constata-se principalmente que no campo das políticas penitenciárias e de segurança pública esse processo enfrentou e segue enfrentando dificuldades e crises. Segundo Fernando Salla (2003), 34 Os aparatos policial e prisional, desde a década de 1980, têm oposto forte resistência à assimilação de novos padrões da vida democrática que se estabeleceram no país, em boa parte em razão das práticas de arbitrariedade e violência cultivadas durante o regime militar e que subsistiram nessas instituições apesar do esfacelamento das formas autoritárias de governo. (p. 419) Isto é, a falta de atuação e observação sobre os grupos que permanecem dentro das agências policiais, agência prisionais e sistema judiciário, alheios às orientações dadas pelas instâncias governamentais, é parte expressiva da razão do aprofundamento de arbitrariedades dentro do sistema, resultando em, além de superlotação das prisões, degradantes condições de vida para os presos e de trabalho para os funcionários do sistema, sucedendo que as próprias políticas públicas não encontrem sucesso. É somente no amplo quadro de transformações, que incidem tanto nas dimensões macro quanto microfísicas do sistema penitenciário, que se poderá cogitar de propostas e medidas técnicas dotadas de algum êxito e eficácia. Será eficaz persistir na política de aumento da oferta do número de vagas, a despeito do déficit e dos efeitos perversos do institucionalismo? (ADORNO, 1991, p. 77) Um tópico que focaliza as debilidade institucionais e normativas na atuação no sistema penitenciário refere-se à questão da tortura. O combate à tortura no Brasil, normatizado através da Lei 9.455/97 tornou-se uma urgência no país por dialogar com o paradigma da violência legítima protagonizada pelo Estado, tendo em vista o autoritarismo vigente nas práticas policiais denunciadas amplamente a partir dos anos 1990, as quais não eram reconhecidas durante o período da Ditadura Militar. Na Constituição Federal de 1988 não é definida precisamente a prática de tortura, não obstante o país houvesse assumido diversos tratados internacionais nas últimas décadas que denunciam essa conduta, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional para a Defesa de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto São José da Costa Rica (1969), a Convenção de Cartagena (1984), a Convenção das Nações Unidas Contra Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes (1984), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985). Somada essa lacuna aos compromissos internacionais e a fim de promover o enfrentamento à tortura na segurança pública e no sistema penitenciário, o PNDH-1 prescreve, em tópico referente à luta contra a impunidade, “propugnar pela aprovação do Projeto de Lei no 4.716-A/94 que tipifica o crime de tortura” (BRASIL, 1998, p.53). Esta, transformada na Lei no 9.455/97, também com origem no poder executivo, obteve aprovação no dia 07 de julho de 1997 buscando conferir ao vácuo existente na Constituição Federal de 1988 o combate à tortura e a impunidade no país, tendo em vista, 35 além da pouca e precária disponibilidade de dados e pesquisas sobre o tema, o crescente número de denúncias públicas e midiáticas desta prática protagonizada por agentes do Estado. O próprio estado brasileiro, em relatório encaminhado ao Comitê contra a Tortura da ONU, reconheceu as dificuldades na erradicação da prática da tortura no Brasil, em face da corrupção policial e do abuso de autoridade, que gravitam nos organismos policiais. Reconheceu que a tortura é, comumente, utilizada na fase de investigação policial, como meio de se descobrir a verdade, notadamente na apuração de crimes contra o patrimônio. Ressaltou, também, que os suspeitos “de origem humilde e com passagens anteriores pela polícia sofrem, por vezes, maus- tratos por parte da polícia, durante interrogatórios” e que as informações “sobre possíveis suspeitos de envolvimento em crimes são obtidas por policiais por meio de espancamento, constrangimento e ameaça” (COIMBRA, 2002, p. 159) No estudo “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010)” (2015) que objetivou analisar os casos de tortura que chegaram aos Tribunais de Justiça (Tjs) brasileiros entre 2005 e 2010, Flávia Piovesan expõem em análise no prefácio acerca das semelhanças e disparidades na definição de tortura no plano internacional e na Lei 9.455/97. Segundo a autora, a Convenção das Nações Unidas (ONU) contra a Tortura de 1989, define essa conduta a partir de três elementos básicos: “a) a inflição deliberada de dor ou sofrimentos físicos e mentais; b) a finalidade do ato (obtenção de informações ou confissões, aplicação de castigo, intimidação ou coação, e qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza); c) a vinculação do agente responsável, direta ou indiretamente, com o Estado.” (ACAT et at., 2015, p. 12) e a definição na Lei brasileira de 1997 envolve dois elementos essenciais, sendo o primeiro idêntico ao posto pela ONU e o segundo especificando a qualidade da discriminação enquanto racial ou religiosa. Destaca-se, portanto, dois aspectos que mostram-se dessemelhantes nos dois textos: “1o) a lei brasileira restringe o fator discriminação à discriminação racial e religiosa, enquanto a convenção menciona discriminação de qualquer natureza; 2o) a lei brasileira não requer, como o faz a Convenção, a vinculação do agente ou responsável pela tortura com o Estado, quer direta ou indiretamente.” (ACAT et at., 2015, p. 13). Ou seja, a definição de tortura mobilizada na Lei 9.455/97 pode ser entendida ao menos como incompleta por essas duas razões, a restrição na abrangência do entendimento acerca da prática de discriminação e na tipificação do agente da tortura, na qual não há a qualidade de agente público como fator para caracterização do crime, que na legislação brasileira é uma causa a tornar acrescida a pena imposta. 36 Parece mais adequada a definição da Convenção, ainda que mais ampla, afigure-se a definição nacional. Isto porque a gravidade da tortura e o fato de ser ela considerada crime contra a ordem internacional justificam-se por revelar a perversidade do Estado que, de garantidor de direitos, converte-se em brutal violador de direitos. A tortura lança o Estado à delinquência, subvertendo a própria lógica do aparato estatal que, de guardião da lei e assegurador de direitos, transforma-se em agente violador da lei e aniquilador de direitos. (ACAT et at., 2015, p. 13) Essa característica normativa que cria obstáculos a responsabilização do Estado quando este torna-se protagonista do crime de tortura, acrescida à ineficiência e falta de acesso aos órgãos da segurança pública somam-se como entraves para um efetivo combate à tortura no país. A aprovação da lei não foi seguida de medidas de combate ao corporativismo presentes nessas instituições, resultando em inúmeras denúncias de tortura e maus tratos que não resultam em condenações, cenário que se sustenta sob a impunidade muitas das vezes garantidas aos agentes públicos, os quais recebem uma porcentagem menor de condenações em relação aos agentes privados quando acusados desse crime, como aponta o estudo mencionado acima. São emblemáticos os percursos tomados pelas propostas relativas à Lei de Tortura no páis pela materialidade com que se pode observar a ineficiência dos órgãos de segurança pública na alteração de condutas anacrônicas, corporativistas ou até mesmo autoritárias, seja por cultura política, inércia ou fragmentação burocrática. De acordo com Nancy Cardia, "Estudar os obstáculos para a democracia exige, além de identificação das presenças dos elementos da democracia formal, a identificação dos legados autoritários.” (1999, p. 36) e no caso da segurança pública e sistema penitenciário, o paradigma da continuidade autoritária manifesta-se nas ações do aparelho estatal no controle da violência e da criminalidade, na arquitetura das polícias, nas instituições de carceragem, no sistema de justiça. O legado autoritário mencionado por Nancy Cardia é parte fundamental do que persiste para a ausência de políticas públicas que auxilie com a atenuação da crise de segurança pública e do sistema penitenciário no Brasil atualmente. A autora Teresa Caldeira recorre ao conceito de “democracia disjuntiva” ao descrever a questão da cidadania no Brasil, reiterando que o país vive um processo contraditório de simultânea expansão e desrespeito aos direitos de cidadania. [...] A cidadania brasileira é disjuntiva porque, embora o Brasil seja uma democracia política e embora os direitos sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis da cidadania são continuamente violados.” (2000, p. 343). Neste trabalho, a autora relata a primazia da promoção dos direitos sociais e, posteriormente, políticos em detrimento dos direitos civis. Sendo que esses últimos são constantemente 37 violados, sobretudo quando refere-se à violência e intervenção nos corpos. Em relação à associação da ausência da promoção dos direitos civis e a violência contra os corpos, Caldeira cunha o termo “corpo incircunscrito”, o qual descreve que a negligência com os direitos civis e individuais deve-se ao fato de que, no Brasil, a violência e intervenção no corpo seriam amplamente toleradas e que, em relação aos criminosos, isso é notório tanto na campanha pela introdução da pena de morte na Constituição Federal quanto na oposição aos defensores dos direitos humanos no país. (CALDEIRA, 2000, p. 343). No estado de São Paulo, Caldeira reitera que um marco que consolidou a valoração negativa tomada pela população paulista aconteceu durante o governo de Franco Montoro (1983-1987). Montoro foi o primeiro governador eleito após o fim da Ditadura Militar, e teve seu governo marcado pelo fortalecimento da democracia em São Paulo, principalmente através do controle dos abusos policiais e pela melhoria do tratamento penitenciário e qualidade das prisões. Foi também ao longo do governo de Montoro que o estado presenciou um expressivo aumento no crime violento e, como consequência da redemocratização, foi possível com que este tema tomasse o centro dos noticiários e jornais brasileiros. De acordo com Caldeira (2000), “Enquanto Montoro esa apoiado por grupos de direitos humanos e partidos de centro e esquerda, os políticos de direita acusavam-no e a seus aliados de protegerem criminosos. Nessa campanha, os direitos humanos foram chamados de “privilégios de bandidos”.” (p. 346). Na sequência do trabalho desenvolvido pela autora, a mesma relembra quais foram os discursos, na literalidade, dos movimentos organizados que se opuseram à política de humanização dos presídios e promoção dos direitos humanos para presos comuns. Serão citados nesse trabalho dois dos discursos mencionados pela autora pela semelhança que estes guardam com o discurso anti-direitos humanos que voltou a ter força na sociedade brasileira a partir da campanha de Bolsonaro. O primeiro refere-se a um manifesto da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo de 1985: Os tempos atuais são de intranquilidade para você e de total garantia para os que matam, roubam, estupram. A sua família é destroçada e seu patrimônio, conseguido à custa de muito sacrifício, é tranquilamente subtraído. E por que isto acontece? A resposta você sabe. Acreditando em promessas, escolhemos o governador errado, o partido errado, o PMDB. Quantos crimes ocorreram em seu bairro e quantos criminosos foram por eles responsabilizados? Esta resposta você também sabe. Eles, os bandidos, são protegidos pelos tais ‘direitos humanos’, coisa que o governo acha que você, cidadão honesto e trabalhador, não merece. (CALDEIRA, 2000, p. 347) 38 O segundo exemplo, que também demonstra a disputa pelo significado de direitos humanos enquanto pauta ideológica e política, refere-se a um artigo escrito por Antonio Erasmo Dias, no jornal Folha de S. Paulo em 1983. Este, que foi secretário de segurança pública durante o regime militar, afirma que A insatisfação da população quanto a polícia, exigindo inclusive uma atuação mais ‘dura’, no que pode ser considerado responsabilidade do governo Montoro, decorre da filosofia alardeada dos ‘direitos humanos’, aplicada de modo unilateral mais e