UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CÂMPUS DE MARÍLIA SILVIO SILVÉRIO FEITOSA DE FREITAS OS GRITOS NA ESCOLA PÚBLICA: UMA BREVE ANÁLISE EM ESCOLAS MARILIENSES MARÍLIA 2023 UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CÂMPUS DE MARÍLIA SILVIO SILVÉRIO FEITOSA DE FREITAS OS GRITOS NA ESCOLA PÚBLICA: UMA BREVE ANÁLISE EM ESCOLAS MARILIENSES Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Sociologia (PROFSOCIO) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia. Linha 1: Educação, Escola e Sociedade MARÍLIA 2023 SILVIO SILVÉRIO FEITOSA DE FREITAS OS GRITOS NA ESCOLA PÚBLICA: UMA BREVE ANÁLISE EM ESCOLAS MARILIENSES Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Câmpus de Marília, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio). Linha de pesquisa: Educação, escola e sociedade. Orientador: Prof. Dr Luis Antônio Francisco de Souza. BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________ Prof. Dr Luis Antônio Francisco de Souza (UNESP/ FFC) ___________________________________________________________ Profª. Drª Sueli Guadelupe de Lima Mendonça (UNESP/ FFC) ___________________________________________________________ Prof. Dr. João Paulo Francisco de Souza (SEDUC-SP) SUPLENTES ___________________________________________________________ Prof. Dr. João Henrique Souza Pires (SEDUC-SP) ___________________________________________________________ Prof. Dr. José Aparecido dos Santos (FAI) Marília, março de 2023. F866g Freitas, Silvio Silvério Feitosa de OS GRITOS NA ESCOLA PÚBLICA : UMA BREVE ANÁLISE EM ESCOLAS MARILIENSES / Silvio Silvério Feitosa de Freitas. -- Marília, 2023 120 p. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Orientador: Luis Antônio Francisco de Souza 1. grito. 2. violência escolar. 3. cultura escolar. 4. ensino de sociologia. I. Título. AGRADECIMENTOS Agradeço a meus pais por todo incentivo e apoio durante todos estes anos. Sem o apoio e o exemplo de vocês, não teria conseguido chegar onde cheguei. Minha amada filha, agradeço imensamente toda a paciência e compreensão durante este processo. A todos os profissionais da educação que permitiram o surgimento desta dissertação, meus imensos agradecimentos. Esta dissertação só foi possível por conta de vocês, seus relatos, choros e desabafos. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo compreender como os discentes e docentes de sociologia (e demais funcionários da escola) lidam com o grito dentro da escola pública, sendo este um fenômeno que faz parte da cultura escolar, se mostrando um tipo de violência escolar. Foi adotada a metodologia de pesquisa participativa de abordagem etnográfica e observação participante. As hipóteses levantadas são, do grito ser algo que faz parte da cultura escolar, e os docentes de sociologia não estão desnaturalizando e nem criando estratégias para lidar com esse fenômeno. Para teste estudo foi adotada a pesquisa participativa, de abordagem do tipo etnográfica, onde se colhe dados de ações, significados e relatos orais para conseguir gerar uma interpretação à luz de diversos autores e correntes teóricas sobre este fenômeno. Até o presente momento o grito foi pouco abordado pela academia, sendo, em geral, de áreas como psicologia, filosofia, fonoaudiologia e jornalismo, onde estes focam por um ponto de vista ensaístico, carecendo de pesquisa bibliográfica e de campo mais detalhadas. Após a análise e teorização dos dados, pode se concluir que os docentes abordados para esta pesquisa ainda apresentam dificuldades em criar estratégias para lidar com o grito em sala de aula, bem como não fazem a desnaturalização e estranhamento deste. Também é possível concluir que o grito tem relações com o autoritarismo, bem como compreender que tal faz parte da cultura das práticas escolares, aprendido no cotidiano por meio da observação, memórias e diálogo entre os pares. Palavras-chave: Cultura escolar. Ensino de sociologia. Grito. Violência escolar. ABSTRACT This research aims to understand how sociology students and teachers (and other school employees) deal with screaming in public schools, which is a phenomenon that is part of school culture, showing itself to be a type of school violence. The methodology of participatory research with an ethnographic approach and participant observation was adopted. The hypotheses raised are that screaming is something that is part of school culture and sociology teachers are not denaturalizing or creating strategies to deal with this phenomenon. For the test study, participatory research was adopted, with an ethnographic approach, where data on actions, meanings and oral reports are collected in order to generate an interpretation in the light of different authors and theoretical currents on this phenomenon. Until now, the cry has been little addressed by the academy, being, in general, from areas such as psychology, philosophy, speech therapy and journalism, where they focus on an essay point of view, lacking more detailed bibliographical and field research. After analyzing and theorizing the data, it can be concluded that the teachers approached for this research still have difficulties in creating strategies to deal with screaming in the classroom, as well as they do not denaturalize and estrange it. It is also possible to conclude that screaming is related to authoritarianism, as well as understanding that this is part of the culture of school practices, learned in everyday life through observation, memories and dialogue between peers. Keywords: School culture. Sociology teatching. Scream. School violence. Lista de siglas: AAP - Avaliação de Aprendizagem em Processo ATPC – Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo BNCC – Base Nacional Comum Curricular CGP – Coordenador de Gestão Pedagógica CGPAE – Coordenador de Gestão Pedagógica de Agrupamento Escolar CMSP – Centro de Mídias da Educação de São Paulo COE – Coordenador de Organização Escolar CPV-P – Condição de Produção Vocal EFAPE – Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação EJA – Ensino de Jovens e Adultos LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação PAC – Projeto de Assistência ao Currículo PCAE – Professor Coordenador de Agrupamento Escolar PCC – Primeiro Comando da Capital PEI – Programa de Ensino Integral PIBID – Programa de Bolsas de Incentivo a Docência OCN – Organização Curricular Nacional SD – Sequência Digital SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 08 CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO.............................................................. 11 1.1 Revisão bibliográfica................................................................................................... 11 1.1.1 Escritos do campo da saúde...................................................................................... 12 1.1.2 Escritos das ciências humanas.................................................................................. 15 1.1.3 O que podemos evidenciar dos escritos da revisão bibliográfica............................. 21 1.2 Justificativa e objetivos................................................................................................ 26 1.3 Metodologia................................................................................................................. 28 1.4 Considerações sobre o cenário atual da escola paulista............................................... 33 CAPÍTULO 2 – PESQUISA DE CAMPO 37 2.1 Breve descrição das escolas e seu público................................................................... 37 2.2 Público escolar e cultura juvenil.................................................................................. 41 2.3 Gritos entre professores (diversos) e alunos................................................................ 51 2.4 Gritos de coordenadores pedagógicos (PC/ CGP) e direções/ vice direções (COE)... 58 2.4.1 CGPs que agem sem gritar....................................................................................... 63 2.5 O grito de um AOE aos alunos.................................................................................... 65 2.5.1 O AOE que não grita............................................................................................... 66 2.6 Relatos dos docentes de sociologia em relação ao grito.............................................. 67 CAPÍTULO 3 - TECENDO ESSA COLCHA DE RETALHOS TEÓRICA 77 3.1 Grito como “tentativa” de controle para gestão de sala de aula.................................. 77 3.2 Grito e controle dos corpos dóceis.............................................................................. 79 3.3 Hierarquia e grito entre docentes e direções/coordenações........................................ 80 3.4 Violência e grito.......................................................................................................... 81 3.4.1 Charlot e o pensamento dos sociólogos franceses quanto a violência escolar........ 82 3.4.2 Bourdieu, escola e a violência simbólica................................................................ 84 3.4.3 Norbert Elias, civilidade e incivilidade.................................................................... 88 3.5 Autoritarismo docente, catarse e sadismo.................................................................. 91 3.6 Grito e moralidade..................................................................................................... 96 3.7 Retomando as perguntas norteadoras e hipóteses dessa dissertação........................ 100 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 104 REFERÊNCIAS................................................................................................................. 110 8 INTRODUÇÃO Pedagogia: A mãe trabalha, a rua educa A escola falha, o crime recruta Renan Inquérito (2018, p.73). Minha dissertação tem muitas vozes, muitas falas que ouvi e transcrevi nesse texto, e, ainda que seja de forma reduzida/ recortada para análises à luz da teoria, ainda é um registro histórico, um registro daquelas vozes todas que não poderiam ser ouvidas de forma tão direta sobre o grito na sala de aula. Ao leitor, os relatos nesse texto são uma voz de 3ª pessoa, principalmente quando penso nas ideias de Geertz (1978), porém, para mim, os relatos, as conversas, o choro, o pedido de socorro, o desabafo, o riso e o cafezinho na sala dos professores, são experiências e vivências muito importantes que me foram confidenciadas, observadas, vividas, dialogadas e mesmo choradas. Portanto, independente do fruto final desse trabalho, declaro: ele é um recorte de minhas vivências do cotidiano, extremamente preciosas, por hora angustiantes, assustadoras, sofridas e amargas; de um cotidiano onde o grito se mistura com muitas situações que revelam diversos prismas, diversos fenômenos que permeiam o cotidiano da escola; como a violência, o autoritarismo, o sadismo, a cultura escolar, e, foram todas essas vozes que me impulsionaram para a realização deste escrito. O motivo que me levou a tal pesquisa foi um misto da sensação de estranhamento e desconforto. Entrei na educação com o ideal de levar conhecimento e reflexão aos jovens, e, muitas vezes consegui isto, porém, em muitos momentos, presenciei agressões e violências diversas, sendo que, das que mais se repetia (e ainda se repete em alguns momentos) é o grito na escola pública. Não sou um ser que gosta de gritar, muito menos de ouvir gritos, logo, questionei-me quando vi colegas saindo da sala de aula esbaforidos, vermelhos de suor, ao final do dia roucos, e, pior ainda, conversando aos gritos entre si nas salas de professores. Surpreso fiquei, quando me vi em situações em que eu elevava o tom de voz para tentar controlar a sala de aula, ou para repreender, e, em muitas vezes me peguei, na volta para casa, com a garganta dolorida e, muitas vezes, raiva de alunos e situações onde o grito ocorria, o que revelava que aquele fenômeno que eu abominava perpassava minha pessoa logo no meu primeiro ano de docência. Como cientista 9 social, não poderia deixar isto passar despercebido, ainda mais que percebi o fenômeno em mim, logo, me propus a fazer reflexões sobre tal fenômeno. Porém, o fenômeno já tinha sido anteriormente percebido por mim, sendo que, notei desde meus tempos de estagiário de licenciatura e bolsista no Pibid, citando meu interesse em abordá-lo tema de pesquisa, porém, na época, por conta do foco do grupo, bem como por ainda estar na graduação, não me julguei pronto, e abordei o fenômeno do estranhamento em sala de aula em uma escola pública da cidade onde resido. Dois anos após concluir a licenciatura, adentrei de novo em sala de aula, desta vez como docente em estágio probatório, fruto do concurso de 2013, o qual pude assumir no ano de 2017, pouco depois de concluir a licenciatura. Mas, qual grito irei abordar? E, como podemos definir o grito? Grito, de acordo com o dicionário online Michaelis (2009), é o falar em tom elevado, que pode se ouvir ao longe, bem como exclamação de dor ou expressão de reação violenta. Pode ser ainda qualquer expressão em voz alta, elevada. Nas vivências e observações feitas por mim na prática docente, percebi que o fenômeno do grito ocorre em muitos momentos dentro do ambiente escolar como forma de reação aos estímulos que ocorrem na prática escolar, seja de forma mais refletida ou não. Existem vários tipos de grito dentro da escola, como bem me apontou o orientador, e como diversas vezes presenciei. Existe aquele grito em que os jovens estão brincando, se divertindo numa brincadeira. Existe o grito de comemoração ao final das aulas, em jogos, que são esse falar no tom elevado, que pode se ouvir ao longe, mas, não está carregado de um sentido negativo. No entanto, não foi esse tipo de gritar que me chamou a atenção. Foi, em verdade, aquele grito com relação a conflito entre estudantes e professores e funcionários, onde os professores gritam com os estudantes para controlar, para chamar a atenção, e, não raro, estudantes devolvem esse grito, havendo o conflito. Foi o falar gritando de diretores/as e professores coordenadores/as de inúmeras escolas, que, ao dar broncas nos alunos, elevavam o tom para o grito, em mensagens moralizantes, buscando constranger os alunos, e, estes, muitas vezes, ao tentar se defender, também elevavam o tom. Esse será o grito abordado, onde ocorrem violências de várias formas, que tem caráter negativo na saúde, nas aulas, nas relações. Esse é o grito que irei abordar nesse escrito, o grito do conflito, entre alunos e professores. 10 Gritar é algo que parece pertencer ao ambiente escolar atual, e parece estar naturalizado. O professor grita em sala de aula, tentando ensinar/ter atenção, usa para conter alunos, e muitas vezes os alunos manifestam o grito em comportamentos tidos pelos docentes como de indisciplina; usam entre si ou contra funcionários da escola, que muitas vezes gritam em corredores da escola contra alunos que por algum motivo infringem as regras. Há, ainda, o conversar gritando (no sentido de tom de voz elevadíssimo) entre alunos e entre professores. Muitas vezes há o grito em finais de intervalos, quando professores, ou mesmo funcionários de direção gritam, de forma autoritária, para que os alunos voltem para a sala. Para além de minhas percepções como docente, tal fenômeno pode ser percebido em matérias recentes da grande mídia, como no site de notícias G1 do dia 16/09/2015, onde um professor que foi filmado gritando com o aluno (PORTAL G1, 2023), e também na notícia do jornal Correio do dia 21/09/2018, onde se relata ofensas e ameaças feitas aos gritos a um docente no município de Rio das Ostras – RJ (CORREIO 24 HORAS, 2018). Talvez os veteranos na docência possam crer que o gritar dentro da escola seja óbvio, melhor dizendo, evidente, mas, como nos diz Nóvoa (2005), o que é evidente dentro da educação, muitas vezes, mente, logo, há algo que evidentemente não está sendo refletido, e que temos de investigar dentro daquilo que podemos pensar como algo presente na cultura escolar. Segundo Nóvoa (1999) e Oliveira (2003), a escola é um local que faz parte da cultura de uma sociedade e que segue normas impostas pelas diversas esferas governamentais, mas, ainda assim, se configura também como um espaço onde se cria ideias, significações e sentidos próprios, local onde normas definem condutas e práticas para a transmissão do conhecimento que podem variar com a época e finalidades, portanto, tem uma cultura própria, algo que entendemos ser uma cultura escolar, que não pode ser analisada sem levar em conta seus agentes, sejam os profissionais, sejam os discentes (JULIA, 2001). Considerando os pressupostos apresentados, nessa dissertação, busco analisar o grito por um ponto de vista da cultural, como algo que faz parte da cultura escolar, que afeta as aulas, como uma faceta de violência escolar. Então, como os professores de sociologia reagem? Quais são suas estratégias, como percebem isso? 11 CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO 1.1 Revisão bibliográfica Ao questionar-me sobre o grito na escola, o primeiro passo foi fazer uma busca sobre o tema, para ver quantas publicações foram feitas. Aqui abordarei obras que citam o grito de forma direta, bem como publicações que saíam da alçada das ciências humanas, para que possamos ter mais conhecimento do fenômeno e, assim, mais dados para a análise das anotações das observações de campo/pesquisa participativa. Cabe aqui declarar ao meu leitor que minhas buscas para tal revisão foram feitas nas seguintes plataformas: Scielo, Portal Capes (portal de teses e periódicos), catálogo Athena (UNESP), Domínio Público, portal de teses da USP, e, ainda, o Google Acadêmico. Em todas estas plataformas foram feitas pesquisas com palavras chaves em combinação, no caso: grito, grito e educação, grito na escola, grito em sala de aula, grito e sociologia, grito e cultura escolar, grito dos alunos/estudantes, grito dos professores e grito e violência escolar. Cabe destacar que, de todas as ferramentas de busca, sem dúvidas a que teve melhor responsividade ao pesquisador foi o Google Acadêmico, que entregou resultados inclusive das outras plataformas aqui listadas, e também listou escritos de blog, matérias de jornais e vídeos do Youtube, logo, a revisão bibliográfica tem mais que escritos acadêmicos, que, destes, foram muito poucos, sendo seis de ciências da saúde e nove de ciências humanas. Os critérios para separar as obras a serem analisadas foram as informações contidas no resumo (quando acadêmicas,) sendo usado mecanismo de busca do leitor de arquivos pdf Okular para palavras chave em arquivos em que o resumo não apontava diretamente o tema. As obras não acadêmicas apontadas pelo Google Acadêmico foram separadas por título e, ainda, por buscas de informações relacionadas ao grito e educação por meio da busca de palavras chave no navegador Firefox. Isto é declarado, pois há inúmeros artigos, escritos e afins sobre grito, tanto de uma perspectiva da literatura quanto das ciências da saúde, porém, que não apresenta conexões com aquilo que pretendo abordar, que é essa faceta do grito que explicita o conflito, a violência e a cultura escolar. Sendo assim, abaixo, segue uma breve análise sobre as obras encontradas e lidas. 12 1.1.1 Escritos do campo da saúde No campo das ciências da saúde, podemos destacar os artigos de Zambon; Behlau (2009) e APEOESP (2012), apontam a existência do grito na prática docente em sala de aula com ênfase na saúde do trabalhador, mostrando os problemas fonoaudiológicos (principalmente cordas vocais) em docentes, porém não buscam compreender de fato o fenômeno e suas causas, simplesmente apontando de um ponto de vista quantitativo, como algo que adoece os docentes. Evidenciam que os docentes são um grupo com mais possibilidade de problemas vocais, onde as próprias relações de trabalho causam problemas de voz, distúrbios e estresse na profissão decorrentes da alta carga de controle psíquico o qual o professor está sujeito quando busca controlar/ gerenciar a sala, o que leva a problemas somáticos (como surgimento de nódulos nas cordas vocais) e outras patologias, como digestivas e cardiovasculares. Paes, Zambon e Behlau (2014) apontam que há, ainda, dificuldade do professor se ver como profissional da voz, o que leva à demora de buscar tratamento. Araújo et al. (2008) fizeram uma pesquisa sobre disfonia em professoras (ao que tudo indica em seus escritos, somente mulheres na docência foram abordadas) na rede municipal de Vitória da Conquista/ Bahia, englobando professoras da 1ª à 8ª série do ensino fundamental, sendo que destacam, como problemas que adoecem as docentes “[…] as condições inadequadas do ambiente de trabalho, elevada jornada de trabalho, falta de conhecimento quanto ao uso correto da voz e a baixa procura por atendimento especializado. [...]”. Cabe destacar que tal pesquisa enfocou todas as docentes do município, dando um total de 808 professoras. Destaca-se, nas pesquisadas, “[…] uso intensivo da voz foi referido por 91,7% das professoras. As duas alterações vocais mais referidas foram cansar quando fala (69,1%) e sentir a voz rouca ou fraca após o dia de trabalho […]”, bem como “[…] prevalência de rouquidão nos últimos seis meses foi elevada, atingindo 59,2% das docentes [...]”. Camargo-Gomes et al. (2016), versam sobre estresse e abuso vocal na população infantil em ambientes institucionais, que acarretam lesões nas pregas vocais, algo associado às disfonias infantis. Citam que tais são, em geral, frutos de comportamentos que geram sobrecarga fonética, relacionado aos ruídos do ambiente, que forçam a elevarem a voz, gerando tensão e esforço. Gritar, falar forte ou em ambientes ruidosos, inverter a vocalização (falar fora do tom natural), vocalizações tensas, ataques sonoros, tudo isso é considerado pelos autores como 13 comportamentos que podem gerar lesões/ disfonia. Aponta o artigo que muitas vezes os pais e educadores não levam em conta a voz das crianças, e, não raro, estes são modelos inadequados de comunicação. Em virtude disso, justificam que há necessidade de programas de prevenção aos distúrbios da voz em ambientes institucionais, o qual entendo ser muito pertinente. Karman e Lancman (2013), por sua vez, fizeram uma pesquisa na rede municipal da cidade de São Paulo, entrevistando 8 professores da rede básica municipal, sendo os pontos pesquisados voz, violência, trabalho e inclusão escolar. Com isso, perceberam que os professores fazem um emprego muito grande da voz, seja para chamar atenção, acalmar, resolver situações de violência, sendo percebido que o gritar e o falar alto como uma forma de competir com o ruído da sala de aula, sendo que as quebras de rotina acentuam tais problemas. Embasados nos dados do Hospital do Servidor Público de São Paulo, bem como no GT Voz da PUC, se percebeu que 60% dos professores que tinham salas com 35 a 40 alunos possuíam distúrbios de voz, e, destes, só 35% buscaram se tratar, sendo relatado nesse grupo o falar constantemente e o hábito de gritar. Existe relato de naturalização do grito com relação ao trabalho com crianças de necessidades especiais, onde o educador começa a parar de perceber/se importar com o grito da criança. Com relação ao espaço da escola, apontam que é muito pequena, e que isso não favorece a dinâmica escolar, além da ausência de profissionais e profissionais readaptados que possuem condições como idade avançada e problemas físicos que não tem culpa da situação, mas, de certa forma, estão lá sem dar conta da situação de violência escolar. Isto favorece o ruído, e, consequentemente, favorece a violência e a agressão. Por fim, relatam que, quando adoecem, os docentes são obrigados a se ausentarem da sala de aula para se tratar, e há o relato de culpa destes pela ausência, o que demonstra que, por mais que as condições sejam adversas, há um aparente comprometimento destes para com a docência. Dornelas et al. (2017) fazem uma revisão entre violência simbólica (se valem das ideias de Pierre Bourdieu) e distúrbio vocal. Assim, realizam um estudo de natureza quantitativa, na cidade de Lagarto-SE, com 41 professores de ensino fundamental do município, sendo excluídos os doentes, afastados e readaptados, sendo aplicado questionário de Condição de Produção Vocal - Professor (CPV-P). Os resultados foram: 33 (80,5%) pessoas referiram o hábito de gritar, 40 pessoas (97,5%) declararam falar muito, e somente 31 (73,1%) pessoas relataram um cuidado com a voz (ingerir água enquanto realizam uso vocal). Os tipos de violência mais presentes, segundo os professores desta pesquisa, são as brigas entre alunos e roubos de objetos pessoais. 14 Em resultados de outros estudos, os professores em seus relatos têm destacado que a violência, principalmente o desrespeito, é uma constante no meio escolar. Afirmam os referidos autores que professores em geral utilizam o grito como estratégia em sala de aula, sendo as mulheres as mais afetadas e, em alguns casos específicos, as professoras que trabalham em séries iniciais, em que o ruído em sala de aula é maior. Assim, a estratégia utilizada é elevar a frequência e produzir uma intensidade forte. Se baseando em outros estudos, os autores falam que os professores destacam que a violência, principalmente o desrespeito, é uma constante no meio escolar, indicando banalização da violência na escola pública, o que faz com que atos violentos não sejam percebidos como tal. No entanto, Dornelas et al. (2017) não conseguem enxergar, de forma direta, uma relação entre violência e distúrbios da voz, considerando que tal enfoque pode levar em consideração, também, a questão de gênero (voz nas professoras - gênero feminino parece adoecer mais), logo, cabe a pergunta: docentes do sexo feminino gritam mais? Aqui entendo que sim, porém, outros fenômenos parecem permear, como o machismo estrutural na nossa sociedade, pois, por experiência própria afirmo que há mais “respeito” quando um homem heterossexual dá um comando em sala. Penteado et al. (2007) versam sobre o processo educacional que ocorre sobre a voz das crianças, e citam que diversos maus hábitos vocais ocorrem com a criança, seja fruto da cultura da violência, da mídia, poluição auditiva no meio em que vive, estresse e agressividade a qual estão submetidas em nossa sociedade, bem como a falta de atenção e conhecimento dos pais e educadores levam a hábitos fonéticos prejudiciais. Citam os autores de que são benéficas as chamadas oficinas para a voz nas crianças, com poucas, porém, interessantes experiências na educação para a prevenção de problemas fonoaudiológicos. Dito isto, o objetivo do artigo é analisar o processo educativo de um Grupo de Vivência de Voz com crianças de uma escola de educação infantil, sendo estudados 36 estudantes, sendo o enfoque 3 encontros, em que usaram recursos lúdicos, como brinquedos para perceber a respiração, exercícios de produção de voz, bem como falas para que os jovens entendam sobre a fonoaudiologia e produção/importância da voz. 15 1.1.2 Escritos das ciências humanas Começo este campo citando o escrito de Paulo Gurgel, no blog do PET Pedagogia da UFBA, intitulado “O grito: a fragilidade da autoridade em sala de aula” (GURGEL, 2018), onde este cita o uso do grito como elemento da autoridade para controlar os alunos em sala de aula, e relata, ainda, que não há escritos do uso do grito como arma de controle disciplinar, e, finaliza relatando uma experiência onde este vai fazer uma oficina e presencia a cena da diretora gritando, em nome de “respeito ao convidado”, o que, segundo ele, denuncia a impotência, que nem sempre a autoridade escolar repousa pela razão. Portanto, a questão da autoridade e autoritarismo fica como algo a se refletir. Cassone (2015), no blog Educação Escolar e vídeo intitulado “Professores que gritam” (publicado na plataforma Youtube, em 2017), traz reflexões sobre o grito dos professores aos alunos, no caso, o grito é usado pelos docentes como prática antiga, tradicional. Sob influência de Rudolph Steiner1, Cassone (2015) associa o grito ao temperamento colérico dos professores, apontando o grito do professor como a humilhação do aluno. Esta autora recorre à memória de sua própria alfabetização, onde sua professora gritava e humilhava, ou seja, violência simbólica, pois, havia ali uma forma intencional de coação, de atingir o outro de forma negativa, sem ser pelo lado físico, mas simbólico. Ela também cita estratégias contra o uso do grito, como o uso da expressão facial, música e tom de voz, que (ao meu ver) parecem ser usadas em sua prática em séries iniciais, bem como a questão do conteúdo da aula ser interessante e o vínculo do professor com a sala – se este passa confiança aos alunos ou não. Aqui podemos destacar alguns aspectos, no caso, o grito, para ela, parte do professor aos alunos, e o professor é visto como principal desencadeador. Ela também revela suas lembranças de antigos mestres com o grito e o desagrado deste ato nos alunos, o que nos leva a seguinte reflexão: de onde o professor aprender à gritar? Parece que o grito do professor é algo arraigado nas suas memórias. O grito gera mal-estar e humilhação no outro, o que pode ser tipificado como 1 Foi fundador da antroposofia, da pedagogia Waldorf, da agricultura biodinâmica, da medicina antroposófica e da euritimia, esta última criada com a colaboração de sua esposa, Marie Steiner-von Sivers. Seus interesses eram variados: além do ocultismo, se interessou por agricultura, arquitetura, arte, drama, literatura, matemática, medicina, filosofia, ciência e religião (fonte: WIKIPÉDIA. Enciclopédia eletrônica. Rudolf Steiner. 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_Steiner. Acesso em: 17 abr. 2023). https://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o https://pt.wikipedia.org/wiki/Ci%C3%AAncia https://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia https://pt.wikipedia.org/wiki/Medicina https://pt.wikipedia.org/wiki/Matem%C3%A1tica https://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura https://pt.wikipedia.org/wiki/Drama https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte https://pt.wikipedia.org/wiki/Arquitetura https://pt.wikipedia.org/wiki/Agricultura https://pt.wikipedia.org/wiki/Ocultismo https://pt.wikipedia.org/wiki/Marie_Steiner-von_Sivers https://pt.wikipedia.org/wiki/Euritimia https://pt.wikipedia.org/wiki/Medicina_antropos%C3%B3fica https://pt.wikipedia.org/wiki/Agricultura_biodin%C3%A2mica https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedagogia_Waldorf https://pt.wikipedia.org/wiki/Antroposofia 16 um tipo de violência simbólica (BOURDIEU; CHAMPAGNE, 2001; BICALHO; PAULA, 2009). Fagundes (2009), no campo da filosofia da educação, faz um breve ensaio sobre o que ele chama de “Pedagogia do grito”, em que diz que a pedagogia atual é a da norma e punição, não ofertando perspectivas aos alunos. O grito, aqui é parte da punição, e uma das causas, para ele, é a falta de prazer no aprender, a outra, a má formação dos docentes. Este autor diz que há desagrado nos alunos das séries iniciais, com visões destes sobre a professora que grita, e, na adolescência, tal figura docente é vista como uma pessoa mal-amada, sendo ridicularizada. Aqui o grito ainda é focado como partindo somente do professor, elemento de controle, mas há, depois, um questionar (por parte dos alunos) do ato e da autoridade, havendo aí um ressignificar por parte dos alunos à docente e do ato de gritar. Bortolin (2010), no site do jornal Gazeta, fala também de uma “pedagogia do grito”, e traz reflexões de como os adultos educam as crianças gritando. Usando as ideias do falecido psicanalista Içami Tiba2 e da psicóloga Karin Bruckheimer3, a filósofa Zagury (2010) em seu texto entende como a “pedagogia do grito” é nociva, pois é uma forma de agressividade que os adultos cometem com as crianças (pois estão impedidos de praticarem coerções físicas – bater) e que as crianças, posteriormente, irão adotar e repetir. Mais que isso, há, segundo seu texto, um adotar do falar gritando entre adultos e crianças após a prática reiterada do grito. Há algo interessante a ser destacado, que é o que eu entendo ser uma dialogia do grito: os adultos gritam com as crianças, elas aprendem e esse comportamento começa a ser adotado de forma a um alimentar o grito do outro. O grito aqui é uma forma de comunicação via agressão que vai aos poucos se tornando naturalizada. No entanto, cabe à crítica ao seu texto, pois, não cita exatamente qual obra ou conceito ou ideias do Içami Tiba é usado sobre o grito, o que dificulta em muita nossa missão de compreender melhor por um ponto de vista das ciências humanas. 2 Foi um médico psiquiatra, psicodramatista, colunista, escritor de livros sobre Educação, familiar e escolar, e palestrante brasileiro. Professor em diversos cursos no Brasil e no exterior, criou a Teoria da Integração Relacional, que facilita o entendimento e a aplicação da psicologia por pais e educadores (fonte: WIKIPÉDIA. Enciclopédia eletrônica. Içami Tiba. 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/I%C3%A7ami_Tiba. Acesso em: 17 abr. 2023). 3 Possui graduação e licenciatura em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1989). Especialista em Psicologia Clínica e Psicopedagogia pelo Conselho Federal de Psicologia (2002). Pós graduanda em Educação Ambiental e Sustentabilidade. Possui experiência na gestão de aprendizagem vivencial na escola, na comunidade ou com aprendizes na indústria, para estimular o sentimento e a prática de comunidade sustentável (fonte: https://www.escavador.com/sobre/2149728/karin-odette-bruckheimer). https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil https://pt.wikipedia.org/wiki/Educa%C3%A7%C3%A3o https://pt.wikipedia.org/wiki/Escritor https://pt.wikipedia.org/wiki/Colunista https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9dico 17 Ornellas (2012) faz uma reflexão do grito e silêncio na escola com uma perspectiva psicanalítica, onde a escola age como um dos espaços de civilização dos seres em sociedade, que, junto da cultura, das leis e do saber contém e sublima a agressividade e a violência. Seu escrito é interessante, pois ajuda a compreender o que é a agressão de um ponto de vista psicanalítico, no caso, uma força pulsional para aliviar determinada tensão psíquica (a agressividade pode ser sublimada em atividades da cultura humana), enquanto que violência é o ato de submeter o sujeito à coerção e desprazer desnecessários, havendo ai espaço para formas de violências mais sutis na relação professor x aluno, como indiferença, ameaças e silêncios que estão permeados de significados, que podem romper-se com gritos de socorro. Este autor aponta, também, o que ele entende como missão da escola, no caso, ser um local interessante para o jovem, que estimule o aprender, e que não ceda à violência. Entendo que a indiferença e ameaças caem naquilo que é a violência simbólica, que será abordado mais a frente neste texto, porém, os silêncios citados podem ter muitas significações, como da voz do aluno reprimido, do silêncio ante à violência, porém, neste momento, o silêncio não será abordado nessa dissertação. No livro Conversando sobre violência nas escolas (ABRAMOVAY et al., 2012, p. 26) há uma breve citação do grito, enquadrando este como um ato do professor que possui tratamento rude, o que impede que a desejada aprendizagem ocorra, afinal, há um afetar nos discentes, desde sensações ruins por conta da micro violência e incivilidades que o professor manifesta com o grito bem como resistência para tais atos. Há ainda uma citação (ABRAMOVAY et al., 2012, p. 47), onde diz que a escola não é só reprodutora da violência que permeia a sociedade, mas também produz formas próprias de violência, e o grito aqui é citado como um tipo de micro violência usada pelos docentes, porém, não há um maior aprofundamento, bem como não cita o grito como algo que parte tanto de discentes quanto docentes. O que podemos aprender aqui é que as violências no âmbito escolar dificultam a missão da escola, no caso, a aprendizagem dos alunos. Na obra de Zagury (2010), que é destinada principalmente aos pais, fica marcado que a educação, antigamente, usava a violência física (palmatória), e um autoritarismo exacerbado. Tal cenário se modificou em partes hoje, onde os filhos conseguem dialogar melhor sobre seus quereres, e a reprimenda física é desencorajada. Em seu escrito a autora mostra que houve uma geração super repreendida, e que almejou, nos anos de 1990, a educação que não receberam, mais 18 dialogada, afetuosa, sem reprimendas, mas, percebe a autora que isso fracassou, pois, não houve meio termo entre autoridade e permissividade. A obra de Zagury (2010) defende um equilíbrio entre um grau de permissividade e um grau de autoridade/limites para a vida do jovem. O gritar (que, na obra, parece ser mais recorrente até os 4 anos) é enfocado no sentido de “quando se fala aquilo que não é dar limites”. Aqui ela explicita que existe um limite entre ser autoridade e ser autoritário: a autoridade é um agir querendo bem aos filhos, ainda que tenha de ter uma postura mais dura e impositiva em alguns momentos. A chamada socialização primária é explicitada pela autora quando cita exemplos do como os pais educam a criança, onde situações de conflito são resolvidas pela postura de autoridade, e exemplifica quando não ocorre tal quando a criança grita, chora, joga coisas ao chão para conseguir aquilo que quer. É parte da socialização primaria, pois o comportamento dos pais com autoridade será internalizado e, depois, confrontado com a sociedade, e, a ausência desta postura de autoridade, traz problemas nesse aspecto. Aqui ela cita que não cabe o imediatismo, e que, durante a educação dos filhos, as situações têm de se repetir várias vezes para que a criança aprenda. Internalizar as regras é mostrar à criança que vive em um mundo que não é centrado nela, e, isso é necessário. A criança sem limites vive egocêntrica, com uma visão destorcida da realidade. Aqui a autora aponta que, quando a criança (na primeira infância) tem comportamentos que são opostos às condutas desejadas, os pais devem agir de forma firme para lhes impor limites e isso ser internalizado. Com relação ao grito, a autora explicita que se deve sempre se dirigir à criança com a voz firme, porém, sem gritar; voz firme e demonstrando autoridade, indo direto à mensagem, sem grandes sermões (ZAGURY, 2010). Santos (2019), por sua vez, é uma psicanalista que tem uma atuação voltada à educação parental (isto é, ensinar os pais à como lidar com os filhos) e educação não violenta. Tomei contato com sua obra graças a uma professora de inglês que chamarei aqui de W., o qual conversei sobre o grito na escola, e, com isso, pude ler seus dois livros, o “Educação não violenta: como estimular autoestima, autonomia, autodisciplina, resiliência em você e nas crianças” (publicado no ano de 2019) e o “Por que gritamos: como fazer as pazes consigo e educar filhos emocionalmente saudáveis” (publicado no ano de 2020). Em sua primeira obra, a autora busca orientar os pais o como ter uma educação não violenta com os filhos, e ai o grito acaba por entrar como um indício de comportamentos paternos 19 que, durante a relação dos pais com os filhos, é um sintoma de uma educação violenta, que está calcado no imediatismo que os adultos esperam das crianças em obedecer suas demandas, o que reflete as relações de poder, no caso, que o adulto tem um poder desigual com relação às crianças. Também há o apontamento da autora de que, na educação, há a normalização da violência com as crianças, seja com as gerações passadas, onde o bater era visto como algo comum, seja com gerações atuais, que, além de bater, acabam por gritar com os filhos (SANTOS, 2019). Nesse sentido, Santos (2019) aponta que o que falta nos pais é inteligência emocional para conseguir entender as demandas dos filhos, para conseguir se colocar no lugar deles (exercício de empatia), e, tal é resultado (segundo a autora) da ênfase na educação com relação ao raciocínio matemático, na supremacia parental sobre as crianças, o que não ajuda a desenvolver tal capacidade (inteligência emocional). Já em sua segunda obra Santos (2020) pensa a educação familiar, no sentido de como os pais educam seus filhos para com os sentimentos, pontuando que nossa sociedade não valoriza os sentimentos, ao contrário, os reprime, e, daí, quando o adulto está estressado, não consegue lidar com eles, irrompendo no autoritarismo com as crianças, que acabam por internalizar esse ciclo. Esta abordagem da autora é interessante para pesquisas futuras em psicologia e educação, e dá pistas do como o grito e o autoritarismo do adulto para com a criança está relacionado com a falta de habilidade em um campo da inteligência, no caso, a emocional. Oliveira e Correa (2010) são psicólogas que pensam por uma vertente behaviorista, citando o fenômeno do grito dos professores como um comportamento não funcional. Seus escritos são fruto de observações em sala de aula em Betim-MG, e há o entendimento de que tais comportamentos perduram (mesmo se mostrando não-funcionais), pois, quando os docentes gritam, por um curto espaço de tempo eles tem atenção, e isso desencadeia um tipo de reforço positivo à este comportamento. Tais pesquisadoras também sugerem que o grito está arraigado na memória destes docentes, visto que já presenciaram o grito ter efeito na sua formação inicial e que agora o usam como recurso, ainda que ineficiente. Ribeiro (2008), em seu trabalho de conclusão do curso de Pedagogia na UFF, busca identificar quais discursos são produzidos a respeito das possíveis causas da indisciplina nas salas de aula das séries iniciais do ensino fundamental. Para tal, a autora se valeu de entrevistas com professores e alunos de escolas públicas e particulares para saber a causas, fatores e estratégias 20 que se valem para lidar com a indisciplina. No caso, foram 4 professoras e 4 alunos entrevistados (entrevista com um roteiro), e, cabe destacar que tal pesquisa se passa nas cidades de Niterói e São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro. Logo no primeiro capítulo, a autora fala sobre a sociedade que pais, crianças e professores vivem é violenta, e, violência e indisciplina estão presentes, cotidianamente, na escola. Diz Ribeiro (2008), entre as páginas 21 e 22, que em muitas escolas há um modelo que confunde autoridade e autoritarismo, onde imperam regras para que os alunos participem e se manifestem o mínimo possível. Há uma pressão cotidiana de repressões para normatizar os alunos a comportamentos padronizados, e, uma parte destes se revoltam e acabam por eclodir dai, segundo a autora, a violência e a indisciplina. O gritar em seus escritos aparece a partir da página 47, onde se aborda a fala das professoras, em que estas falam que os alunos trazem estes hábitos violentos de casa. Porém, ao olhar as outras páginas, vemos que o declarado pelas professoras entrevistadas não se sustenta, pois, na página 48 há uma citação da matéria da revista Nova Escola, que ensina a lidar com a “bagunça”, declarando que não se deve gritar, mas, esperar em silêncio (entendo que nem sempre seja possível). Nas páginas 51, 53 e 67 o grito aparece nos relatos de comportamentos dos alunos descritos pelas docentes e, na página 73, o grito é explicitado por um discente, que, durante o recreio, os alunos brigam e gritam. Deste TCC é interessante de se notar que o grito é visto como algo que os discentes trazem de sua realidade escolar, e está associado à violência, indisciplina, e existe uma postura autoritária da escola para tentar repreender tais comportamentos, com castigos, ameaças, chantagens. Freitas e Vieira (2017), por sua vez, trazem um relato de observação de estágio probatório básico para obter o título de licenciatura, apresentado num evento acadêmico, e pensam o grito por um viés sociológico e cultural, enquadrando este como algo aprendido por docentes, discentes e até funcionários que não são docentes (citam as ideias de Oliveira e Correa, 2010), como algo que é violência escolar à escola e da escola (citam Charlot, que será enfocado em outros momentos deste texto), a antropóloga Ortner (2011), no caso, a definição de cultura: elementos que definem nosso comportamento. Há referência à Marx (2014), com a questão do estranhamento: estranhamento é quando o trabalhador não reconhece o produto de seu próprio trabalho, e aqui é o reconhecer no sentido subjetivo, no caso, uma atividade estranhada é aquela em que o trabalhador não tem crescimento 21 humano, mas, sim, esvaziamento. Isto é importante pois, para Marx (2014), o trabalho é algo que cria o humano. Seguindo nesta linha de raciocínio, tanto aluno quanto docente são trabalhadores intelectuais, e o estranhamento, para o aluno, é quando ele não reconhece seu trabalho intelectual como algo que o faz crescer humanamente na escola, e, no caso do professor, quando este não consegue reconhecer isto na prática do aluno, que acaba por resistir à suas aulas com indisciplina. Ambos, professor e aluno, irão resistir, o que levará ao grito entre tais sujeitos às violências descritas por Charlot (2002). 1.1.3 O que podemos evidenciar dos escritos da revisão bibliográfica Destes escritos, podemos apontar alguns pontos chaves dos escritos sobre o tema, no caso: o grito como algo que é tido como uma violência desencadeada pelo professor ao aluno num primeiro momento para o controle da sala e violência simbólica (RIBEIRO, 2008; FAGUNDES, 2009; CASSONE, 2017; GURGEL, 2018). O grito também pode ser concebido como algo arraigado nas memórias dos professores e usado como recurso didático (OLIVEIRA; CORREA, 2010), como uma possibilidade dialógica do adulto gritar com as crianças/ jovens e estes começarem a usar o grito também (BORTOLIN, 2010); e como um tipo de violência (BORTOLIN, 2010; ORNELLAS, 2012). O grito pode ser compreendido também como um fenômeno que mostra o estranhamento da prática discente e docente – o que leva a resistências e violência escolar (RIBEIRO, 2008; FREITAS; VIEIRA, 2017) e como algo que atrapalha a aprendizagem (ABRAMOVAY et al., 2012). Para além desses pressupostos é importante ressaltar que o grito caracteriza-se também como algo que adoece docentes. Nesse sentido apontam Zambon e Behalu (2009); APEOESP (2012); Karman; Lancman (2013), e Carvalho; Porto (2008); sobre o fato dos docentes não se perceberem como profissionais da voz, e estarem mais sujeitos à problemas fonoaudiológicos, o que os leva ao adoecimento quando gritam e tentam controlar a sala/ alunos; que aumentam as possibilidades de disfonia e maus hábitos vocais em alunos (CAMARGO-GOMES et al., 2016; PENTEADO et al., 2007). 22 Cabe ainda apontar as ideias de Dornelas et al. (2017), que buscam ver (por meio de pesquisa quantitativa) se há relação entre violência simbólica (se valem das ideias de Pierre Bourdieu) e distúrbio vocal, porém, mesmo fazendo tal, não conseguem enxergar, de forma direta, uma relação entre violência simbólica e distúrbios da voz, bem como de Santos (2019, 2020) com relação à educação familiar e o grito com as crianças serem falta de habilidades em comunicação e do lidar com os sentimentos. Tentando organizar melhor, temos os seguintes pontos possíveis a se investigar: Quadro 1 – Desdobramentos a serem investigados Desdobramentos para investigar: Autores: 1- o grito como violência escolar exercida em busca de um controle dos alunos. Andrea Cassone, 2017. Ornellas, 2012. Bortolin, 2010. Freitas e Vieira, 2017. Fagundes, 2009. Ribeiro, 2008. Abramovay et al., 2012. Zagury, 2010. Elisama Santos, 2019 e 2022. 2- o grito como algo que atrapalha a aprendizagem e é fruto de estranhamento do trabalho discente e docente. Abramovay et al., 2012. Freitas e Vieira, 2017. 3- o grito como algo aprendido e arraigado na cultura escolar e memórias docentes. Oliveira e Correa, 2010. Bortolin, 2010. 4- o grito como algo que adoece e aumentam as chances de adoecimento nos aparelhos fonoaudiológicos, tanto em docentes quanto discentes Zambon, Behalu e APEOESP, 2012. Camargo-Gomes, Lima, Silva e Lucena. 2016. Penteado et al, 2007. Carvalho e Porto, 2008. Fonte: Elaborado pelo autor Portanto, estamos aqui com um fenômeno que é multidisciplinar, permeando ciências humanas e ciências da saúde, porém, o foco desta pesquisa é as ciências humanas, mais especificamente, a sociologia da educação. Dos escritos de ciências humanas, podemos refletir uma concentração maior na área da pedagogia. Ainda como uma forma de tentar melhor organizar as publicações das ciências humanas sobre o grito, podemos listar por área, ainda que de maneira simplória: Quadro 2- Publicações por área Área: Autores: 23 4 produções em pedagogia. Andrea Cassone, 2017. Gurgel, 2018. Ribeiro, 2008, Abramovay et al., 2012. 2 publicações em filosofia. Zagury, 2010. Fagundes, 2009. 4 publicações em psicologia. Oliveira e Correa, 2010. Ornellas, 2012. Elisama Santos (2019, 2020) 1 publicação de estilo jornalístico. Bortolin, 2010. 1 publicação em sociologia. Freitas e Vieira, 2017. Fonte: Elaborado pelo autor Como sou um pesquisador das ciências sociais, entendo ser mais coerente abordar o grito de forma mais atenciosa com o foco de: 1) violência escolar, 2) cultura escolar e 3) possivelmente prejudicial à aprendizagem. No entanto, os escritos de ciências da saúde embasam essa pesquisa por mostrar que há uma possibilidade de que estes fenômenos que são tratados pelas ciências humanas possam afetar/influenciar tais na área da saúde. Se o grito é violência escolar, qual o tipo em que se enquadra? Charlot (2002), baseado nas ideias de Bourdieu (2001) e Elias (1994), faz uma tipologia dos tipos de violência, onde há 3 formas diretas (violência na escola, da escola e para com a escola) e as chamadas incivilidades (torções da regra, não quebra, mas ainda sim, há um afetar negativo nos outros), logo, o aprofundamento nas ideias de Elias (1994) sobre incivilidade e civilidade, bem como nas de Bourdieu e Champagne (2001) sobre violência se fazem necessárias. O grito pode ser tipificado, numa primeira leitura, em violência da escola e para a escola, pois os docentes praticam a violência contra os alunos e estes gritam também com os professores e demais funcionários. Enfim, o fenômeno pode se enraizar e ter várias formas/tipos dentro da mesma realidade, e aí se fez necessária a pesquisa mais aprofundada, com a pesquisa de campo. Para esta pesquisa, cabe, portanto, aprofundar nos escritos de Bourdieu; Champagne (2001) e Elias (1994), bem como de Charlot (2002), para ver se o grito enquanto violência escolar pode ser melhor entendido por seus esforços teóricos. Refletindo sobre as ideias de Bortolin (2010) e Oliveira; Correa (2010) de que o grito tem raiz nas formas que os jovens foram educados no processo de escolarização, bem como que os professores de hoje trazem e manifestam lembranças do seu processo de escolarização e formação docente, cabe pensar tal pesquisa de um ponto de visto histórico cultural, no sentido de como a prática do grito se desenvolve na escola com seus agentes e público. Burke (2005) nos diz que há diversas correntes de história cultural, e nelas há interpretação de formas de pensar, de agir, do representar, das ideias, e aqui é válido apontar que 24 tal área (história cultural) é multidisciplinar, tendo contribuições de diversas áreas do saber como Antropologia, Sociologia, Psicologia, logo, pesquisar seguindo tal área do saber nos oferta grandes possibilidades com relação a compreender e interpretar as informações deste público, sendo assim, seguiremos por um subcampo da história cultural, no caso, história das práticas culturais (JÚLIA, 2001), afinal, o grito é um tipo de prática dentro do contexto escolar, que tem poucos registros diretos sobre o fenômeno. Também há as ideias de Chartier (2002) com relação à história cultural, no caso, esta deve identificar como, em um determinado local e momento histórico uma realidade é construída e dada a ler (entendo que este dado a ler seja interpretada). Chartier (2002) cita Émile Durkheim ao pensar que o caráter multidisciplinar da disciplina história cultural, quando fala que a sociologia fornece o elemento de análise/ utensilagem mental que a história cultural necessitava, o que ele chama de representações coletivas, que, diz ele, serem os esquemas e categorias incorporados nos sujeitos, algo que lembra muito o chamado fato social, o objeto da sociologia, no caso, algo imaterial, que vive nas consciências coletivas, mas que não depende dos sujeitos para sobreviver, e sim, do todo (DURKHEIM, 2005), logo, a história cultural se aproxima dos fatos sociais/ esquemas mentais incorporados. De toda forma, parece saudável manter um diálogo entre uma perspectiva histórica, cultural e hermenêutica (pois buscamos interpretar as culturas escolares em que o grito ocorre), história das práticas culturais (pois gritar é uma prática escolar, como postulado anteriormente), aceitando o postulado de Chartier (2002) quanto ao uso destas para representar os esquemas e categorias incorporadas. Há ainda o fator do jovem assumir o grito para si no ambiente escolar, fazendo aqui uma dialogia que suspeito ocorrer - onde me baseio nas ideias de Bortolin (2010) - logo, cabe pensar o grito como algo significado pelo jovem e por todos aqueles que vivem dentro do ambiente escolar. Geertz (1978) entende que a função do pesquisador é estudar as culturas, definida por ele como um conjunto de teias semióticas o qual o ser humano teceu e se prendeu. A definição de teia semiótica, segundo Geertz (1978), é baseada nas ideias de Max Weber, no caso, entende-se por teia semiótica os significados sociais entrelaçados, ligados a outros significados. Nesse contexto, Geertz (1978) propõe uma ideia de cultura acessível de forma interpretativa e compreensiva, e entendo que tal se liga com a questão do grito, pois ele contém 25 uma gama de significados que estão ligados a uma teia semiótica, no caso, a cultura que perpassa a escola. A pesquisa, assim, buscará, também, representações sobre os gritos na cultura escolar, afinal, como Geertz (1978) mesmo ressalta, só o indivíduo inserido e pertencente à cultura vive o fenômeno dela em primeira mão, enquanto que o pesquisador, com os dados obtidos por diversas vias (incluso o depoimento dos participantes, no caso aqui, estudantes e professores), tece uma interpretação a partir de uma descrição densa, que é o texto final da pesquisa de campo, em que se busca os significantes numa estrutura social. Diante dos dados apresentados, algumas questões importantes têm de ser levantadas, que serão abordadas nos tópicos a seguir. 1- Como os professores de sociologia (e os próprios alunos) lidam com o fenômeno grito na sala de aula? Será que conseguem desnaturalizar e estranhar tal fenômeno? Os docentes de sociologia elaboram estratégias para superar/ desnaturalizar tal fenômeno? Estes questionamentos são importantes, pois, uma das missões da sociologia na escola, segundo as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCN – Sociologia) é a desnaturalização dos fenômenos sociais. Tais questionamentos também se alinham com os objetivos do PROFSOCIO, no caso, pensar sobre o ensino de sociologia, e aqui abordamos o como os docentes de sociologia lidam com um fenômeno (o grito) durante sua prática docente. Também cabe destacar que nossa hipótese, em virtude do baixíssimo número de publicações (bem como as vivências do pesquisador), é de que os docentes de sociologia não fazem a desnaturalização deste fenômeno, mesmo quando passam pelos conteúdos sobre violência presentes no currículo. 2- Como o grito se mantém na cultura escolar? Será que o grito de fato é mantido como algo dialógico, tal como suspeito - baseado nas ideias de Bortolin (2011) - e é reforçado como comportamento como Oliveira e Correa (2010) indicam em seu texto? Aqui nosso questionamento visa a pensar o fenômeno de forma mais antropológica, e o uso de uma abordagem hermenêutica se torna interessante, tal como já citado anteriormente na página 8, no caso, buscar representações que os docentes, discentes e demais funcionários da escola tecem sobre o grito na cultura escolar, afinal, tais significações podem embasar possíveis ações ou estratégias para se lidar com o fenômeno. Aqui cabe a pesquisa histórica, tanto com discentes, docentes de sociologia, e, ainda, discentes de outras áreas, principalmente os mais velhos, para entender como o grito é significado dentro da cultura escolar. 26 3- A Sociologia, segundo o currículo estadual paulista, tem de abordar questões como tipos de violência na sociedade (inclusive escolar). Será que os docentes, ao lecionarem sobre tais conteúdos, conseguem enxergar uma possibilidade de ação em desnaturalizar um fenômeno do cotidiano escolar usando os conteúdos da sociologia? Neste questionamento, cabe pensar no que Freitas e Vieira (2017) falam sobre o estranhamento em sala de aula e a violência escolar. Portanto, esta pesquisa visa compreender o grito como um fenômeno da cultura escolar sob um ponto de vista, primeiramente, da docência de sociologia, do como os discentes e docentes percebem, significam e agem, frente ao fenômeno, visto a sociologia ter como objetivo desnaturalizar e estranhar os fenômenos, bem como abordar a temática violência. Em segundo lugar, entender como os alunos agem e significam tal fenômeno. Em terceiro lugar, como os demais profissionais que atuam na escola significam, percebem e lidam com o grito, para compor um quadro do como este fenômeno está perante a cultura escolar. Entendo haver relevância, visto a busca de compreensão em como tal fenômeno se desenvolve e se mantêm na realidade escolar pode fornecer subsídios para outros tipos de práticas escolares, pois, na revisão feita para este trabalho percebe-se que para docentes e discentes o grito é visto como algo naturalizado, logo, um possível fruto é a desnaturalização de tal comportamento. No entanto, não há uma grande produção de saber sobre tal, mesmo da parte da sociologia, logo, se carece de maior reflexão sobre, inclusive para apoiar dinâmicas e estratégias em sala de aula. Portanto, entendo que para esta pesquisa a opção da abordagem qualitativa, com a realização observação participante para a coleta de dados do campo, para, em seguida, haver melhor interpretação, à luz dos referenciais teóricos da sociologia da educação, seja a mais interessante. 1.2 Justificativa e objetivos Entendo que esta pesquisa se justifica por buscar: 1) analisar como discentes e docentes de sociologia lidam com o grito em sala de aula, tanto por um ponto de vista escolar quanto por um ponto de vista da sociologia e sua docência; 2) compreender como o grito é significado pelos discentes e docentes como parte da cultura escolar (NÓVOA, 1999; JULIA, 2001; FREITAS; VIEIRA, 2017), que parece ser um fator e adoecimento docente (ZAMBON; BEHALU, 2009; 27 APEOESP, 2012) e como este se mantém na realidade escolar; 3) e que aparenta estar muito naturalizado dentro do ambiente escolar atual, o que leva a pensar um abordagem para ver tanto a questão da violência escolar, quanto como este pode ser analisado pela sociologia, pensando nos conteúdos abordados com relação à violência. Há relevância, pois a compreensão de como tal fenômeno se desenvolve e se mantêm na realidade escolar pode fornecer subsídios para outros tipos de práticas escolares, pois, na revisão feita para este projeto percebe-se que para docentes e discentes o grito é visto como algo naturalizado, logo, um possível fruto é a desnaturalização de tal comportamento. No entanto, não há uma grande produção de saber sobre tal, mesmo da parte da sociologia, logo, se carece de maior reflexão sobre, inclusive para apoiar dinâmicas e estratégias em sala de aula. Justifica-se uma abordagem por um ponto de vista da cultura escolar em virtude da escola ser local que faz parte da cultura de uma sociedade, porém, que figura também como um espaço de criação de práticas, saberes, significações e ações (JULIA, 2001), portanto, tem uma cultura própria, algo que entendemos ser uma cultura escolar, e entendemos que o grito faz parte da cultura escolar, logo, as ações de como lidar com o grito (desnaturalizando ou não) perpassam tal temática. Martins (1998) cita o senso comum como objeto de investigação para a sociologia, em um movimento de renovação e descoberta da fenomenologia pela sociologia, abrindo novos campos de investigação para a sociologia contemporânea, algo que se aproxima fortemente de nosso objeto de pesquisa, visto que o grito é manutenido, criado, replicado e aplicado no cotidiano escolar. Martins (1998) pensa o senso comum não como algo banal ou exterior ao sujeito, mas, como conhecimento compartilhado entre os seres que estão em uma dada relação social, onde o significado é partilhado e, sem o significado, não há interação social, portanto, quando aplicamos nosso objeto (o grito em sala de aula), tanto docentes quanto discentes partilham da vivência, do fenômeno, do conhecimento daquele momento, logo, isso se encaixa com nossa perspectiva de investigar as significações que tal público (docentes, discentes, funcionários) fazem do grito em sala de aula, e, como tal é significado e partilhado. Tal autor diz que o significado não precisa preceder o fenômeno, e, a significação é negociada entre os que estão imersos no fenômeno. Diz ainda o autor que o fenômeno de trocas de significações é rápida, num vai e vem de imaginação e reinterpretação, o que conflui também com a linha aqui adotada de uma investigação hermenêutica, afinal, como este fenômeno se 28 mantém em sala de aula, sendo significado, ressignificado, negociado, entre todas as partes do público escolar? (MARTINS, 1998). Martins (1998) cita também as ideias da etnometodologia, onde citam que, em experimentos, os fenômenos não são meramente copiados, mas, ressignificados, e, aqui podemos os por à prova, visto nossa investigação aqui também se debruçar por um aspecto histórico, que é da história de vida dos docentes e seus contatos com o grito. Apesar de aqui estarmos focados num elemento específico (o grito em sala de aula), ele se dá no cotidiano escolar, logo, podemos adotar para tais ideias para serem testadas neste trabalho, bem como justificar a abordagem o qual pretendemos, embasados nas ideias de Julia (2001) com relação às investigações da cultura da prática escolar e seu cotidiano. Relativo aos objetivos desta pesquisa, estes são, de forma geral: *Compreender, à luz da sociologia da educação, como os docentes e discentes de sociologia lidam com o grito na escola, tanto como um aspecto da cultura escolar como de violência escolar. De forma específica, os objetivos da pesquisa são: * Compreender como docentes de sociologia e discentes lidam com esse fenômeno em sala de aula, se há algum tipo de tentativa de desnaturalização ou olhar da sociologia em sala de aula para o fenômeno; * Analisar, com o método de pesquisa participativa (de abordagem etnográfica), como o grito ocorre e é significado na realidade escolar atual; * Analisar representações de educadores de diferentes disciplinas sobre o grito em sala de aula como violência escolar. 1.3 Metodologia Para esta pesquisa, foi usada a metodologia de pesquisa qualitativa, mais especificamente, a pesquisa participativa, de abordagem do tipo etnográfica. Segundo André (2012), a pesquisa de abordagem etnográfica remonta ao século XIX, quando os primeiros autores das ciências sociais questionam os métodos das ciências naturais para o estudo de fenômenos humanos. Se baseando nas ideias de Dilthey4, a autora afirma que, nessa abordagem é 4 Foi um filósofo hermenêutico, psicólogo, historiador, sociólogo e pedagogo alemão. Dilthey lecionou filosofia na Universidade de Berlim. Considerado um empirista, o que contrastava com o idealismo dominante na Alemanha https://pt.wikipedia.org/wiki/Idealismo https://pt.wikipedia.org/wiki/Empirismo https://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_Berlim https://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedagogo https://pt.wikipedia.org/wiki/Soci%C3%B3logo https://pt.wikipedia.org/wiki/Historiador https://pt.wikipedia.org/wiki/Psic%C3%B3logo https://pt.wikipedia.org/wiki/Hermen%C3%AAutica https://pt.wikipedia.org/wiki/Fil%C3%B3sofo 29 priorizado o entendimento do fenômeno, do seu funcionamento dentro do contexto onde ele está inserido, a sua compreensão, declarando a autora que tal corrente segue uma abordagem hermenêutica para interpretar significados. Também de acordo com André (2012), tal abordagem tem origem na fenomenologia, que tem diversas ramificações, porém, um dos pontos que podemos entender ser central é o foco nos aspectos subjetivos do comportamento, ou seja, é necessário, ao pesquisador que adere a esta abordagem, adentrar ao universo conceitual dos sujeitos, nos sentidos que dão aos acontecimentos de suas vidas diárias. É importante destacar que a pesquisa participativa de abordagem etnográfica é diferente da etnografia, segundo conta André (2012) e Ludke e André (2013), pois, na antropologia, a etnografia visa descrever uma cultura, e, nesta, o pesquisador se insere por um longo tempo, enquanto que, na pesquisa de abordagem antropológica, há um foco diferente, que é buscar descrever os sentidos de um fenômeno que está na educação, porém, entendendo que este está permeado de múltiplas perspectivas, tendo em comum, com a etnografia, a busca por interpretar os sentidos estabelecidos por aqueles que vivem o fenômeno dentro daquele contexto o qual vivem e ocorre o fato. Ou seja, se busca, em ambas as abordagens, entender como se dá e significa o fenômeno e seu processo, se aproximando/ valendo de uma hermenêutica. Importante também destacar que, nesse tipo de pesquisa, se considera que o fenômeno ocorre permeado por uma multiplicidade de sentidos, e, tal se dá por fazerem parte de um universo cultural maior. Também cabe destacar que os dados são sempre considerados inacabados, pois, o que o autor busca é descrever e compreender a situação que o fenômeno ocorre. A pesquisa de abordagem etnográfica é usada, segundo conta André (2012) para documentar o que não é documentado, ou seja, descrevendo significados, mecanismos, modos de organização e sentidos que os sujeitos dão no contexto que estão inseridos, e isso é possível, pois o pesquisador está em contato direto com o público estudado (no meu caso, professores de sociologia e alunos da rede pública, bem como demais pessoas/ profissionais das escolas); o que permite descrever os processos e as relações presentes no cotidiano escolar, buscando, com isso, analisar tal, apontando contradições, sentidos, e, para isso, é importante um referencial teórico da em sua época, mas sua concepção do empirismo e da experiência difere da concepção britânica de empirismo (fonte: WIKIPÉDIA. Enciclopédia eletrônica. Wilhelm Christian Ludwig Dilthey. 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Wilhelm_Dilthey). https://pt.wikipedia.org/wiki/Experi%C3%AAncia_(filosofia) 30 sociologia da educação, que aqui se dá, principalmente, com as ideias de Charlot (2002) e Elias (1994), pois o primeiro busca evidenciar como a sociologia francesa pensa a violência escolar, mostrando assim uma categorização desta, que é baseada em partes nas ideias de Elias (1994) sobre civilidade e incivilidade. Ainda sobre a abordagem etnográfica, convém destacar a proximidade desta com a hermenêutica proposta por Geertz (1978) em seu clássico “A Interpretação das Culturas” onde este entende que a função do pesquisador (na antropologia) é estudar as culturas, definida por ele como um conjunto de teias semióticas o qual o ser humano teceu e se prendeu. Geertz (1978) propõe uma ideia de cultura acessível de forma interpretativa e compreensiva pelo pesquisador, e entendo que tal se liga com a questão do grito, pois tal contém uma gama de significados que estão ligados a uma teia semiótica, no caso, a cultura que perpassa a escola. Só o indivíduo inserido e pertencente à cultura vive o fenômeno dela em primeira mão, enquanto que o pesquisador, com os dados obtidos por diversas vias (incluso o depoimento dos participantes), tece uma interpretação a partir de uma descrição densa, que é o texto final da pesquisa de campo, onde se faz um grande detalhamento do fenômeno e participantes, buscando os significantes numa estrutura social. Ludke e André (2013) definem que a pesquisa de abordagem etnográfica tem o ambiente natural (a escola) como fonte direta de dados, e o pesquisador é o principal instrumento, pois este tem contato direto com a situação e ambiente investigado via trabalho de campo, que, nas pesquisas de educação, não raro, é o ambiente de trabalho do próprio pesquisador, tal como pontua as pesquisadoras. Nesta abordagem, se investiga o fenômeno sem intervir nele de forma intencional, colhendo dados mais “naturais” possíveis, logo, essa abordagem qualitativa, segundo as autoras, também é conhecida como “naturalística” (LUDKE; ANDRÉ, 2013). Portanto, aqui se pretende descrever e interpretar/ analisar o que foi observado dos sujeitos, no caso, os modos de agir, falar, vestimentas, tom de voz, palavras, diálogos (entre os próprios sujeitos e entre sujeitos e pesquisador), depoimentos, atividades e comportamentos cotidianos e o comportamento do próprio observador quando necessário. Dessa forma, nesta pesquisa, busca-se entender o grito como fenômeno que parece ser da cultura escolar, e aí se mostra interessante esta abordagem etnográfica com um viés hermenêutico. Porém, entendo ser importante declarar aqui que existe uma vasta quantidade de 31 abordagens sobre cultura nas ciências sociais que não a hermenêutica, tal como Cuche (2002) apresenta em sua obra, citando as principais linhas teóricas e abordagens durante a história das ciências sociais. Importa aqui destacar que a abordagem hermenêutica de Geertz (1978) faz parte da antropologia norte-americana, onde houve um desenvolvimento muito aprofundado e particularista de cultura, focando no quesito histórico. Cuche (2002) conta que Franz Boas (considerado o criador da antropologia cultural norte-americana) e seus seguidores dão ênfase a uma interpretação de como elementos culturais foram difundidos em regiões e populações diversas, podendo fazer um remontar histórico daquela cultura. Tal abordagem torna-se interessante, visto que estamos lidando com um fenômeno microscópico (o grito na escola paulista, mais especificamente, na região da diretoria de ensino de Marília), e, tal abre possibilidade de perguntar se “sempre foi assim”, se os professores também viam tais condições em suas formações de ensino fundamental e início da docência, podendo gerar até um panorama histórico sobre o tema. Por abordar um fenômeno microscópico, que pode ser encarado também historicamente, tendo a alinhar à antropologia cultural norte-americana, pois esta parece nos fornecer melhores ferramentas conceituais para a análise aqui proposta. Pesa, em favor desta abordagem, a questão de buscar um método sólido e empírico (observação participante) sobre a análise de uma determinada cultura, não tentando fazer um esquema universal, o que, convenhamos, não é o proposto aqui nesta pesquisa. Entendo que a hermenêutica proposta por Geertz (1978) seja mais apropriada para este tipo de pesquisa, pois, nesta não se pretende fazer interferências diretas em sala de aula, mas, seguir uma linha compreensiva/ naturalística, onde a discrição dos fenômenos da cultura escolar e interpretação destes é interessante, visto estarmos analisando uma cultura dentro de algo maior (a escola, instituição de uma dada sociedade), que é permeada por outras culturas (de imigrantes, da zona rural, dos jovens, etc.), o que conflui bem para o estilo da antropologia norte americana. Outro fator importante para tal pesquisa, que leva a escolha da hermenêutica proposta por Geertz (1978), é da possibilidade de análises futuras com teorias da prática, tal como as propostas por Marshall Sallins (1997) e Ortner (2011), porém, entendo que o fenômeno tem de ser densamente descrito e interpretado para, depois, se pensar questões relacionadas ao poder. 32 Justifico, ainda, a escolha da abordagem etnográfica com um viés hermenêutico por entender que tal abre espaço para interpretações e apreensões históricas (ao se recorrer à história de vida dos entrevistados), logo, abre possibilidades para a história da cultura e práticas escolares, proposta por Julia (2001), onde o retrato da história de uma prática escolar pode servir para entender melhor como tais práticas se ligam à inúmeros fatores que permeiam a escola em determinadas épocas. Segundo Nóvoa (1999) e Oliveira (2003), a escola é um local que faz parte da cultura de uma sociedade e que segue normas impostas pelas diversas esferas governamentais, mas, ainda assim, se configura também como um espaço onde se cria ideias, significações e sentidos próprios, local onde normas definem condutas e práticas para a transmissão do conhecimento que podem variar com a época e finalidades (JULIA, 2001), portanto, tem uma cultura própria, algo que entendemos ser uma cultura escolar, que não pode ser analisada sem levar em conta seus agentes; sejam os profissionais, sejam os discentes, e todos estes atores tem discursos, falas, depoimentos que podem ser interpretados de forma histórica, ainda que seja uma história que está dentro de uma extremamente importante instituição (a escola) para a nossa sociedade. Por fim, é importante explicar aqui que, durante a pesquisa participativa de abordagem do tipo etnográfica, fiz uso de diário de campo, que é, segundo explica Neves (2006), um instrumento onde se anota de forma minuciosa os ocorridos em campo, impressões subjetivas, as vivências e mesmo observações teóricas para, no momento posterior (análise dos dados) já ter adiantado e apontado caminhos para interpretar. Aqui cabe declarar que não anotei estes dados no momento exato do fenômeno, visto que tal poderia gerar interferências ou mesmo constranger e gerar conflitos. No entanto, mesmo sem anotar no diário na frente dos sujeitos e fenômeno, as anotações foram feitas na escola, durante meu ofício, em momentos que pude parar e escrever em meu computador notebook, onde pude passar despercebido em anotar minhas percepções em diversos arquivos, organizados por escolas e dias, sem criar constrangimentos desnecessários, sendo feito backups destes em e-mail pessoal para evitar perdas de dados. 1.4. Considerações sobre o cenário atual da escola paulista Esta pesquisa se dá durante os anos de 2021 e 2023, onde está sendo implementado, no estado de São Paulo, o chamado Novo Ensino Médio, que foi aprovada em 2017 e vem sendo 33 implantado desde 2019 na rede pública do estado de São Paulo; primeiro, por comunicados e cursos online promovidos pela SEDUC -SP (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) via EFAPE (Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Estado de São Paulo), e, em 2021, com a mudança da matriz curricular, sendo afetado o 1º ano do Ensino Médio, para que, nos anos posteriores (2022, 2023), o 2º e 3º ano do Ensino Médio sofram as modificações completas na grade. Tais mudanças são embasadas pela chamada Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, aprovada em 2018 na gestão do presidente Michel Temer que sucedeu o golpe de 2016, porém, enviada via Medida Provisória pelo então presidente, excluindo a sociedade, os educadores e entidades do debate, o que gerou protestos de diversos sindicatos e associações de professores, tal como Apeoesp (NORONHA, 2016), que destacam que tal medida visa aumentar o número de horas do Ensino Médio (de 800 para 1400), porém, com a redução do número de horas das disciplinas antes obrigatórias, ficando obrigatórias somente Português, Matemática e Inglês. Em contrapartida, oferta-se disciplinas alternativas, no caso: projeto de vida, eletivas, tecnologia e os chamados itinerários formativos, que, com sorte, o docente formado na licenciatura de ciências sociais consegue atribuir (ou pega os restos?) para completar sua carga de trabalho. Durante o primeiro ano do Ensino Médio, as disciplinas clássicas ficam mantidas (não sem reduções de carga horária, em que as aulas diminuíram para 45 minutos com o objetivo de encaixar as novas disciplinas na grade), para, no segundo ano, serem reduzidas em número de horas/ aula por semana, aumentando a oferta das ditas novas disciplinas, sendo que, no terceiro ano, somente Português, Matemática e Inglês ficam como obrigatórias. Filosofia, Sociologia, Arte, Educação Física, Física, Química, Biologia, História e Geografia não se tornam mais obrigatórias, com o intuito de flexibilizar o currículo (FERREIRA; SEMIS, 2017). Tais disciplinas podem, em tese, serem ofertadas nos chamados Itinerários Formativos, que são; segundo contam Ferreira e Semis (2017), aprofundamentos em que os alunos poderão escolher para realizarem durante o Ensino Médio, e são: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica Profissional, sendo que as escolas não são obrigadas a ofertar todos os itinerários, podendo escolher o itinerário a ser ofertado de acordo com a disponibilidade de profissionais e possibilidades da rede. 34 Segundo a SEDUC-SP (por meio do site novoensinomedio.educacao.sp.gov.br), os aprofundamentos se darão em unidades curriculares, que são blocos de 10 aulas semanais, sendo ofertados em semestre. Tais aprofundamentos serão: Áreas de Ciências Humanas e Linguagens – Cultura em movimento: diferentes formas de narrar a experiência humana; Áreas de Ciências Humanas e Ciências da Natureza – A cultura do solo: do campo à cidade; Áreas de Matemática e Ciências Humanas – Ciências Humanas, Arte, Matemática. #quem_divide_multiplica; Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – Superar desafios é de humanas. Diante de tal mudança do Ensino Médio, cabe aos docentes de ciências humanas repensarem suas práticas e conteúdo em sala de aula, no ato de lecionar, nas possibilidades frente ao currículo o qual é imposto. Neste sentido, tendemos a concordar com as ideias de Arroyo (2013), em que fala da disputa entre o currículo e a autoria docente, no caso de muitos (a mim incluso), e não meramente reprodutores de apostila e cartilhas, conectando a educação com as vivências e experiências dos discentes, não fazendo uma simples reprodução e educação bancária, mas, buscando uma forma de educação mais aberta, em que a rigidez do currículo seja contornada numa prática em que se abre o currículo para novos conhecimentos, novos significados, diálogos de conhecimentos (do docente, dos discentes, do conteúdo, das vivências/ experiências), enriquecendo a aula e garantindo o direito dos alunos a uma aula rica, com diversidade de leituras e significados. Logo, é necessário conhecer o currículo, as leis, as novas disciplinas para conseguir articular uma prática docente criativa (e/ ou conseguir atribuir disciplinas diversas e sobreviver), onde o docente é autor de seu fazer, com mais autonomia e maior formação. Há, ainda, a vantagem de, ao estudar as leis da educação, conseguirmos, segundo Arroyo (2013), visualizar e disputar um projeto de sociedade e questionar tal, sendo que, se preciso, podemos propor outras formas/ mundos mais justos e igualitários, mais humanos e menos segregadores. Afinal, como diz Arroyo (2013), é ético questionar as visões de mundo impostas no currículo (muitas vezes criados por “especialistas” que não são do chão da escola), buscando autonomia, autoimagem positiva e valorização dos saberes, culturas e linguagens diversas. Importante destacar que o antigo currículo estadual paulista (2011), apesar das críticas quanto à sensibilização sociológica, é bem escrito com relação às introduções de cada disciplina, sendo relativamente detalhista e, com relação aos conteúdos e habilidades, parecem abrir ao docente possibilidades de dialogar com outras disciplinas. 35 Com relação ao Currículo do Novo Ensino Médio (2020), é importante destacar que cada área recebeu pequenas introduções, menores e resumidas em relação ao currículo antecessor. Aqui se consideram as habilidades e competências que se quer desenvolver, bem como descreve os objetivos do conhecimento por cada disciplina, sendo que cada habilidade tem um código alfanumérico, o que dificultou as buscas e interpretação das informações, visto a falta de informações diretas por disciplina x conteúdo e habilidade x bimestre, tal como no anterior, ainda que as habilidades dialoguem entre disciplinas. Em vista de tantas mudanças, é previsível que os professores teriam de se formar, correto? Bom, a formação via ATPC aumenta em quantidade de horas, mas, fica centralizada às pautas da EFAPE, por meio do CMSP. É opinião comum, tanto nas direções quanto no corpo docente, que a formação pela EFAPE dificilmente contribui para tal formação, e não dialoga, na maior parte das vezes, com a realidade na qual o docente atua (afinal, se está se transmitindo a formação via internet, não tem como se ver as particularidades de cada escola). Cabe apontar, também, a avalanche de mudanças que ocorreram neste ultimo ano, sobretudo nos Atpcs das escolas, que, em um primeiro momento foram reduzidos, 45 minutos à cada 15 dias, o que tornou as discussões quase impossíveis, e, da parte dos professores coordenadores, uma verdadeira enxurrada de falas corridas para conseguir dar conta das demandas coletivas da escola, limando em boa parte as discussões dos docentes sobre tal realidade, e, após comunicado no meio de 2022, um aumento de carga horária dos Atpcs da escola, porém, ainda com discussões obrigatórias e online por meio de transmissões via Cmsp. Dentro desse cenário de mudanças, há muitas dúvidas e instabilidades, com professores que sentem dificuldades em acumular cargos, pois a carga mínima de aulas para aqueles que aderirem à nova carreira que o governo do estado de São Paulo implementou aos educadores, subiu de 19 para 25 aulas. Há dificuldades também em se adaptar às novas disciplinas, onde pude observar, em minha prática cotidiana, que os estudantes rejeitam estas, não compreendendo as propostas das eletivas (que muitas vezes são impostas aos estudantes pelas direções, causando não identificação), e; da parte dos docentes, dificuldade em se adequar (pois algumas destas, como projeto de vida e tecnologia, muitas vezes não fazem parte da formação acadêmica do docente, e, ao que parece, o curso da Efape para tais disciplinas parecem não ser suficientes para formar tal professor). 36 Também se faz importante explicar ao leitor como está organizada a categoria docente, visto que, no estado de São Paulo, existem diversas categorias para os organizar. Como explica o site PEBSP, as categorias docentes são: efetivos (categoria A, que foram contratados por concurso público, que é o caso deste pesquisador); categoria F (que ganharam estabilidade por ter aulas atribuídas em 02/06/07, data da LC 1.010/2007); categoria P (que ganharam estabilidade por atuarem desde a promulgação da Constituição de 1988); categoria S (docentes com vínculo entre 2007 e 2009, que ganham estabilidade pela lei LC 1.093/2009); e categoria L (docentes temporários, ou seja, sem aulas atribuídas. Esta forma de docente surge pós lei 1093/2009), e, por fim; categoria O (existem após a promulgação da lei LC 1.093/2009, ou seja, um docente contratado por um tempo que não excede três anos, para não ganhar estabilidade) (PEBSP.COM PORTAL DE EDUCAÇÃO, 2021). A existência da categoria O reflete um fato estranho na educação do estado, que é a existência de docentes que não são formados em suas áreas, ou seja, alguns dos professores de Sociologia não são sociólogos/ cientistas sociais, podendo atuar, como tal, quem tenha alguma graduação (que nem precisa ser licenciatura) e que, na sua grade, tenha disciplinas que sejam de Sociologia. Logo, podemos levantar as questões do como o grito é percebido e lidado por profissionais que atuam como professores de Sociologia, mas que não são cientistas sociais/ sociólogos, o que nos permite traçar uma diferenciação e categorização entre docentes efetivos, não efetivos, formados e não formados na área. CAPÍTULO 2 - PESQUISA DE CAMPO Pixote: Nutrido de revolta e ódio, sem Nestón Derrete com os olhos o freezer da Kibon 37 Renan Inquérito (2018, p.71). Para a pesquisa de campo foi adotado os procedimentos de pesquisa participativa (de abordagem etnográfica), visto que sou um docente, e a pesquisa versa sobre as realidades escolares a qual eu atuo. Para tal, inqueri funcionários, professores e alunos sobre o grito em sala de aula em diversos momentos, como nas estadas nas salas dos professores, em conversas informais, em momentos que estive junto dos discentes no pátio, durante o intervalo, o que me levou a obter dados qualitativos, que foram anotados em diário de campo, e, deste, se fez a leitura e interpretação daqueles que versam com a pesquisa. Claro que não irei transcrever tudo o que anotei, pois muitos dados poderiam revelar a identidade e as instituições, coisa que não se mostra prudente, logo, houve uma escolha mais adequada para este texto, no caso, trechos dos diários de campo, para serem interpretados à luz do arcabouço científico. 2.1 Breve descrição das escolas e seu público Esta pesquisa se deu em 5 escolas públicas da cidade de Marília-SP, as quais não serão identificadas, pois o caráter desta pesquisa não é denunciatório, e os dados foram gerados à partir do levantamento bibliográfico e das observações dentro da escola pública enquanto educador no ano de 2022. Houve, no entanto, a comunicação dos professores os quais foram abordados para pesquisa. Importante deixar declarado aqui que trabalhei e acompanhei os fenômenos analisados durante todo o ano de 2022, durante os momentos em que estive trabalhando em tais escolas. Sobre as escolas, todas são do tipo de ensino regular, pública, parte da rede estadual paulista, localizadas em zonas periféricas da cidade, contando com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental até o 3º ano do Ensino Médio, sendo que tal não é PEI, mas, sim, ensino regular. Duas escolas funcionam os três períodos (ensino matutino, diurno e noturno), e, as outras duas, somente no período da manhã e tarde. Na primeira escola (a qual chamarei de Escola A) abordada, há um corpo de aproximadamente 42 docentes, e situa-se em um terreno que tem mais da metade de um quarteirão, possuindo uma área maior que os prédios, significando que esta pode ser expandida. Nela não há computadores nas salas de aulas, mas, sim, as televisões LCD (os professores se quiserem usar os computadores, tem de pegar na sala de informática um notebook). Também 38 nota-se a falta de equipamentos para lazer durante o intervalo, algo que chama a atenção, visto ser visível, em outras escolas da rede, a presença de mesas de ping-pong ou mesmo jogos de amarelinha no chão. A sala de leitura é do lado da sala dos professores, e um ponto positivo é que ela é frequentada pelos alunos, e, ainda, uma sala de informática, que, infelizmente, não é organizada, contendo computadores de mesa (sendo muitos com defeito) e notebooks. Nesta escola há espaço para expandir o prédio futuramente, havendo, inclusive, projeto de horta, porém, tais espaços (gramados) não são usados de forma frequente. Relativo aos docentes, como já foi citado, existem um total de 42, sendo 8 docentes efetivos, o que demonstra um total de 34 docentes temporários, frutos, ao que tudo indica, de um concurso público, tal como os sindicatos vem denunciando há tempos. Relativo aos alunos da Escola A, estes se encontram em faixa etária que compreende de 11 a 18 anos. Há a presença, de alunos de periferias e mesmo favelas que ficam em torno das escarpas desta cidade (conhecidas como buracões), sendo que a maioria são jovens que gostam de funk carioca, animes (o que se identifica por camisetas onde ostentam tais produções, se destacando a obra Naruto), bandas de rock (com roupas negras e mesmo com camisetas de bandas como Slipknot), de Rap (usam calças cargo e camisetas mais larga), camisetas de futebol, e, ainda, há alguns poucos que se identificam com camisetas e tatuagens que são relacionadas ao crime, onde há ostentação de símbolos que remetem ao PCC, como o ying-yang, irmãos metralha, morte com foice, 1533, coroa e símbolo de cifrão. Infelizmente muitos dos docentes e profissionais da direção os encaram como problema, hora por conta dos estigmas que portam (as tatuagens, as roupas), hora pelo comportamento desafiante das regras, o que lembra muito as ideias já citadas neste texto sobre capital cultural de Bourdieu, onde o capital cultural diferente dos alunos acabam por gerar essa violência simbólica na ação dos professores da escola em excluí-los por ostentarem símbolos e comportamentos culturais diferentes daqueles que a escola busca e “ensina”, e aqui me refiro às gírias, aos modos de ser que remetem a uma malandragem inspirada no crime, além, claro, das próprias manifestações em alusão ao crime. Tais alusões/ ostentação aos símbolos do crime estão presentes, também, naquela que nomearei de Escola B, que tem um perfil parecido com a da escola A, contando com aproximadamente 38 professores, e, também funciona nos 3 períodos, porém, tem uma área um 39 pouco menor, com menos espaço para circulação e socialização. Suas salas são agrupadas em um longo corredor, o pátio é menor também que da Escola A. Há diferença, no entanto, na presença de computadores em sala de aula, bem como um espaço de laboratório mais acessível e organizado, como também sala de leitura mais arrumada. Nesta escola também há mais abertura da coordenação pedagógica e da direção na execução de projetos, algo que se repete nas Escola C e D. Também há, na escola B, duas docentes como docentes do Projeto de Assistência ao Currículo (PAC) de Língua Portuguesa e Matemática, que auxiliam na elaboração de atividades, identificação de habilidades defasadas e implementação ao currículo. Falando na Escola C, esta apresenta uma característica de corredores com grades, um pátio amplo, porém, sem computadores nas salas, mas, presença de televisores, tal como na Escola A, porém, nessa, há uma maior identificação do público juvenil com elementos do Hip Hop e Funk Carioca, bem como alunos mais identificados com ostentar símbolos do crime organizado, desafiadores, o que leva à direção, mais especificamente, às COE, que ficam vigilantes com estes elementos, seja no intervalo, hora da entrada e da saída. A Escola C tem, ainda, problemas de evasão e indisciplina que infelizmente não podem ser explicitados aqui, pois, tornaria fácil sua identificação. No entanto, cabe declarar que foi um dos locais onde mais obtive dados para esta dissertação. Cabe ainda apontar que nesta escola há o desenvolvimento e incentivo de projetos educacionais, algo muito positivo; visto o esforço da direção e coordenação pedagógica em tentar envolver e incentivar os alunos na participação da vida escolar. Um ponto a destacar, também, é a presença de professores muito jovens, recém formados na licenciatura, que, incrivelmente, contrastam com os efetivos, minoria e mais resistente às mudanças educacionais/ pedagógicas/ metodológicas. A escola D, ao contrário das outras, é muito pequena/ estreita, tendo pátios e corredores todos cobertos, sendo poucos os pontos em que se pode ver o céu. É a menor das escolas, tanto em área quanto em alunos, funcionando somente manhã e tarde. Possui um total de 30 professores, porém, muitos revezam com outras escolas para conseguirem completar suas jornadas de trabalho. Suas salas são pequenas, e não possuem equipamento multimídia, sendo necessário pegar notebooks para conseguir aplicar avaliações externas como AAP/SD. Seu público é periférico, com muitos tendo parentes próximos no crime organizado (informação dada por uma COE, que relata que tais parentes são seus ex-alunos, logo, consegue 40 ter bom contato e diálogo). No entanto, percebe-se que a participação com as atividades da escola, sobretudo projetos, é bem alta, com alunos bem motivados e participativos, ainda que haja problemas disciplinares. Seus projetos se focam no sócio emocional (onde buscam proximidade da escola com os alunos e com as famílias, mantendo diálogo constante sobre a vida escolar), e, ainda, projetos artísticos. Por ser uma escola muito pequena, se torna difícil manter no pátio equipamentos como ping-pong no pátio, ainda mais que esse é usado para atividades de treino e atividades artísticas. Cabe destacar que seu corpo docente possui professores bem motivados e aplicados para projetos e atividades escolares diferenciadas, e tanto a diretora como COE apoiam o CGP e professores na execução de projetos e atividades diferenciadas, mantendo todos um contato /diálogo mais próximo com os discentes. A escola conta, ainda, com sala de recursos e sala para atendimento de alunos com necessidades especiais, o que faz com que essa seja frequentada por estudantes de outras escolas estaduais que não possuem tais recursos. Por fim, a Escola E tem seu horário de funcionamento muito parecido com a da C, mas, sua arquitetura é muito diferente das 3 anteriores, com um prédio moderno e novo. Seu corpo docente é de aproximadamente 39 docentes, muito participativo, e, apesar de ter poucos efetivos, tem o desenvolvimento constante de projetos. Conta esta escola com uma comunidade externa (pais e responsáveis) muito participativa, o que já resultou no desligamento de professores que por algum motivo tiveram ações negativas para a vida escolar. Suas salas dispõem de televisores lcd para exibir aulas, um pátio amplo com mesa de ping-pong, boa quadra esportiva e é localizada num bairro que, mesmo sendo periférico, tem uma população que aparenta ter um apreço pela cultura dos filhos e uma condição financeira um pouco melhor que as outras 3 escolas aqui citadas. Seu público lembra muito o da Escola A, porém, com muito pouca afiliação/ ostentação ao crime, e maior demonstração de cultura juvenil com relação ao RAP, aos animes, ao Rock e ao Funk. 2.2. Público escolar e cultura juvenil Nas escolas focadas aqui para esta pesquisa os alunos são jovens, não havendo EJA. Existem, no entanto, alguns poucos professores jovens, porém, pouco se notou, na maior parte das escolas, ações destes com os jovens que não fosse em sala de aula, sendo praticamente 41 inexistente a interação destes com os alunos em intervalos, portanto, se faz importante dizer que aqui nesse tópico busco fazer mais uma reflexão sobre juventude de um ponto de vista do público estudante. Entendo que, para os jovens que observei, a escola é um espaço de socialização, onde se divertem encontrando seus colegas, e a escola se torna um espaço onde diversos tipos de grupos juvenis se encontram e se identificam, interagem, namoram, disputam e brigam, tudo isso sob uma imposição de normas escolares, regras, currículo. No meio do intervalo, da hora da chegada, as escolas viram espaços para interações entre si. Como dito na descrição das escolas, seu público jovem ostenta símbolos ligados à cultura periférica nas escolas citadas (com roupas que ligam estes a grupos que tem como gosto o funk, rap, animes, bandas de rock e, em alguns, ao crime). Nesse contexto, faz-se necessário estabelecer conexões com os pressupostos teóricos apontados por Dayrell (2003) e Dayrell; Carrano (2014), que ressaltam acerca do jovem como sujeito social, e a categoria juventude é construção histórica e social, logo, tal não se constitui de forma única, são manifestações de juventudes, que são diferente para cada tipo de grupo social, grupo étnico, econômico, etc.; sendo necessário levar em consideração que estes jovens não são presos à critérios rígidos, mas, sim, por processos que fluem conforme suas experiências