UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ADRIELLI DE SOUZA COSTA LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) FRANCA 2018 ADRIELLI DE SOUZA COSTA LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Social. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira FRANCA 2018 C837l Costa, Adrielli de Souza LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) / Adrielli de Souza Costa. -- Franca, 2018 133 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Ricardo Alexandre Ferreira 1. Luiz Gama. 2. Abolicionismo. 3. Brasil Império. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. ADRIELLI DE SOUZA COSTA LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________________________________ Dr. Ricardo Alexandre Ferreira, UNESP-Franca 1º Examinador:____________________________________________________________ Márcia Regina Capelari Naxara, UNESP-Franca 2º Examinador:____________________________________________________________ Lígia Fonseca Ferreira, UNIFESP Franca, 22 de novembro de 2018. AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPq) pelo auxilio concedido, sem o qual não seria possível efetivar esse trabalho. Ao Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira pela imensa paciência, dedicação, compreensão e, sobretudo, confiança despendidas ao longo dessa pesquisa. Às professoras Márcia Regina Capelari Naxara e Lígia Fonseca Ferreira pelas leituras atentas, comentários e contribuições na banca de defesa desse trabalho. Aos amigos e colegas que integram o Grupo Escritos sobre os Novos Mundos. Aos meus familiares, amigos, colegas e todos que, de algum modo, me apoiaram nessa empreitada acadêmica. “Diversamente do que se dá com outros homens ilustres, fez da obscuridade o seu valor e da modéstia a sua grandeza. Soube-se da sua glória, quando ele morreu; exatamente como o esplendor sereno do firmamento, que se conhece quando o dia acaba.” (Raul Pompéia) COSTA, Adrielli de Souza. LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882). 2018. 145 f. Dissertação de Mestrado (título em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, Franca, 2018. RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo principal perscrutar a trajetória de Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) a fim de perceber como o literato posicionou-se frente aos diferentes debates dos quais participou. O estudo ora proposto parte da premissa de que a trajetória de vida de Gama pode iluminar aspectos decisivos da época em que viveu, tais como sua infância em cativeiro, sua alfabetização tardia seguida da conquista do posto de rábula, um autodidata em assuntos jurídicos que se notabilizou por militar na causa da libertação dos escravos ao mesmo tempo em que se encarregou de construir sua própria história como um percurso entre a escravidão e o exercício pleno da liberdade e da cidadania. Nesse sentido, a investigação partirá das várias inserções profissionais, institucionais e políticas de Luiz Gama para analisar seus posicionamentos em relação a questões fundamentais de sua época, com especial ênfase nos assuntos relativos ao cativeiro de africanos e descendentes no Brasil. A investigação terá como baliza temporal inicial o ano de 1848, momento em que Luiz Gama alcança a liberdade após passar parte da infância em cativeiro, e, como marco final, 1882, o ano de sua morte. Na composição do corpus documental investigado na pesquisa, além das principais obras de Gama, são considerados artigos de jornais da época que mencionam o literato, artigos assinados por Gama, além de cartas deste trocadas com amigos e pessoas próximas a ele. Palavras-chave: Luiz Gama. Abolicionismo. Brasil Império ABSTRACT The main objective of this research is to peer through the trajectory of Luiz Gonzaga Pinto do Gama (1830-1882) in order to understand how the literate has placed himself in front of the different debates he took part. The study proposed part of the premise that the trajectory of Gama life can illuminate decisive aspects of the time in which he lived, such as his childhood in captivity, his late literacy followed by the conquest of the post of shyster, a self-taught in subjects, like legal subjects, he was notable by military in the cause of the liberation of slaves at the same time he took care of creating his own history as a pathway between slavery and the full exercise of freedom and citizenship. Therefore, the research will be based on the various professional, institutional and political inserts of Luiz Gama to analyze his positioning in relation to fundamental issues of his time, with special emphasis on matters related to the captivity of Africans and descendants in Brazil. The investigation will have as begining the year 1848, when Luiz Gama reached freedom after spending part of childhood in captivity, and it will end in 1882, the year of his death. In the composition of the documentary corpus investigated in the research, in addition to the main works of Gama, are considered newspaper articles from the time that he mentions them, articles that belonged to Gama, and letters he exchanged with friends and people close to Him. Keywords: Luiz Gama, Abolicionism, Brazil Empire SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8 PARTE 1: DE ESCRAVO A RÁBULA ........................................................... 17 1. A carta e suas diversas interpretações .................................................. 17 2. Luiza Mahin .......................................................................................... 21 3. Primeiros versos, primeiras possibilidades .......................................... 31 4. Expansão das atividades e novas manifestações ................................. 39 5. Atuações como Rábula ......................................................................... 46 PARTE 2: “SEM REI E SEM ESCRAVOS”: LUIZ GAMA E OS “ESTADOS UNIDOS DO BRASIL” .......................................................................................... 57 1. O Club Radical ...................................................................................... 58 2. A Instrução Popular e a divergência de Luiz Gama com os republicanos ................................................................................................................ 70 3. A temática abolicionista nos escritos de Luiz Gama ............................ 84 a. Mudanças de abordagem ........................................................... 85 4. A propaganda abolicionista ................................................................ 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 111 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................... 114 ANEXOS ........................................................................................................ 121 1. ENSAIO BIOGRÁFICO DE LUIZ GAMA POR LÚCIO DE MENDONÇA ...................................................................................... 122 2. CARTA DE LUIZ GAMA A LÚCIO DE MENDONÇA PUBLICADA EM ARTIGO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO ............... 129 8 INTRODUÇÃO Depois de um período de produção acadêmica menos numerosa, mas não sem a presença de obras fundamentais para a interpretação do Brasil que tenham tocado diretamente no tema da transição para o trabalho livre, foi a partir das comemorações do centenário da abolição, celebrado em 1988, e com a multiplicação dos programas de pós-graduação em História no país, que o tema do abolicionismo no Brasil passou a ser mais detidamente revisitado pelos pesquisadores. Identificado, via de regra, não obstante as pressões internacionais, como um movimento de ataque ao status quo que sustentava a sociedade imperial do Oitocentos, o abolicionismo foi analisado a partir de diferentes vieses que vão da experiência cotidiana dos cativos e do ativismo político de alguns contemporâneos até análises que escrutinaram o tema a partir das questões das histórias comparada, política e intelectual renovadas. Em outras palavras, e guardadas as especificidades teórico-metodológicas1, a historiografia tem se empenhado em tornar mais complexa a leitura das iniciativas contrárias à manutenção do 1 Entre os anos de 1950 e1960, a maioria das obras apresentam uma leitura do abolicionismo como um movimento revolucionário contra um sistema escravista cruel. O economicismo permeava as análises e, para esses autores, vários fatores influenciaram na emergência do abolicionismo brasileiro: expansão da Revolução Industrial em um nível internacional, o desenvolvimento do capitalismo e da industrialização, a urbanização, o começo da industrialização em alguns lugares do Brasil, sendo o abolicionismo muito mais um “reflexo das mudanças inevitáveis” do que um movimento forte com capacidade de resultar em mudanças efetivas. Os escravos, por sua vez, teriam meramente seguido os planos abolicionistas em favor de suas sortes, isso porque essa corrente não enxergava o cativo como indivíduo consciente de suas ações ou capaz de agir em favor de sua própria sorte. Podemos citar COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010 como uma obra que se classifica por esse movimento. Nos anos de 1970, e mais efetivamente a partir dos anos 1980, percebe- se uma mudança nas abordagens historiográficas do tema escravidão, especialmente por se tratar da década em que se comemoraria o Centenário da Abolição. Essas pesquisas procuraram aprofundar os estudos acerca do cativeiro africano no Brasil para além do estruturalismo e das classificações em esquemas rígidos. O foco das análises passou a ser especificamente o escravo como sujeito da ação. Os autores filiados a essa matriz interpretativa foram influenciados pela Nova História francesa, principalmente pelo neo-marxismo do inglês Edward Thompson autor de A formação da classe operária inglesa. (3 volumes). Nesta vertente, podemos destacar autores que desenvolveram estudos que apontam a Abolição no Brasil como resultado efetivo das ações dos escravos, resistência representada por ações judiciais, revoltas, fugas em massa, etc.: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição - São Paulo: EDUSP, 1994 e MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Em Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX) – São Paulo: Annablume, 2003, Célia Maria de Azevedo, apesar de não ter se desvinculado da vertente norteada pelo escravo como sujeito da ação, chama atenção para a importância de novos estudos se debruçarem em análises que combinem a ação dos abolicionistas e dos escravos a favor do fim do cativeiro africano no Brasil. A autora responde a características próprias da análise comparada da historiografia. Esse movimento já foi criticado pela historiografia sob o argumento de que de tais estudos não eram viáveis pela sua característica generalizante. Porém, a partir dos anos 2000 na esteira de novos questionamentos acerca do tema da escravidão, tais como os porquês de o sistema escravista ter sobrevivido por tantos séculos e em qual momento este deixa de ser apoiado socialmente, os estudos de perspectivas mais amplas como os comparativos, os estudos de longa duração e os de história global, ganharam espaço por sua maior capacidade de abranger tais questões. Nessas classificações podemos citar DRESCHER, Seymour. Abolição :uma história da escravidão e do antiescravismo; tradução Antonio Penalves Rocha - São Paulo: Editora da UNESP, 2011. 9 cativeiro de africanos e descendentes no Brasil oitocentista, uma vez que o abolicionismo foi, muitas vezes, visto como um movimento uníssono, coeso e, até mesmo, homogêneo. Com o objetivo de compreender os principais elementos que nortearam a desintegração do sistema escravista brasileiro, Emilia Viotti da Costa, ainda na década de 1960, sublinhou a crítica ao abolicionismo como um processo resultante de um contexto mais amplo de mudanças sociais, influenciado por elementos nacionais2 e internacionais3, ocorridos, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX. Viotti da Costa credita ao que denominou “condições estruturais” o eixo da crítica que se edificou contra a escravidão no Brasil. Isso porque sua perspectiva de análise busca demonstrar como esse pano de fundo internacional possibilitou a emergência de uma preocupação então nova na sociedade brasileira, a qual, aos poucos, passou a enxergar no sistema escravista um impedimento ao desenvolvimento industrial do país. A estudiosa conclui que, de maneira geral, o abolicionismo era composto por “categorias não comprometidas com o sistema” e por “elementos urbanos” que acreditavam dever a questão da escravidão ser resolvida pela nação, a partir de ações parlamentares capazes de mobilizar a, ainda, incipiente opinião pública do país.4 A partir da premissa de que as atuações dos escravos foram os elementos norteadores da efetiva abolição do cativeiro no Brasil, Célia Maria Azevedo desenvolve um estudo em que analisa diversas ações de resistência dos cativos dentro do sistema escravista. De acordo com a estudiosa, no Brasil, no lugar de uma reforma que visasse modernizar o país, o abolicionismo nada mais foi do que um conjunto de medidas destinadas a conter as revoltas escravas, ainda sob o espírito do antigo desejo de que se estabelecesse uma extinção gradual do cativeiro que não comprometesse a ordem imperial.5 Em outro estudo, produzido com o objetivo de desmistificar a leitura de um sistema escravista brando no caso brasileiro e cruel no caso norte 2 COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010. Ao longo dos capítulos da obra, Viotti da Costa demonstra as ações políticas que se seguiram no sentido de demonstrar as vantagens do trabalho livre em comparação com o escravo, ações expressas, sobretudo, nas campanhas públicas de imigração europeia como alternativa para a demanda de mão de obra assalariada. Aponta, também, que, a partir da extinção do tráfico de africanos para o Brasil, houve um movimento de modernização no sentido de estimular o desenvolvimento industrial do país. Cita a implantação de estradas ferroviárias e a urbanização como resultantes deste processo. 3 A autora discute o tema abolicionismo ao longo de todo o capítulo 3. COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010, pp. 475 – 502. Viotti da Costa aponta acontecimentos como o desenvolvimento do capitalismo resultante da expansão da Revolução Industrial e a Abolição da escravidão norteamericana ocasionada pela Guerra Civil do país como elementos internacionais importantes na derrubada das bases do sistema escravista, o que, para a autora, influenciou no processo abolicionista brasileiro. 4 COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.485. A autora afirma que os abolicionistas conquistaram o apoio da “opinião pública” através da imprensa, organizando associações, grêmios e lojas maçônicas para compra de alforria. Esse apoio representou uma força importante na pressão para que argumentos dos abolicionistas fossem levados em consideração nas discussões parlamentares. 5 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 10 americano, Azevedo se debruça sobre as bases dos argumentos dos abolicionistas destes dois países.6 Sua análise parte da ideia de que o abolicionismo brasileiro desenvolveu-se na esteira de outros movimentos reformadores do século XIX.7 Azevedo assevera que os argumentos contra a escravidão no país tinham como base aspectos da filosofia iluminista que pregavam ser a sociedade regida por diferentes estágios de evolução. Assim, políticos e intelectuais envolvidos no combate ao cativeiro acabavam acreditando que a capacidade de identificar o momento da mudança social os municiava com as ferramentas necessárias ao convencimento dos habitantes do país.8 O caminho para tal convencimento devia ser trilhado a partir da produção de leis que contribuíssem com a superação do escravismo e promovessem o equilíbrio social.9 A autora ressalta que o abolicionismo brasileiro era composto, em sua maioria, por indivíduos provenientes das elites, que, portanto, direcionavam seus argumentos para seus iguais, de modo a que fossem persuadidos da necessidade de mudança no status quo.10 Além disso, e na direção das preocupações desta dissertação, Azevedo afirma haver pouco ou nenhum contato intelectual entre abolicionistas e negros livres e libertos, um cenário que fazia de Luiz Gama um caso específico, visto que a maioria dos abolicionistas negros enxergavam os escravos com “olhos estrangeiros”.11 Com algumas exceções, de certa forma, a historiografia da escravidão tomou como verdade norteadora os apontamentos de Joaquim Nabuco sobre o abolicionismo no Brasil. Os estudos apresentavam o processo abolicionista como resultado das ações de uma elite ilustrada que tinha como missão guiar ações dos oprimidos e os inconscientes para as mudanças sociais, políticas e culturais de modo a alcançar o progresso da civilização. Assim, se tornou recorrente ler o abolicionismo brasileiro como ações de base iluminista, positivista, compartilhadas pelos coevos que apoiavam o fim da escravidão no Brasil. Porém, em sua obra dos anos 90,12 Maria Helena Machado já havia apontado a possibilidade de leitura do processo abolicionista brasileiro sobre a perspectiva de movimentos sociais. Assim, chamava atenção para diversos 6 AZEVEDO, Celia M. M. de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX) – São Paulo: Annablume, 2003. 7 Ibid., Célia Azevedo apontou que entre 1860 e 1870 os “futuros abolicionistas” estavam engajados em outras lutas políticas (reformas políticas, separação do Estado e igreja, apoiaram a imigração), discursando suas críticas sobre o estado social e político do país em jornais. Utiliza-se dessa informação para enfatizar que o abolicionismo era um movimento que veio na esteira de outros movimentos reformadores da época. 8 Ibid., p. 44 9 Ibid., p. 50 10 Ibid., pp. 102-104 11 Ibid., p. 119-123. Ao longo dessas páginas, Azevedo faz um exercício de reflexão analisando a realidade dos abolicionistas da elite brasileira, tentando demonstrar que não havia possibilidade de eles apresentarem outro tipo de comportamento em relação a esse tema. 12 MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição - São Paulo: EDUSP, 1994. 11 projetos sociais e atuações dentro do que se convencionou chamar de movimento abolicionista. Nesse sentido, a autora problematizou a perspectiva que apontava uma elite organizada e líder de um movimento, pois levou em consideração a participação de personagens de diversos setores sociais com propostas que nada se comprometiam com projetos liberalistas ou outras visões políticas. Com a proposta de resgatar a importância do movimento abolicionista brasileiro como elemento principal na conquista da Lei Áurea, Ângela Alonso parte da leitura do abolicionismo brasileiro como o primeiro movimento social nacional.13 Apesar de suas colocações apontarem para a mesma premissa apontada por Machado,14 é importante salientar que esta só considera o abolicionismo brasileiro válido como objeto de estudo caso esteja atrelado a outros movimentos sociais. Em outras palavras, o abolicionismo só pode ser lido como movimento social caso se leve em consideração sua ligação com a atuação popular, com as ações dos escravos no meio rural e nas senzalas, e com a circulação de ideias longe das elites da imprensa e do Parlamento. A análise é feita sob a perspectiva da sociologia política. Desta maneira, sua tese se configura a partir da identificação do desenvolvimento abolicionista com um movimento social organizado, como uma resposta suscitada pelas ações das instituições políticas da época e como um contramovimento configurado pelos escravistas politicamente organizados. Para Angela Alonso, um movimento social tem o objetivo de pressionar o governo em favor de sua causa e essa é a característica fundamental do abolicionismo brasileiro, o que o classifica como movimento social. Este se caracteriza por sua heterogeneidade, é composto por pessoas de diversos campos da sociedade, que se unem em favor de uma causa de maneira coletiva, em razão de não identificarem uma representação política que os apoie.15 A autora acrescenta que o contexto político da época é importante como chave de leitura do movimento, pois foi esse jogo de ação e reação contra os governos, ora liberal, ora conservador, que conferiu base para as escolhas de ações e manifestações a favor da abolição da escravidão.16 13 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015 14 Maria Helena Machado é um dos nomes à frente de uma obra organizada em 2015 que, já nas primeiras páginas, reitera o lugar da historiografia que ocupam os textos ali apresentados. O elemento comum dos textos é a forma como a liberdade foi alcançada e/ou limitada por diversos personagens inseridos no sistema escravista, no pré e no pós-abolição. A preocupação central da organização é demonstrar as contribuições dos novos estudos que ainda trazem como foco os negros, cativos, livres e libertos, como sujeitos da ação, conscientes da resistência que norteavam suas ações a favor da liberdade. CASTILHO, Celso Thomas; MACHADO, Maria Helena P.T. (orgs.). Tornando-se livre: Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 15 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. p 352. 16 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015, pp 17-18. 12 Através das trajetórias e ações de figuras como Abílio Borges, Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças, Ângela Alonso reconstrói o movimento abolicionista apontando a importância das ações individuais de tais personagens, mas, com foco, principalmente, nas ações conjuntas que resultaram no alcance da abolição efetiva em 13 de maio 1888. Em tópicos específicos de sua argumentação, a autora apresenta brevemente a trajetória de tais líderes abolicionistas, comentando as ações de cada um deles de modo a especificar sua importância nos diversos meios de discussão da temática abolicionista: parlamento, comícios, imprensa, tribunais, teatros, etc. Em outras palavras, a autora identifica singularidades nas ações dessas figuras e atribui o extenso alcance do movimento exatamente à heterogeneidade de seus elementos.17 Longe de negar a importância e a contribuição de tal estudo para a historiografia brasileira, acreditamos haver problemas em interpretar eventos ocorridos nas décadas mais importantes para a abolição do cativeiro no Brasil com base em um pressuposto sociológico estruturado após tais episódios. Dito em outras palavras, a onda revisionista da década de 1980 já havia chamado atenção para a limitação que a aplicação de hipóteses oriundas da junção entre estruturalismo e marxismo, desdobradas em estudos desenvolvidos ao longo do século XX, apresentava para as análises do processo abolicionista no Brasil, além de demonstrarem que uma chave de leitura dada a priori acabava ignorando as possibilidades de os próprios escravos compreenderem o mundo que os incluía e agirem, no cotidiano, como sujeitos de suas próprias histórias. Alonso chega a apontar para a existência de diversidades de pontos de vistas entre os personagens que participaram de tal processo, porém a autora entende tais especificidades como elementos norteadores da expansão do movimento para um âmbito nacional, ou seja, vê, mesmo nas ações e opções individuais, partes de um movimento social de grandes proporções. O historiador norte-americano Seymour Drescher, em Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo, propõe explicar como o abolicionismo se desenvolveu através da história. Sua perspectiva de leitura aponta para o escravismo como um sistema que se transforma a partir da ação das pessoas nele envolvidas. Drescher18 mapeia o abolicionismo como uma nova forma de fazer política que se desenvolve com mais expressividade em sociedades nas quais os indivíduos se mostram mais favoráveis a fundar novos pactos de 17 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015, pp 347 – 357. No tópico intitulado O Retorno das Flores, Angela Alonso faz uma análise combinando os dados discutidos ao longo da obra demonstrando que em meados da década 1880 as atuações singulares dos objetos por ela expostos confluíram para uma nacionalização do movimento, bem como na influenciaram na rapidez dos tramites legais que resultaram na promulgação da Lei Áurea. 18 DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo; tradução Antonio Penalves Rocha. - São Paulo: Editora da UNESP, 2011. 13 verdade e, desta maneira, afirma que o nascimento do pensamento abolicionista na Grã Bretanha teve lugar em razão de haver naquele lugar e naquele momento justamente uma conjunção favorável de elementos. Quando foca sua análise no movimento abolicionista brasileiro, Drescher opta por restringir sua argumentação às mudanças ocorridas nos fins da década de 1880. Isso porque, em sua perspectiva de leitura, antes disso não havia ações políticas efetivas a favor da abolição, e as ações populares estavam longe de resultar em uma influência expressiva nas discussões parlamentares. Nesse ambiente de renovação das perspectivas de análise, Luiz Gama, também teve sua trajetória revisitada, sobressaindo-se, no âmbito das diferentes interrogações propostas, questionamentos acerca das ações que, ao longo de uma vida, conduziram o menino negro da escravidão aos braços de uma multidão que disputou com afinco o direito de, por pelo menos alguns momentos, segurar as alças de seu caixão.19 Ao analisar A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo, Elciene Azevedo compõe a biografia mais importante sobre a personagem escrita no âmbito dos estudos historiográficos.20 Azevedo procura demonstrar a trajetória de Gama de forma minuciosa, baseada em documentos escritos pelo próprio personagem, analisando suas ações e objetivos. O objetivo central de Azevedo é apresentar fatos da vida de Luiz Gama fundamentando-se em documentação, para se diferenciar de autores que, em sua visão, falam de si mesmos ao analisarem a imagem do Patrono da Abolição.21 Para a autora, o abolicionista norteou a construção de sua própria imagem, ele mesmo a edificou ou “manipulou” cuidadosamente. Azevedo conclui que, durante toda sua vida, Luiz Gama tentou construir a imagem de “homem letrado, advogado, integrado ao mundo dos cidadãos brancos, 19 Para citar algumas obras: AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. AZEVEDO, Celia M. M. de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX) – São Paulo: Annablume, 2003. ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. 20 Por ocasião da morte de Luiz Gama, em 1882, dois amigos publicaram artigos em sua homenagem. Um era composto de uma carta de Luiz Gama para Lucio de Mendonça e outro escrito por Raul Pompeia descrevendo a trajetória de vida de Gama. Até o século XX, essas eram as obras mais expressivas de caráter biográfico sobre o abolicionista. Em 1938 Sud Mennucci publicou a obra O precursor do abolicionismo no Brasil: Luiz Gama, o que se configurou como o primeiro estudo com maior embasamento documental sobre o tema, porém ainda carregando o caráter de exaltação das duas primeiras obras sobre o tema. Mennucci ao ocupar a cadeira da Academia Paulista de Letras, foi convidado a redigir uma biografia sobre seu patrono Luiz Gama, com o objetivo de ganhar mais conhecimento sobre ele e demonstrar sua importância para a história do Brasil. Daí o caráter superlativo e de exaltação que acompanha toda a obra. 21 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. Disponível em < http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000114891&opt=4 > acessado em setembro de 2015 p. 15 14 mas que não deixava ninguém esquecer que havia sido escravo, e fazia absoluta questão de afirmar-se negro”.22 Ligia Fonseca Ferreira23 é, atualmente, um dos nomes mais importantes no estudo dos escritos de Luiz Gama. Sua obra mais recente, publicada em 2011, Com a palavra, Luiz Gama – poemas, artigos, cartas e máximas, consiste em uma compilação abrangente dos escritos desta figura emblemática. Os textos de Luiz Gama são organizados em capítulos introduzidos por Ligia com o contexto em que tais foram produzidos ou, quando necessária, com uma breve explicação dos escritos. Analisando os artigos24 da estudiosa, percebe-se que o tema identidade é o que prevalece, isso porque Ligia Ferreira prioriza o estudo da negritude de Luiz Gama e como esta identidade foi construída, reconstruída, autoafirmada e influenciada intelectualmente25 por ele mesmo durante sua trajetória. A presente dissertação visa apontar, por meio da análise de jornais publicados no Brasil oitocentista, elementos que contribuíram para a construção de um espaço de fala do ex-escravo, merecedor de “estima não só em São Paulo como em todo o país”, segundo Rangel Pestana.26 Por mais que esteja entre os nomes mais lembrados quando se trata do tema do abolicionismo brasileiro, reconhecido em 2018 como Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil,27 poucas são as linhas que dispõem sobre os argumentos abolicionistas de Luiz Gama. Embora existam trabalhos que se detiveram sobre as ações de Gama nos tribunais em favor da liberdade de cativos no Brasil, ainda falta, ao nosso ver, um esforço mais concentrado de mapeamento do que Gama escreveu sobre essa temática e quais suas justificativas para criticar o cativeiro de africanos e seus descendentes na segunda metade do XIX. 22 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. Disponível em < http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000114891&opt=4 > acessado em setembro de 2015. p.210 23 Lígia Fonseca Ferreira alcançou seu doutoramento em 2011 com estudo da vida e obra de Luiz Gama, Luiz Gama (1830-1882): Étude sur la vie et l´oeuvre d´un Noir citoyen. Apesar de tal obra ainda não ter sido publicada no Brasil, pois a estudiosa concluiu seus estudos na Université Sorbonne Nouvelle, Paris – parte de seu conteúdo está disponível em diversos artigos: FERREIRA, Ligia Fonseca. O sonho sublime de um ex-escravo. Revista de História (Rio de Janeiro), v. 9, p. 66-68, 2013. ___________. Ethos, poética e política nos escritos de Luiz Gama. Revista Crioula (USP), v. 1, p. 1-20, 2012. ___________. Luiz Gama por Luiz Gama: a carta a Lúcio de Mendonça. Teresa (USP), v. 8/9, p. 300-321, 2008. ___________. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 21, p. 271-288, 2007. 24 Trata-se dos artigos referenciados na nota anterior. 25 FERREIRA, Ligia Fonseca. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 21, p. 271-288, 2007. 26 Rangel Pestana, "LUIZ GAMA" (editorial), A província de São Paulo, 25 de agosto de 1882 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 219. 27 LEI Nº 13.629, DE 16 DE JANEIRO DE 2018 - Declara o advogado Luiz Gama Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil. Disponível em: . Acesso em: outubro de 2018. 15 Tal estudo se deterá entre os anos 1848 e 1882, ano de seu falecimento. Iniciar-se-á a pesquisa no ano de 1848, momento em que Luiz Gama alcança a liberdade após passar parte da infância em cativeiro, a fim de investigar as possibilidades que a ele se apresentaram, possibilidades essas que resultariam na efetiva publicação da obra de maior fôlego de Gama, a coletânea poética Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Neste período, também foram consultados registros de e sobre Gama em processos judiciários e em missivas que trocou com colegas e amigos até o fim da vida. Visando alcançar os objetivos acima descritos, a dissertação foi organizada em duas partes. A primeira foi estruturada a partir da preocupação de que, apesar de Luiz Gama ser objeto central ou coadjuvante de muitos estudos ao longo da história, é possível afirmar que ainda há pontos de sua trajetória que podem ser vistos com mais detalhe, sobretudo a partir de novas interrogações. Sendo assim, os tópicos ora expostos retomaram os anos iniciais da trajetória de Luiz Gama, buscando combinar tanto as informações constantes em diferentes estudos sobre a vida do letrado quanto aquelas oriundas da principal fonte sobre o tema, uma carta destinada ao amigo Lúcio de Mendonça. O cruzamento de fontes possibilitou recolocar a questão sobre sua origem e apontar elementos conhecidos da trajetória do autor que precisam de matização, principalmente em razão de terem surgido de deduções dos biógrafos e não propriamente da interpretação da documentação disponível. Findadas as discussões em torno das informações que podem ser tiradas da mencionada carta, os tópicos caminham para a análise dos primeiros passos de Luiz Gama como homem livre, após fugir do cativeiro, a fim de perceber até que ponto as relações por ele travadas naquele momento influenciaram seus posicionamentos futuros manifestados em seus poemas e artigos de jornais. E ainda, identificar quais foram as oportunidades que Luiz Gama teve de se expressar através dos escritos, tais como: a publicação de seus versos em Primeiras Trovas Burlescas de Getulino e a veiculação de suas críticas contra o regime monárquico nos jornais em que colaborou. A delimitação temporal da parte inicia no ano de 1848, quando Luiz Gama foge do cativeiro e trava suas primeiras relações na sociedade paulistana oitocentista, e 1869, período em que Gama expressa abertamente seu posicionamento político quando se insere no debate das eleições de 1867, e se vê demitido do cargo político que ocupava por conta, segundo ele, de sua participação no Partido Liberal. O objetivo final desta parte é esclarecer de que maneira Luiz Gama se inseriu nos debates que, mais tarde, seriam melhor discutidos tanto em seus poemas, quanto em suas atividades como republicano, rábula, jornalista e maçom. Após sua inserção inicial na vida política da capital paulista do oitocentos, Luiz Gama se defronta com a necessidade de colocar em prática algumas de suas ideias. É precisamente 16 nesse embate com as limitações e desafios do cotidiano que a segunda parte desse trabalho se insere. Neste sentido, serão analisadas as ações de Gama em prol da instrução popular, empreendimento iniciado por um grupo maçom do qual era membro. Como será possível observar ao longo da primeira parte da dissertação, as convicções políticas de Luiz Gama foram fortemente estruturadas em seus primeiros tempos de atividade na imprensa paulista. Porém, não há, entre os especialistas, consenso acerca de suas atividades políticas dentro do Partido Republicano Paulista,28 agremiação que teve Gama entre seus membros fundadores. Sendo assim, o tópico abordará os escritos de Gama relativos a essa temática, buscando, na medida do possível, perceber como o pertencimento e a posterior ruptura com o partido ligavam-se às causas por ele abraçadas. Teria Gama se desligado do partido em razão de assumir publicamente um posicionamento gradualista em relação à extinção da escravidão? Na medida do possível, o tópico também busca investigar as relações entre os ideais abolicionistas e republicanos de Luiz Gama. A década de 1870 se configurou como o momento de maior atividade de Luiz Gama. Pouco mais de uma década mais tarde, no entanto, em 1882 a vida de Luiz Gama foi interrompida pelo diabetes. Entretanto, por mais que sua saúde estivesse debilitada nos primeiros anos de 1880, o jornalista se manteve ativo com publicações nos periódicos da época. Data deste período um conjunto de cartas destinadas ao amigo Ferreira de Menezes que foram publicadas no jornal Gazeta da Tarde. Dentro da temática abolicionista, Luiz Gama comentou crimes contra escravos, aludiu a violações contra a Lei do Ventre Livre no que, para ele, era uma tentativa de favorecer senhores, além de manter sua pena ativa ao criticar homens que se manifestavam favoravelmente à continuidade do sistema escravista no país. Nesse sentido, com base nas temáticas discutidas nas cartas, e o jornal em que estão inseridas – jornal de cunho abolicionista – os tópicos finais da dissertação buscarão responder aos seguintes questionamentos: pode-se dizer que os argumentos por ele manejados estavam contemplados em um modelo de propaganda abolicionista? Em caso afirmativo, tal modelo de propaganda era uma recorrência nesse periódico? Há outros abolicionistas que contribuíam com publicações no jornal como uma maneira de comentar assuntos de outras regiões a fim de ilustrar as ações abolicionistas fora da corte? Como Luiz Gama posicionou-se sobre as temáticas que sempre lhe foram caras ao final da vida? É possível identificar certa coerência entre os ideais por ele expressos nessa época com os manifestados em momentos anteriores? 28 FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa - Revista de Literatura Brasileira da USP, São Paulo, v. 8/9, p. 300-321, 2008. Lígia Ferreira afirma que Luiz Gama se desligou do Partido “praticamente no ato de sua criação, em 1873”, p. 303. 17 PARTE 1 – De escravo a rábula 1. A carta e suas diversas interpretações Parece não ter sido por acaso que Raul Pompéia se referiu à obscuridade que pairava sobre as informações acerca da vida de Luiz Gama ao dissertar sobre ele num artigo de homenagem póstuma. Foi por intermédio de um artigo assinado por um amigo de Luiz Gama, o jornalista Lúcio de Mendonça,29 editado em 1880, que vieram à luz, pela primeira vez, alguns traços biográficos do ex-escravo escritor, falecido em 1882.30 O texto,31 repleto de passagens efusivas, porém algo imprecisas, noticiou que o menino Luiz Gonzaga Pinto da Gama, nascido em Salvador no ano de 1830, era filho de fidalgo de origem portuguesa e de uma africana. De sua infância o jornalista pouco tratou, a não ser quando mencionou ter o menino por volta de dez anos quando se viu trabalhando como escravo em uma casa na Província de São Paulo. Sua mãe, de nome Luiza Mahin, descrita como negra “de um preto retinto e sem lustro”,32 era quitandeira e muito laboriosa, porém, após a “Revolução do Dr. Sabino”,33 em 1837, teria abandonado o filho e fugido para o Rio de Janeiro. Gama foi deixado com o pai, cujo nome ele mesmo tratou de ocultar. Segundo o amigo e biógrafo, o pai, desde então, criou Luiz Gama com um carinho extremoso. Nesses tempos, o fidalgo contava com uma boa herança, deixada por uma tia em 1836. Entretanto, logo reduziu seus bens, esbanjando nos divertimentos da vida e, em 1840, sentiu-se obrigado a vender seu filho como escravo para quitar as dívidas. O cativeiro perseguiu Gama por quase uma década até que conseguiu conquistar sua liberdade, inicialmente, recorrendo à fuga. Após essa tomada de atitude, Gama alistou-se na Força Pública 29 Lúcio de Mendonça foi poeta, advogado, e um dos idealizadores da Academia Brasileira de Letras. 30 Cf: MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 15 dez. 1880. Folhetim, pp. 1-2. Cf: MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881. São Paulo: Tipografia da “Província”, 1880, pp. 50-62. Cf: MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, pp. 263-270. 31 O artigo também está anexado ao final dessa dissertação. 32 “Lúcio de Mendonça, “Luiz Gama”, Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881” in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. p. 264. 33 Revolução também conhecida como “Sabinada”. “Lúcio de Mendonça, “Luiz Gama”, Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881” in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. p. 264. Para uma breve explanação sobre a “Revolução do dr. Sabino” Cf: GRINBERG, Keila. A Sabinada e a politização da cor na década de 1830 in: O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Organização Keila Grinberg e Ricardo Salles – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 18 da Província de São Paulo, em 1848, onde alcançou o grau de “cabo de esquadra graduado”34 e permaneceu em serviço até 1854, quando foi demitido por suposta insubordinação. As lacunas biográficas, resultantes de informações pouco esclarecedoras publicadas no mencionado artigo, abriram espaço para diversas interpretações e deduções em estudos dos séculos XX e XXI que tiveram Luiz Gama como figura de destaque. É possível mencionar, como exemplo, o pesquisador Sud Mennucci, que iniciou sua narrativa pontuando as homenagens que integraram o cortejo fúnebre de Luiz Gama, afirmando que toda apreciação àquela figura se dava pela “sede de justiça” que o havia acompanhado em toda sua trajetória. Nada faltou ao brilho da sagração unânime [sobre o cortejo fúnebre de Luiz Gama]: nem a multidão que acompanhou o féretro de um homem pobre, como se fosse ao enterro de um dos maiores figurões da época; nem a presença, no séquito, da mais alta autoridade de São Paulo, que era o conde de três rios, vice-presidente da província, em exercício; nem o comparecimento do que a cidade possuía de mais intelectual no tempo, nem a adesão dos representantes da religião católica [...]; nem o protesto dos homens de cor, reclamando o direito de serem os únicos a carregar, a pulso, o corpo do inolvidável batalhador da causa dos escravos. Luiz gama morria numa apoteose. De miserável moleque, enjeitado e escravizado pelo próprio pai, ascendera, num esforço sobre-humano, de que há alguns outros exemplos, no Brasil, embora nenhum com o mesmo relevo nem com a mesma intensidade, e subira até essa completa consagração pública. [...] anos de vida laboriosa, obstinada, tenaz, e da qual os primeiros tempos foram, sem a mínima hipérbole, infernais, tinham feito do humilde negrinho que galgara a pé a serra do Cubatão, na escalada de santos para São Paulo, a hercúlea envergadura do homem, ao mesmo tempo, mais amado e mais temido da capital da província bandeirante.35 Mennucci, ao ser convidado a ocupar a cadeira número 15 da Academia Paulista de Letras, que leva o nome de Luiz Gama, se pôs a pesquisar sobre o patrono deparando-se com alguns artigos de jornais que, segundo ele, narravam episódios repetidos, quando não, adulterados e que, por fim, nada faziam além de delinear uma figura “estereotipada e imóvel”36 que pouco iluminava “a real existência de Luiz Gama”. O biógrafo se dispôs, então, a desenvolver uma obra a altura do biografado, um estudo que contemplasse a justiça pela qual, segundo ele, Gama lutara durante toda a sua vida. Sua pesquisa acrescentou um dado pouco conhecido à história do ex-escravo que, até então, era a chave para qualquer estudo sobre a trajetória de Luiz Gama. Em obra de 1938, Mennucci revelou que, apesar de o artigo acima mencionado ser assinado por Lúcio de 34 “Lúcio de Mendonça, “Luiz Gama”, Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881” in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. p. 266. 35 MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil. Luiz Gama. São Paulo: Nacional, 1938, pp. 11-12. 36 Ibid, p.13. 19 Mendonça, sua fonte foi uma carta escrita pelo próprio Luiz Gama, em 1880, a pedido do amigo. Tal carta37 só veio a público no início do século XX, ao ser veiculada no jornal O Estado de São Paulo,38 de modo que, cinquenta anos após a divulgação do texto biográfico, tornou-se possível ler, a partir da pena do próprio Luiz Gama, os momentos por ele privilegiados para a composição de sua própria biografia. No artigo de Lúcio de Mendonça não há significativas mudanças em relação à narrativa de Gama, salvo, é claro, pela troca do pronome pessoal da primeira para a terceira pessoa do singular, como em: Nasceu Luiz Gonzaga Pinto da Gama na cidade de S. Salvador de Baía, à rua do Bâng[a]la, em 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã; e foi batizado, oito anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.39 Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, [...] a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.40 Sobre o artigo redigido por Lúcio de Mendonça, Sud Mennucci asseverou que a amizade íntima entre Mendonça e Gama permitiu ao autor do artigo biográfico obter informações privilegiadas acerca da última fase da vida do ex-escravo que se tornou letrado. Fase essa deixada em segundo plano nos apontamentos biográficos de Gama, mas mais detidamente abordada no artigo de Mendonça. Em razão das muitas polêmicas surgidas, retornaremos ao contexto de redação do artigo e da carta mais adiante nesse estudo. Por ora, é importante pontuar que Mennucci afirmou ter partido de Mendonça a ideia da redação da carta de Luiz Gama sobre os tempos de cativeiro e os primeiros anos como homem livre. Sem se ater às fontes que lhe conduziram a tal afirmação, o acadêmico de São Paulo sublinhou que sem esse documento seria ainda mais difícil investigar esse nebuloso momento da vida de Gama. Porém, apesar de valorizar tal aspecto do artigo de Mendonça, não deixou de classifica-lo como um estudo que não primava por ser neutro e desapaixonado, chegando mesmo a caracterizá-lo como 37 A carta de Luiz Gama está anexada ao final dessa dissertação. 38 Ligia Fonseca Ferreira mencionou a publicação da carta em 1931 no jornal O Estado de São Paulo. A missiva também pode ser encontrada no acervo online [http://acervo.estadao.com.br/] do mesmo jornal publicada em 13 de maio de 1909, no que possivelmente seja a primeira publicação do texto na íntegra. Cf: FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa - Revista de Literatura Brasileira da USP, São Paulo, v. 8/9, p. 300-321, 2008. 39 MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 263. 40 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. p. 199. 20 “pseudoestudo à biografia de Luiz Gama”.41 Mennucci não apenas criticou Lúcio de Mendonça por ocultar do público a informação de que os dados contidos em seu artigo haviam sido retirados de uma carta escrita pelo próprio biografado, como também por ter adornado os fatos por ele recebidos “com alguns adjetivos encomiásticos”42, como no excerto a seguir: Vê-se que é hereditário em Luiz Gama o profundo sentimento de insurreição e liberdade. Abençoada sejas, nobre ventre africano, que deste ao mundo um filho predestinado, em quem transfundiste, com o teu sangue selvagem, a energia indômita que havia de libertar centenas de cativos!43 O apontamento das falhas da única biografia disponível sobre um nome tão importante da militância negra paulista e brasileira, a um só tempo, impeliram Mennucci a indicar a necessidade de um estudo que fizesse jus à grandeza do biografado. O objetivo declarado pelo acadêmico paulista era produzir um texto sério e rico em informações sobre a trajetória do negro que havia sido elevado em sua época – característica essa demonstrada pelo autor ao comentar o grandioso evento que havia sido o cortejo fúnebre de Luiz Gama – pela sua “insaciável, inextinguível, sede de justiça”.44 Assim, um Gama hereditariamente predestinado à luta e uma nova biografia vieram à luz por meio da pena de Mennucci. E o meio baiano apenas lhe fornecera o clima propício em que devia desabrochar a sua inicial e tateante vontade. Servia de pitoresco e criava-lhe a paisagem. Porque a sua personalidade ele a trazia do berço, nos cromossomas que lhe transmitira Luiza Mahin e nos quais a quota de rebeldia tinha singular predominância. Releia-se a carta de Gama: Luiza é altiva, geniosa, insofrida, vingativa. Não tem medo. Prendem-na mais de uma vez pelos indícios que pareciam implicá-la em conjuras de escravos. Põe-se ao lado do amante, em 37, numa causa que não devia interessá-la minimamente, o que lhe denuncia o espírito de amotinada contra a sociedade. Meio e antecedentes hereditários tramam-se assim para dar ao caráter de Gama o relevo, o vigor, o cunho de absoluta independência que o haviam de estigmatizar para o sofrimento e para a glória. Mãe e filho representam [...] a perfeita identificação do caráter de ambos, que se veio a sublimar no rebento.45 Mennucci se dispôs a apresentar um estudo “sereno e consciencioso, desapaixonado e neutral”46, que seria uma reparação à memória de Luiz Gama, segundo ele encoberta por narrativas que requentavam os fatos já enfeitados por Lucio de Mendonça, mas acabou, em certo sentido, por seguir de perto a tendência à exaltação que, em sua interpretação, se podia 41 MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil. Luiz Gama. São Paulo: Nacional, 1938, p. 15. 42 MENNUCCI, op. cit., p. 15. 43 MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 264. 44 MENNUCCI, op. cit., p. 111. 45 MENNUCCI, op. cit., p. 111. 46 MENNUCCI, op. cit., p. 111. 21 ver no artigo redigido, ainda no oitocentos, pelo amigo de Luiz Gama. Um elemento, desde então, contudo, não pode ser deixado de lado, em grande medida, em razão da nova história de Gama. A importância da mãe, Luiza Mahin. 2. Luiza Mahin Sua existência jamais chegou a ser uma unanimidade entre os estudiosos. As poucas informações conhecidas sobre Mahin vieram a público por meio da carta com apontamentos biográficos do seu autodeclarado filho, Luiz Gama. Estudos posteriores,47 entretanto, conferiram contornos mais nítidos à história de Mahin a partir de inferências extraídas tanto da carta quanto de versos de Gama. Como pontuou Lígia Ferreira Fonseca,48 as palavras de Gama – “mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito”49 – não se referiram explicitamente à famosa Revolta dos Malês; ainda assim, Luiza Mahin foi tida, em muitos estudos, como uma das líderes dos escravos muçulmanos que, na década de trinta do Oitocentos, revoltaram-se na Bahia. Tal afirmação foi, finalmente, refutada pelo estudioso João José Reis que, em uma edição revista e ampliada de sua obra, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, revelou não haver na documentação disponível sobre a revolta nenhuma líder feminina e nem mesmo alguma referência ao nome Luiza Mahin.50 47 Para citar alguns autores: CALMON, Pedro. Malês, a insurreição das senzalas. 2. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2002; GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007; ARAÚJO, Mariele S. Luiza Mahim – uma “princeza” negra na Bahia dos anos 30: discursos de cultura e raça no romance histórico de Pedro Calmon, Malês – A insurreição das Senzalas (1933). 2003. Monografia (Especialização em História Social e Educação) – Universidade Católica do Salvador, Salvador, 2003. 48 FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa - Revista de Literatura Brasileira da USP, São Paulo, v. 8/9, p. 300-321, 2008. 49 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 199. 50 “Numa curta passagem de seu artigo de 1901 sobre os malês, Etienne Brazil escreveu: ‘O fim primordial da conspiração era aclamar uma rainha, depois do extermínio da raça branca’. Convenhamos que, num texto de 57 páginas, o autor foi brevíssimo sobre o que considerava o objetivo principal do movimento de 1835. Não sei onde Brazil foi buscar essa ideia, um tanto extravagante, de que homens muçulmanos se dariam ao exaustivo trabalho de exterminar a raça branca para colocar no poder uma mulher, aliás pagã, como se verá num minuto [mais para frente, no texto, João José Reis cita as palavras de Gama ao caracterizar a mãe como pagã]. Obviamente nada consta, nesse sentido, na vasta documentação existente sobre a rebelião. Nenhuma Luiza, aliás, foi incluída em quaisquer das listas de presos por envolvimento no levante. A única mulher com esse nome que encontrei em 1835 foi uma liberta, presa provavelmente em novembro para ser deportada por crime não especificado, mas de forma alguma por insurreição”. O caso Luiza Mahin in: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 301. 22 Houve quem deliberadamente a descrevesse como uma “rainha africana”51 injustamente escravizada no Brasil, certamente, sob a inspiração do que escreveu o próprio Luiz Gama sobre a mãe em um de seus poemas: Era mui bela e formosa, Era a mais linda pretinha, Da adusta Líbia rainha, E no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que eu tenho Dos seus mimosos carinhos, Quando c'os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava Éramos dois - seus cuidados, Sonhos de sua alma bela; Ela a palmeira singela, Na fulva areia nascida. Nos roliços braços de ébano, De amor o fruto apertava, E à nossa boca juntava Um beijo seu, que era vida Quando o prazer entreabria Seus lábios de roixo[sic] lírio, Ela fingia o martírio Nas trevas da solidão. Os alvos dentes nevados Da liberdade eram mito, No rosto a dor do aflito, Negra a cor da escravidão. Os olhos negros, altivos, Dois astros eram luzentes; Eram estrelas cadentes Por corpo humano sustidas. Foram espelhos brilhantes Da nossa vida primeira, Foram a luz derradeira Das nossas crenças perdidas. Tão terna como a saudade No frio chão das campinas, Tão meiga como as boninas Aos raios do sol de Abril. No gesto grave e sombria, Como a vaga que flutua, Plácida a mente - era a Lua Refletindo em Céus de anil. Suave o gênio, qual rosa Ao despontar da alvorada, 51 Cf: GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor (romance). Rio de Janeiro: Record, 2006. Cf: GONÇALVES, Aline. N. S. Luiza Mahin: uma rainha africana no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: CEAP, 2011. 23 Quando treme enamorada Ao sopro d'aura fagueira. Brandinha a voz sonorosa, Sentida como a Rolinha, Gemendo triste sozinha, Ao som da aragem faceira. Escuro e ledo o semblante, De encantos sorria a fronte, - Baça nuvem no horizonte Das ondas surgindo à flor; Tinha o coração de santa, Era seu peito de Arcanjo, Mais pura n'alma que um Anjo, Aos pés de seu Criador. Se junto à Cruz penitente, A Deus orava contrita, Tinha uma prece infinita Como o dobrar do sineiro; As lágrimas que brotavam Eram pérolas sentidas, Dos lindos olhos vertidas Na terra do cativeiro.52 E pode-se mesmo creditar parte das construções em torno da figura de Mahin ao fato de Gama ter anexado à carta por ele entregue ao amigo Lúcio de Mendonça esse sugestivo poema intitulado “Minha Mãe”.53 Em estudo que teve como personagens centrais líderes abolicionistas do Brasil oitocentista, Ângela Alonso lançou mão dos estudos produzidos ao longo das últimas décadas para escrever acerca do período compreendido entre a infância de Luiz Gama até o início de sua vida como homem livre, logo após a fuga do cativeiro. Nas palavras de Alonso, além de Luiza Mahin ter sido, efetivamente, um dos membros rebeldes da Revolta dos Malês, também fugiu da Bahia após a “Sabinada” ao lado de um amante que conheceu nas atividades rebeldes.54 Nas notas referentes aos parágrafos mencionados, a autora aponta as obras de Sud Mennucci, Elciene Azevedo, Lígia Ferreira, bem como a carta de Luiz Gama para Lúcio de Mendonça 52 GAMA, Luiz. “Minha Mãe” in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, pp. 76-77. 53 “Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio-te.” Cf: GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 200. 54 ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. p. 85. 24 como base documental para as informações contidas em seu estudo.55 Contudo, nenhum destes escritos contêm afirmações de que Luiza Mahin houvesse participado da Revolta dos Malês. É pouco provável, por exemplo, que Lígia Ferreira, em sua tese, tenha se referido a Luiza Mahin nestes termos. Sobretudo pela razão de que, em um dos artigos que a estudiosa analisou, pela ótica da linguística, a carta de Luiz Gama, precisamente onde se encontram as informações referentes à mãe, Ferreira salientou que havia estudos que comprovavam a inexistência de provas documentais da participação de Mahin na “Sabinada”. Da mesma forma, não há qualquer menção ao referido amante da mãe de Gama nas obras consultadas por Ângela Alonso ao final de sua explanação acerca da vida do abolicionista.56 Entretanto, Sud Mennucci se utiliza das expressões “fidalgo” e “amante de Luiza Mahin” para se referir ao pai de Gama cujo nome não se tem notícias. Pois bem, quando Luiza, com toda a certeza comprometida, junto com o amante, na "Sabinada", achou prudente, depois de vencida a revolução rumar para o Rio de Janeiro, pondo-se cautelosamente fora do alcance da polícia baiana, o fidalgo aproveita-se da ausência para cumprir o seu dever de crente.57 No excerto acima, Sud Mennucci mencionou a participação dos pais de Luiz Gama na “Sabinada” a fim de esclarecer o motivo da fuga – em comum acordo entre os genitores – da mãe para o Rio de Janeiro e a decisão do pai em “cumprir seu dever de crente” quando optou pelo batismo do filho, que ainda não havia ocorrido, de acordo com o biógrafo, em razão de uma discordância com a mãe, pagã.58 Apesar de se referir, pelo menos três vezes ao longo do capítulo, ao pai de Luiz Gama como “amante de Luiza Mahin”, no trecho em questão há o uso 55 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. FERREIRA, Ligia Fonseca. Luiz Gama (1830-1882): étude sur la vie et l’oeuvre d’un noir citoyen, poète et militant de la cause antiesclavagiste au Brésil. Paris: Université Paris III – Sorbonne, 2001. Tese (Doutorado em Estudos portugueses e brasileiros). GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. 56 A autora referenciou as obras: MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil. Luiz Gama. São Paulo: Nacional, 1938; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999; Ligia Fonseca. Luiz Gama (1830-1882): étude sur la vie et l’oeuvre d’un noir citoyen, poète et militant de la cause antiesclavagiste au Brésil. Paris: Université Paris III – Sorbonne, 2001. Tese (Doutorado em Estudos portugueses e brasileiros); além do artigo de Lúcio de Mendonça. MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881. São Paulo: Tipografia da “Província”, 1880, pp. 50-62. 57 MENNUCCI, op. cit., p. 40. 58 “[...] Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Luiz Gama utiliza a palavra pagã como característica de pessoa que nega a doutrina cristã. Cf: GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 199. 25 de duas expressões diversas59 para se referir ao personagem, o que produz ambiguidade na compreensão efetiva da informação ali exposta. Dando continuidade às informações apontadas por Ângela Alonso, vale ressaltar a afirmação apresentada pela autora de que um hóspede, de nome Antônio Rodrigues do Prado Júnior, que havia alfabetizado Luiz Gama, na casa onde este servia como escravo, também lhe instruiu acerca da lei de 1831,60 que declarava livres os africanos e seus descendentes desembarcados no Brasil a partir de então.61 Alonso é partidária da interpretação de que foi com base nesta lei que Gama afrontou seu senhor, ao se declarar livre e fugir do cativeiro. Antes de mais nada, seria oportuno observar os trechos do relato de Luiz Gama acerca da questão levantada por Alonso: Em 1847, contava eu 17 anos, quando para casa do sr. Cardoso veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi- Guaçu, onde é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras. Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma coisa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça.62 O último parágrafo da citação pode ser considerado como um dos mais intrigantes de todo relato pela possibilidade de conter informações relacionadas às provas de que Luiz Gama fora ilegalmente escravizado. Como delineado acima, o relato é sucinto, nada se lê nas palavras de Luiz Gama sobre o hóspede que lhe ensinou as primeiras letras ter conjuntamente lhe explicado acerca da referida legislação sobre o fim do tráfico de escravos para o Brasil. Em outras palavras, trata-se de uma inferência plausível. É certo que Gama o caracterizou como “estudante de humanidades” e que, sem dúvida, em decorrência de tais estudos, alcançou mais tarde o posto de bacharel em Direito, porém, nenhuma destas informações podem ser tomadas como decisivas sobre o fato de que Antônio do Prado Junior soubesse mais de assuntos jurídicos 59 As expressões que aparecem no excerto destacado para se referir ao pai de Luiz Gama são respectivamente: amente e fidalgo. 60 ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. 61 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1831, Página 182 Vol. 1 pt I (Publicação Original). Disponível em:. Acesso em agosto de 2017 62 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 202. 26 do que o próprio Luiz Gama naquela ocasião específica. E no que se refere à reflexão acerca das provas por Gama conseguidas para atestar sua liberdade serão necessários alguns preâmbulos. O acordo internacional entre os reinos de Portugal e Grã-Bretanha – antes de o Brasil se tornar independente – firmado em 181763, estipulava que os cativos apreendidos em navios que se provassem ter sido capturados em territórios proibidos – toda a costa africana acima da linha do Equador – deveriam receber cartas de alforrias além de serem encaminhados a desempenharem funções como criados ou trabalhadores livres.64 Enquanto a convenção de 182665, além de firmar uma data para a extinção do tráfico de africanos, renovava os votos firmados no acordo de 1817, a saber, a prestação de serviços por africanos livres com o propósito de que estes fossem educados em prol da liberdade à qual seriam restituídos ao fim do prazo estipulado pelo contrato de trabalho; o decreto sancionado em 1831 ratificava a prática referente ao futuro dos cativos ilegalmente importados66, bem como legislava acerca das normas que regeriam o encaminhamento dos africanos livres aos serviços prestados67. 63 Cf: Coleção de Leis do Império do Brasil - 1815, Página 27 Vol. 1 (Publicação Original). Disponível em: . Acesso em agosto de 2017. Uma convenção adicional de 1817 estipulava a apreensão de navios portugueses que houvessem capturado africanos na costa ao norte da África, território proibido pela lei de 1815: Coleção de Leis do Império do Brasil - 1817, Página 74 Vol. 1 (Publicação Original). Disponível em: . Acesso em agosto de 2017. É importante salientar que após a independência do Brasil os votos dispostos nos tratados acima mencionados foram renovados a partir da assinatura e um novo acordo em 1826 que firmava a data definitiva para o fim do tráfico de africanos pelo Brasil, e ratificado por Cf: Coleção de Leis do Império do Brasil - 1826, Página 71 Vol. 1 pt. II (Publicação Original). Disponível em: . Acesso em agosto de 2017. 64 “No caso de ser qualquer Navio condemnado por viagem illicita, serão declarados boa preza o Casco, assim como a Carga, qualquer que ella seja, á excepção dos Escravos que se acharem a bordo para objecto de Commercio: e o dito Navio e a dita Carga serão vendidos em leilão publico a beneficio dos dous Governos: e quanto aos Escravos, estes deverão receber da Commissão mixta uma Carta de Alforria, e serão consignados ao Governo do Paiz em que residir a Commissão que tiver dado a Sentença, para serem empregados em qualidade de Criados ou trabalhadores livres. - Cada um dos dous Governos se obriga a garantir a liberdade daquella porção destes individuos que lhe for respectivamente consignada”. [Regulamento para as Commissões mixtas que devem residir na Costa de Africa, no Brazil, e em Londres.] Cf: Coleção de Leis do Império do Brasil - 1817, Página 74 Vol. 1 (Publicação Original). Disponível em: . Acesso em agosto de 2017. 65 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1826, Página 71 Vol. 1 pt. II (Publicação Original). Disponível em: . Acesso em agosto de 2017. 66 Decreto de 19 de novembro de 1835 - Coleção de Leis do Império do Brasil - 1835, Página 125 Vol. 1 pt II. (Publicação Original) Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto- 37084-19-novembro-1835-563013-publicacaooriginal-87123-pe.html >. Acesso em agosto de 2017 67 Esses africanos, que integraram o grupo de trabalhadores livres em geral, foram abordados no estudo de CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985, e especificamente analisados em MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 27 Com base na legislação da época, pode-se dizer que o termo africano livre teve maior circulação apenas a partir de 1835. Luiz Gama caracterizou sua mãe como africana livre em sua carta ao amigo Lucio de Mendonça e, sendo conhecedor dos assuntos jurídicos de sua época, como bem fazia questão de expressar em muitos de seus escritos em jornais a partir da década de 1860, provavelmente usou a expressão de propósito. Dessa maneira, tomando as palavras de Luiz Gama como evidência da existência de sua mãe com o objetivo de desenvolver a reflexão, seria plausível supor que Luiza Mahin tenha obtido sua liberdade num julgamento de apreensão de navios negreiros que transportavam cativos ilegais, sendo ela proveniente da Costa da Mina, como salientou Luiz Gama na mesma carta. Em conclusão, tendo Luiza Mahin conquistado sua liberdade pelos parâmetros da lei do Império, Luiz Gama havia nascido livre e fora ilegalmente escravizado por seu pai. No que diz respeito à relação dos mecanismos usados por Luiz Gama na tentativa de se provar ilegalmente escravizado e a trajetória de reconhecimento que, pouco depois, como se verá a seguir, o ex-escravo alcançou na Província de São Paulo é tentadora a interpretação de que, no Brasil Império, a liberdade até poderia ser alcançada, mas o passado vivido na escravidão continuaria a assombrar a vida do liberto de acordo com as relações sociais e pessoais por ele cultivadas em sua trajetória de liberdade. Na tentativa de afastar tal inferência de alguma indevida simplificação, é oportuno versar, brevemente, acerca de alguns elementos referentes à escravidão, à liberdade e à cidadania no Brasil oitocentista. No Brasil, os escravos eram preliminarmente identificados como africanos ou crioulos. Sob o nome africano estava incluída toda a diversidade de etnias submetidas ao tráfico68, frequentemente relacionadas nos papéis oficiais da época como "de nação"69. Quando nasciam no Brasil, os filhos de cativos africanos eram chamados crioulos, e entre esses, os mais versados no “mundo dos senhores” eram conhecidos como ladinos70. Como tem apontado a historiografia das últimas décadas, ser crioulo ou ser africano fazia diferença no momento das associações ou conflitos entre os próprios escravos, deles contra os senhores, bem como dos libertos em relação aos padrões de manumissão de seus cativos. Somam-se ainda à diversidade 68 À visão geral dessa diversidade explicitada por MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil; tradução: James Amado. - São Paulo: Brasiliense, 1982, juntaram-se outros trabalhos, com destaque para FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX) – São Paulo: Companhia das Letras, 1997 e ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 69 Um estudo amplo das diferentes nações africanas trazidas para o Brasil é o de: KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1805-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 70 ALENCASTRO, Luiz Felipe, “Os ladinos e o colapso da ordem escravista”. In: História da vida privada no Brasil. v. 2. Organizado por Luiz Felipe Alencastro e Fernando A. Novais. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997 28 do “ser escravo”, todos os cativos fugitivos, principalmente, os que viviam em comunidades quilombolas71. O grupo dos libertos era composto por todos os ex-escravos. Sua situação variava quanto à forma de libertação, que podia ocorrer de diferentes maneiras: por concessão onerosa ou gratuita dos senhores, por meio das auto-compras, dentre as quais se destaca a coartação72, e ainda por meio das compras de liberdade por terceiros — pessoas ou instituições como as irmandades e sociedades libertadoras. Muitas dessas diferentes formas de obtenção da liberdade condicionavam o cotidiano do cativo alforriado. Em alguns casos, como ainda vigia no Império o Livro IV das Ordenações, pairava sobre os alforriados a possibilidade legal da revogação da alforria por ingratidão73. Russell-Wood74 localizou, ainda, em estudos a respeito da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, a situação rara em que o escravo, candidato à liberdade, deveria comprar um novo escravo e treiná-lo para substituí-lo em suas funções diárias. Em outros casos, os libertos deviam prestar serviços ao patrono que financiou a compra da alforria por um tempo determinado, ou mesmo permanecer como agregado livre na casa dos senhores até a morte de um dos familiares, de acordo com as condições especificadas em um testamento, por exemplo75. Esta situação, de liberdade pré-definida ou condicional, era conceituada pelo Direito Romano como statuliber76. Entre os livres, existiam, como já mencionado, os africanos livres, importados ilegalmente da África após a legislação de 183177, tentativa inicial e sem grande eficácia de proibir o tráfico, mas que acabou por figurar entre as alegações que motivaram processos judiciais para a exigência do reconhecimento da ilegalidade do cativeiro78. Existiam também os 71 Para estudos a respeito das comunidades quilombolas e suas relações com grupos de livres e escravos em diferentes regiões e período do Brasil conferir: GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis, 2005. 72 A coartação consistia num acordo, firmado em bases contratuais, pelo qual o cativo — num prazo de 4 a 6 anos — comprava em parcelas a sua liberdade. LEWKOWICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, 9(17), pp. 101-114, setembro de 1988/ fevereiro de 1989. 73 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão, A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social; introdução de Edison Carneiro. - Petrópolis: Vozes, 1976. 74 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 75 A experiência dos libertos estudada por meio da análise de testamentos da Bahia é discutida em: OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. O liberto: o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988. Sobre o mesmo tema ver também: PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. 76 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão, A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social; introdução de Edison Carneiro. - Petrópolis: Vozes, 1976. 77 MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 78 Entre as principais obras que se dedicaram à compreensão do tema destacam-se: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas na escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.; 29 ingênuos, filhos de escravos nascidos após a Lei do Elemento Servil de 1871, que versou sobre a liberdade do ventre. No Império do Brasil, a lei, sustentada na tradição do Direito Romano, entendia que, independentemente da condição jurídica do pai (livre ou escravo), se a mãe fosse escrava, seu filho nasceria escravo. Embora o Direito Romano não tenha sempre seguido a mesma regra, entendia Perdigão Malheiros que se, a qualquer momento entre a concepção e o parto, a mãe se tornasse liberta, seu filho nasceria livre e ingênuo. A causa foi sempre motivo de constantes embates jurídicos, principalmente quando a mãe era libertada condicionalmente79. Quando da promulgação da Constituição em 1824, foram reconhecidos como cidadãos brasileiros os indivíduos nascidos no país, fossem livres, ingênuos – filho de liberta, ou de escrava após a promulgação da Lei do Elemento Servil de 1871 – ou libertos.80 Porém, dentre esses cidadãos brasileiros, havia a divisão entre aqueles que detinham apenas os direitos civis e aqueles que gozavam da cidadania plena, expressada na detenção não só dos direitos civis como também os políticos. Como direitos civis se entendia o direito à propriedade, à liberdade e à igualdade perante a lei; enquanto os direitos políticos estavam relacionados às votações que elegiam os representantes do Governo Imperial. As eleições eram divididas entre primárias e secundárias: em um primeiro momento eram votados, pelos cidadãos que desfrutavam de direitos políticos, os Eleitores. Na segunda etapa, os Eleitores, como representantes dos cidadãos que votaram na primeira fase, escolhiam os Deputados, Senadores e Membros dos Conselhos de Província. Dentro dessas etapas, aos libertos era restrita a participação nas eleições secundárias.81 Em outras palavras, os libertos tinham o direito de votar nos Eleitores, GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, e, GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros :cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999, e, PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. 79 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão, A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social; introdução de Edison Carneiro. - Petrópolis: Vozes, 1976. A análise dos debates a respeito do tema no âmbito das reuniões do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros foi realizada em: PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. 80 Art. 6. NOGUEIRA, Octaciano. Coleção Constituições brasileiras – 1824, v. 1. 3. ed. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2012. Disponível em: < https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/137569/Constituicoes_Brasileiras_v1_1824.pdf> Acesso em: fevereiro de 2018. 81 “Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos, os que podem votar na Assembleia Paroquial. Excetuam-se: I. Os que não tiverem de renda liquida anual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comercio ou emprego. II. Os Libertos. III. Os criminosos pronunciados em querela, ou devassa.” In CONSTITUIÇÃO POLITICA DO IMPERIO DO BRAZIL (DE 25 DE MARÇO DE 1824). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm> 30 mas não podiam, eles mesmos, lançar candidatura como Eleitor ou pleitear qualquer outro cargo no Governo.82 Como conclusão acerca da liberdade de Gama é possível supor que as provas por ele apontadas na carta versassem a respeito de sua mãe ser uma africana ilegalmente importada e, possivelmente, tenham sido essas as “provas inconcussas”83 que ele obteve quando, após dez anos de cativeiro, fugiu de seu algoz. Dificilmente, Gama atestaria sua real condição pela legislação de 1831, visto que seu nascimento aconteceu em 1830. E, embora estejam, ainda hoje, envoltas em mistério, as provas eram de fato “inconcussas”, pois foram importantes pelo menos em uma ocasião de sua vida: na candidatura a Eleitor.84 Seguindo, portanto, as disposições acerca das Eleições no Império, Luiz Gama, ao participar das eleições de 1867 como candidato a Eleitor, era invariavelmente reconhecido naquela sociedade como cidadão livre.85 Malgrado as disposições legais acerca da liberdade, conferidas, sobretudo pela Carta Magna ao reconhecer os direitos civis dos cidadãos livres, sem distinção de cor, na prática a liberdade era entendida sob outra ótica.86 Dessa maneira, no decorrer dessa primeira parte do trabalho, retomaremos aos (possíveis) mecanismos utilizados por Luiz Gama para alcançar o reconhecimento pleno de sua cidadania na Paulicéia oitocentista. Como já havia observado Sud Mennucci, Luiz Gama pouco disse em seu relato a Lúcio de Mendonça sobre sua trajetória a partir de fins de 1860, aparentemente tomando como desnecessária a continuidade da narrativa, uma vez que a carta se destinava ao amigo íntimo que conhecia, tão bem quanto ele próprio, suas atividades subsequentes ao fim do relato. Em consequência, Luiz Gama minimizou, de certa forma, as atividades que mais o notabilizariam 82 Keila Grimberg analisou a discussão Parlamentar em torno das restrições aos direitos dos libertos na década de 1830. Segundo sua análise, não havia consenso sobre o que significava ser cidadão e muito menos ser brasileiro, porém, quando o assunto era a questão dos direitos relacionados aos libertos, os membros do Governo concordavam em discutir apenas os direitos civis e não as restrições aos direitos políticos desses cidadãos, pois, para os parlamentares, não se deveria relegar aos libertos o direito de intervir no destino do Império através de votação para representantes no Governo. Cf: GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros :cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 83 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 202. 84 A respeito da candidatura de Luiz Gama eleitor ver, respectivamente: ASSEMBLEIA Popular. Correio Paulistano, São Paulo, 29 jan. 1867, A Pedido, p. 3. 85 Livre no sentido de que sua mãe, considerando sua existência com base apenas nas palavras de Luiz Gama em sua carta a Lucio de Mendonça, era africana livre que, pelo que se entende do termo, não carregava o passado cativo. Em outras palavras, não poderia ser considerado ingênuo, pois sua mãe não havia sido escrava. 86 A obra de Hebe Mattos discute quais foram os elementos que influenciaram a construção do ideal de liberdade ao longo do século XIX no Brasil: MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 31 no futuro, especialmente suas ações em favor da liberdade dos cativos africanos.87 Malgrado a menção ao número superior a quinhentos cativos que havia arrancado das, em suas palavras, “garras do crime”88, além de expressar que a tribuna era seu sustento, pouco se pode inferir sobre o modo como Luiz Gama ascendeu de ex-escravo “de condições inferiores” para um grande nome que mereceu “estima não só em São Paulo como em todo o país”.89 Dessa maneira, os tópicos a seguir visam uma apreciação dos elementos que proporcionaram a conquista de certo espaço de escrita por Luiz Gama ao revisitar os jornais da época, entre 1854 e fins da década de 60 do oitocentos, em busca de narrativas sobre seus feitos bem como textos por ele assinados. Busca-se, a partir desta investigação, colaborar com a compreensão de alguns questionamentos norteadores: como Gama pôde se fazer ouvir? Quais as referências intelectuais e políticas passíveis de serem observadas em seus textos? Havia uma agenda, com comprometimentos políticos e morais, descrita com alguma regularidade em seus textos? Acredita-se que o recorte temporal ambientado entre meados da década de 50 e fins da de 60 do século XIX seja adequado, pois abarca o período das primeiras manifestações públicas escritas por Luiz Gama, assim como o momento da construção de suas primeiras redes de relações com vistas ao ativismo mais diretamente voltado para a causa do fim da escravidão. 3. Primeiros versos, primeiras possibilidades. O início dessa investigação se dá no encalço do jovem Luiz Gama que, em 1859, publicou suas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, uma coletânea de poemas que satirizava a sociedade oitocentista brasileira. A notícia da publicação conduz a alguns questionamentos que aqui servirão de norte: a) o que proporcionou a um ex-escravo, tardiamente alfabetizado, elaborar uma obra? b) como conseguiu meios e oportunidades para publicar a sua obra? Um caminho adequado para o alcance de respostas a tais questionamentos pode ser encontrado na trajetória de Gama como militar, quando, como cabo, travou as primeiras relações com Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que, além de delegado de polícia da Província, 87 Para citar algumas obras que valorizam especialmente essas ações, cf.: AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999; AZEVEDO, Celia M. M. de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010; ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. 88 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 203. 89 PESTANA, Rangel. "LUIZ GAMA". A província de São Paulo, São Paulo, 25 ago. 1882 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 219. 32 era catedrático da Academia de Direito de São Paulo, onde também exerceu a função de bibliotecário interino.90 Ocorreu em abril de 1854 a nomeação de Luiz Gama “para coadjuvar trabalhos” a cargo do chefe de polícia da província de São Paulo.91 Meses depois, Gama foi exonerado de sua carreira militar por suposto ato de insubordinação. O cabo teria dirigido ameaças a um oficial, após um alegado insulto, e, por isso, passou 39 dias dos meses de julho e agosto daquele ano na prisão, onde se ocupava principalmente da prática da leitura, e depois foi banido da corporação.92 Pode-se supor que o ex-escravo, ao ser expulso, tenha se visto sem opções, pelo menos, sem opções que o agradassem, pois, no Brasil do século XIX, a cor da pele, e com ela todas as consequências negativas decorrentes, podia mudar conforme os apadrinhamentos e posições ocupadas por um negro, mas não sem algum tipo de ajuda. O negro liberto carregava o estigma do cativeiro além do perigo real de se ver novamente sob o jugo da escravidão, uma vez que o antigo senhor poderia pedir a revogação da alforria alegando ingratidão. Uma das estratégias mais recorrentemente usadas por ex-escravos, sobretudo em núcleos urbanos, era a criação de laços de amizade ou constituição de família93 na região onde o negro em questão estivesse habitando. Era fundamental tentar atrair certa visibilidade para sua boa conduta e aptidão para o trabalho, de modo que a ameaça da reescravização pudesse ficar distante.94 Nesse sentido, Luiz Gama soube aproveitar as oportunidades que lhe apareceram ao longo de sua carreira militar. Por intermédio das notas biográficas endereçadas a Lúcio de Mendonça, o então já escritor Luiz Gama deixou registrado que, após sair do exército, conseguiu estabelecer um 90 Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça nascido em Luanda, na África, no ano de 1812, era filho do magistrado português Francisco Xavier Furtado de Mendonça e veio morar no Brasil ainda criança. Iniciou, em 1834, seus estudos na Academia de Direito de São Paulo, bacharelando-se em 1838. No ano seguinte, ao defender o doutorado, ele foi nomeado lente substituto da Academia de Direito de São Paulo. Exerceu a função de bibliotecário num curto período do ano de 1848 e em 1851. Foi nomeado delegado de polícia da Província de São Paulo. E, finalmente, em 1856 foi efetivado catedrático do curso de direito administrativo na Academia de Direito de São Paulo. Cf: VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a história da Academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1924. pp. 196-197. 91 Correio Paulistano, São Paulo, 21 nov. 1854. Parte Oficial, p. 1. Disponível em: < http://memoria.bn.br/pdf/090972/per090972_1854_00124.pdf >. Acesso em agosto de 2017. 92 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 202. 93 Luiz Gama foi casado com Claudina Fortunato Sampaio, porém, não foi possível encontrar fontes que apontassem para a data em que ocorreu tal união. Em uma carta de 1870 ao amigo José Carlos Rodrigues, Luiz Gama anunciou que havia se casado e comentou sobre a educação do filho, Benedito Graco Pinto da Gama, nascido em 1859. Cf: GAMA, Luiz. Carta a José Carlos Rodrigues, 26/11/1870 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. 94 Para uma discussão mais aprofundada acerca das ameaças a liberdade dos negros libertos na sociedade oitocentista conferir: MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 33 contato com o catedrático e bibliotecário Furtado de Mendonça, que também atuava como delegado de polícia. Gama asseverou ter trabalhado com empenho sob as ordens do antigo conhecido, de quem acabou por conquistar estima e proteção.95 Ao reportar sua trajetória, Luiz Gama noticiou que serviu “como escrivão perante diversas autoridades policiais”.96 Sob tais informações, somadas às atividades que já vinha exercendo sob ordens do chefe de polícia da província meses antes de sua prisão, a nomeação de Gama como amanuense da Secretaria de Polícia por Furtado de Mendonça, em 1856, não causaria tanto espanto. E vale lembrar, ainda, que as atividades citadas estão relacionadas com o serviço público, o que ajuda a deduzir que, além de sua função militar, a proximidade com o delegado Furtado de Mendonça aumentou a probabilidade de exercer tais ocupações. E, ainda, ao considerar que o jovem cabo havia sido alfabetizado tardiamente, é admissível depreender que atividades como as citadas, que o colocavam diretamente em contato com a escrita, o ajudavam a desenvolver habilidades e competências para se tornar escritor. Da mesma forma, acerca das possibilidades de publicação das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, é possível inferir que a amizade entre o poeta e Furtado de Mendonça teria sido a chave para tal êxito, principalmente em razão da segunda edição, de 1861,97 ser dedicada ao amigo delegado de polícia.98 Resta ainda, contudo, indagar sobre o prelo que deu vida à obra em sua primeira edição: a tipografia Dois de Dezembro, que esteve instalada no palácio do governo paulista, no Pátio do Colégio e, mais tarde, na rua das Flores, 35, da qual era proprietário Antonio Louzada Antunes,99 homem que, além de também servir como amanuense na Secretaria de Polícia100 na década de 1850,101 aparece, ao lado de Luiz Gama, 95 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 203. 96 GAMA, Luiz. op. cit., p. 203. 97 A segunda edição da obra Primeiras Trovas Burlescas de Getulino foi publicada pela tipografia de Pinheiro e Cia, instalada na rua do Carmo nº 65 no RJ, e não nos foi possível investigar muito além dessas informações. 98. GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 95. 99 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977. p. 215. 100 Órgão de autoridade policial que, contando com a liderança do Delegado e seus ordenanças (escrivães, amanuenses, oficiais), era responsável pela ordem, nomeação de cargos públicos na Província e comunicação desta última com a Corte e autoridades de outras regiões do Império. Cf: BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, p. 162-173, 2013. 101 Cf. Correio Paulistano, São Paulo, 08 mai. 1864. Declaração, p.4. Antonio Louzada Antunes serviu ainda como tesoureiro da secretaria de polícia da província de São Paulo: Cf. Correio Paulistano, São Paulo, 5 ago. 1864. Parte Oficial, p. 1; foi nomeado Capitão do 1º batalhão de reserva da Guarda Nacional de São Paulo pelo Coronel Furtado de Mendonça: Cf. Diário de São Paulo, São Paulo, 3 mai. 1868. Petições despachadas pela presidência, p. 2; e faleceu em 1870: Cf. Diário de São Paulo, São Paulo, 1 mar. 1870. Gazetilha, p. 3. 34 como membro da Sociedade Independência.102 É sabido, ainda, que naquela época havia duas ou três tipografias na Província de São Paulo e103 não seria improvável que Luiz Gama tenha alimentado laços de proximidade com o proprietário de uma delas, pois, diante de tais circunstâncias, pode-se presumir que os dois homens, se não nutriram grande amizade, se conheciam formalmente por dividirem o mesmo ambiente de trabalho. Sendo assim, a combinação fortuita da amizade, ou apenas proximidade, no caso de Antonio Lousada Antunes, culminou em um ambiente extremamente favorável para a realização do que, na época, acabava por constituir um privilégio: a publicação de uma obra literária. Exclusivamente sobre as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino e a análise dos poemas nela contidos, é válido destacar a ironia presente já nos primeiros versos: No meu cantinho, Encolhidinho, Mansinho e quedo, Banindo o medo, Do torpe mundo, Tão furibundo, Em fria prosa Fastidiosa – O que estou vendo Vou descrevendo. Se de um quadrado Fizer um ovo Nisso dou provas De escritor novo.104 Em uma interpretação livre, pode-se deduzir que Luiz Gama aludia ao estranhamento que deveriam causar versos escritos e publicados por um “escritor novo”. Salientava, nesse mesmo poema, que, apesar de tudo, respeitava valores como “Honra, pátria, virtude, inteligência”